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Origem da vida e origem das espécies no século XVIII: as concepções de Maupertuis

Origin of life and origin of species in 18th century: the viewpoints of Maupertius

Resumos

A obra de Pierre-Louis Moreau de Maupertuis abrange os domínios da geometria, da física e da astronomia, mas também explora um tema biológico central da agenda científica e filosófica do século XVIII: o problema da geração dos organismos. No Sistema da natureza (1752), o autor apresenta uma ampla teoria que pretende explicar, a partir de um princípio gerativo universal, como os organismos atuais são gerados, como as espécies podem conservar-se ao longo do tempo e como ocorre a formação de novas espécies a partir de uma dada linhagem de organismos. Com base em tais explicações, Maupertuis apresenta certas conjecturas sobre a origem dos primeiros organismos e das primeiras espécies que serão o objeto central deste artigo. Segundo nossa interpretação, Maupertuis explorou o problema das origens da vida e das espécies a partir de dois quadros teóricos distintos, que designaremos como quadros metafísico e físico das origens. No primeiro, a ação de Deus é decisiva para a produção dos primeiros organismos e das primeiras espécies, mas no segundo essa mesma produção é explicada conjecturalmente a partir de uma concepção natural e atomista.

Geração; Origem da vida; Origem das espécies; Epigênese; Preformação; Transformismo; Evolução; Mecanicismo; Maupertuis


The work of Pierre-Louis Moreau de Maupertuis encompasses the fields of geometry, physics and astronomy, and it also inquires into a subject that is central to the 18th-century scientific agenda, namely, the problem of the generation of organisms. In his Système de la Nature (1752), Maupertuis presents a comprehensive theory that purports to explain, on the basis of a universal generative principle, how the currently existing organisms are generated, how the permanence of species in the course of time is possible, and how the formation of new species from a given lineage of organisms takes place. Based on these explanations, he advances some conjectures about the origin of the first organisms and the first species that shall constitute the main subject of this paper. According to our interpretation, Maupertuis has explored the problems of the origin of life and the origin of species from the standpoint of two distinct theoretical frameworks, which we shall call the metaphysical and physical pictures of the origins. In the first picture, God's action is decisive for the production of the first organisms and the first species, while in the second the same production is explained in a conjectural way through a natural, atomistic conception.

Generation; Origin of life; Origin of species; Epigenesis; Preformation; Transformism; Evolution; Mechanism; Maupertuis


ARTIGOS

Origem da vida e origem das espécies no século XVIII: as concepções de Maupertuis

Origin of life and origin of species in 18th century: the viewpoints of Maupertius

Maurício de Carvalho Ramos

Pesquisador do Projeto Temático"Estudos de filosofia e história da ciência" da FAPESP, pós-doutorando do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. maucramos@usp.br

RESUMO

A obra de Pierre-Louis Moreau de Maupertuis abrange os domínios da geometria, da física e da astronomia, mas também explora um tema biológico central da agenda científica e filosófica do século XVIII: o problema da geração dos organismos. No Sistema da natureza (1752), o autor apresenta uma ampla teoria que pretende explicar, a partir de um princípio gerativo universal, como os organismos atuais são gerados, como as espécies podem conservar-se ao longo do tempo e como ocorre a formação de novas espécies a partir de uma dada linhagem de organismos. Com base em tais explicações, Maupertuis apresenta certas conjecturas sobre a origem dos primeiros organismos e das primeiras espécies que serão o objeto central deste artigo. Segundo nossa interpretação, Maupertuis explorou o problema das origens da vida e das espécies a partir de dois quadros teóricos distintos, que designaremos como quadros metafísico e físico das origens. No primeiro, a ação de Deus é decisiva para a produção dos primeiros organismos e das primeiras espécies, mas no segundo essa mesma produção é explicada conjecturalmente a partir de uma concepção natural e atomista.

Palavras-chave: Geração. Origem da vida. Origem das espécies. Epigênese. Preformação. Transformismo. Evolução. Mecanicismo. Maupertuis.

