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Novas perspectivas em estudos célticos: para onde vamos a partir de agora?

Resumo:

Nos últimos vinte anos, houve grandes avanços nos Estudos Celtas - seja em Linguística, Literatura Comparada, Mídia, História, Política ou Arqueologia. Essas mudanças não se devem apenas a novas abordagens teóricas e ao desenvolvimento do debate interdisciplinar, mas, sobretudo, a novas descobertas e métodos inovadores de análise. Os modelos para um chamado “Mundo Celta” ou uma “Sociedade Celta” foram minuciosamente questionados e os estudiosos reconhecem a importância de diferentes desenvolvimentos locais e regionais. Hoje, poucos aceitam que as sociedades medievais na Irlanda e nas partes de língua celta da Grã-Bretanha preservam exemplos inalterados do chamado “arcaísmo”. Entende-se que as sociedades são dinâmicas e são vistas em seus próprios termos. A grande variabilidade regional é evidente, particularmente em análises comparativas cruzadas de leis medievais irlandesas e galesas, literatura vernacular e arqueologia. Com base em tal debate, propomos que os termos “celta” e “céltico” são conceitos em transformação. Em nossa perspectiva, a área de “Estudos Célticos” é melhor definida pelas noções de interconectividade e mobilidade.

Palavras-chave:
Estudos celtas; Sociedades medievais; Arcaísmo; Interconectividade e mobilidade

Abstract:

In the last twenty years, there have been large advances in Celtic Studies — be it in Linguistics, Comparative Literature, Media, History, Politics, or Archaeology. These were not only due to new theoretical approaches and further development of interdisciplinary debate, but above all to new discoveries and innovative methods of analysis. The models for a so-called ‘Celtic World’ or a ‘Celtic Society’ have been thoroughly questioned and scholars acknowledge the importance of different local and regional developments. Very few now accept that medieval societies in Ireland and the Celtic-speaking parts of Britain preserve unchanged examples of so-called ‘archaism’. Societies are understood to be dynamic and are viewed in their own terms. Large regional variability is evident, particularly in cross-comparative analyses of Irish and Welsh medieval laws, vernacular literature and archaeology. Drawing from such a debate, we propose that the terms ‘Celt’ and ‘Celtic’ are changing concepts. In our perspective, the area of ‘Celtic Studies’ is better defined by the notions of interconnectivity and mobility.

Keywords:
Celtic Studies; Medieval societies; Archaism; Interconnectivity and mobility

Em 2000, Hale e Payton sugeriram uma nova agenda para os Estudos Célticos, exortando os estudiosos a irem além do foco em uma visão essencialista (e homogênea) da etnicidade e da cultura célticas, a fim de enfrentar as questões de “exploração, apropriação, representação e autenticidade Hale e Payton, 2000HALE, Amy; PAYTON, Philip (Eds.). New Directions in Celtic Studies. Exeter: University of Exeter Press, 2000., p. 12). Essas não são perguntas apenas para aqueles que trabalham com culturas celtas modernas e línguas célticas. De fato, tais questões são fundamentais para qualquer cientista social que trabalhe com sociedades antigas, incluindo os interessados em Estudos Célticos e da Idade do Ferro. É importante que os acadêmicos que trabalham nas disciplinas que compõem os Estudos Célticos extraiam mais amplamente as questões de pesquisa e insights de campos afins. Isso enriquecerá os Estudos Célticos, sem simplificá-los, e os colocará em diálogo com disciplinas similares, criando discursos transdisciplinares empolgantes. Ao mesmo tempo, resistindo à homogeneidade e ao essencialismo, a diversidade dentro do campo será reconhecida e apoiada.

Interconectividade e mobilidade são dois dos princípios centrais que podem ser usados para definir os Estudos Célticos nos dias de hoje e impulsionar agendas que os alinhem mais com essas outras disciplinas. A interconectividade enfatiza as relações no tempo, no espaço, nas abordagens e nas disciplinas de pesquisa que podem levar a um campo multifacetado. Ela lança luz sobre as diásporas de populações, comércio e troca, bem como sobre as constantes mudanças que criaram o que hoje é considerado “cultura celta”. Esses dois conceitos são tão relevantes para a história e a arqueologia quanto para as ideias modernas de “celticidade”. Eles têm uma origem complexa. O núcleo do argumento sobre a chamada “cultura celta” está em uma etnogênese altamente debatida. Desde o século XVI, ela tem orientado a busca pelos antigos celtas, a definição e a apreensão da família das línguas célticas - como parte das línguas indo-europeias -, dos seus vestígios materiais, além de seu patrimônio, reimaginações e apropriações ao longo do tempo.

