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Comprometimento do interstício pulmonar em portadores de esclerose sistêmica progressiva: estudo de uma série de 58 casos

Resumos

OBJETIVO: Estimar a freqüência de doença intersticial pulmonar em um grupo de indivíduos com esclerose sistêmica progressiva e descrever suas características clínicas, funcionais e radiológicas. MÉTODOS: Após confirmação diagnóstica, 58 pacientes com esclerose sistêmica progressiva foram estudados com tomografia computadorizada de alta resolução, provas de função pulmonar, bem como pesquisa do anti-Scl 70. Foram feitas comparações entre os pacientes com e sem comprometimento intersticial pulmonar e pesquisados possíveis fatores preditivos deste acometimento através de análise multivariada. RESULTADOS: Do total, 51,7% apresentaram evidências de doença intersticial pulmonar na tomografia computadorizada de alta resolução. Dispnéia e tosse foram os sintomas mais relatados, (65,5% e 39,7%, respectivamente). Bronquiolectasias e faveolamento foram as anormalidades tomográficas mais comuns (83,3% e 80,0% respectivamente). Quando comparados com os indivíduos sem doença intersticial pulmonar, os pacientes com este acometimento apresentaram freqüência semelhante de sintomas pulmonares e extrapulmonares, porém apresentaram esclerose sistêmica progressiva de maior duração, estertores crepitantes mais freqüentes, maior positividade de anti-Scl 70, e capacidade vital forçada e pulmonar total reduzidas. Somente uma capacidade vital forçada < 80% apresentou tendência a predizer presença de doença intersticial pulmonar. CONCLUSÃO: Doença intersticial pulmonar foi freqüente neste grupo com esclerose sistêmica progressiva. Não ocorreu associação com sintomas. Houve associação entre doença intersticial pulmonar e presença de estertores crepitantes e anti-Scl 70. Contudo, somente redução da capacidade vital forçada foi preditora de doença intersticial pulmonar.

Escleroderma sistêmico; Escleroderma sistêmico; Doenças pulmonares intersticiais; Doenças pulmonares intersticiais; Fibrose pulmonar; Tomografia; computadorizada por raio-X; Tórax; Hipertensão pulmonar


OBJECTIVE: To estimate the frequency of interstitial lung disease in a group of patients with progressive systemic sclerosis, and to describe the clinical, functional and radiological characteristics of the patients studied. METHODS: Fifty-eight patients diagnosed with progressive systemic sclerosis were submitted to high-resolution computed tomography of the chest, pulmonary function tests and a blood test for anti-Scl 70 antibodies. Comparisons were drawn between patients with interstitial lung disease and those without. Logistic regression with multivariate analysis was used to identify factors predictive of interstitial lung disease. RESULTS: Of the 58 patients evaluated, 51.7% presented interstitial lung disease on high-resolution computerized tomography scans. Dyspnea and cough were the most common symptoms (seen in 65.5% and 39.7%, respectively). Bronchiolectasis and honeycombing were the most common tomographic abnormalities (observed in 83.3% and 80%, respectively). When compared to individuals without interstitial lung disease, patients with the condition had a comparable frequency of pulmonary and extrapulmonary symptoms but presented progressive systemic sclerosis of longer duration, a higher frequency of crackling rales, higher rates of anti-Scl 70 positivity, lower vital capacity and reduced total lung capacity. Only forced vital capacity < 80% was found to be a predictor of interstitial lung disease. CONCLUSION: Interstitial lung disease was common in this group of patients with progressive systemic sclerosis. No correlation with symptoms was found, although interstitial lung disease was found to correlate with crackling rales and with anti-Scl 70 positivity. Nevertheless, only reduced forced vital capacity was found to be predictive of interstitial lung disease.

Scleroderma, systemic; Scleroderma, systemic; Lung diseases, interstitial; Lung diseases, interstitial; Pulmonary fibrosis; Tomography, X-ray computed; Thorax; Hypertension, pulmonary


ARTIGO ORIGINAL

Comprometimento do interstício pulmonar em portadores de esclerose sistêmica progressiva. Estudo de uma série de 58 casos* * Trabalho realizado na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia - UFBA - Salvador (BA) Brasil.

