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Administração, cultura e desenvolvimento

Administration; culture and development

Resumos

No Brasil, o tema "cultura" vem despertando um crescente interesse, tanto no meio acadêmico quanto nas organizações públicas públicas e privadas. Na maioria das vezes, as discussões em torno do tema têm, genericamente, dois focos principais. O primeiro diz respeito ao debate sobre quem seria o responsável pela cultura, se o Estado ou o mercado. O segundo trata do desenvolvimento de uma indústria da cultura, e suas implicações preocupações estratégicas e mercadológicas. Apesar da atual retomada das discussões a respeito da importância da cultura como elemento fundamental para o desenvolvimento, parece haver ainda algumas dificuldades para se compreender que papel teria o Estado diante dessa perspectiva. Este artigo tem por objetivo analisar a relação entre cultura e desenvolvimento num contexto centro/periferia.

administração; cultura; desenvolvimento


There is a growing interest on the part of the academy and public and private organizations in issues related to cultural studies. Most of the times, discussions about this issue has two focuses. The first is related to the debate over who should be responsible for Culture, the state or the market. The second refers to the development of a cultural industry and its strategic and marketing implicatons. Despite the actual discussions about the importance of culture as a fundamental element for the development, there are some difficulties in understanding the role of the state before this perspective. The objective of this article is to analyze the relation between culture and development in a center/periphery context.

administration; culture; development


ARTIGOS

Administração, cultura e desenvolvimento

Administration; cuiture and development

Janaina Machado SimõesI; Leonardo Vasconcelos Cavalier DarbillyII

IDoutoranda da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas - EBAPE/FGV.. Professora da Faculdade São Camilo. Endereço: Praia de Botafogo, 190 - sala 530 - Botafogo - Rio de Janeiro - RJ - Brasil - CEP: 22250-900. E-mail: jsimoes@fgv.br

IIMestrando em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EBAPE/FGV). Professor do curso de graduação em Administração da Faculdade Mercúrio (FAMERC), Rio de Janeiro. Praia de Botafogo, 190 - sala 530 - Botafogo - Rio de Janeiro - RJ - Brasil CEP: 22250-900. E-mail: leovcd@fgv.br

RESUMO

No Brasil, o tema "cultura" vem despertando um crescente interesse, tanto no meio acadêmico quanto nas organizações públicas públicas e privadas. Na maioria das vezes, as discussões em torno do tema têm, genericamente, dois focos principais. O primeiro diz respeito ao debate sobre quem seria o responsável pela cultura, se o Estado ou o mercado. O segundo trata do desenvolvimento de uma indústria da cultura, e suas implicações preocupações estratégicas e mercadológicas. Apesar da atual retomada das discussões a respeito da importância da cultura como elemento fundamental para o desenvolvimento, parece haver ainda algumas dificuldades para se compreender que papel teria o Estado diante dessa perspectiva. Este artigo tem por objetivo analisar a relação entre cultura e desenvolvimento num contexto centro/periferia.

Palavras-chave: administração; cultura; desenvolvimento.

ABSTRACT

There is a growing interest on the part of the academy and public and private organizations in issues related to cultural studies. Most of the times, discussions about this issue has two focuses. The first is related to the debate over who should be responsible for Culture, the state or the market. The second refers to the development of a cultural industry and its strategic and marketing implicatons. Despite the actual discussions about the importance of culture as a fundamental element for the development, there are some difficulties in understanding the role of the state before this perspective. The objective of this article is to analyze the relation between culture and development in a center/periphery context.

Keywords: administration; culture; development.

Introdução

No Brasil, o tema cultura vem despertando um crescente interesse tanto no meio acadêmico quanto nas organizações públicas e privadas. Na maioria das vezes, as discussões em torno do tema têm, genericamente, dois focos principais. O primeiro diz respeito ao debate sobre quem seria o responsável pela cultura, se o Estado ou o mercado. O segundo trata do desenvolvimento de uma indústria da cultura, e suas implicações estratégicas e mercadológicas.

