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Da fenomenologia à etnometodologia Entrevista com Kenneth Liberman

ENTREVISTA

Da fenomenologia à etnometodologia

Entrevista com Kenneth Liberman* * Entrevista realizada por e-mail em maio de 2009; traduzida por Natália Fujita.

Marcus Sacrini

Pós-doutorando do Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo. Pesquisador do Projeto Temático "Gênese e significado da tecnociência", Fapesp, Brasil. sacrini@usp.br

Kenneth Liberman doutorou-se em sociologia pela Universidade da Califórnia, San Diego, em 1981. Desde 1983 é professor de sociologia na Universidade de Oregon. Ele já realizou pesquisas de campo com os aborígenes australianos e com monges tibetanos, entre outros trabalhos de grande impacto no mundo acadêmico. É autor dos seguintes livros Understanding interaction in central Australia: an ethnomethodology of australian aboriginal people (1985), Dialectical practice in tibetan philosophical culture: an ethnomethodological inquiry into formal reasoning (2007a) e Husserl's criticism of reason, with ethnomethodological specifications (2007b), além de diversos artigos especializados. Sua principal linha de pesquisa é a etnometodologia tal como desenvolvida por H. Garfinkel, a qual tem por base diversos temas da fenomenologia. É exatamente o legado da fenomenologia para a tradição sociológica da etnometodologia o tema principal desta entrevista.

Você poderia nos contar sua trajetória intelectual e quais são os principais momentos do seu trabalho até hoje? Você estudou com expoentes da tradição fenomenológica da sociologia?

Tive a sorte de ter alguns dos maiores professores que alguém poderia desejar e uma coisa que me incomoda de tempos em tempos é minha incapacidade de substituí-los. Provavelmente toda geração tem essa preocupação em algum grau, mas no meu caso a extraordinária excelência dos meus professores torna impossível fazer justiça ao seu brilhantismo e integridade.

Meu primeiro professor sério foi Peter Berger, que estava lecionando na New School for Social Research na época, 1969. Ele foi aluno de Alfred Schutz e o ajudou a introduzir a análise fenomenológica formal na sociologia. Era um homem brilhante e sempre me instigava a ler tanto Husserl quanto eu pudesse. Eu dizia para mim mesmo: "Todo mundo adora ler Sartre, Merleau-Ponty e Heidegger porque são excitantes, mas as verdadeiras descobertas estão em Husserl".

Schutz foi aluno de Husserl. Outro sociólogo que aprendeu muito com Schutz foi Harold Garfinkel, o fundador da etnometodologia, que foi o principal mentor acadêmico da minha vida. Nesse sentido você pode dizer que eu pertenço a uma linhagem acadêmica fenomenológica que vem de Husserl a Schutz, de Schutz a seus alunos e deles a mim. Como pós-graduando, também estudei com Herbert Marcuse, que tinha estudado com outro dos alunos de Husserl, Martin Heidegger, embora Marcuse tenha repudiado Heidegger tanto quanto Adorno o fez. Apesar disso, aspectos da linhagem husserliana também chegaram a mim por meio do professor Marcuse. Pertencer a uma linhagem dessa maneira invoca um senso de responsabilidade na empreitada, mais do que se eu tivesse simplesmente lido alguns livros na biblioteca ou participado de alguns seminários com gente que os tivesse lido.

O que é essa responsabilidade? Como indico no prefácio do meu livro sobre Husserl, um traço importante da evolução da humanidade é a capacidade de usar a razão. A humanidade não é realmente tão velha quanto alguns imaginam – a parte do cérebro do Homo sapiens que processa linguagens de fato não se desenvolveu plenamente (ainda está se desenvolvendo) até mais ou menos 200.000 anos atrás, e sem dúvida a linguagem e a sociedade humana evoluíram juntas. Isso não é realmente muito tempo, dado que a Terra tem 5 bilhões de anos. É impossível dizer quando o pensamento foi racionalmente formalizado, mas podemos dizer que não foi antes de dois mil anos atrás que começamos a intuir que nossos pensamentos não apenas refletem a realidade, mas constituem seu sentido.