Sergio Fernandes de Oliveira JezlerI; Mittermayer Barreto SantiagoII; Thamine Lessa AndradeIII; César Araujo NetoIV; Helio BragaIV; Álvaro Augusto CruzV

ICoordenador do Ambulatório de D.I. da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia - UFBA - Salvador (BA) Brasil

IICoordenador do Núcleo de Reumatologia do Hospital Santa Izabel - Salvador (BA) Brasil

IIIMédica do Ambulatório de D.I. da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia - UFBA - Salvador (BA) Brasil

IVProfessor de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia - UFBA - Salvador (BA) Brasil

VProfessor Adjunto da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia - UFBA - Salvador (BA) Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Sérgio F. O. Jezler Rua Augusto Viana, s/n 3º. andar CEP: 40110-160, Salvador (BA), Brasil Fax: 55 71 237-6679 E-mail: sergiopneumo@atarde.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Estimar a freqüência de doença intersticial pulmonar em um grupo de indivíduos com esclerose sistêmica progressiva e descrever suas características clínicas, funcionais e radiológicas.

MÉTODOS: Após confirmação diagnóstica, 58 pacientes com esclerose sistêmica progressiva foram estudados com tomografia computadorizada de alta resolução, provas de função pulmonar, bem como pesquisa do anti-Scl 70. Foram feitas comparações entre os pacientes com e sem comprometimento intersticial pulmonar e pesquisados possíveis fatores preditivos deste acometimento através de análise multivariada.

RESULTADOS: Do total, 51,7% apresentaram evidências de doença intersticial pulmonar na tomografia computadorizada de alta resolução. Dispnéia e tosse foram os sintomas mais relatados, (65,5% e 39,7%, respectivamente). Bronquiolectasias e faveolamento foram as anormalidades tomográficas mais comuns (83,3% e 80,0% respectivamente). Quando comparados com os indivíduos sem doença intersticial pulmonar, os pacientes com este acometimento apresentaram freqüência semelhante de sintomas pulmonares e extrapulmonares, porém apresentaram esclerose sistêmica progressiva de maior duração, estertores crepitantes mais freqüentes, maior positividade de anti-Scl 70, e capacidade vital forçada e pulmonar total reduzidas. Somente uma capacidade vital forçada < 80% apresentou tendência a predizer presença de doença intersticial pulmonar.

CONCLUSÃO: Doença intersticial pulmonar foi freqüente neste grupo com esclerose sistêmica progressiva. Não ocorreu associação com sintomas. Houve associação entre doença intersticial pulmonar e presença de estertores crepitantes e anti-Scl 70. Contudo, somente redução da capacidade vital forçada foi preditora de doença intersticial pulmonar.

Descritores: Escleroderma sistêmico/complicações; Escleroderma sistêmico/radiografia; Doenças pulmonares intersticiais/etiologia; Doenças pulmonares intersticiais/radiografia; Fibrose pulmonar; Tomografia; computadorizada por raio-X; Tórax/radiografia; Hipertensão pulmonar

INTRODUÇÃO

O envolvimento intersticial pulmonar é a maior causa de óbito em esclerose sistêmica progressiva (ESP).(1-3) Os relatos de freqüência de doença intersticial pulmonar (DIP) em pacientes com ESP possuem resultados variados. Além do método empregado para sua detecção, essa variação resulta também de diferenças entre as populações estudadas quanto a variáveis demográficas, como raça, e clínico-laboratoriais, como presença de anti-Scl-70.(4-6) Estudos com tomografia computadorizada de alta resolução (TCAR) descrevem DIP em até 91% dos casos de ESP.(7-8)

Na única série nacional que utilizou esse método em pacientes com ESP, sinais de DIP foram relatados em 59% de 22 indivíduos.(9) Nesse estudo, além da limitação pelo tamanho da amostra, 95% dos indivíduos eram da raça branca, o que certamente difere do perfil étnico mais comumente encontrado em nosso meio.