Quando discutimos sobre a quem caberia ocupar-se da cultura e é defendido que isso é uma responsabilidade do Estado, enfrentamos uma realidade na qual se busca agregar à cultura, finalidades que preencham lacunas deixadas por outros setores - com distintos valores e interesses -, como o social e o econômico. Por outro lado, quando se advoga que a cultura caberia ao mercado, chega-se à contradição de se impor uma lógica administrativa, uma racionalidade que não seria originalmente parte da cultura.

Mesmo diante dessa discussão, é impossível negar que já existe uma indústria da cultura que incorpora lógicas mercantis e busca cada vez mais racionalizar sua forma de gestão, visando à eficiência. Entretanto, não há uma ampla reflexão quanto às contradições dessa incorporação e, mais do que isso, que questione em que bases tal indústria procura legitimar-se socialmente.

Além disso, parece que foi deixada em segundo plano a discussão em relação a que conseqüências, a longo prazo, as organizações culturais estariam expostas com o desenvolvimento de uma indústria cultural e a predominância de uma lógica mercadológica e gerencial. É importante questionar algumas implicações dessa perspectiva, sem juízo de valor, mas analisando criticamente qual papel a cultura passaria a assumir, a que interesses serviria e, acima de tudo, se seu desenvolvimento não estaria apenas reproduzindo e consolidando processos de manipulação e alienação presentes na sociedade.

Quando se questiona a atual situação da cultura no Brasil, parece evidente que esta - diante dos diversos problemas sociais e econômicos do país - não é a pauta central da sociedade nem do mercado e tampouco é uma prioridade do Estado. Apesar da atual retomada das discussões a respeito da questão da importância da cultura como elemento fundamental para o desenvolvimento, parece haver ainda algumas dificuldades para se compreender que papel teria o Estado diante dessa perspectiva. Nesse sentido, este artigo tem por objetivo analisar a relação entre cultura e desenvolvimento no contexto centro/periferia.

A discussão sobre o papel da cultura no contexto brasileiro traz à tona diversas questões que necessitam ser repensadas, tanto no plano teórico quanto no plano empírico. Refletir a respeito de qual perspectiva de cultura adotar nos estudos organizacionais, discutir sobre a quem caberia a responsabilidade pela cultura (se ao Estado ou ao mercado), recuperar o papel do Estado na evolução do setor cultural e analisar as diferentes perspectivas acerca da relação entre cultura e desenvolvimento são pontos importantes para retomar o debate sobre a cultura no contexto brasileiro.

Cultura: uma reflexão inicial

De acordo com Cuche (2002), duas perspectivas opostas sobre a cultura são encontradas nas ciências sociais. A primeira, denominada minimalista, reconhece a cultura dominante, das elites sociais, como a única cultura legítima e verdadeira. As culturas populares, dessa perspectiva, seriam apenas cópias de má qualidade da cultura legítima, ou "subprodutos inacabados". (CUCHE, 2002, p.148). Quanto à perspectiva maximilista, divide-se entre os que condenam qualquer tipo de hierarquização das diferentes culturas e aqueles que consideram que a cultura popular é superior à cultura das elites, uma vez que sua criatividade provém do povo, estando acima da criatividade das elites. No entanto, Cuche (2002) considera essas duas teses extremas e afirma que a realidade é muito complexa para ser analisada através delas. Para ele, qualquer cultura importa elementos de outras culturas e ao mesmo tempo cria elementos novos. Portanto, não seriam totalmente dependentes nem totalmente autônomas.

Para Ianni (2004), apesar de apresentar especificidades como sistemas significativos, construções ideais e conjuntos que articulam passado e presente, a cultura se cria e recria pelas relações sociais. Para o autor, a cultura tem vida própria, assim como a sociedade e os diversos grupos que a compõem. Ianni (2004), contudo, afirma que a cultura não é inocente e que uma vez que as expressões culturais são criadas e recriadas no jogo das relações, revelam antagonismos e diferenças sociais, políticas e econômicas. Segundo ele, esses antagonismos sociais constituem a sociedade e se manifestam na cultura por meio de imagens, metáforas, significados, símbolos e de outros elementos.