A propósito, os estudiosos indianos estavam à frente dos europeus no desenvolvimento de sua sofisticação epistemológica, quer dizer, suas investigações sobre o papel da razão precedem o Ocidente em um milênio. E eles reconheceram cedo que a própria razão podia ser mitologizada e tornar-se um problema para si mesma. Os europeus chegaram forçosamente a essa percepção somente no começo do Renascimento, especial-mente com a descoberta da história em um sentido que as tradições orientais nunca fizeram, com o que me refiro não à historiografia – datas e nomes – mas à intuição de que os humanos fazem sua própria história e de que as instituições que eles mesmos criam recriam os humanos na sua própria imagem. Como disse Marx, os homens criam sua própria história. E essas instituições e as categorias e modos de reflexão que usam evoluem com o tempo, e eles continuam a evoluir. O autoentendimento radical buscado por Edmund Husserl ocupa um momento importante nessa evolução, no destino humano se se quiser, embora eu não queira soar metafísico. Quero dizer apenas no sentido prático daquilo que podemos atingir.

Reconhecer que estamos aprisionados por nossas próprias instituições e limitados ao nosso próprio pensamento foi uma das intuições humanas mais duramente conquistadas, e ela ainda corre o risco de desaparecer. Quando se considera a facilidade com que ideologias absolutistas (religiosas ou políti cas) são capazes de banir radicalmente práticas autorreflexivas de pensamento é que se pode avaliar a vulnerabilidade dessas intuições coligidas por Husserl. A etnometodologia dá um passo evolucionário adiante, eu diria, e me vejo como guardião dessa grande intuição da reflexividade do entendimento a que a humanidade chegou. Então aceitei isso como uma responsabilidade. Não há importância pessoal aqui – o que é vital é o que vai sobreviver anonimamente à nossa era como formas de pensamento amplamente difundidas que sabem se manter em seus limites e usar essa capacidade sabiamente.

Para voltar aos meus professores, além de Berger, Garfinkel e Marcuse estudei com Fredrich Jameson, Ivan Illich, os intelectuais heideggerianos Fredrich Olafson e Bert Dreyfus, e não quero deixar de fora o Dalai Lama, que é meu professor há trinta anos. Então minha questão central, agora que entrei na minha sétima década e o tempo que tenho para contribuir é reduzido, é qual a melhor maneira de dar essa contribuição "anônima". É claro que estou profundamente comprometido com muitas causas políticas e a maioria dos professores que mencionei sempre tiveram um engajamento em assuntos políticos, na esperança de mudar a história, mas hoje eu acredito que a minha habilidade de conduzir investigações microssociais muito cuidadosas pode revelar melhor as origens radicais do sentido, da sociedade, e a inteligibilidade e ordenação da vida. Concluí que o estudo de assuntos mundanos – fenômenos como a maneira pela qual as pessoas produzem e aprendem as regras de um jogo, como degustadores de café produzem a inteligibilidade da degustação, as práticas que as pessoas usam para desenvolver um entendimento coerente quando se comunicam em situações interculturais etc. – tem muito mais a contribuir para o esclarecimento das condições de uso do raciocínio prático e formal e do papel do pensamento formal em empreendimentos humanos que contribuições às estruturas de sustentação de tipos mais gerais de teoria macrossocial.

Aprendi tudo que sei com as análises históricas e epistemológicas dos nossos grandes pensadores – incluo entre eles os epistemólogos budistas –, e nós certamente não podemos prescindir da teoria, mas acabamos excessivamente agarrados às estruturas objetificadas da nossa própria teorização e precisamos nos guiar por eventos do mundo real em vez das teorias que adotamos como slogans. É disso que eu mais gosto em Husserl – ele estava sempre pronto a reconhecer o modo como seus próprios hábitos de pensamento o conduziam a uma nova região de miragens. E ainda assim ele estava tão agarrado à superestrutura do elegante aparato teórico (a moeda de sua cultura filosófica) por ele construído que continuou voltando de suas investigações radicais para retraduzir suas descobertas para a metafísica europeia.

Vamos falar mais especificamente sobre a fenomenologia husserliana. Em seus trabalhos você elogia o último programa filosófico de Husserl de explicitar a inserção das ciências no mundo concreto da vida. Husserl pretendia ter diagnosticado uma crise das ciências em geral, no sentido de que elas teriam perdido sua capacidade de contribuir para a determinação do sentido concreto da vida humana. Ele propunha uma reflexão histórica para redescobrir o sentido original das práticas científicas e acompanhar seus destinos nas várias formas sociais que a ciência assume. Mas na sua avaliação, os resultados de Husserl não são inteiramente satisfatórios. Por quê?

