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Capoeira na disciplina Sociologia da Música

Capoeira in the teaching of Music Sociology

Resumo:

O artigo aborda a experiência de ensino na disciplina Sociologia da Música no Curso de Licenciatura Plena em Música da UFPA, a partir de uma experiência ocorrida em 2013. O tema geral utilizado nas aulas foi a capoeira, a partir do olhar da sociologia da música, da Educação Musical e da etnomusicologia. A principal intenção da utilização dessa manifestação Afro-brasileira foi provocar a reflexão dos discentes sobre as demais culturas musicais presentes na sociedade a qual os mesmos pertencem e convivem, enfatizando os diferentes modos de ensino, aprendizado e performance musical - não menos importantes ou complexos do que os acadêmicos.

Palavras-chave:
capoeira e ensino de música; sociologia da música; etnomusicologia

Abstract:

This paper presents the experience of teaching a Music Sociology course at Federal University of Pará, Brazil, in 2013. The classes focused on the Brazilian genre of capoeira from the point of view of Music Sociology, Music Education, and Ethnomusicology. The main goal of utilizing capoeira as the core of class discussion was to lead a reflection upon non-academic musical cultures present in Brazilian society while focusing on different ways of teaching, learning and performing music.

Keywords:
capoeira and music teaching; sociology of music; ethnomusicology

1 - Introdução

O Curso de Licenciatura Plena em Música é parte do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará e tem por objetivos:

- Formar profissionais para o ensino da música em escolas e outros espaços artísticos e educacionais alternativos e emergentes.

- Formar profissionais fundamentados quanto ao conhecimento básico da música como linguagem artística em sua história, estéticas, sistemas, estruturas, elementos, materiais, meios, técnicas e repertórios; capazes de ler, interpretar, analisar, criticar, recriar e executar no âmbito da linguagem musical, enquanto domínio específico necessário ao exercício do magistério da música.

- Formar profissionais fundamentados pedagogicamente para o ensino da música como linguagem artística.

- Formar profissionais com hábitos e habilidades que lhe permitam a prática da pesquisa científica na área musical (PPC, 2010, p.17).

O Projeto Político Pedagógico do Curso está estruturado em eixos curriculares que abrangem a prática instrumental, conteúdos pedagógicos, a base humanística, aspectos criativos e a pesquisa. No eixo curricular voltado para a humanística estão vinculadas as disciplinas Introdução a Etnomusicologia e Sociologia da Música. Em tais disciplinas são ministrados conteúdos relativos ao histórico das mesmas, apresentadas principais perspectivas teóricas e contextualização atual das referidas áreas de estudo no Brasil e no mundo.1 1 Observa-se que os alunos dos anos de 2012 e 2013 apresentaram alto nível de dificuldade em acessar textos em outras línguas, fato que orientou a escolha de textos em língua portuguesa. Ambas as disciplinas possuem uma carga horária de 68 horas, sendo que 51 horas são consideradas teóricas e 17 horas consideradas práticas.

A estruturação de ambas as disciplinas foi feita a partir de algumas ponderações: 1. A necessidade de produção de conhecimento sobre as práticas musicais paraenses, notadamente em relação à cidade de Belém e ao bairro onde está situada a Universidade Federal do Pará - bairro do Guamá; 2. A perspectiva de gerar um relacionamento relevante entre o conhecimento produzido e a sociedade do entorno da Universidade; 3. Oportunizar aos alunos experiências importantes de vivência da pesquisa etnomusicológica cujo produto/resultado tivesse uma relevância para os colaboradores da pesquisa.