Ianni (2004) observa que cada um dos diversos grupos, classes, movimentos e partidos presentes na sociedade lidam de modo diferente com as situações e acontecimentos. Segundo ele, os acontecimentos históricos não são interpretados da mesma forma por todos, e, assim, idéias como as de língua nacional, sociedade brasileira, nação e Estado nacional vão se alterando conforme o contexto. Nesse sentido, a cultura brasileira não pode ser considerada "uma cultura", pois é constituída por modos complexos de "viver, trabalhar, sentir e agir, pensar e falar". A cultura, portanto, não é algo coeso ou homogêneo.

Para Balandier (apud CUCHE, 2002), por ser uma produção histórica e não algo transmitido de forma imutável de uma geração para outra, a cultura deve ser analisada a partir da situação sociohistórica dos grupos sociais. De acordo com Marques (1995), as atividades culturais nas sociedades contemporâneas adquiriram um espaço político próprio, exigindo que determinadas estruturas administrativas fossem criadas. Isso está, segundo o autor, relacionado ao fato de que a cultura transformou-se em "elemento constitutivo de uma determinada etapa civilizacional", adquirindo, então, características que são diferentes ao longo do tempo.

Administração da cultura: papel do Estado ou do mercado?

De acordo com Thiry-Cherques (2001), é uma posição simpática e politicamente correta o fato de que na atualidade é dado como certo que a cultura necessita de guarida e conforto. Mas, segundo o autor, é preciso que se diga que os argumentos que sustentam tal ponto de vista são emocionais, ideológicos, patrióticos, convenientes, mas não são logicamente sustentáveis. Isso por que, para ele, é difícil sustentar os principais argumentos a favor da administração da cultura como necessidade ou como dever inalienável do Estado, ou mesmo como encargo espontâneo do setor privado. Thiry-Cherques (2001) observa que as barreiras à administração pública da cultura - a iniqüidade distributiva entre os segmentos do aparelho de Estado, o desequilíbrio entre os subsetores culturais e a falta de critério na escolha dos beneficiários dos recursos - estão longe de serem integralmente superadas, ao mesmo tempo em que por parte da iniciativa privada se vive a miséria da cobiça irracional.

De acordo com Doria (2001), a multiplicidade de objetos culturais talvez seja a característica mais instigante dos tempos atuais, não se conseguindo analisar tal fato sem recorrer-se a analogias imperfeitas como o mercado; isso porque se o "bem cultural" fosse mero suporte da mercadoria (seu valor de uso), não haveria por que distingui-lo com tanta atenção. Para o autor, a indústria cultural explodiu, seus números tornaram-se cada vez mais expressivos e o Estado tratou de se posicionar, definindo novos vínculos com a produção e o consumo de cultura.

A categoria indústria cultural veio a público pela primeira vez em 1947, quando já era visível a existência de um setor da produção da cultura comprometido com as estruturas de mercado. Coelho (1980) apresenta a revolução industrial, o capitalismo liberal, a economia de mercado e a sociedade de consumo como o quadro caracterizador da indústria cultural.

Conforme destaca Costa (2001), o conceito de indústria cultural busca identificar a forma como a arte se submeteu à condição de mercadoria. Isso tem o peso de assinalar que mesmo que determinados artefatos culturais venham a ter, isoladamente, qualidades que os diferenciem dos padrões medianos, de forma articulada e sistêmica, constituem segmentos que buscam a integração do consumidor à lógica da circulação da mercadoria. Ainda de acordo com Costa (2001), a heteronomia cultural, a transformação da arte em mercadoria, a hierarquização das qualidades e a incorporação de novos suportes de comunicação pelos setores que já detinham os meios de reprodução simbólica, no seu conjunto, apontam para a continuidade da administração da cultura. Em outras palavras, a dispersão do público/receptor e a impessoalidade no processo de comunicação - combinadas com o monopólio e o sistema de produção baseado na divisão do trabalho - fazem com que a ampliação desse setor da produção seja acompanhada pela apropriação silenciosa de um modelo de cultura que separa quem produz de quem consome (COSTA, 2001).