ABSTRACT

The work of Pierre-Louis Moreau de Maupertuis encompasses the fields of geometry, physics and astronomy, and it also inquires into a subject that is central to the 18th-century scientific agenda, namely, the problem of the generation of organisms. In his Système de la Nature (1752), Maupertuis presents a comprehensive theory that purports to explain, on the basis of a universal generative principle, how the currently existing organisms are generated, how the permanence of species in the course of time is possible, and how the formation of new species from a given lineage of organisms takes place. Based on these explanations, he advances some conjectures about the origin of the first organisms and the first species that shall constitute the main subject of this paper. According to our interpretation, Maupertuis has explored the problems of the origin of life and the origin of species from the standpoint of two distinct theoretical frameworks, which we shall call the metaphysical and physical pictures of the origins. In the first picture, God's action is decisive for the production of the first organisms and the first species, while in the second the same production is explained in a conjectural way through a natural, atomistic conception.

Keywords: Generation. Origin of life. Origin of species. Epigenesis. Preformation. Transformism. Evolution. Mechanism. Maupertuis.

I

A obra científico-filosófica de Maupertuis fez importantes contribuições tanto para a física-matemática quanto para a história natural. Seus estudos em física e astronomia acabaram sendo unificados em uma cosmologia e sua história natural aparece, na sua formulação final, como um sistema da natureza. Primeiramente faremos uma exposição abreviada da teoria da geração de Maupertuis e, em seguida, trataremos de alguns elementos de sua cosmologia visando, por fim, discutir o problema das origens da vida e das espécies.

Pierre-Louis Moreau de Maupertuis (1698_1759) foi eleito em 1723 para a Académie des Sciences de Paris e em 1728 para a Royal Society de Londres. Ardente defensor do newtonianismo na Académie, considerava-se "o primeiro que se atreveu, na França, a propor a atração como princípio a ser examinado" (Maupertuis, 1965a, p. 284). Em 1744 é convidado por Frederico II para reorganizar a Academia de Ciências de Berlim, da qual foi Presidente de 1746 até sua morte. Duas de suas realizações científicas bem conhecidas são a comprovação empírica do achatamento dos pólos da Terra e a formulação do princípio físico de mínima ação, nas quais travou, respectivamente, intensa disputa com os discípulos de Descartes e Leibniz. As concepções de Maupertuis sobre a geração dos organismos aparecem em três de suas obras: a Vênus física, de 1745, o Sistema da natureza, de 1752 e a Carta XIV – Sobre a geração dos animais componente das Cartas de 1752. Referências importantes à questão da geração no que diz respeito ao papel do acaso, da providência e das leis naturais aparecem em seu Ensaio de cosmologia de 1750, obra que utilizaremos para a análise das relações entre a cosmologia e a história natural do autor.

Para compreender o valor filosófico mais amplo da teoria da geração de Maupertuis podemos explorá-la a partir de sua polêmica com a concepção dominante na época, a saber, a teoria da preexistência dos germes. Esta, por sua vez, foi proposta como solução às insuficiências da embriologia de Descartes. Em seu confronto com a preexistência, Maupertuis retoma alguns dos pressupostos da embriologia mecanicista cartesiana, mas os altera profundamente ao fundamentar suas conjecturas na mecânica dinâmico-corpuscular de Newton. Assim, apresentaremos inicialmente um resumo dos principais aspectos presentes nessas mudanças teóricas juntamente com as definições dos conceitos centrais envolvidos na polêmica.

II

A embriologia de Descartes é, em essência, uma epigênese mecânica: o embrião forma-se gradativamente através da organização de partes de matéria inerte que se movem segundo as leis do movimento pelo choque. Descartes toma como fundamento fisiológico e genético dessa embriologia a teoria hipocrática da dupla semente: os progenitores produzem líquidos ou licores seminais que são misturados no ato da cópula. As partes seminais masculinas e femininas reunidas produzem mecanicamente o embrião. O elenco básico de tipos de corpúsculos presentes na embriogênese é praticamente o mesmo encontrado na produção do Universo, da Terra e de suas partes. Comparativamente aos corpos inorgânicos, a diversidade de formas presente nas partes seminais necessária para produzir a complexidade orgânica deve ser bem maior, mas tais formas serão sempre mais simples do que a estrutura final que produzirão. Em outras palavras, não há na embriologia de Descartes estruturas orgânicas pré-formadas ou preexistentes. A ação que garante a localização precisa das partes seminais na estrutura orgânica é regida pelas leis ordinárias do movimento. A teoria também recorre à fermentação e ao calor como fatores gerativos, mas eles são interpretados como resultante do movimento e do atrito das partes seminais, não havendo a participação de virtude fermentativa naturalmente ativa.