Do mesmo modo, a busca pelos antigos celtas também levou a uma procura aos celtas insulares da Irlanda e da Grã-Bretanha. Por exemplo, num estudo importante, Mark Williams demonstrou que a maneira pela qual o passado celta irlandês passou a ser percebido na Irlanda dos séculos XIX e XX, assim como em outros lugares, foi profundamente influenciada pelos nacionalismos românticos que tiveram impacto nos campos acadêmicos emergentes de literatura e letras, arqueologia e história (Williams, 2016SLAVIN, Bridget. Coming to Terms with Druids in Early Christian Ireland’. Australian Celtic Journal, v. 10, p. 1-27, 2009.WILLIAMS, Mark. Ireland’s Immortals: a History of the Gods of Irish Myth. Princeton: Princeton University Press, 2016.). Isto é o que pode tornar os Estudos Célticos tão fascinantes e complexos: uma constante interação entre discursos acadêmicos e apropriações dentro da cultura popular. Como esses dois se relacionam entre si, ainda é um assunto para o debate nuançado.

Como campo multidisciplinar, os Estudos Célticos têm sido uma área de disputa desde seus primórdios. Os nacionalismos, os imperialismos e a grande variabilidade das identidades locais da Idade do Ferro até os dias atuais produziram diversas imagens do celta, o que ele significa e como esses significados mudam. Na Grã-Bretanha, o termo “celta” foi desafiado e considerado inadequado, particularmente em arqueologia (Collis, 1997COLLIS, John. Celtic Myths. Antiquity(Durham), v. 71, n. 271, 1997, p. 195-201., 2003COLLIS, John. The Celts: Origins, Myths & Inventions. Stroud: Tempus Pub Ltd, 2003.; James, 1998JAMES, Simon. Celts, Politics and Motivation in Archaeology. Antiquity(Durham), v. 72, n. 275, p. 200-209, 1998., 1999JAMES, Simon. The Atlantic Celts: Ancient People or Modern Invention? Madison: University of Wisconsin Press, 1999.). O “ceticismo céltico” [Celtoscepticism] (cf. Sims-Williams, 1998SLAVIN, Bridget. Coming to Terms with Druids in Early Christian Ireland’. Australian Celtic Journal, v. 10, p. 1-27, 2009.WILLIAMS, Mark. Ireland’s Immortals: a History of the Gods of Irish Myth. Princeton: Princeton University Press, 2016.; Karl, 2004bKARL, Raimund. Celtoscepticism, A Convenient Excuse for Ignoring Non-Archaeological Evidence? In: SAUER, Eberhard. (Ed.) Breaking Down the Boundaries: The Artificial Archaeology - Ancient History Divide. Londres/Nova York: Routledge, 2004b, p. 185-199.) certamente abriu novas fronteiras de competição com relação ao “passado celta”, bem como a práticas e tradições acadêmicas - em história, arqueologia ou letras e literaturas. Evitando os estereótipos de barbarismo e misticismo, os encantos da celticidade e do celticismo, os “celtocéticos” contestam a existência de tal passado e o valor real de empregar o termo “celta”.

Na arqueologia, o debate serviu para gerar novos esboços para estudos da Idade do Ferro (cf. Karl, 2016KARL, Raimund. Interpreting Iron Age Societies. In: MÜLLER, Holger A. (Org.) Keltische Kontroversen II. Gutenberg: Computus, 2016.) e desconstruiu modelos tradicionais do chamado “mundo celta”. Hoje, ninguém mais acredita nas velhas teorias invasionistas. Além disso, os problemas associados ao termo “céltico” são amplamente conhecidos, e o “paradigma atlântico” (cf. Cunliffe 2001CUNLIFFE, Barry. Facing the Ocean: The Atlantic and its Peoples, 8000 BC-AD 1500. Oxford: Oxford University Press, 2001.; Cunliffe e Koch 2010KOCH, John T.; CUNLIFFE, Barry (Eds.). Celtic from the West 3: Atlantic Europe in the Metal Ages Questions of Shared Language. Oxford: Oxbow Books, 2015.; Koch e Cunliffe 2013KOCH, John T.; CUNLIFFE, Barry (Eds.). Celtic from the West 2: Rethinking the Bronze Age and the Arrival of Indo-European in Atlantic Europe. Oxford: Oxbow Books, 2013., 2015KIMMIG, Wolfgang. Zum Problem Späthallstättischer Adelssitze. In: OTTO, Herrn; HERRMANN, Joachim. Siedlung, Burg und Stadt: Studien zu ihren Aufängen. Berlim: Akademie Verlag, 1969, p. 95-113.; Moore e Armada, 2015MOORE, Tom; ARMADA, Xosê-Lois (Eds.). Atlantic Europe in the First Millennium BC: Crossing the Divide. Oxford: Oxford University Press , 2011.) está mais forte do que nunca, só para mencionar algumas mudanças importantes no campo.