Dois parágrafos acima, falei de encontrar as "origens" do sentido e da inteligibilidade, que é uma das principais preocupações de ambas, a fenomenologia e a etnometodologia, mas essa questão das "origens" é um dos aspectos mais controversos do trabalho de Husserl. O diagnóstico de Husserl é de que as ciências perderam sua capacidade de contribuir para a determinação do sentido concreto da vida humana. Deixe-me acrescentar, primeiro, a observação de dois grandes pensadores que frequentaram a escola husserliana – e, no entanto, foram adversários ferozes toda vida – Heidegger e Adorno, ambos tinham coisas incrivelmente clarividentes para dizer sobre a vacuidade das atuais metodologias científicas, a saber, que elas tinham de fato perdido de vista as questões e interesses "originais" que motivaram suas investigações. Mas o problema é – como se pode perder algo cuja "origem", para começo de conversa, nunca foi clara? Simplesmente pressupor que num dado momento havia uma origem, clara e distinta, cognoscível em termos formais, é aderir a uma metafísica europeia que sobreviveu a sua utilidade. Como Derrida nos ensinou, tudo é derivativo. Falando claro, não há origem alguma e nunca houve. Então, o que foi que os cientistas contemporâneos perderam? Na verdade, é exatamente nesse ponto que frequentemente a fenomenologia é dispensada.

Mas porque a investigação sobre as "origens" não pode ser propriamente estandardizada e transformada numa metodologia de prateleira (embora seja isso que a maioria dos pesquisadores contemporâneos tente fazer), isso não quer dizer que não haja motivos e intuições profundos que deram o primeiro impulso para as investigações formais nas quais estamos envolvidos. Numa palavra, a única maneira que conhecemos de pensar é formalizar nossas reflexões. Precisamos de uma formalização a) para ter um registro do que nós mesmos estamos pensando; b) para checar se não estamos chegando a conclusões absurdamente inconsistentes e c) para sermos capazes de comunicar nossas intuições aos outros seres humanos. E este é o ponto crucial onde a etnometodologia pode ensinar algo à fenomenologia – a tarefa prática e local de manter a inteligibilidade de nossas investigações, que é uma parte essencial da ordenação local, sempre em desenvolvimento, dos problemas sociais, segundo a qual as pessoas pensam publicamente e compartilham seus entendimentos, pode se sobressair aos problemas substanciais que motivaram nossas investigações. Nesse sentido os cientistas "perdem" de vista o que estavam fazendo "em primeiro lugar".

Esse "em primeiro lugar" é uma admissão de que há eventos que ocorreram antes do que nós estamos fazendo agora e nesse sentido motivaram ou fundaram de alguma maneira o que fazemos (embora não possa haver nada como assegurar uma fundação firme), apesar do fato de que toda prática social, desde o início do Homo sapiens, os humanos que pensam, tenha sido dirigida a estabelecer e assegurar essas fundações. Mas o fundacionismo é suspeito – então a questão se torna: como podemos aprender a refletir e organizar uma ordem social que carece de fundações ou origens? Tomemos um caso relevante: Heidegger, Levinas, Derrida e Adorno são unânimes sobre a impossibilidade de reduzir a moralidade a regras, isto é, a fórmulas que poderiam assegurar padrões éticos. Mas uma sociedade de massas pode funcionar sem solavancos quando se abandonam as garantias absolutistas?

É com isso que os fenomenólogos contemporâneos estão se batendo, e pensadores tão diferentes quando Derrida e Adorno desenvolveram uma dialética negativa que tem a capacidade de desfazer os laços que ela mesma ata, de maneira que as mistificações do pensamento próprio de cada um são reduzidas ao mínimo absoluto. E todo o tempo a sociedade está clamando em massa pela segurança da certeza. Do meu ponto de vista não há qualquer garantia de que o Homo sapiens vá conseguir resolver isso.

Apesar das contribuições vitais de Husserl, ele volta sempre a um tipo de monadismo leibniziano no qual o individualismo egoísta da metafísica europeia é ressuscitado e considerado primordial. O reconhecimento dessa insuficiência de Husserl é uma contribuição dos fenomenólogos sociais (Schutz, Gurwitsch, Natanson e outros), sobre a qual as investigações etnometodológicas foram construídas. Pensar é realmente uma atividade pública. A quantidade de pensamento produzida por um filósofo que reflete sozinho em seu gabinete no porão tarde da noite é bem pequena comparada ao modo público com que as pessoas organizam a inteligibilidade de seus entendimentos no nosso mundo cotidiano.