Os profissionais envolvidos com a produção e o marketing cultural têm chamado a atenção para uma nova visão da cultura, a da cultura como negócio (SILVA, 2001). Diante desse conturbado contexto, segundo Zuin (2001), a mercantilização da produção simbólica - objetivo central do sistema de produção calcado na falsidade de que a massificação da cultura realmente possibilita a emancipação coletiva - tem duas tarefas fundamentais: a integração e a reconciliação forçada entre os grupos sociais desiguais entre si. Nesse contexto, tudo que possa vir a público já está tão profundamente demarcado que nada pode surgir sem revelar, de antemão, os traços e os comportamentos demarcados pelo "gosto popular". Assim, a ideologia está tão "colada" à realidade que qualquer comportamento que não esteja vinculado ao atendimento das necessidades do consumo é rotulado como desviante, além de ter-se uma identidade "única" e a impressão de que não há qualquer tipo de padronização ou uniformização do produto (ZUIN, 2001).

Entre o Estado presente e o Estado ausente: reflexões sobre os rumos da cultura no Brasil

A primeira intervenção do Estado na esfera cultural, para Dória (2001), está centrada precisamente na definição do que a sociedade deva reconhecer como cultura. Ele fixa e define para a sociedade, em cada momento histórico, o que é reconhecido como cultura. Para o autor, é fácil perceber que, no caso brasileiro, muitas vezes o Estado "fabricou" o mercado, manipulou a economia, mas não é tão simples dar-se conta de como ele inventou a cultura. Para Dória (2001), a cristalização da cultura em instituições ocorreu no processo de independência e formação do Estado brasileiro. O marco inicial pode ser a Biblioteca Nacional, formada por d. João VI, a qual, depois, com a Independência e a organização da imprensa livre, continuou sendo a instituição, por excelência, da cultura.

De 1930 a 1953, as ações do Estado na área cultural estiveram a cargo do Ministério da Educação e Saúde Pública (Mesp). Em 1953, este foi desmembrado, dando lugar ao Ministério da Saúde e ao Ministério da Educação e Cultura (MEC) (SILVA, 2001). Foi apenas com o lançamento da Política Nacional de Cultura (PNC), em 1975, que a área cultural passou a ocupar um lugar de destaque entre as políticas governamentais. De acordo com Faria (apud SILVA, 2001), até agora, quem teria entendido a cultura como uma questão estratégica foram os governos militares, os governos autoritários que quiseram criar uma cultura oficial no país.

Já em 1985, no início do governo Sarney, surgiu o Ministério da Cultura (Mine). Até então, jamais existira um órgão próprio com a missão explícita de formular, operacionalizar e coordenar as ações governamentais voltadas especificamente para a área da cultura (SILVA, 2001). A criação do Mine, porém, não trouxe para a área cultural a esperada estabilidade institucional, já que nos seus primeiros 10 anos de existência, o Mine teve nada menos que oito ministros, e entre 1990 e 1992 (no governo Collar), deixou de existir, dando lugar à Secretaria da Cultura, que por sua vez teve dois secretários no período (SILVA, 2001).

Com o objetivo de incrementar o setor cultural, bastante abalado após a década de 1980, surgiu na década de 1990 um movimento de reestruturação do setor, através de incentivos fiscais. De acordo com Balaban (1998) foi feito um esforço importante, e bem-sucedido, para simplificar, agilizar e normatizar os mecanismos de apresentação e de avaliação de projetos, bem como divulgar as leis junto aos potenciais mecenas.