As recentes descobertas de sepulturas e assentamentos da Idade do Ferro na França e na Alemanha, além da crescente importância da pesquisa da paisagem, particularmente na Grã-Bretanha e na Irlanda, estão inspirando novas visões e metodologias empolgantes. Isso produziu estudos que já parecem fundamentais (Ó Carragáin e Turner, 2016Ó CARRAGÁIN, Tomás; TURNER, Sam (Eds.). Making Christian Landscapes in Atlantic Europe: Conversion and Consolidation in the Early Middle Ages. Cork: Cork University Press, 2016.). Mais do que nunca, há um esforço para contar histórias alternativas e empregar diferentes maneiras de analisar e interpretar os vestígios do passado.

Isso também é relevante para os medievalistas que se concentram nas literaturas de línguas célticas e nas culturas da Irlanda no início do medievo. Geralmente, tem havido uma compreensão cética do que significa ser “céltico”, como mostrado nos debates entre nativistas e antinativistas dos anos 1980 e 1990, que se concentraram principalmente no início da Irlanda, mas que também foram influentes em estudos literários e arqueologia (McCone, 1990McCONE, Kim. Pagan Past and Christian Present in Early Irish Literature. Maynooth: An Sagart, 1990.; McCone e Simms, 1996McCONE, Kim; SIMMS, Katharine (Eds.). Progress in Medieval Irish Studies. Maynooth: Department of Old and Middle Irish, 1996.; Wooding, 2009WOODING, Jonathan. Reapproaching the Pagan Celtic Past: Anti-Nativism, Asterisk Reality and the Late-Antiquity Paradigm. Studia Celtica Fennica, v. 6, p. 61-74, 2009.). Estudiosos como Donnchadh Ó Corráin desafiaram a ideia de que a sociedade irlandesa alto-medieval e, particularmente, suas leis ecoavam o passado celta e indo-europeu (Ó Corráin, 1978Ó CORRÁIN, Donnchadh. National and Kingship in Pre-Norman Ireland. In: role="ed">MOODY, T. W. (Ed.). Nationality and the Pursuit of National Independence. Historical Studies IX. Belfast: Appletree Press, 1978, p. 1-35.; Breatnach e Breen, 1984Ó CORRÁIN, Donnchadh; BREATHNACH, Liam; BREEN, Aidan. The Laws of the Irish. Peritia, v. 3, 1984, p. 382-428.).

Antinativistas radicalmente “celtosceptic” argumentaram que a sociedade irlandesa alto-medieval foi profundamente transformada pelo cristianismo e que isso quase aniquilou todos os vestígios remanescentes da era pré-cristã (McCone, 1990McCONE, Kim. Pagan Past and Christian Present in Early Irish Literature. Maynooth: An Sagart, 1990.). Os antinativistas também foram instigados pelo chamado debate revisionista na história da Irlanda cujo objetivo, pelo menos a princípio, era derrubar ideias românticas do passado irlandês (Brady, 1994BRADY, Ciarán. Interpreting Irish History: The Debate on Historical Revisionism 1938-1944. Dublin: Irish Academic Press, 1994.). Entendimentos mais recentes, levando em conta as ideias dos antinativistas, começaram a situar os primeiros estudos irlandeses de forma mais sólida. Estudiosos não acreditam mais que a Irlanda antiga fosse uma “janela para a Idade do Ferro” ou que os costumes pagãos sobrevivessem inalterados por milênios (Jackson, 1964JACKSON, Kenneth Hurlstone. The Oldest Irish Tradition: a Window on the Iron Age. Cambridge: Cambridge University Press, 1964.; Wooding, 2009WOODING, Jonathan. Reapproaching the Pagan Celtic Past: Anti-Nativism, Asterisk Reality and the Late-Antiquity Paradigm. Studia Celtica Fennica, v. 6, p. 61-74, 2009.; Fitzgerald, 2015FITZGERALD, Kelly. Tales from the Middle Ages: Celtic Studies, Folklore and Kenneth Jackson. Béaloideas(Dublin), v. 77, p. 111-27, 2015.). No entanto, eles também estão mais dispostos a identificar o dinamismo da organização social nativa.