Esses resultados foram bastante criticados pelos mecanicistas posteriores a Descartes e sua embriologia epigenética foi substituída pelas teorias da preexistência e do embutimento dos germes. Segundo Malebranche e Boyle, por exemplo, o movimento pode desenvolver as partes de um animal, mas não pode formá-las. A embriologia cartesiana não pode ser reduzida à sua fisiologia. Para Boyle, os cristais podem resultar da condensação de um fluído, mas o mesmo não aconteceria com a estrutura mais elaborada dos animais (Pyle, 1987, p. 234). Malebranche, criticando Descartes, afirma em seu Entretiens sur la métaphysique et la religion: "O esboço desse filósofo pode nos ajudar a compreender como as leis do movimento bastam para fazer crescer pouco a pouco as partes de um animal. Mas que essas leis possam formar e unir essas partes é algo que jamais alguém provará" (cf. Roger, 1993, p. 337). A mecânica é suficiente para explicar o desenvolvimento do embrião, mas jamais poderá explicar sua formação. Esta deve ser considerada sempre como preexistente na forma de germes diminutos.

Para Malebranche, principal responsável pelo desenvolvimento da teoria da preexistência dos germes, todas as coisas são feitas por Deus, mas afirmar que tudo ocorre no universo graças a causas milagrosas implica em eliminar a possibilidade de produzir explicações físicas racionalmente inteligíveis. Para explicar os fenômenos ordinários da natureza, a ação de Deus é entendida por Malebranche como produzida por leis. Elas podem explicar inteligivelmente os fenômenos mais gerais da natureza, a saber, os fenômenos mecânicos ordinários e, com modificações, o escopo geral da mecânica cartesiana poderia dar conta desse domínio de fenômenos. Já no âmbito dos principais fenômenos biológicos, como a geração orgânica, o problema não podia ser resolvido com a mesma facilidade e sem modificações mais radicais. Malebranche, bem como outros mecanicistas da época, poderiam aceitar que o crescimento fosse explicado pelas leis do choque entre partes de matéria inerte, mas essas partes já devem ter sido previamente estruturadas segundo a ordem própria da planta ou animal em questão. Ou seja, Malebranche considera a mecânica e a física como impotentes para explicar os processos de gênese das estruturas organizadas. Uma vez que re-introduzir qualquer poder, faculdade ou princípio ativo na matéria estava fora de questão por ferir os princípios mais básicos da filosofia mecânica, a solução foi colocar o próprio processo de geração no âmbito dos milagres. Deus produziu no ato da criação não apenas todas as espécies, mas todos os indivíduos pertencentes a cada uma delas na forma de germes diminutos e encaixados. A verdadeira produção ou geração de seres organizados é prerrogativa do Criador e não de suas criaturas e, assim, é, por princípio, naturalmente ininteligível. Resolve-se um aparente fracasso do projeto mecanicista postulando que certos processos devem possuir um vínculo sobrenatural necessário.

Não é o aparecimento de um animal ou planta que é milagroso, no sentido de organismos que se tornam sensíveis: esse tornar-se visível é o resultado da ação de leis naturais. Milagrosa é a produção do germe inicial a partir do qual atuarão as leis mecânicas que darão origem ao organismo. Ao afirmar que as leis da comunicação do movimento é que garantem o crescimento dos germes, está sendo garantida a inteligibilidade e a cientificidade da investigação física sobre a geração. Além disso, afirmando que esses germes foram criados no início do mundo, as ações sobrenaturais diretas – não mediadas por leis – ficam restritas apenas ao quadro das origens. Essa forma de conceber a geração dos organismos irá vigorar até o século XIX. Ehrard sintetiza da seguinte maneira esse sucesso:

"Se a geração supõe uma intervenção divina, é melhor admitir, pensava-se, um milagre único e original: o Criador criou de uma só vez todos os seres viventes de todos os tempos; a matéria nada cria, mas se limita a 'desenvolver' os germes preexistentes. O sistema da preexistência dos germes permitiria conciliar a simplicidade das vias da natureza com a onipotência do Criador. Ela era sedutora o bastante para impor-se durante mais de um século não apenas aos filósofos como Malebranche e Leibniz, mas aos mais autênticos cientistas como Ch. Bonnet, Haller ou Spallanzani e à grande maioria de seus colegas" (Ehrard, 1994, p. 211).