Você propõe que a etnometodologia pode realizar o programa de Husserl sem limitar-se a generalidades formais. O que é etnometodologia? Quando e por quem foi desenvolvida?

A etnometodologia foi desenvolvida por Harold Garfinkel durante os anos 1950 e por seus muitos alunos nos anos 1960 e 1970. A etnometodologia descreve em seus detalhes locais as maneiras pelas quais o pensamento e o conhecimento são formalizados e transformados em um sistema social. Em termos fenomenológicos, ela descobre a intersubjetividade como um dado básico, enquanto Husserl tenta fundar a intersubjetividade na consciência individual, o que eu acho que é um vestígio da logística do Esclarecimento. Por sinal, a verdadeira deixa para os etnometodólogos veio com as extensões radicais da fenomenologia husserliana de Merleau-Ponty.

É claro que isso não garante que os etnometodólogos estão imunes a transformar seu próprio trabalho num fundacionismo, à medida que desenvolvem seus próprios slogans e hábitos de análise. Se eu aprendi alguma coisa com Husserl foi que não há garantias para o pensamento claro, nenhuma: deve-se permanecer atento, a todo momento, aos detalhes de como se instituem os autoenganos que nos impedem de ver o mundo, "deixar aquilo que se mostra ser visto por si mesmo da mesma maneira pela qual se mostra a partir de si mesmo" (Martin Heidegger, na introdução de Ser e tempo). Uma ilustração de como a etnometodologia pode se reificar é a forma com que alguns estudos contemporâneos de análise da conversação, conquanto brilhantes e mesmo radicais em sua identificação de muitas das estruturas primitivas de coordenação de sentido, tornam-se eles mesmos técnicas habituais e prontas para reduzir a interação humana a um interesse disciplinar. Embora eu tenha o maior respeito pela análise da conversação, é um pouco assustador a velocidade com que a disciplina da sociologia reduziu a etnometodologia a suas práticas mais padronizadas, perdendo a dialética básica do método e a atenção à reflexividade radical que melhor a caracterizam. É claro que a história consiste nesse tipo de redução. Que tradição religiosa não se formou por elas? Não precisamos apenas ajudar a perpetuar um método de autoentendimento radical, nós precisamos perpetuar a vigilância contra a reificação desses mesmos métodos. Isso nós aprendemos não apenas com os sucessos de Husserl, mas também com seus fracassos.

O que distingue a etnometodologia da fenomenologia?

A etnometodologia se mantém tão atenta aos detalhes mundanos reais que as pessoas usam para organizar a ordenação local da nossa interação social que está mais pesadamente ancorada no mundo real, e se mantém tão sóbria quanto possível. Nós queremos identificar o que está realmente acontecendo, a feição do mundo para pessoas reais em circunstâncias práticas; é muito divertido testemunhar quão loucamente engenhosas as pessoas podem ser ao organizar seus afazeres! Enquanto os fenomenólogos frequentemente primeiro raciocinam formalmente e depois buscam por um caso ilustrativo para ajudá-los a explicar o que querem dizer, os etnometodólogos adiam a maior parte de suas análises até que tenham sido levados de um lado para outro por algum tipo de maluquice do mundo real. Dessa maneira a etnometodologia se lança num caminho um pouco diferente da fenomenologia. A "fenomenologia" poderia ser renomeada como "fenomenologização", no sentido de que as preocupações teóricas formais normalmente se sobrepõem ao contato com o mundo real. Sempre entremeados a uma ou outra sequência de acontecimentos reais, normalmente gravada em vídeo, os etnometodólogos descobrem (pois isso não pode ser inventado ou imaginado) o trabalho mundano de dar um sentido às coisas. Ao invés de subordinar a ilustração como grande parte da fenomenologização faz, os etnometodólogos se permitem ser conduzidos pela mão pelos afazeres correntes do mundo.

Você afirma que a ciência consiste em suas práticas, que não é uma entidade que seria separável de tais práticas. Mas os resultados científicos não excedem as particularidades das práticas com as quais foram produzidos, eles não merecem o título de "idealidades", ou seja, afirmações válidas não limitadas a nenhuma particularidade cultural ou étnica?