Se o Estado deu suporte aos aparatos material e imaterial da cultura em seus segmentos mais tradicionais - assumindo um papel conservador (DORIA, 2001) -, de outra forma buscou inovar recorrendo ao mercado. Para o autor, durante os anos 1990, a busca de um "modelo de financiamento da cultura" foi a preocupação central do poder público federal. Isso se deveu não apenas à institucionalização da função "cultura" no Estado - levando à já mencionada criação do Ministério da Cultura e à necessidade de recursos para manter o aparato burocrático desse ministério -, mas também à crescente demanda dos setores urbanos por produtos de consumo identificados como "culturais", o que resultou na expansão das áreas onde o Estado precisaria atuar para manter minimamente seu papel no processo de geração de "identidades nacionais" (DORIA, 2001).

Nesse período foi reafirmado o papel do Estado como impulsionador do setor, o que despertou nas indústrias interesses por novas formas de investimento e de participação na área cultural. Como afirma Moises (1998), para implementar suas propostas, o Ministério da Cultura estimulou a formação de uma mentalidade empresarial moderna, segundo a qual as vantagens dos incentivos fiscais para a cultura devem estar associadas tanto ao marketing cultural como a um claro compromisso das empresas com a sua comunidade.

Ainda segundo Moises (1998), a idéia central do governo, no caso das empresas, foi oferecer-lhes benefícios fiscais generosos que ajudassem a criar as condições institucionais e o ambiente indispensável para que elas aportassem recursos mais volumosos no desenvolvimento cultural do país. A política não tinha (e não pode ter), segundo o autor, o sentido exclusivo de oferecer vantagens contábeis às firmas - mesmo se suficientes para induzir a realização das contrapartidas definidas por lei - mas visava criar uma atmosfera propícia e uma mentalidade coletiva favoráveis à parceria entre Estado, produtores culturais e empresas com vistas à criação e à produção culturais, que, nesses termos, converte-se num compromisso das partes com o público. Aliás, os gastos públicos, nessas circunstâncias, cumprem a função de alavancagem de recursos privados para a cultura.

No âmbito municipal, a ausência de uma política cultural contribui, de acordo com Moreira (2000), para a disseminação do culto ao individualismo e à cultura de mercado, e na maioria das vezes, os gestores públicos dos municípios delegam as políticas de cultura às migalhas dos governos estadual e federal, que por sua vez delegam sua regulação ao mercado cultural.

Portanto, pode-se dizer, de acordo com Dória (2001), que ao longo dos séculos XIX e XX o Estado brasileiro definiu para a sociedade o que reconhece como cultura, instituiu-a legalmente e organizou em torno dela uma complexa e variada máquina administrativa. Nesse processo, criou uma burocracia interessada na reprodução desse aparato e, por várias políticas, solidarizou artistas e intelectuais com os parâmetros que adotou para essa atividade pública. Burocratas e intelectuais gravitando ao redor dos recursos públicos constituíram o "povo da cultura" por oposição à "cultura do povo" (DORIA, 2001).

Para Feijó (2003), as políticas culturais sempre foram impregnadas pelo interesse, estando seu conceito, atualmente, em formação. O autor ainda destaca que o desmonte do Estado levou a uma considerável ausência de políticas. Assim, diante do contexto globalizado, as políticas culturais acabam servindo a uma cultura que seria o ópio do povo, sem que haja espaço para a crítica e passando uma imagem errônea de espontaneidade e democracia. O autor estabelece que a política cultural tem favorecido a privatização da cultura, mas que esse quadro é passível de ser revertido, já que a cultura teria papel decisivo na transformação do mundo.

Parece haver certo radicalismo na afirmação de que a cultura é o ópio do povo, não havendo espaço para a crítica. Esse argumento é válido, mas deve ser considerado o fato de que há uma contracultura que, mesmo não sendo predominante, busca fazer uma crítica ao status quo. Além disso, apesar do papel passivo da população diante da mercantilização da cultura, questiona-se se a própria sociedade não estaria legitimando esse processo de massificação.