Os caminhos teóricos trilhados estão conectados com recentes experiências etnomusicológicas de diálogos intercomunitários e transferência e encontros de saberes (LUCAS, 201114 LUCAS, Glaura. (2011) "O trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais" In Revista Música e Cultura. Volume VI, Pg. 47 - 58.; ARAÚJO, 2011ARAÚJO, Samuel. (2011) "Etnomusicologia e debate público no Brasil hoje: cacofonia ou polifonia?" Revista Música e Culturanº6.; TUGNY, 2006; LÜHNING, 200615 LÜHNING, Ângela. (2006) "Etnomusicologia participativa: inquietudes em relação às músicas brasileiras". In Músicas Africanas e Indígenas no Brasil. (Rosângela Pereira de Tugny e Ruben Caixeta de Queiroz, org), p.37-53.), almejando conectar estas experiências do que hoje se delimita a área da 'etnomusicologia aplicada' com o contexto da formação dos professores de música. BEHAGUE (1988)BEHAGUE, Gerard. (1998) "Aporte de la Etnomusicologia em uma Formación Realista del Educador Musical Latinoamericano" Revista Musical Chilena. Año XLII, enero-junio, Nº 169, pp. 45-48. já chamava a atenção para a necessidade de entrosamento entre etnomusicologia e educação musical na formação de professores de música, levando em consideração as particularidades históricas, sociais e culturais da América Latina. Neste sentido, importam as relações estabelecidas e vivenciadas entre música e sociedade, sob seus diversos enfoques. QUEIROZ (2012)18 QUEIROZ, Luis Ricardo. (2012) "A Educação Musical no Brasil do Século XXI: articulações do ensino de música com as políticas brasileiras de avaliação educacional." In Revista da ABEM. V. 20, Nº 28, p.35-46. destaca a necessidade de articulação entre os diversos setores de ensino e pesquisa e as políticas públicas que norteiam o sistema educacional brasileiro, num diálogo critico e de avaliação. A educadora musical Magali Kleber, na revista em comemoração ao aniversário de 20 anos da Associação Brasileira de Educação Musical, reflete sobre as redes interinstitucionais de discussão sobre a área, rastreando as estruturas com potencial de dialogar com os saberes não validados pela academia:

Requer, ainda, se pensar em ações que se projetem para espaços materiais e simbólicos de criação artística, proporcionando a mediação entre a cultura, a educação e o cidadão. São questões que carecem que se debruce sobre a dinâmica de uma realidade complexa, sobre as novas propostas e desafios, buscando construir um mosaico orgânico entre o saber científico, o saber popular e a prática social. É, sobretudo, reconhecer a escola como um espaço genuinamente democrático para todos os brasileiros terem acesso ao saber sistematizado e articulado com as diversas identidades sociais (KLEBER, 201212 KLEBER, Magali. (2012) "A ABEM e a Educação Musical no século XXI: contextualizando o significado da dinâmica em rede." In Revista da ABEM. V. 20, Nº 28, p. 27-34., p.33).

Santos apresenta um relato de pesquisa com base no corpus teórico da área da sociologia da música e na interpretação da relação entre adolescentes de uma escola de ensino básico e a música, a autora pontua a importância do olhar sobre a relação entre música e sociedade na formação de professores de música (SANTOS, 200519 SANTOS, Daniela Oliveira dos. (2005) "Sociologia da Música: base para a compreensão da relação de adolescentes com a música popular" In Anais do XIV Encontro Anual da ABEM. Belo Horizonte.). SOUZA (2004)20 SOUZA, Jusamara. (2004) "Educação musical e práticas sociais." In Revista da ABEM , nº 10. PP. 7 - 11. destaca para a necessidade de se pensar a música enquanto fato social no processo de ensino e aprendizagem, notadamente em considerar os alunos de um dado contexto escolar como sujeitos históricos atuantes neste processo. Para este artigo e para a condução da disciplina Sociologia da Música, o sentido de que música importa para a sociedade está de acordo com as assertivas de TURINO (2008)22 TURINO, Thomas. (2008) Music as Social Life: the politics of participation. Chicago and London: University of Chicago Press , incluindo a perspectiva da performance participativa.

Todavia, para a experiência delineada neste texto em conjunto com os docentes responsáveis pelas atividades curriculares mencionadas, observa-se não somente a incorporação destes saberes na experiência de pesquisa dos alunos em seu processo de formação de licenciado em música, quanto na incorporação destes saberes na academia, a partir da valorização justa dos detentores destes conhecimentos musicais legítimos.