Essa é uma questão importante. Deixe-me primeiro relacionar essa questão à anterior e pedir que você considere a melhor maneira de buscar uma resposta para ela. Deveríamos elaborar uma arcabouço teórico capaz de fundar todas as noções de verdade e idealidade que uma pessoa poderia ter e satisfazer todos os critérios de razão que reconhecemos como vitais? Ou deveríamos procurar no mundo situações em que pessoas, cientistas ou leigos, estão empenhadas em sistematizar suas investigações sobre a verdade de um problema e então identificar e descrever exatamente como suas práticas produzem os resultados ideais que elas precisam para ter sucesso em suas vidas? O primeiro caminho permanece abstrato, e haverá menos interferência na trajetória do nosso próprio pensamento. O último caminho pode ficar extremamente complicado, talvez até confuso e ambíguo, mas vai nos dar acesso a muito mais detalhes dos métodos que as pessoas usam para entender a realidade. Só podemos descobrir esses métodos, já que eles são engenhosos e numerosos demais para que possamos imaginá-los todos do alto das nossas cadeiras de filósofos. O grande historiador Abraham Herschel disse uma vez que a raiz da ciência não é o método, mas o deslumbramento, e com esse último caminho nós estamos prontos a abandonar nossa miopia disciplinar em favor de um maravilhamento entusiasmante em relação às habilidades e expertise que as pessoas desenvolvem enquanto vão fazendo o mundo. Concordo que não queremos cair num relativismo cultural, mas também queremos evitar nos encarcerar na prisão das nossas próprias práticas de pensamento, que então mitologizamos como algum tipo de força ontológica.

Deixe-me falar mais concretamente. Recentemente comecei um novo projeto de pesquisa. É um pouco estranho para mim, já que geralmente dediquei meu tempo a estudar as formas de pensamento e ser de nãoeuropeus/americanos, tais como os tibetanos e o povo aborígene da Austrália. Sempre pensei que quanto mais dessemelhantes a nós fossem as práticas que estudamos, menos chances haveria de nos tornarmos presa de nossos próprios preconceitos, embora nunca haja garantias disso.

No ano passado comecei um estudo piloto sobre o trabalho de degustadores profissionais de café. Como se sabe, as empresas de café compram cafés com base nas qualidades de gosto dos grãos e há uma variedade grande e crescente de palavras descritivas para experiências de gosto. Essas palavras incluem adjetivos como "redondo", "encorpado", "penetrante", "frutado", "cítrico", "terroso" etc., palavras que guardam uma certa ambiguidade no que toca ao seu sentido e alcance. Ocasionalmente, comerciantes não profissionais combinam adjetivos incompatíveis como "suave" e "penetrante", mas a maior parte deles é usada com admirável precisão, já que uma empresa vai pagar US$120.000 por um carregamento de café gourmet da África (talvez um que possa se harmonizar muito bem com um café menos caro da América Central) ao invés de US$75.000 por um grão menos interessante. Além disso, os degustadores – e não são sempre os mesmos – têm de conseguir fazer amostragem dos grãos que chegam ao porto de, digamos, São Francisco, para verificar se são de fato aqueles pelos quais se pagou tanto. Então é um bom negócio proceder com precisão. Esses adjetivos são chaves que dizem aos degustadores o que eles têm que procurar. Além disso, ajudam os degustadores a organizarem seu próprio pensamento sobre suas experiências sensíveis.

Toda a questão de como alguém pode comunicar uma experiência sensível subjetiva a outros levanta o problema prático de produzir relatos objetivos dessas experiências, que possam ser comunicados com sucesso e, como você disse, merecem o título de "idealidades" que não se limitam a nenhuma particularidade cultural. Isso é trabalho prático. Você pode descobrir o quão fabulosamente coletiva é a maior parte do pensamento observando como degustadores profissionais de café avaliam várias xícaras de café. Eles en-tram colaborativamente em acordo sobre certas palavras descritivas que são chaves e elas funcionam como guias para as línguas que estão realizando a degustação. Se se tenta, pode encontrar-se, mesmo da primeira vez, os sabores "cítricos", e esses mesmos sabores "cítricos" vão chegar ao paladar daqueles que estão degustando o café em São Francisco. Mas ainda há um bom tanto de trabalho prático para organizar o entendimento. De fato, há organizações internacionais que promovem algumas padronizações para essas palavras descritivas, mas esse esforço se depara com a resistência de muitos degustadores de café que insistem que sempre haverá mais sabores do que se pode categorizar e que há diferenças entre os paladares. Esse estudo trabalha com muitas belas questões que ecoam fortemente os temas fundamentais que Emile Durkheim colocou para a sociologia sobre a produção de fatos sociais, mas também temas fenomenológicos tais como tolerar e domar a indeterminação, experiência corporificada e entendimentos objetivantes.