O presente estudo foi realizado com o objetivo principal de determinar, por meio da TCAR do tórax, a freqüência de DIP em indivíduos portadores de ESP numa amostra de pacientes ambulatoriais. Secundariamente, procuramos caracterizar esse grupo de pacientes do ponto de vista clínico, laboratorial, funcional e radiológico, na tentativa de identificar variáveis associadas com a presença de DIP.

MÉTODOS

Entre abril de 2002 e dezembro de 2003, um grupo de pacientes com diagnóstico de ESP(10) foi encaminhado consecutivamente para avaliação nos ambulatórios de doenças intersticiais pulmonares do Hospital Santa Izabel e do Hospital Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia, que são hospitais universitários integrados à rede do Sistema Único de Saúde. Os pacientes foram avaliados independentemente da presença de sintomas ou sinais de envolvimento pulmonar. O intervalo entre as etapas da avaliação de cada paciente nunca foi maior que 90 dias.

Os indivíduos com exposição ambiental ou ocupacional reconhecidas como causas de pneumopatias intersticiais, gestantes, pacientes com piora dos sintomas relacionados à ESP nos últimos 30 dias ou com associação de outra doença do tecido conjutivo foram excluídos do estudo. O estudo foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Humana do Hospital Santa Izabel e todos os indivíduos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

A avaliação clínica consistiu no preenchimento de questionário padronizado contendo dados demográficos e clínicos do paciente. A duração da ESP foi definida como o tempo decorrida desde o aparecimento do primeiro sintoma relacionado à ESP e a caracterização do tipo de envolvimento cutâneo seguiu os critérios de LeRoy et al.(11) Tabagismo ativo foi definido quando o paciente havia usado cigarro nos últimos seis meses, tabagismo pregresso quando interrompera seu uso havia mais de seis meses e não-tabagista quando nunca fizera uso de cigarros. A intensidade do tabagismo foi descrita através de anos/maço. A graduação da dispnéia foi realizada através do índice de dispnéia basal descrito por Mahler et al., que pode variar de 0 (pior marca) a 12 pontos (melhor marca).(12)

A pesquisa do auto-anticorpo anti-Scl 70 foi realizada por meio da técnica de imunoensaio enzimático (Kit VAR ELISA - Espanha).

Todos os pacientes realizaram TCAR do tórax, em tomógrafo computadorizado volumétrico (helicoidal), modelo CT HISPEED LX/i (General Eletric Medical Systems, Milwaukee, Wi). As imagens foram obtidas com cortes finos (1 mm), utilizando-se filtro de alta resolução espacial para reconstrução das imagens (filtro de osso), com incrementos de 20 mm, em decúbito dorsal e ventral (quando indicado para exclusão da presença de opacidades nos segmentos basais, decorrentes dos efeitos da gravidade), rastreando-se os pulmões do ápice até a base, em fase de apnéia inspiratória, complementando-se com três secções em apnéia expiratória máxima, nos seguintes níveis: arco aórtico, bifurcação traqueal e imediatamente acima da hemicúpula diafragmática direita. Foram utilizados 120 KV e 200 mAs, com um segundo de tempo de corte em 360º. As imagens foram obtidas e reconstruídas em matriz de 512 X 512 e fotografadas com abertura de janela que variou em torno de 1.500 H, nível de abertura de aproximadamente -750 H, para avaliação dos campos pulmonares e abertura de janela de 600 H e -40 H para análise do mediastino.

