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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.48 Lisboa Dec. 2022  Epub Feb 20, 2023

https://doi.org/10.34619/nryd-y4mi 

Recensões

Collins, P. H., & Bilges, S. (2021). Interseccionalidade. Boitempo, (287 pp.)

iUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal. Email: zassis@fcsh.unl.pt


Patricia Hill Collins e Sirma Bilge conheceram-se no ano de 2006 em Durban, África do Sul, durante o 16.º Congresso Mundial de Sociologia; entretanto seis anos depois, quando se reencontraram no 6.º Congresso Internacional de Pesquisa de Feministas Francófonas em Lausanne, na Suíça, é que teve impulso a parceria para escrever este livro, que é “um convite para adentrar as complexidades da interseccionalidade”, como referem as autoras. À primeira edição, datada de 2016, Collins e Bilges adicionaram uma análise do crescente populismo de extrema-direita e o perigo que ele representa para as conquistas de direitos para e pelas pessoas marcadas por diversas categorias de discriminação e desigualdade.

As afinidades entre ambas, para além da sociologia como área de investigação, é também artística. Patricia foi dançarina, e Sirma pintora. Essa revelação é um dado importante para compreender uma abordagem da interseccionalidade a quatro mãos, feita por duas mulheres com distintas trajetórias de vida pessoal e académica mas pontos de vista convergentes; afinal “a arte”, dizem-nos elas, “influencia nossas sensibilidades interseccionais” (Collins & Bilges, 2020, p. 10).

O título da obra é composto por uma única e impactante palavra: Interseccionalidade - traduzido do original em inglês Intersectionality -, um neologismo que passou a ser usado em 1990, e que se mostrou essencial para que os debates sobre a desigualdade como um problema social global tivessem em conta o cruzamento de categorias como raça, classe, gênero, idade, estatuto de cidadania, entre outras. A interseccionalidade como ferramenta analítica é necessária porque a desigualdade não é a mesma para todas as pessoas. Marcadores sociais (gênero, etnia, classe, idade, nacionalidade, colonialidade, casta, etc.) e raciais (textura de cabelo, cor da pele, formas físicas, cores dos olhos, etc.) conferem níveis diferentes de opressão e discriminação.

Interseccionalidade é um termo de consenso para identificar uma realidade heterogênea, quer no seu entendimento, quer no seu uso, razão pela qual não existe um conceito único e suficientemente abrangente da diversidade que a caracteriza. Este termo foi cunhado pela professora, escritora e ativista Kimberlé Crenshaw; entretanto, Patricia Hill Collins e Sirma Bilge, a partir de uma investigação histórica, mostram como a interseccionalidade se fazia presente em diversos movimentos sociais já nas décadas de 60 e 70, como o Black Power, o movimento de libertação dos chicanos, o Red Power e os movimentos asiático-americanos que operavam as ideias centrais da interseccionalidade sem nomeá-la.

O tema principal do livro, explicitam-nos as autoras, assenta em uma “análise a respeito do poder do Estado neoliberal, seu discurso de securitização e a forma como as estruturas institucionais são moldadas por essas ideias” (Collins & Bilges, 2020, p. 254 ). Com essa proposta de partida, estabeleceram seis temas principais: desigualdade social, relações de poder interseccionais, contexto social, relacionalidade, complexidade e justiça social. Os três primeiros capítulos visam situar a interseccionalidade conceitualmente, historicamente e relacionalmente como investigação e práxis críticas; os quatro capítulos seguintes contextualizam a interseccionalidade quanto ao seu alcance global, frente aos protestos sociais e ao neoliberalismo, quanto à identidade e quanto à educação crítica. Por fim, o oitavo capítulo, com o título ‘interseccionalidade revisitada’, se distingue por ser uma síntese das teses expressas nos anteriores capítulos numa espécie de autoteste de coerência do conjunto da obra.