Como procede aqui um etnometodólogo? Pegamos nossas câmeras de vídeo e gravamos tantas horas das degustações mais profissionais quanto possamos filmar. Digitalizamos o vídeo num computador e analisamos um a um, repetidamente, cada movimento dos participantes enquanto compreendem, comunicam, coordenam, consolidam e objetivam (você poderia se reportar às muitas passagens brilhantes de Husserl sobre o fenômeno da objetivação) as palavras-chave que vão usar para compreender as qualidades gustativas de um dado grão. Quando um estudo procede assim, os detalhes vividos podem ser capturados e apreciados com uma especificidade tão refinada que a investigação fenomenológica ganha uma nova vida.

Temos que enfatizar que não estamos exilando a autorreflexão fenomenológica à "Ciberlândia". O que importa aqui não é a solução tecnológica, no entanto, registrar esse grau de detalhe depende muito das propriedades da edição digital de vídeo, inclusive de como elas facilitam os processos de pensamento durante a análise fenomenológica de detalhes. O que importa é a fenomenologia que podemos fazer com os instrumentos contemporâneos, não os instrumentos mesmos. É claro, Husserl não se beneficiou de tais instrumentos (nem Schutz ou Gurwitsch), então não tem sentido criticá-los por nunca serem suficientemente específicos. Mas a boa notícia é que agora nós podemos ser específicos como a análise fenomenológica precisa ser e, entretanto, a maioria dos fenomenólogos contemporâneos reluta em realizar tais investigações ou abandonar por pouco que seja sua estreita dependência das rotinas analíticas que compõem sua erudição.

Alguns etnometodólogos muito bons (Michael Lynch e Eric Livingston entre eles) têm estudado cientistas indo a seus laboratórios e gravando suas práticas, sejam eles biólogos investigando o desenvolvimento de axônios, astrônomos descobrindo um pulsar ótico ou matemáticos provando um teorema. Os resultados de todos esses cientistas são transculturais, mas as práticas de pesquisa e raciocínio que compõem sua ciência podem ser igualmente investigadas etnometodologicamente.

Fenomenólogos ulteriores, como Heidegger e Merleau-Ponty, já tinham criticado os resultados formais do trabalho de Husserl. As limitações de Husserl não foram corrigidas no desenvolvimento da própria fenomenologia?

Você questiona o papel da filosofia de Heidegger nisso tudo. Heidegger foi um pensador fenomenológico seminal que lutou decididamente para se ater ao que realmente merece ser pensado e para não esconder o ser daquilo que está sendo pensado, não encobrilo com os exercícios de nenhum regime de pensamento que usemos. Em termos heideggerianos, que foram retomados por Derrida em grande medida, usamos a razão pensante para desfazer o encobrimento realizado por nossas práticas de saber. Mas quando o caminho ficou mais difícil, Heidegger às vezes se refugiou mitologizando os gregos ou os seus próprios aforismos (e não é sempre que é fácil distinguir os dois casos). Ele se sai melhor identificando problemas que resolvendo. Eu prefiro uma dialética negativa mais radical que insiste em desmistificar tudo. Em sociologia, referimo-nos a isso como o "motivo do desmascaramento" da análise social. Temos que continuar a pensar e temos que usar o raciocínio formal em nosso pensamento, inclusive o método científico, mas precisamos continuar a submeter tudo isso ao congresso da reflexão humana. A ciência como ideologia é só mais um mito.