Os filmes de TCAR foram avaliados de maneira independente por dois radiologistas, sem conhecimento prévio sobre informações clínicas e funcionais dos pacientes, que indicaram presença ou ausência de DIP, segundo a avaliação de anormalidades em algum dos compartimentos do interstício pulmonar. Anormalidades não associadas à ESP, como processos cicatriciais de doenças infecciosas granulomatosas, não foram consideradas para a análise final. Adicionalmente, as freqüências dos seguintes achados foram relatadas, os quais foram definidos conforme relatado anteriormente:(13) consolidação, cisto de faveolamento, opacidade em vidro fosco, bronquiolectasia e espessamento septal. Quando houve discordância entre as impressões finais dos dois radiologistas, um terceiro radiologista foi convocado, a fim de decidir sobre as questões referidas.

As provas de função pulmonar foram realizadas em aparelho Vmax 22 (Sensor Medics), seguindo-se as orientações da American Thoracic Society para a aceitação das curvas de espirometria.(14) A medida dos volumes pulmonares foi realizada através da técnica de lavagem de nitrogênio com respiração múltipla em circuito aberto, e a medida da capacidade de difusão do monóxido de carbono (DLCO) foi realizada através da técnica de respiração única com dez segundos de respiração sustentada. Os valores foram expressos em percentagem do predito para idade, sexo e altura, utilizando-se equações previamente descritas.(15-16) Foram relatadas as proporções de pacientes com redução dos valores da capacidade vital forçada (CVF) e capacidade pulmonar total (menores que 80% do predito) e relação entre volume expiratório forçado no primeiro segundo e CVF normal, bem como DLCO menor que 75% do predito.

As variáveis escalares ou contínuas foram descritas através de sua média e desvio padrão ou mediana e as categóricas através de proporções. Para que pudessem ser comparados, os indivíduos foram divididos em dois grupos quanto à presença (Grupo I) ou ausência (Grupo II) de DIP. Foram utilizados os testes de Mann-Whitney para comparar variáveis escalares ou contínuas e o teste do qui-quadrado (ou teste exato de Fisher, quando necessário), para testar diferenças entre proporções. Foi estimado o valor do coeficiente Kappa na avaliação da TCAR para determinação da concordância entre os observadores.

Construímos um modelo de análise multivariada, utilizando a regressão logística múltipla para determinar o impacto independente de cada variável na capacidade de determinar a presença de DIP. Determinamos a razão de chance e seus respectivos intervalos de confiança de 95%.(17) Um valor de p < 0,05 foi adotado como nível para rejeição da hipótese de nulidade para esses testes. Os dados do estudo foram inseridos em banco de dados e processados através do programa estatístico SPSS (Statistical Package for Social Science), versão 9.0 (SPSS inc., Chicago - IL ,1998).

RESULTADOS

Foram avaliados inicialmente 63 indivíduos e 5 deles foram excluídos do estudo por apresentar ESP relacionada com exposição à sílica. Foram finalmente analisados os dados dos 58 pacientes restantes, cujas características gerais estão apresentadas na Tabela 1. A idade variou de 13 a 69 anos (média ± desvio-padrão: 42,8 ± 13,5 anos), o tempo de doença variou de 0,3 a 30 anos (mediana de 4 anos) e 63,8% possuíam doença cutânea difusa. A dispnéia foi o sintoma respiratório mais relatado (38 casos, 65,5%), seguida de tosse e dor torácica. Estertores crepitantes foram detectados em apenas 9 indivíduos (15,5%). O anti-Scl 70 foi detectado em apenas 17 pacientes (29,3%).

Houve discordância entre os radiologistas apenas em dois casos quanto à presença ou ausência de DIP, tendo sido estimado um índice Kappa de 0,86 para a avaliação da TCAR. Sinais de comprometimento do interstício pulmonar foram detectados em 30 pacientes (51,7%). Conforme descrito na Tabela 2, no grupo de pacientes com DIP, bronquiolectasia foi o achado tomográfico mais descrito (83,3%), seguida de faveolamento (80,0%).