Assim sendo, as margens epistemológicas entre Sociologia da Música e Etnomusicologia apresentaram-se fluidas, perpassando os diálogos e autores que transitam entre uma e outra, considerando as articulações possíveis entre etnomusicologia e educação musical, sociologia, antropologia, política e outras áreas de interesse para o Curso de Licenciatura Plena em Música da UFPA no contexto da oferta desta atividade curricular. Áreas de interesse da etnomusicologia foram recentemente discutidas por SALGADO (2011) após realização de entrevistas com pesquisadores e docentes da disciplina etnomusicologia em Programas de Pós-Graduação no Brasil. O autor assinalou as disciplinas "antropologia, sociologia, filosofia, história, teoria política, geografia social, história natural, musicologia, coreologia, acústica musical, história da música, literatura, estudos culturais, linguística, filosofia da linguagem, psicologia, psicologia social, sociologia da música e da educação musical, educação, educação musical - como disciplinas que participam da construção de conhecimento em etnomusicologia" (2011, p. 62). Diversos autores importantes da etnomusicologia já discutiram a questão das bordas e do campo da disciplina (MERRIAM, 196416 MERRIAM, Alan P. (1964) The Anthropology of Music. Evanston: Northwesrwe University Press.; NETTL, 200517 NETTL, Bruno. (2005) The Study of Ethnomusicology: thirty-one issues and concepts. Urbana e Chicago: University of Illinois Press.; TURINO, 200822 TURINO, Thomas. (2008) Music as Social Life: the politics of participation. Chicago and London: University of Chicago Press ; CHADA, 2011) considerando a sua vocação dialógica e maleabilidade na construção do objeto de estudo, em que pese a produção musical. Ainda constituindo elemento chave para as trilhas desta disciplina, a etnografia emerge como método e característica na compreensão de música como fruto das relações sociais, como fato social e, na definição de BLACKING (1995BLACKING, John. (1995) "Music, Culture and Experience." Music, Culture and Experience. Reginald Byron (Editor). Chicago and London: University of Chicago Press. , 2000)BLACKING, John. (2000) How Musical is Man? Seatle: University of Washington Press., música como sons humanamente organizados. Para Chada:

Assim, poderiam ser consideradas: 1) Áreas de interesse e conhecimento interno da Etnomusicologia: Teoria musical; análise musical; Performance Musical; Transcrição Musical; Organologia; 2) A Etnomusicologia em suas relações de conhecimento e interesse com outros campos: as intersecções da Etnomusicologia com a Antropologia, Sociologia, Psicologia, História e Geografia; a Etnomusicologia em suas relações com as demais artes, com a Filosofia, Comunicação Social, Educação, Literatura, Linguística e Semiótica; os possíveis encontros da Etnomusicologia com a Biologia, a Física, a Informática e a Tecnologia; 3) Aplicações públicas (sociais e culturais): uma questão a ser considerada (CHADA, 2011).

A partir da opção de um olhar sobre as relações sociais entre música e sociedade na cidade de Belém, no ano de 2013 a disciplina Sociologia da Música teve como temática principal a Capoeira, e contou com a colaboração de um capoeirista e membro da Associação de Resgate à União da Arte Capoeira. Em concordância com os alunos e com o presidente da ARUÃ Capoeira, foi desenvolvido projeto de pesquisa relacionado à capoeira vivenciada nesta associação integrando os alunos, professores da disciplina e membros da ARUÃ Capoeira. Objetivou-se produzir conhecimento sobre a música praticada por esta associação, oportunizar uma parceria entre a universidade e este grupo, além de vivenciar musicalmente as rodas de capoeira.