III

Maupertuis apresenta sua primeira teoria da geração dos organismos na Vênus Física, obra várias vezes reeditada e relativamente popular, na qual a teoria da preexistência e do embutimento dos germes são criticadas e rejeitadas em favor da epigênese. Tal crítica incluiu uma série de controvérsias suscitadas na época, mas nos deteremos nas questões filosóficas mais gerais.

Segundo Maupertuis, se atribuirmos uma causa sobrenatural à produção dos germes ou embriões estamos eliminando do âmbito da física o verdadeiro problema ou objeto a ser investigado. A pesquisa autêntica sobre a geração deve explicar como se forma o próprio embrião. A noção de preexistência dos germes é, portanto, uma solução ilusória para o problema:

"se o sistema dos desenvolvimentos [i.é., a preexistência dos germes e do embutimento] torna a física mais luminosa do que ela o seria admitindo novas produções, é certo que não se compreende em absoluto como, em cada geração, um corpo organizado, um animal, pode-se formar. Mas compreende-se melhor como esta série infinita de animais contidos uns nos outros foi formada ao mesmo tempo? Parece-me que se cria aqui uma ilusão e que se acredita resolver a dificuldade afastando-a" (Maupertuis, 1965a, p. 66).

A formação do germe deve sair do âmbito sobrenatural e receber, tanto quanto o crescimento do germe, uma explicação natural. Aqui, portanto, vemos uma clara oposição metodológica de princípio a todo o projeto embriológico mecanicista "clássico". Porém, podemos já adiantar que ao se envolver posteriormente com os polêmicos temas das origens da vida e das espécies, Maupertuis adotará uma solução semelhante a essa que critica na Vênus física.

Além dessa crítica de caráter teórico, a obra vale-se ainda de uma série de inconsistências e dificuldades empíricas implicadas pela noção de preexistência que são detalhadamente utilizadas para rejeitar a teoria oficial. Feito isso, Maupertuis propõe então suas próprias conjecturas.

Como Descartes, Maupertuis entende que a geração de um organismo é feita a partir da mistura dos líquidos seminais paterno e materno. Cada sêmen contém as partes próprias à geração oriundas dos vários órgãos corporais. Contudo, elas não são inertes mas dotadas de forças especiais de atração que Maupertuis identifica com as afinidades químicas. Tais afinidades foram postuladas pelo químico francês Geoffroy para explicar a seletividade necessária para a combinação das substâncias nas diversas reações químicas ordinárias. Revelando uma clara tentativa de reduzir a embriologia à química newtoniana da época, Maupertuis estabelece uma analogia entre a produção de certas cristalizações semelhantes a vegetais, como aquela conhecida por Árvore de Diana, e a geração do corpo de uma planta viva. Generalizando o processo, afirma que na produção de qualquer organismo as diferenças de afinidades entre as partes seminais são determinadas por sua origem no corpo dos pais quando da formação do sêmen. Partes oriundas de um determinado órgão terão maior afinidade e se atrairão entre si com maior intensidade. Desse modo, pode-se restabelecer no embrião a disposição orgânica semelhante à dos pais.

Em 1751, Maupertuis apresenta em seu Sistema da natureza uma versão modificada dessa teoria na qual o papel da força de atração nos fenômenos gerativos é profundamente modificado e perde sua prioridade. O autor passa a entender que sendo a atração "uma força uniforme e cega espalhada por todas as partes da matéria", ela não é capaz de explicar a regularidade exigida para a formação dos organismos: "Se todas [as partes da matéria] têm a mesma tendência, a mesma força, de unirem-se umas às outras, por que estas vão formar o olho, por que aquelas a orelha? Por que esse arranjo maravilhoso? E por que não se unem todas elas de qualquer jeito?" (Maupertuis, 1965a, p. 146). A força de atração, tomada em sua formulação geral, não pode, sozinha, explicar o caráter teleológico da geração.