Na Tabela 3 estão apresentados os resultados da comparação entre os pacientes com e sem DIP na TCAR. Os pacientes com DIP apresentaram maior duração da doença, maior freqüência de estertores crepitantes, menores valores de CVF e capacidade pulmonar total, e maior proporção de pacientes com redução da CVF (< 80% do predito). Não houve diferença entre os grupos quanto às outras variáveis, incluindo freqüência ou intensidade da dispnéia. Entre os pacientes com DIP, dispnéia não foi detectada em 9 casos (30%) e 6 deles eram assintomáticos respiratórios (20%). Estertores crepitantes foram detectados exclusivamente nos pacientes com DIP, porém em apenas 30% deste grupo. Houve associação positiva significativa entre DIP e positividade do anti-Scl 70. Dentre os 17 pacientes com presença desse anticorpo, somente 1 não apresentou sinais de DIP (5,9%). Dos 30 pacientes com DIP, 4 não apresentaram redução da DLCO (13,3%), 10 possuíam CVF > 80% do predito (33,3%) e somente 26,7% apresentaram DLCO < 40% do predito.

Na Tabela 4 estão descritos os resultados da análise multivariada. Das variáveis estudadas, somente a CVF menor que 80% do valor predito demonstrou tendência a ser preditora da presença de DIP no grupo avaliado (razão de chance = 2,99), com significância estatística limítrofe na análise multivariada. No entanto, essa variável apresentou baixa sensibilidade e especificidade para a identificação de DIP na ESP.

DISCUSSÃO

A detecção precoce de DIP parece ser relevante para a terapia de doentes com ESP e a abordagem clínica pode não ser suficiente.(18) Assim como em outras séries,(8,19-20) a dispnéia foi o sintoma respiratório mais relatado no nosso grupo, com freqüência e intensidade similares nos pacientes com e sem DIP, o que reduziu sua utilidade na detecção dessa complicação. Este achado talvez seja explicado por uma parcela dos indivíduos com DIP provavelmente apresentar doença radiologicamente incipiente, o que está em concordância com a elevada proporção de pacientes com CVF normal nesse grupo. Por outro lado, estertores crepitantes foram encontrados exclusivamente nos pacientes com DIP, significativa associação já relatada em outros estudos.(8-9,19) Este sinal, de elevada especificidade para o diagnóstico de DIP em portadores de ESP, carece de sensibilidade, já que foi encontrado em apenas 30% dos pacientes com DIP em nossa casuística.

Como já relatado em outros estudos, pacientes com DIP apresentaram valores significativamente menores de CVF e capacidade pulmonar total.(8,13) Embora menores, diferentemente de outras séries,(8,13) os valores de DLCO e a proporção de pacientes com redução acentuada da DLCO (menor que 40%) não foram significativamente diferentes nos pacientes com DIP. Além da possibilidade de detecção tomográfica nos casos com DIP incipiente, a presença de doença vascular pulmonar entre os pacientes sem fibrose pulmonar pode reduzir a DLCO nesse grupo, o que explica a ausência de diferença da DLCO entre os grupos de pacientes com ESP com e sem DIP.(21)

No presente estudo, a freqüência de DIP foi elevada, porém menor do que os valores encontrados na maioria dos relatos que utilizaram a TCAR na ESP. Um estudo avaliou prospectivamente 23 pacientes com ESP e demonstrou que 91% dos indivíduos apresentaram sinais de DIP.(7) A população avaliada nesse estudo apresentava uma duração de doença maior que a do nosso grupo. Freqüências elevadas semelhantes foram relatadas também por outros três estudos.(22-24) Na série com maior número de pacientes, foi relatada a presença de DIP em 63,7% dos 91 indivíduos avaliados, valor mais próximo dos resultados da maioria dos estudos disponíveis.(8-9,26-28) Nessa série, os autores incluíram apenas pacientes que apresentavam sintomas respiratórios, portanto com maior probabilidade de comprometimento pulmonar. Na única série que descreveu freqüência de DIP menor que a deste estudo, foi detectado comprometimento intersticial em apenas 39,5% dos 43 casos avaliados.(29)