2 - Associação de Resgate à União da Arte Capoeira - ARUÃ Capoeira

A cultura musical escolhida foi a da capoeira2 2 Vicente Salles (2002, p.77) define a capoeira como espécie de jogo de destreza, ou forma de luta brasileira muito valiosa na defesa da liberdade de fato ou de direito do negro liberto; De origem africana, deita raízes em Angola. praticada na Associação de Resgate à União da Arte Capoeira3 3 Cada mestre de capoeira possui características únicas de ensino e de prática da capoeiragem, por isso destaco que as atividades citadas são as da ARUÃ Capoeira. (ARUÃ Capoeira) fundada em 20 de janeiro de 1997 por Mestre Silvério que é o Presidente do grupo. A sede da ARUÃ Capoeira localiza-se na cidade de Belém, na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Augusto Meira. Atualmente, a associação conta com aproximadamente 300 alunos e alunas, com polos de ensino espalhados pelos bairros de Belém e de municípios da área metropolitana. Esse número de alunos é muito variável, pois os contratos que os professores da associação possuem com as escolas podem estar acabando ou começando, isso implica na inclusão ou exclusão de dezenas de alunos na ARUÃ Capoeira (BACCINO, 2013BACCINO, Marcelo Pamplona. (2013) Berimbau na ARUÃ Capoeira de Belém do Pará: contexto, toques, cantigas, execução e transmissão. Dissertação (Mestrado), 2013, 239f. il. - Universidade Federal do Pará. Instituto de Ciências da Arte, Mestrado Acadêmico em Artes, Belém., p.69).

Muitas são as situações de ensino e aprendizagem da música da capoeiragem na ARUÃ Capoeira. Algumas dessas situações ocorrem ao chegarem alunos no local de treino, alguns minutos antes do início do treinamento, quando todos cantam e tocam simulando uma roda de capoeira com particularidades musicais ensinadas pelo Mestre Silvério. Outras situações ocorrem quando o aluno, num esforço solitário, é monitorado à distância por um experiente praticante (geralmente o mestre ou um professor) que intervém se necessário e desse modo ajuda o aluno no seu aprendizado. Ainda há situações em que o mestre direciona o treino principalmente para o aspecto musical da capoeira (BACCINO, 2013BACCINO, Marcelo Pamplona. (2013) Berimbau na ARUÃ Capoeira de Belém do Pará: contexto, toques, cantigas, execução e transmissão. Dissertação (Mestrado), 2013, 239f. il. - Universidade Federal do Pará. Instituto de Ciências da Arte, Mestrado Acadêmico em Artes, Belém., p.130).

Nesse contexto de aprendizado musical capoeirístico e acadêmico, no primeiro semestre de 2013, os discentes da disciplina Sociologia da Música do Curso de Licenciatura Plena em Música da UFPA foram inseridos.

3 - Música, capoeira e sociedade

A citada turma de Licenciatura em Música teve oportunidade de vivenciar a filosofia e a música da capoeira praticada na ARUÃ Capoeira. A prática dessa cultura Afro-brasileira foi aplicada dentro e fora da sala de aula. Ocorreram aulas expositivas; leitura e discussão de textos; exibição de material áudio-visual seguido de discussão; seminários; pesquisa em campo em local diretamente relacionado ao tema da disciplina; exemplificações do tema da aula utilizando o instrumento musical berimbau ou movimentações corporais da capoeiragem; provocação de debates entre os alunos sobre os temas tratados. A avaliação foi feita em grupos tendo como metas a elaboração do ensaio sobre um dos tópicos estudados em sala de aula e a apresentação de seminário sobre o tema do ensaio que o grupo escolheu.

As aulas teóricas apresentaram informações que foram divididas em quatro unidades, são elas:

Unidade I - Sociologia: O que é sociologia; Histórico da disciplina; Indivíduo e sociedade.

Unidade II - Cultura: Desenvolvimento do conceito de cultura; Como opera a cultura; Dinâmica da cultura; A arte como sistema cultural.

Unidade III - Música: Música na sociedade e na cultura; Cultura e sociedade na música; Fundamento sócio-cultural da criação musical.

Unidade IV - Pós-modernidade: O global, o local e a identidade; Pós-modernidade na América Latina - Culturas Híbridas; Indústria cultural e cultura de consumo.

Já as aulas práticas resultaram na pesquisa em campo que ocorreu na sede da ARUÃ Capoeira. As visitas aconteceram nas sextas-feiras, dia em que ocorre o ritual da roda de capoeira. Importante citar que várias demonstrações foram feitas em sala de aula e algumas dúvidas foram tiradas por diversos alunos através da rede mundial de computadores, telefone e por conversas antes do início ou após o final das aulas.