A cultura e desenvolvimento: algumas perspectivas e controvérsias

Ultimamente, no Brasil, o tema cultura tem sido alvo de diversas discussões. Na época da ditadura militar, Braga (1976) defendia que a cultura se identifica, desde os primeiros instantes de projeção autônoma do perfil nacional, como um sistema de relações coeso, harmonioso e unitário. Naquele período, a cultura estava bem próxima de ser utilizada como representante de uma ideologia.

Atualmente, Faria (2000) entende que o debate público sobre desenvolvimento tem levado a se compreender a cultura como componente da qualidade de vida e cenário fundamental onde o próprio desenvolvimento acontece. Hoje, cultura é um segmento cada vez mais importante para o desenvolvimento integrado das sociedades e para o crescimento econômico propriamente dito. Nesse novo cenário, comparece como importante segmento produtor e empregador nas áreas de bens e serviços, além de qualificador da nova mão-de-obra requerida pelo setor (BALABAN, 1998). Percebe então que, hoje, a cultura está cada vez mais permeada pelo conceito de produto ou que é considerada como mercado em expansão, do qual surgirão novas formas de comércio e de emprego.

A cultura também é vista por diversos autores como ferramenta para amenizar problemas sociais e econômicos. Dessa forma, ligações entre cultura e cidadania e entre cultura e desenvolvimento são temas constantes nas discussões acadêmicas. Para Moreira (2000), a ação cultural contribui para a superação das desigualdades sociais, para o fomento e para a criação e manutenção dos espaços públicos ou privados, na forma de desenvolvimento econômico e na geração de renda, fatores importantíssimos para a formulação de uma política cultural alternativa.

Por sua vez, Faria (2000, p.13) trata da relação com a cidadania, enfatizando que "o desenvolvimento cultural só seria possível com o viver integral da cidadania cultural". O autor descreve alguns itens que compõem a cidadania cultural: o direito de pertencer, o direito de criar, o direito de fruir a cultura, participar nos processos culturais e participar das decisões de política cultural. Além disso, diz que a questão das identidades, da participação, da expansão dos lugares públicos, da ocupação cultural da cidade e a questão da mídia seriam alguns dos desafios à integração definitiva das políticas sociais.

Nesse sentido, Ferron (2000) acrescenta que a cultura será melhor valorizada, melhor avaliada e receberá maiores recursos quando for gerida de maneira a agregar valor à vida, agregar conhecimentos, conduzir à formação de um novo cidadão, mais apto e disposto a enfrentar desafios. Atualmente, a discussão do direito à cultura está superada, a questão que se coloca é a condição do sujeito ao acesso e à fruição culturais. O direito à cultura, numa sociedade minimamente civilizada, nasce com o indivíduo e deve, portanto, ser atributo natural. O pleno acesso é uma condição que a educação deve garantir, porque a segregação cultural é mais avassaladora que a marginalidade econômica ou o confinamento étnico (FERRON, 2000).

De acordo com Ianni (2004), a história narrada pelas classes dominantes não é sempre a mesma, sendo reinterpretada de acordo com a época, conforme os blocos de poder que emergem das relações políticas e lutas sociais. Para Ianni (2004), para se tornar efetiva, a democracia deve compreender também as condições culturais, incluídos nelas os valores, os padrões culturais, os modos de viver e de pensar etc.

Segundo Furtado (1984), a industrialização tardia e o desenvolvimento imitativo ocorridos no Brasil conduziram nossa sociedade ao elitismo e à opressão social. Para ele, o autoritarismo político neutralizou todas as formas de resistência por parte dos excluídos e, juntamente com o processo do endividamento externo, conduziu o país a uma situação de dependência sem precedentes.