Mas realmente surpreende que a antimitologia da ciência moderna tenha se transformado em mais uma mitologia? Isso me faz lembrar do que o grande dialético negativo Chandrikirti, um pensador budista do século vii, disse: há esperança para alguém que não tenha reconhecido que as entidades são vazias de essências inerentes, e para quem se investiu nas reificações que inventou, mas para quem já estudou a natureza do vazio de essências e ainda assim seguiu em frente e transformou o vazio mesmo em um essencialismo não há esperança alguma. De forma que Husserl e todos nós que o seguimos temos que conservar essa inclinação antimitológica, e temo que Heidegger às vezes se rende à sua própria mitologização idiossincrática. Ou talvez eu simplesmente não seja um místico.

Quanto a Merleau-Ponty, praticamente não há como superá-lo. Sua orientação sobre as maneiras pelas quais o entendimento e a experiência excedem a conceitualidade e suas descrições de como dirigir a atenção ao feitio do mundo como um tópico primordial para a pesquisa formal são incomparáveis.

Você estudou em detalhe os debates filosóficos do budismo tibetano. O que esse estudo revela sobre o desenvolvimento concreto da racionalidade? O que ele pode nos ensinar sobre nossa razão científica?

A maioria dos problemas concernentes à razão que tenho discutido foi enfrentada por epistemólogos e dialéticos budistas. Isso se tornou evidente para mim durante minha primeira visita a um monastério tibetano no Nepal em 1978, a convite do abade do monastério. Durante a maior parte dos quatro meses que estive lá, o abade, Lama Thubten Yeshe, apresentou uma palestra, dia sim, dia não, sobre um texto da tradição mente-apenas (tradição idealista) de Asanga, chamado Distinção entre o meio e os extremos. Os extremos são o positivismo e o niilismo. Depois de algumas semanas dessas palestras, visitei o abade para informá-lo de que o texto tratava em grande medida da mesma problemática que a fenomenologia, especialmente no tocante à projeção do sentido noemático. Ele ficou feliz de ouvir isso e me convidou a ensinar-lhe fenomenologia durante uma hora nos dias em que não ministrasse palestras. Calhou de eu ter comigo um exemplar da tradução de Boyce Gibson das Ideias e assim nós avançamos pelo livro, frase por frase, bem do jeito que os tibetanos fazem seus próprios estudos de texto. Mais ou menos uma vez a cada lição o abade interrompia minha explicação e corria para a biblioteca em seu quarto, pegava um texto tibetano impresso com tipos de madeira e lia para mim uma passagem muito próxima ao que Husserl estava dizendo. De fato, não havia uma única ideia nas Ideias com que o abade já não tivesse se deparado durante a educação que ele teve em sua própria tradição, embora ele não estivesse nem um pouco convencido da noção da existência de um ego transcendental.

Depois de mais ou menos um mês disso, resolvi que teria de aprender tibetano e ler esses textos para poder julgar eu mesmo, o que consegui três décadas depois. Se os tibetanos estão nesse tipo de investigação mais ou menos mil anos a mais do que nós, isso significa que podemos aprender com eles.

Então eu me autonomeei embaixador da fenomenologia junto ao budismo tibetano. Infelizmente não tenho certeza de que a fenomenologia quer um tal embaixador, já que a maioria dos filósofos ocidentais não vai levar muito a sério nenhuma tradição de pensamento que não se originou com os gregos. Ainda assim, a escolástica tibetana reagiu ao idealismo da escola mente-apenas com uma fabulosa elaboração da dialética negativa de Chandrakirti e Nagarjuna da escola do caminho do meio, uma dialética que adianta muito da virada pós-moderna na fenomenologia. E assim eu estou dedicando um bom tempo a analisar os principais textos e práticas dessa dialética negativa. Mas aqui, de novo, não estou só lendo os principais textos, tenho tam-testemunhar o pensamento na prática e não bém gravado os estudiosos tibetanos enquan-só em teoria. Então nessa investigação eu to participam de debates públicos formais também estou atuando como etnometodólosobre essas questões epistemológicas. Quero go, bem como fenomenólogo.

  • LIBERMAN, K. Understanding interaction in central Australia: an ethnomethodology of australian aboriginal people London: Routledge, 1985.
  • _____. Dialectical practice in tibetan philosophical culture: an ethnomethodological inquiry into formal reasoning Maryland: Rowman & Littlefield, 2007a.
  • _____. Husserl's criticism of reason, with ethnomethodological specifications Maryland: Lexington Books, 2007b.
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    Entrevista realizada por e-mail em maio de 2009; traduzida por Natália Fujita.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009
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