Durante as aulas em campo os discentes puderam vivenciar uma cultura musical que possui práticas de ensino diferentes da existente na universidade, porém, também, com algumas similaridades, pois, embora o modo predominante do ensino na ARUÃ Capoeira seja a transmissão oral, é comum a utilização de livros e revistas sobre capoeira, discos de músicas de capoeira (na sede da associação existe um acervo dos mesmos), documentários, vídeos e artigos na rede mundial de computadores (BACCINO, 2013BACCINO, Marcelo Pamplona. (2013) Berimbau na ARUÃ Capoeira de Belém do Pará: contexto, toques, cantigas, execução e transmissão. Dissertação (Mestrado), 2013, 239f. il. - Universidade Federal do Pará. Instituto de Ciências da Arte, Mestrado Acadêmico em Artes, Belém., p.120).

Os alunos que participaram da disciplina ministrada observaram as diferenças entre a prática e o ensino musical da capoeira na referida associação e a da universidade. As distinções apareceram no processo educacional que é concebido por meio de uma educação integral: não se separa o saber, não se separam as disciplinas, mas, pelo contrário, somam-se os valores éticos e filosóficos ao cotidiano. A educação é para toda a vida por princípio (CANDUSSO, 2009CANDUSSO, Flavia. (2009) "Capoeira Angola, educação musical e valores civilizatórios afro-brasileiros". 244f. Tese (Doutorado). UFBA. Salvador., p.64). Não existe sala de aula; o neófito é ensinado por todos os outros alunos mais experientes do que ele; o uso de partituras é inexistente, utiliza-se a onomatopéia para descrição musical.

O praticante de capoeira aprende a armar e desarmar o berimbau, esticar o couro dos pandeiros e atabaques; aprende a tocar o atabaque, o pandeiro, agogô, reco-reco e o berimbau.

Muitos alunos perguntaram como os instrumentos são afinados e qual o parâmetro de afinação para a prática da capoeira que eles estavam vivenciando. Através das aulas práticas foi possível observar que, quanto à afinação, os capoeiras desenvolvem com o treino, uma capacidade auditiva especial fazendo com que aqueles que possuem bastante experiência consigam afinar os instrumentos (LARRAÍN, 200513 LARRAÍN, Nícolas Rafael Severin. (2005) "Capoeira Angola: música e dança". Salvador. Dissertação (Mestrado), 177f.: il.). O parâmetro de afinação é internalizado pelo capoeirista através da experiência adquirida através da prática da capoeiragem dentro do grupo.

Outra característica importante da capoeira que chamou a atenção dos alunos foi a indivisível relação entre os variados aspectos da capoeiragem (luta, jogo, dança, música, filosofia de vida), características explícitas ao tentar descrever o bom capoeira4 4 A capoeira é uma prática integrada de luta, dança, domínio de instrumentos musicais, canto e filosofia de vida. Portanto o bom capoeira é bom lutador, bailarino, músico, poeta, compositor e filósofo. Tudo isso dentro do respeito à tradição da capoeiragem. . Este que faz seu próprio berimbau, faz a manutenção de todos os instrumentos musicais da capoeira, arma o berimbau, afina os instrumentos, executa o toque de modo que todos os integrantes da roda possam ouvir e identificá-lo com clareza, possui amplo repertório de toques e improvisos e, principalmente, conhece os fundamentos da tradição da capoeiragem (BACCINO, 2013BACCINO, Marcelo Pamplona. (2013) Berimbau na ARUÃ Capoeira de Belém do Pará: contexto, toques, cantigas, execução e transmissão. Dissertação (Mestrado), 2013, 239f. il. - Universidade Federal do Pará. Instituto de Ciências da Arte, Mestrado Acadêmico em Artes, Belém., p.125). O capoeira precisa conhecer as tradições para, desse modo, utilizar seus fundamentos e demonstrar ser um exímio tocador (BACCINO, 2013, p.124).