No entanto, como Wooding apontou, embora o ceticismo seja frequentemente justificado, os estudiosos devem evitar uma abordagem de “soma zero”, em que as interconectividades entre o tempo e o espaço não são levadas em conta (2017). Fazer isso é empobrecer nossas abordagens do passado e assumir que as sociedades do passado não eram tão complexas e contraditórias quanto as nossas. Por exemplo, os druidas sobreviveram, ainda que marginalizados, até o século VIII EC (Slavin, 2009SLAVIN, Bridget. Coming to Terms with Druids in Early Christian Ireland’. Australian Celtic Journal, v. 10, p. 1-27, 2009.WILLIAMS, Mark. Ireland’s Immortals: a History of the Gods of Irish Myth. Princeton: Princeton University Press, 2016.), e a atuação da cultura não cristã no desenvolvimento do cristianismo na Irlanda é mais apreciada (Johnston, 2017JOHNSTON, Elva. Ireland in Late Antiquity: A Forgotten Frontier? Studies in Late Antiquity (Califórnia), v. 1. n. 2, p. 107-123, 2017.). Isso incluiu a sobrevivência dos teônimos celtas - por exemplo, Lug de Lugus ou Nuadu de Nodens - e alguns ecos de crenças pré-cristãs que compartilhavam um grau de semelhança com os encontrados em outras partes das sociedades de línguas célticas, como ideias sobre a transmigração das almas (Wooding, 2017WOODING, Jonathan. Tyrannies of Distance? Medieval Sources as Evidence for Indigenous Celtic and Romano-Celtic Religion. In: HAEUSSLER, Ralph; KING, Anthony (Eds.). Celtic Religions in the Roman Period: Personal, Local, and Global. Celtic: Aberystwyth, 2017, p. 57-70.). Indo além da abordagem de “soma zero”, os acadêmicos podem colocar a Irlanda mais confiantemente no contexto de apropriações e recriações de seu próprio passado, enquanto também pensam em interconexão e mobilidade com seus vizinhos no tempo e no espaço.

Tomando essas tendências juntas, pode-se ver que os modelos para o chamado “mundo celta” ou “sociedade celta” foram amplamente questionados (cf. Collis, 1994COLLIS, John. Reconstructing Iron Age. In: KRISTIANSEN, Kristian; JENSEN, Jonas (Eds.) Europe in the First Millennium B.C. Oxford: J.R. Collis, 1994, p. 31-39.; Hill, 1995 HILL, J. D. How Should We Understand Iron Age Societies and Hillforts? A Contextual Study from Southern Britain. In: HILL, J. D; CUMBERPATCH, C. G. (Eds.) Different Iron Ages: Studies on the Iron Age in Temperate Europe. Oxford: Tempus Reparatum, BAR International Series 602, 1995, p. 45-66.; Sims-Williams, 1998SLAVIN, Bridget. Coming to Terms with Druids in Early Christian Ireland’. Australian Celtic Journal, v. 10, p. 1-27, 2009.WILLIAMS, Mark. Ireland’s Immortals: a History of the Gods of Irish Myth. Princeton: Princeton University Press, 2016.; Giles, 2008GILES, Melanie. Identity, Community and the Person in Later Prehistory. In: POLLARD, Joshua (Ed.) Prehistoric Britain. Oxford: Blackwell, 2008, p. 330-350.) em várias disciplinas. Os acadêmicos reconhecem a importância de diferentes desenvolvimentos locais e regionais. São poucos os que agora aceitam que as sociedades medievais na Irlanda e nas partes de línguas célticas da Grã-Bretanha preservam exemplos inalterados do chamado “arcaísmo”. Entende-se que as sociedades são dinâmicas e vistas em seus próprios termos. A grande variabilidade regional é evidente, sobretudo em análises comparativas cruzadas de leis medievais irlandesas e galesas (Charles-Edwards, 1993CHARLES-EDWARDS, Thomas. Early Irish and Welsh Kinship. Oxford: The Clarendon Press, 1993.), nas literaturas em línguas vernáculas e em arqueologia. Diante dessas mudanças nas várias disciplinas dos Estudos Célticos, os seguintes artigos enfocam três aspectos-chave do debate atual: espaço e mapeamento da cultura material da Idade do Ferro inicial, identidades locais e aplicabilidade do etnônimo “celta” e, finalmente, possíveis analogias e interconexões entre a Idade do Ferro e os estudos medievais.