Uma preocupação das autoras que se faz presente em todos os capítulos é a de exemplificar as abordagens teóricas com casos concretos passados em países diversos, a maioria em recentes anos. Os exemplos, para além de apontarem para a globalidade do problema, carregam o tema da resistência contra a desigualdade social, expressa por “protesto social global, direitos reprodutivos, ativismo digital, educação crítica e importância da política identitária” (Collins & Bilges, 2020, p. 248). Os exemplos têm ainda o mérito de mostrar, de um lado, a força incomum de pessoas que reagem às mais cruéis formas de opressão e descaso pela vida humana, a exemplo a tragédia do Rana Plaza e do movimento das mulheres negras no Brasil; de outro lado, mostram a desfaçatez das pautas neoliberais em detrimento do respeito aos direitos humanos e às políticas sociais mais básicas. Os exemplos permitem também perceber que uma visão interseccional do problema pode gerar soluções individuais, como a iniciativa do Nobel da Paz de 2006, Muhammad Yunus, que criou o termo e a ideia do microcrédito para beneficiar as populações pobres de Bangladesh, ideia que colocou em prática com a criação do Grameen Bank (Yunus, 2007).

O livro prima por usar uma linguagem objetiva para tratar de questões complexas como a desigualdade social, que comporta perspetivas diversas dentro e fora da academia, e aponta para o uso da interseccionalidade como ferramenta analítica para reunir essas perspetivas, filtrando tendências políticas à direita que pautam a desigualdade social sob um viés neoliberal. Para exemplificar esse viés, as autoras recorrem à atuação da Fifa nas competições da Copa do Mundo de futebol com ênfase para a que se realizou no Brasil no ano de 2014. Foi principalmente nesta modalidade de desporto que se introduziu a ideia do fair play, ou jogo justo em Português. A expressão foi cunhada para incentivar o espírito desportivo, ou seja, a capacidade de aceitar com serenidade o resultado do jogo. Parte do pressuposto de que todos os jogadores têm as mesmas condições de jogar e as mesmas oportunidades de vencer. A representação do fair play em campo é certamente uma filosofia de vida inspiradora, mas oculta as práticas da própria Fifa fora de campo, seja na forma como ela impõe seus interesses aos governos nacionais que subsidiam a competição subvertendo leis locais e o interesse da população local, seja no aproveitamento que faz do trabalho e dos corpos dos atletas, produzindo lucros extraordinários para poucos, sem retorno social. O livro conecta a essa análise o facto de a Fifa utilizar a exploração da mão-de-obra, composta em sua maioria por mulheres, como no caso de Rana Plaza, para produzir toda a parafernália destinada a enfeitar os jogos e as torcidas.

As práticas da Fifa no âmbito das competições da Copa do Mundo também subsidiaram a análise das relações de poder pela lente da interseccionalidade e a análise da interseccionalidade frente aos sistemas poder. Esta talvez tenha sido a análise mais complexa realizada pelas autoras, pelo facto de os sistemas de poder influenciarem-se e construírem-se mutuamente na interseccionalidade, o que se evidencia pelo facto de os assuntos principais permearem todos os capítulos num esforço literário de constante resgate de ideias, conceitos e exemplos.

Ao finalizar a leitura desta obra, tem-se a sensação do muito que foi dito e do quanto ficou por dizer e exemplificar, pois casos concretos de discriminação e desigualdade existem em abundância, e as autoras são bem-sucedidas na proposta de apresentar a interseccionalidade como investigação e práxis críticas em permanente construção.

Referências bibligráficas

Collins, P. H., & Bilges, S. (2021). Interseccionalidade. Boitempo. [ Links ]

Crenshaw, K. W. (1991). Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, 43(6), 1241-1299. https://doi.org/10.2307/1229039 [ Links ]

Yunus, M. (2007). Credit for the poor: Poverty as distant history. Harvard International Review, 29(3), 20-27. https://www.jstor.org/stable/43650208 [ Links ]

Aceito: 07 de Outubro de 2022

Zamira de Assis. CIÊNCIA ID: https://www.cienciavitae.pt/portal/CB1F-BFBB-36A7

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