Nas visitas até a sede da ARUÃ Capoeira houve interação entre os integrantes da associação e os alunos da UFPA. Além de perguntas das mais variadas, os acadêmicos tiveram a oportunidade de tocar todos os instrumentos musicais da capoeiragem, os instrumentos mais disputados foram os berimbaus. Informações, demonstrações e experimentações sobre a cultura musical da capoeira que ocorreram em sala de aula ajudaram os universitários a interagir melhor com os capoeiras na sede, mas dificuldades relacionadas à prática musical apresentaram-se e causaram muitos risos. Por exemplo, nenhum aluno conseguiu equilibrar o berimbau por mais de dois ou três minutos sem dar um intervalo para o descanso da última articulação do dedo mindinho, pois é ela que sustenta o peso de todo o instrumento e foi observado durante as visitas que, comumente, o capoeira fica trinta minutos ou mais tempo tocando berimbau na roda de capoeira sem fazer qualquer intervalo para descanso. Já os dedos dos acadêmicos ficavam doloridos e roxos o que gerava muitas exclamações de dor e a percepção física quanto à complexidade técnica que eles estavam vivenciando: uma cultura musical diferente da estudada por eles na universidade.

Em uma das visitas ocorreu a roda de capoeira e os discentes participaram com palmas e respondendo o refrão das músicas. Com o término do ritual ocorreram diversos diálogos entre os capoeiras e os universitários. Uma das observações que foi feita e que merece destaque relaciona-se às multitarefas que o capoeira que está com o berimbau executa ao mesmo tempo, pois ele toca, canta e organiza a roda. Também fica atento aos movimentos dos lutadores, pois sempre existe o risco de um golpe mal executado acertar o instrumento ou o tocador e às vezes ainda responde, geralmente com acenos de cabeça, alguma pergunta feita. Foi comentado que para chegar a esse nível é preciso de muito treino e vivência na capoeiragem.

As impressões dos alunos da UFPA e dos capoeiras da ARUÃ Capoeira em relação a este trânsito entre a universidade e a associação de capoeiras perpassou pela descoberta - da maior parte deles - de outra cultura musical muito presente na sociedade a qual os mesmos pertencem, com grande complexidade de execução, criação e aprendizagem. Os alunos conversaram e fizeram intercâmbio de informações com os capoeiras sendo que muitos deles são exímios tocadores de berimbau, atabaque, pandeiro, reco-reco, agogô e conhecedores das tradições da cultura que vivem. Foi possível perceber que para esses capoeiras chegarem ao nível de excelência foram necessários muitos anos de treino em convivência com o grupo.

4 - Vivência e relevância da pesquisa em música e sua atuação político-educativa

No término da disciplina, os artigos resultantes da mini-pesquisa que os alunos fizeram foram revisados, impressos, encadernados e, então, entregues à ARUÃ Capoeira para fazerem parte do acervo da pequena biblioteca pertencente à instituição.

Alguns dos temas escolhidos e desenvolvidos pelos alunos foram relacionados a elementos importantes da prática da capoeira, como a construção artesanal do berimbau por parte dos capoeiras da associação visitada; saber quais os principais toques de berimbau utilizados no ritual da roda de capoeira angola da ARUÃ Capoeira, suas origens e seus significados dentro da tradição da capoeiragem; investigaram os processos de ensino e aprendizagem da música na capoeira praticada no grupo estudado; a influência da capoeira na escola levantando princípios pedagógicos da prática e como meio de inclusão social, resgate da cidadania e de valores sociais.

O desenvolvimento destes temas incluiu a participação dos alunos nas rodas de capoeira; entrevistas com o mestre, os professores e os aprendizes; além de leituras e audições de músicas gravadas nas rodas. A experiência de "trabalho de campo" e aproximação com uma cultura tão longe e tão perto foi extremamente oportuna para alunos que possivelmente serão futuros professores ou pesquisadores de música numa cidade tão plural como Belém do Pará.