Tampouco considera satisfatória a utilização da atração na forma de afinidades químicas. Segundo o autor, sendo elas atrações que seguem outras leis seriam necessários tantos tipos de atrações quantas partes diferentes de matéria participassem da formação do organismo. A esse respeito diz Maupertuis: "Mas com essas mesmas atrações, a menos que se suponha, por assim dizer, que haja tantas quantas partes diferentes no interior da matéria, estamos ainda bem longe de explicar a formação de uma planta ou de um animal" (1965a, p. 141). Com tal posição, Maupertuis afasta-se do projeto de elaboração de uma embriologia epigenética fundada exclusivamente na química newtoniana e atribui à matéria, juntamente com suas propriedades físicas, propriedades psíquicas capazes de atuar na ordenação dos corpos. Afirma Maupertuis: "se é para dizer alguma coisa razoável sobre isso [referindo-se à geração dos animais], mesmo que baseado em analogias, é preciso recorrer a algum princípio de inteligência, a alguma coisa semelhante ao que denominamos desejo, aversão e memória" (1965a, p. 147).

A postulação de propriedades psíquicas na matéria torna-se o elemento central da nova versão da teoria de Maupertuis. Dentre as formas que esse psiquismo assume nessa teoria, a percepção parece ser a mais elementar de todas. Num certo sentido, Maupertuis não toma a extensão e o pensamento como essências absolutamente distintas, mas as reduz como propriedades de um mesmo objeto. Assim, propriedades psíquicas e físicas, representadas especialmente pela percepção e pela atração respectivamente, serão consideradas como capazes de interagir. Essa interação pode ser razoavelmente entendida na teoria – apesar das dificuldades envolvidas com o problema clássico da comunicação das substâncias – como uma espécie de modulação da força de atração por intermédio da percepção dos elementos materiais. Dessa forma, quando um embrião está se formando, a atração espalhada por todas as partes da matéria não será mais uniforme e cega: a intensidade dessa força poderá variar segundo a aversão ou o desejo dos elementos materiais por estabelecer certas interações e a direção da ação dessa força será orientada por uma memória capaz de indicar a localização espacial adequada à organização do corpo em formação.

Com sua teoria reformulada, Maupertuis enfrentou todas as dificuldades que a geração dos organismos colocava para a ciência mecânica de sua época. Não poderemos aqui apresentar, mesmo que resumidamente, tais explicações para cada caso. Assim, vamos colocar em foco dois aspectos da questão que estarão diretamente vinculados ao problema das origens das espécies e da vida. Primeiramente discutiremos a produção de formas orgânicas variantes no interior das linhagens regulares de descendência e, em seguida, o problema da geração espontânea.

IV

A produção de variações na regularidade da geração, bastante discutida na época, está representada por uma série de fenômenos ligados à mestiçagem das raças, à hibridização de espécies, à seleção artificial de raças domésticas e ao nascimento de organismos com malformações congênitas. Podemos facilmente perceber que todos esses fenômenos colocam sérias dificuldades à noção de preexistência dos germes e, tanto na Vênus física como no Sistema da natureza, Maupertuis os explora em detalhe. Para nossa discussão tomaremos o caso mais dramático e que mais esteve envolvido em polêmicas, a saber, a geração dos monstros. Trata-se de organismos que exibem ao nascer mutilações, órgãos supra e infra-numerários ou ainda órgãos e partes disformes. A variação numérica dos órgãos pode ser de dois tipos: há monstros por excesso e monstros por escassez. O primeiro fenômeno é explicado por Maupertuis da seguinte maneira: no licor seminal há sempre mais elementos do que o necessário para formar um organismo. Esses elementos supérfluos poderiam acidentalmente continuar a reunir-se mesmo quando uma determinada parte do feto já estivesse estruturada. Como os elementos supérfluos podem manter sua percepção inalterada, os órgãos supra-numerários aparecem, como mostra a experiência, na mesma posição relativa corporal em que apareceriam ordinariamente. Os monstros por escassez são formados quando casualmente faltam elementos geradores no sêmen ou quando alguma circunstância também acidental os impede de unir-se. Finalmente, os casos de órgãos malformados, ou mesmo de desorganização total do embrião, seriam causados por uma espécie de confusão generalizada nas percepções dos elementos durante a geração.