A primeira contribuição desafia a tradicional construção espacial das primeiras sociedades da Idade do Ferro na Europa central-ocidental. Fundamentados nos estudos pós-coloniais, Stockhammer e Athanassov propõem uma interpretação da chamada zona ocidental de Hallstatt como uma zona de contato. Os contatos de longa distância e sua relevância para a dinâmica política interna da zona de Hallstatt têm sido o principal tópico de estudo para o final do período hallsttatiano. Pode-se dizer que, desde Kimmig (1969KIMMIG, Wolfgang. Zum Problem Späthallstättischer Adelssitze. In: OTTO, Herrn; HERRMANN, Joachim. Siedlung, Burg und Stadt: Studien zu ihren Aufängen. Berlim: Akademie Verlag, 1969, p. 95-113.), e em particular após a aplicação do método de Polígonos de Thiessen e da teoria de lugares centrais na arqueologia das décadas de 1970 a 1990, a análise espacial tem sido crucial para a explicação da hierarquia de assentamentos e da produção de desigualdade social nessas comunidades.

Como os autores apontam, esse corpo de pesquisa, “visto de um ponto de vista tradicional, [...] identifica o contato e conclui a mesmice, [enquanto] a maioria das outras disciplinas - e também um número crescente de arqueólogos - identifica o contato e enfatiza a diferença” (Stockhammer e Athanassov, p. 639). Assim, eles propõem considerar a zona ocidental de Hallstatt não como algo fechado e estático, mas como uma entidade em mudança. Sua proposta não está apenas sintonizada com interpretações que desafiaram os modelos tradicionais das sociedades da Idade do Ferro, mas também com um debate muito maior que questiona o uso de classificações histórico-culturais e étnicas.

Tal proposição é apropriada às novas perspectivas das culturas celtas como produtos de contatos de longa duração (cf. Cunliffe, 2010CUNLIFFE, Barry. Celticization from the West: The Contribution from Archaeology. In: CUNLIFFE, Barry; KOCH, John T. (Eds) Celtic from the West: Alternative Perspectives from Archaeology, Genetics, Language, and Literature. Oxford: Oxbow Books, 2010, p. 13-38.). Assim, como Cañizares-Esguerra (2007)CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Entangled Histories: Borderland Historiographies in New Clothes? The American Historical Review (Washington), v. 112, n. 3, p. 787-799, 2007. destacou para o estudo dos contatos transatlânticos, para avançar na compreensão de “histórias emaranhadas” (entangled histories) é preciso ir além das fronteiras e das perspectivas espaciais tradicionais. Em outras palavras, deve-se considerar como os contatos criaram diferentes percepções do espaço e como elas contribuem para a mudança social e cultural. De certo modo, também pode ser hora de questionar nossa compreensão espacial de um mundo “celta”. Isso é crucial porque problematiza o “céltico”, mas também amplia os horizontes de pesquisa e faz com que os estudiosos pensem sobre questões de contato entre diferentes culturas sob uma nova ótica, como eles atuaram entre si e como essas influências nos fazem pensar as complexidades das sociedades do passado.

Com base na definição do “céltico”, a contribuição de O’Neill traz sua possível aplicação à história moderna da Irlanda. Como mencionado, a romantização do passado desempenhou um papel na popularização dos Estudos Célticos na Irlanda e até mesmo nas origens de discursos e suposições acadêmicas (Williams, 2016SIMS-WILLIAMS, Patrick. Celtomania and Celtoscepticism. Cambrian Medieval Celtic Studies, v. 36, p. 1-35, 1998.). No entanto, tais discursos se concentraram quase inteiramente na “era heroica” da literatura irlandesa primitiva e tenderam a ignorar a Irlanda medieval, especialmente depois das mudanças trazidas pela chegada dos normandos em 1169-1170.