Para a redação dos artigos, os alunos se apropriaram de discussões e conceitos apresentados na disciplina e efetivaram diálogos com os autores discutidos em sala de aula. Tais diálogos se deram, principalmente, em relação à diversidade cultural (HALL, 201110 HALL, Stuart. (2011) A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva; Guaracira Lopes Louro. 11.ed. Rio de Janeiro: DP&A.), hibridismos (CANCLINI, 2001CANCLINI, Nestor Garcia. (2001) Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP., p.17-30) e pós-modernidade (HARVEY, 199211 HARVEY, David. (1992) "Modernidade e modernismo". In: Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola., p.21-43). Com a base teórica adquirida durante as aulas, somada às vivências em campo e incluindo a carga cultural que os alunos já possuíam, alguns questionamentos foram apresentados pelos alunos após as primeiras visitas ao grupo de capoeira, como: Qual a função que a música exerce na capoeira e seu processo de ensino e aprendizagem? Qual a metodologia utilizada para o ensino da música nessa arte? Quais suas principais características? Por que não existe escrita musical na capoeira? Quais as diferenças musicais entre os dois principais estilos de capoeira? Por que é importante conhecer a música da capoeira?

Em resposta às dúvidas várias perspectivas teóricas foram apresentadas pelos alunos nos artigos entregues no fim das aulas da disciplina e nelas havia descrições minuciosas e de elevada sensibilidade de vários momentos do ritual da roda de capoeira. Nos artigos estava presente a percepção de que o ensino, aprendizado e execução da música da capoeira são tão complexos quanto o que é ensinado, aprendido e executado na universidade (de tradição europeia ocidental). Destacaram que a capoeira não é apenas um jogo de corpos, mas é também uma manifestação musical-marcial-filosófica rica e técnica, que toda manifestação musical deve ser respeitada e valorizada e que o capoeira exerce a função de músico de modo tão pleno quanto qualquer outro músico acadêmico.

Considerando os objetivos propostos para a disciplina e mencionados acima, observa-se o alcance de uma dimensão política relevante, pois, o interesse e valorização da capoeira pelo Curso de Licenciatura Plena em Música da UFPA, juntamente com outras ações político-educacionais referente a este grupo de capoeira, confere importância e um lugar no cenário educacional que esta prática assume no âmbito da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Augusto Meira.

Há necessidade de destacar, ainda, todas as questões apontadas pelas leis que obrigam o ensino de conteúdo musical nas escolas públicas e da história e cultura Afro-brasileiras, aflorando, assim, a junção destas leis no que tange às práticas musicais indígenas e Afro-brasileiras. Ora, neste contexto, a parceria lógica entre a escola e a capoeira é o caminho a ser trilhado. Como inserir estes mestres no ensino regular das escolas públicas e das universidades? Os caminhos para chegar a este desafio não são óbvios, mas são obrigatórios.

5 - Discussão e Conclusões

A escolha da capoeira como temática deu-se pelo fato da mesma ser muito conhecida pela sociedade brasileira5 5 Em 2003 o Brasil tinha seis milhões de praticantes de capoeira (COSTA, 2005). , paraense e belemense. A inserção no grupo é acessível para qualquer pessoa interessada, pois não há seleção e discriminação para com os neófitos e visitantes. Graças a essas características foi possível observar e vivenciar várias atividades do processo de execução e ensino musical por parte dos alunos visitantes. Nesse cenário emergiu a necessidade de ampliar a visão sobre a música produzida e executada na sociedade em que vivemos e a necessidade de oferecer aos discentes informações e vivências em variadas culturas musicais, provocando e desenvolvendo a reflexão e diálogo permanente com a realidade. De acordo com a pesquisadora Glaura Lucas:

Para o pesquisador, ou aluno-pesquisador, a experiência compartilhada se apresenta como potencialmente bem mais rica e complexa em termos de interação social, em se comparando com modelos mais tradicionais da pesquisa interpretativa. No entanto, esse diálogo vai ser tão mais profundo, quanto mais atento o pesquisador estiver para a qualidade das habilidades interpessoais nesse relacionamento (LUCAS, 201114 LUCAS, Glaura. (2011) "O trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais" In Revista Música e Cultura. Volume VI, Pg. 47 - 58., p.57).