Em resumo, Maupertuis considera como fonte de variação congênita da forma ordinária dos organismos alterações acidentais de três tipos: na quantidade de elementos, nas possibilidades de união entre os elementos e na atuação da memória dos elementos. Por serem acidentais, essas variações introduzem a possibilidade de geração de novas formas concomitantemente com a geração regular das formas de cada espécie.

Explicada a ocorrência individual desses organismos modificados, Maupertuis também as investiga ao longo das linhagens de organismos. Em outras palavras, estuda a conservação das variações hereditárias. Seu trabalho mais preciso nesse sentido foi o estudo da hexadactilia ou ocorrência de seis dedos nas mãos e nos pés, apresentado na Carta XIV – Sobre a geração dos animais. Através do levantamento da genealogia de uma família na qual tal alteração ocorria, Maupertuis concluiu: "Vê-se, por esta genealogia, que segui com exatidão, que a hexadactilia se transmite igualmente pelo pai e pela mãe: vê-se que se altera pela aliança com pentadáctilos. Por tais alianças repetidas deve manifestamente extinguir-se e perpetuar-se por alianças em que fosse comum aos dois sexos" (1965a, p. 308). Esses resultados mostram, pois, que os cruzamentos afetam decisivamente a freqüência com que formas alteradas são geradas e que há, portanto, outros fatores, além do acaso, atuantes na geração de uma variação quando sua ocorrência é considerada ao longo do tempo. Quanto a isso, diz Maupertuis: "Não creio que alguém tome a continuação da hexadactilia como efeito do puro acaso (...), mas se se quiser [assim considerá-la] é preciso saber qual a probabilidade dessa variedade acidental de um primeiro progenitor não se repetir nos seus descendentes" (1965a, p. 309). Maupertuis calcula em 20.000 para 1 tal probabilidade após estimar em cinco o número de hexadáctilos em Berlim, na época com 100.000 habitantes. A probabilidade, então, dessa singularidade não continuar por três gerações sucessivas, fato por ele verificado na genealogia que levantou, seria de 20.0003 ou 8.000.000.000.000 para 1, números que, para ele, seriam "tão grandes que nem mesmo a certeza das coisas mais demonstradas da Física se aproxima dessas probabilidades" (Maupertuis, 1965a, p. 310).

Esses resultados, bem como o exame de outros fenômenos hereditários, levou Maupertuis a considerar que, para certos traços, somente o aparecimento da primeira variação será acidental. A permanência de certos desvios numa mesma linhagem de organismos poderá ser determinada por fatores que já não são mais fortuitos. Maupertuis explica a recorrência desses traços alterados postulando uma diferença na tendência de certas formas orgânicas ocorrerem. Segundo sua teoria, duas condições são fundamentais na determinação de tal tendência: o número de vezes que uma dada forma é gerada no tempo e a própria natureza estrutural dessa forma. A permanência temporal de uma dada estrutura geraria um hábito nos elementos e, assim, estaria garantida a estabilidade das formas e das espécies. Contudo, esse hábito pode ser casualmente rompido e, assim, uma nova configuração pode aparecer. Aqui entra o segundo elemento: em função da força ou tenacidade própria da nova estrutura, gerada inicialmente de maneira fortuita, ela poderá suplantar parcial ou totalmente um hábito anterior. Nos termos de Maupertuis, "pode haver arranjos tão tenazes, que desde a primeira geração eles dominam todos os arranjos precedentes, e apagam o hábito" (1965a, p. 164). Em resumo, isso implicaria na produção de novas formas ou espécies por um processo natural de mudanças nas partículas responsáveis pela geração. Maupertuis aceita, portanto, uma concepção transformista do mundo vivo e propõe um mecanismo para explicar a produção e a fixação de novas formas ou espécies.