O’Neill argumenta que mais tarde a Irlanda gaélica medieval deveria ser considerada dentro da área dos Estudos Célticos. Tem ela o valor particular de complexificar as discussões sobre identidades étnicas na Irlanda, uma característica importante desse período da história. Diferentes grupos étnicos e políticos habitavam a ilha, envolvendo-se em intercâmbio cultural e conflito. A paisagem em si e as interações humanas dentro dela eram vibrantes, olhando tanto para o passado quanto para o futuro (Fitzpatrick, 2004FITZPATRICK, Elizabeth. Royal Inauguration in Gaelic Ireland, c. 600-1600: a Cultural Landscape Study. Woodbridge: The Boydell Press, 2004.). É também uma época central para examinar percepções e apropriações de um passado chamado “celta” por motivos políticos e religiosos. De fato, muitos dos manuscritos por meio dos quais os estudiosos modernos abordam o passado irlandês primitivo foram produzidos durante esse período. Assim, a Irlanda medieval tardia foi rica em invenção cultural que ajudou a moldar a forma como a Irlanda começou a ser entendida.

Com base em novas metodologias e abordagens para o estudo das práticas da Idade do Ferro, Tenreiro e Moya-Maleno propuseram uma investigação transdisciplinar de achados arqueológicos, folclore e fontes medievais para analisar as práticas rituais da Ibéria da Idade do Ferro tardia. Particularmente interessados nos rituais que envolvem sacrifícios e deposições de animais, eles oferecem uma contribuição envolvente e ousada à etnoarqueologia. Um desafio em si, tal abordagem se baseia na perspectiva de que as práticas culturais tinham grande longevidade nas culturas populares medievais e modernas, permitindo que os acadêmicos se engajassem não apenas na teoria etnográfica, mas também nas fontes medievais e no folclore moderno.

Desse ponto de vista, as tradições populares estão enraizadas num passado há muito perdido, mas devem ser tratadas com cuidado pelos pesquisadores, pois não são as “janelas para a Idade do Ferro” (Jackson, 1964JACKSON, Kenneth Hurlstone. The Oldest Irish Tradition: a Window on the Iron Age. Cambridge: Cambridge University Press, 1964.), como costumavam ser consideradas. Karl (2004aKARL, Raimund. Altkeltische Sozialstrukturen: Anhand Archäologischer, Historischer, Sprachlicher und Literarischer Quellen. Wien: Habilitationsschrift aus dem Fach Keltologie, Universität Wien, 2004a.) foi o primeiro estudioso a sugerir que esses tipos de fontes devem ser considerados sob uma nova luz interpretativa a fim de contribuir para a interpretação das sociedades da Idade do Ferro. Sua proposição e suas visões agitaram o campo e provocaram fortes debates, em particular com aqueles que contestam o uso do etnônimo “celta”, como John Collis. Enquanto este acredita que o “celta” é uma construção moderna, o que torna implausível e inatingível a compreensão das comunidades da Idade do Ferro, o que Karl e outros como Tenreiro e Moya-Maleno mostram é que tais construções culturais e políticas são inerentes ao nosso campo, permanecendo relevantes para análises históricas e arqueológicas.

Isto porque o “Celta” é mais que um etnônimo; é um conceito que envolve línguas, literaturas, arte, cultura material, identificações históricas, culturais e religiosas no passado e no presente (Karl, 2010KARL, Raimund. The Celts from Everywhere and Nowhere: a Re-evaluation of the Origins of the Celts and the Emergence of Celtic Cultures. In: CUNLIFFE, Barry; KOCH, John T. (Eds.) Celtic from the West: Alternative Perspectives from Archaeology, Genetics, Language, and Literature. Oxford: Oxbow Books, 2010, p. 39-64.). Em outras palavras, o “celta” é uma construção em mudança que está vinculada às agendas políticas, às tradições científicas e à vida das populações locais. Ignorar essa dinâmica não explica esses fenômenos históricos e certamente não nos dá terreno para aprofundar nossas visões do passado ou de nossas disciplinas. Portanto, é nossa opinião que o “celta” não é apenas útil, mas crucial para a compreensão de visões mutantes e não essencialistas das culturas, que estão sempre mudando e não são cristalizadas e imutáveis ao longo do tempo.

O ceticismo em relação às abordagens romantizadas e literais aos celtas da Antiguidade, à Idade Média e ao tempo presente tem sido uma correção útil. Mas também se corre o risco de ser excessivamente reducionista e fechar diálogos com os passados complexos das populações de línguas célticas, com as culturas que eles encontraram e as mudanças que aconteceram ao longo do tempo. Usados com cuidado, os termos “celta” e “céltico” podem ajudar a encorajar novos diálogos transdisciplinares que enriquecerão o conhecimento de nossos campos cognatos. O “celta” é, portanto, tão diverso quanto sua própria história, e é isso o que ainda está por ser explicado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2017
  • Aceito
    12 Jul 2018
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