O acolhimento da ARUÃ Capoeira em sala de aula alude à experiência de campo descrita por COHEN (2008)COHEN, Judah M. (2008) "Shadows in the Classoroom: Encountering the Syrian Jewish Research Project Twenty Ears Later" In: Shadows in the Field: New perspective ofr Fieldwork in Ethnomusicology. Second Edition. Kindle Version. Gregory Bars and Timothy J. Cooley (Orgs). Osxford/New York: Oxford University Press. sobre o trabalho de campo em sala de aula. Da mesma forma, os capoeiristas participaram não somente na ministração da disciplina quanto na recepção dos alunos na sede do grupo, oportunizando uma prática musical diferenciada além da pesquisa etnográfica.

Em dezembro de 2014 foi criado o Laboratório de Etnomusicologia da UFPA6 6 www.labetno.ufpa.br num esforço dos Grupos de Pesquisa Música e Identidade na Amazônia - GPMIA7 7 Musicaeidentidadenaamazonia.blogspot.com.br e Grupo de Estudos Musicais do Pará - GEMPA, ambos vinculados ao Curso de Licenciatura Plena em Música e ao Programa de Pós-Graduação em Arte da UFPA. O LabEtno tem como objetivos o diálogo com os mestres e mestras da cultura musical paraense, bem como a produção de conhecimento sobre música no Pará e o acomodamento, organização e acesso de acervo audiovisual oriundo das pesquisas sobre música nos Grupos de Pesquisa sobre música da UFPA. Através do LabEtno, pretende-se desenvolver ações e pesquisas sobre música que sejam relevantes para as comunidades parceiras e que gerem novos conhecimentos sobre as práticas musicais do estado, da região e do país.

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    Observa-se que os alunos dos anos de 2012 e 2013 apresentaram alto nível de dificuldade em acessar textos em outras línguas, fato que orientou a escolha de textos em língua portuguesa.
  • 2
    Vicente Salles (2002, p.77)21 SALLES, Vicente. (2002) Música e músicos do Pará. 2.ed. Brasília: Microedição do Autor, il., 431p. define a capoeira como espécie de jogo de destreza, ou forma de luta brasileira muito valiosa na defesa da liberdade de fato ou de direito do negro liberto; De origem africana, deita raízes em Angola.
  • 3
    Cada mestre de capoeira possui características únicas de ensino e de prática da capoeiragem, por isso destaco que as atividades citadas são as da ARUÃ Capoeira.
  • 4
    A capoeira é uma prática integrada de luta, dança, domínio de instrumentos musicais, canto e filosofia de vida. Portanto o bom capoeira é bom lutador, bailarino, músico, poeta, compositor e filósofo. Tudo isso dentro do respeito à tradição da capoeiragem.
  • 5
    Em 2003 o Brasil tinha seis milhões de praticantes de capoeira (COSTA, 2005COSTA, Lamartine P. da et al. (2005) "Cenário de Tendências Gerais dos Esportes e Atividades Físicas no Brasil". In: COSTA, Lamartine P. da (Org). Atlas do esporte no Brasil: atlas do esporte, educação física e atividades físicas de saúde e lazer no Brasil. Rio de Janeiro: Shape.).
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Referências

  • 1
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  • 2
    BACCINO, Marcelo Pamplona. (2013) Berimbau na ARUÃ Capoeira de Belém do Pará: contexto, toques, cantigas, execução e transmissão. Dissertação (Mestrado), 2013, 239f. il. - Universidade Federal do Pará. Instituto de Ciências da Arte, Mestrado Acadêmico em Artes, Belém.
  • 3
    BEHAGUE, Gerard. (1998) "Aporte de la Etnomusicologia em uma Formación Realista del Educador Musical Latinoamericano" Revista Musical Chilena Año XLII, enero-junio, Nº 169, pp. 45-48.
  • 4
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  • 5
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  • 6
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    03 Dez 2014
  • Aceito
    20 Set 2015
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