A diferença entre a freqüência encontrada nesta série e as de outros estudos pode ser resultante da heterogeneidade de características demográficas, como a raça, clínicas e imunogenéticas dos indivíduos avaliados. Todos os estudos referidos anteriormente avaliaram quase que exclusivamente indivíduos da raça branca. O estudo brasileiro relatou freqüência mais elevada de DIP, porém avaliou pacientes com características diversas dos avaliados no presente estudo.(9) Nesse estudo, 95% dos pacientes eram brancos e com ESP mais prolongada, o que pode implicar em expressões clínicas diferentes da doença.(4-5) Uma estreita associação entre haplótipos de human leucocyte antigen e expressão de auto-anticorpos como o anti-Scl 70 tem sido descrita.(4,30) Esse anticorpo foi detectado em um terço do nosso grupo e parece estar associado à presença de DIP.(4,31-32) Contudo, este marcador também apresentou baixa sensibilidade, pois foi positivo em apenas metade dos pacientes com DIP. Ainda não está claro se o anti-Scl 70 é apenas um marcador de envolvimento ou um determinante etiopatogênico.

A identificação de variáveis preditoras de DIP em doentes com ESP pode ser importante para o manejo clínico. A análise multivariada realizada mostrou reduzida utilidade das variáveis clínicas e funcionais estudadas na predição de DIP, o que reforça a importância da avaliação radiológica através da TCAR. Dentre as variáveis estudadas, somente um valor anormal da CVF (< 80% do predito) apresentou tendência a predizer DIP nesse grupo de pacientes com ESP, com significância limítrofe. O intervalo de confiança associado a essa variável foi largo e a sensibilidade e especificidade não foram elevadas. A associação entre redução da CVF e comprometimento intersticial é freqüente, mas poderia não ter ocorrido. A avaliação com TCAR foi realizada rotineiramente em um grupo de pacientes não selecionados e, por isso, formas incipientes de DIP, com pouca repercussão na avaliação funcional, podem ter sido detectadas. Adicionalmente, padrão de restrição pode ocorrer também em pacientes sem DIP,(19) resultante de disfunção dos músculos respiratórios ou alterações de complacência da caixa torácica.(3) Apesar do tempo de ESP mais prolongado entre os pacientes com DIP, a análise multivariada não demonstrou associação significativa entre duração da ESP e DIP. Essa relação já foi descrita em outros estudos,(8,26) que também citaram ESP mais prolongada em pacientes com comprometimento intersticial pulmonar. Em uma coorte prospectiva, foi relatado em um estudo anterior que fibrose pulmonar grave ocorreu mais freqüentemente nos primeiros três anos de doença.(1-2) Por essa razão, devemos avaliar com cautela nossos achados, pois são resultantes de uma avaliação temporal pontual.

Em resumo, a freqüência de DIP foi elevada no nosso grupo de pacientes com ESP. Do ponto de vista prático, os dados descritos em nossa casuística podem indicar que os pacientes com ESP que apresentam CVF reduzida, presença de anti-Scl 70 e estertores crepitantes devam ser monitorados de forma mais rigorosa, utilizando-se a TCAR, por exemplo. No entanto, deve ser ressaltado que o presente estudo foi realizado em serviços terciários e que, por isso, talvez não represente a totalidade dos portadores de ESP. Para futuros estudos, a inclusão de pacientes oriundos de serviços primários e da clínica privada deve ser estimulada, visando a melhorar a representatividade da amostra e assim estabelecer uma freqüência de DIP mais fidedigna ao amplo espectro clínico dos doentes com ESP. A presença de DIP na TCAR não indica obrigatoriamente doença clinicamente significativa e este estudo não avaliou a magnitude dos achados tomográficos. Somente a realização de estudos longitudinais com seguimento de longo prazo pode ajudar a certificar o impacto desses achados no prognóstico e evolução clínica de pacientes com ESP.

Recebido para publicação em 6/7/04. Aprovado, após revisão, em 24/3/05.

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    Trabalho realizado na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia - UFBA - Salvador (BA) Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2005

    Histórico

    • Recebido
      06 Jul 2004
    • Aceito
      24 Mar 2005
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