Conforme Furtado (1984), em situações de crise como essa é próprio que a percepção do ser humano quanto às contradições por ele criadas aumente. Tal fato muitas vezes conduz a sociedade a uma explosão de criatividade artística. Essa condição, entretanto, diz ele, está longe de ser suficiente para a canalização das forças sociais rumo a um sentido construtivo, sendo necessária também a criatividade no plano político. Furtado (1984) diz que o desenvolvimento exige uma reflexão prévia sobre a cultura brasileira. As lideranças políticas, primeiro de tudo, devem reencontrar-se com os valores presentes em nossa cultura, os quais estão na massa da população. O desenvolvimento deve, segundo o autor, alimentar-se da criatividade do povo que, nesse caso, teria seus desejos mais legítimos satisfeitos. Nesse sentido, Furtado (1984) afirma que uma política cultural deve ter como objetivo a liberação das forças criativas da sociedade. A remoção dos instrumentos que são um obstáculo à atividade criativa deve ser feita, segundo ele, por todas as instituições que se dizem guardiãs da herança cultural.

Conclusão

Ao se discutir a respeito da atual situação da cultura no Brasil, parece evidente que esta - diante dos diversos problemas sociais e econômicos do país - não é pauta central da sociedade nem do mercado e tampouco é uma prioridade do Estado. Logicamente, não se ignora o interesse do mercado por certos "produtos" culturais nem o protesto de alguns grupos pelo sucateamento do aparelho estatal cultural e, muito menos, o fato de algumas políticas públicas utilizarem a cultura como ferramenta de inclusão social. No entanto, o que é fundamental ser destacado é que o papel secundário que o setor cultural exerce atualmente não é um fenômeno recente. Trata-se de um processo construído historicamente pela própria sociedade, que ao longo do tempo sofreu fortes influências do mercado e, principalmente, do Estado.

Um dos pontos que merece destaque é o atual esforço em se retomar o debate a respeito da cultura e do seu papel na busca pelo desenvolvimento econômico e social do país. Cultura, hoje, parece ser considerada por muitos como um segmento cada vez mais importante para o desenvolvimento integrado das sociedades e para o crescimento econômico, propriamente dito, seja como elemento produtor e empregador nas áreas de bens e serviços, seja como setor capaz de suprir lacunas deixadas pelo Estado em outros setores.

Nesse sentido, ligações entre cultura e cidadania e entre cultura e desenvolvimento têm sido, constantemente, temas de discussões acadêmicas. A ação cultural é entendida por muitos como uma forma de superação das desigualdades sociais, para o fomento, criação e manutenção dos espaços públicos ou privados, na forma do desenvolvimento econômico e na geração de renda, fatores importantíssimos para a formulação de uma política cultural alternativa. Além disso, há autores que defendem que o direito à cultura deveria ser um atributo natural garantido pelo Estado para amenizar o problema da segregação cultural.

Entretanto, algumas questões merecem ser levantadas. Inicialmente, até que ponto a universalidade cultural, atualmente defendida por vários teóricos, realmente permite uma manifestação livre da cultura em seu sentido mais amplo ou restringe-se a um uso controlado por aqueles que detêm o poder? Parece estar-se cada vez mais distante da visão de cultura como agente capaz de desempenhar um papel de transformação do status quo. Isso se deve ao fato de que por ser uma produção histórica da própria sociedade, dificilmente a cultura não irá reproduzir as diferenças e desigualdades sociais existentes no contexto analisado. Além do mais, como impedir que a cultura, uma vez administrada, seja apropriada segundo os interesses do Estado ou do mercado? Parece claro que quando está sob a guarda do mercado, a cultura fica, de certa forma, restrita a uma condição de produto. Por outro lado, quando está sob a guarda do Estado, acaba suprindo lacunas que num primeiro momento não lhe diriam respeito ou acaba não se tornando uma prioridade para o país.

Diante dessa perspectiva, como recuperar o conceito de desenvolvimento e sua relação com o contexto centro/periferia? Talvez o único caminho, tendo em vista a realidade brasileira, seja a retomada do papel do Estado na cultura. Como exercer esse papel? Essa é uma questão ainda sem respostas.

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Artigo recebido em agosto de 2006 e aceito para publicação em outubro de 2006.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2007

Histórico

  • Aceito
    Out 2006
  • Recebido
    Ago 2006
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