V

Dos aspectos mais complexos da geração, nos quais está envolvida a produção de novas espécies, passaremos ao caso mais simples (pelo menos em termos materiais), ou seja, à geração espontânea. Os fenômenos gerativos tratados até aqui, sejam os regulares ou os produtores de variações, são exemplos do que atualmente designaríamos por reprodução sexuada – Maupertuis utiliza a expressão geração ordinária – no qual há a mistura dos licores masculino e feminino. A geração espontânea é tratada pelo autor juntamente com outros processos especiais de geração que poderíamos designar como processos não-ordinários ou assexuados, a saber, a reprodução vegetativa e a partenogênese. Resumidamente, o autor considera a reprodução assexuada como uma "simplificação" do processo sexuado:

"Conhecem-se insetos nos quais cada indivíduo basta para a reprodução: descobriram-se outros que se reproduzem pela seção das partes de seus corpos. Nem um nem outro desses fenômenos traz qualquer nova dificuldade para o nosso sistema. E se é verdade, como alguns dos mais famosos observadores pretendem, que há animais que, sem pai nem mãe, nascem de matéria na qual não suspeitávamos qualquer de suas sementes, o fato não será mais difícil de explicar: as verdadeiras sementes de um animal são os elementos próprios a unir-se de uma certa maneira: e esses elementos, embora encontrem-se, para a maior parte dos animais, na quantidade suficiente ou nas circunstâncias próprias à sua união apenas na mistura dos licores que os dois sexos emitem, podem, entretanto, para a geração de outras espécies, encontrar-se em apenas um indivíduo; enfim, [podem encontrar-se] noutra parte que não seja dentro do próprio indivíduo que eles devem produzir" (Maupertuis, 1965a, p. 165).

A mistura das sementes masculinas e femininas, que na Vênus física fora considerada como o grande princípio da geração, aparece no Sistema como caso mais freqüente, mas não universal. As partes ou elementos seminais ganham, portanto, uma autonomia muito maior e a dinâmica de suas interações passa a ser o processo mais fundamental da geração. Essas verdadeiras sementes dos animais podem entrar em ação no interior de um único animal (partenogênese), a partir de um fragmento retirado do corpo do animal (reprodução vegetativa) ou estando fora de qualquer organismo, associada a outras matérias (geração espontânea).

Esses resultados levaram Maupertuis à mais ampla generalização de sua teoria, aplicando o mecanismo proposto aos corpos organizados não-vivos:

"Mas o sistema que propusemos limitar-se-ia aos animais? E por que a eles se limitaria? Os vegetais, os minerais, os próprios metais, não possuem origens semelhantes? Sua produção não nos conduz à produção dos outros corpos mais organizados? Não vemos sob nossos olhos alguma coisa de semelhante ao que se passa nos germes das plantas e nas matrizes dos animais, quando as partes mais sutis de um sal, espalhadas em algum fluido que lhes permite mover-se e unir-se, com efeito unem-se e formam esses corpos regulares, cúbicos, piramidais etc. que pertencem à natureza de cada sal?" (Maupertuis, 1965a, p. 166).

Maupertuis retoma a comparação da geração dos corpos vivos com a dos corpos cristalinos, já existente na Vênus física, mas que no Sistema ganha novos significados. O autor vê uma analogia entre a formação de cristais de certas substâncias em solução, mesmo cristais simples, e a geração de organismos vivos a partir dos líquidos seminais: ambos são fluidos com partículas que se unem e restituem a forma de um corpo organizado: "Triturai esses corpos, reduzi-os a pó, rompei a ligação que existe entre suas partes; essas partes divididas que nadam em um mesmo fluido cedo terão retomado seu primeiro arranjo, esses corpos regulares serão logo reproduzidos" (Maupertuis, 1965a, p. 167).

Pelo mesmo processo são produzidos corpos cristalinos mais complexos, as árvores químicas, já mencionadas na Vênus física, e que no Sistema são novamente comparadas à produção de organismos vivos:

"Mas se a figura muito simples desses corpos impede-vos de perceber a analogia que se encontra entre sua produção e aquela das plantas e dos animais, misturai conjuntamente partes de prata, de nitro e de mercúrio e vereis nascer essa planta maravilhosa que os Químicos chamam árvore de Diana, cuja produção não difere talvez daquela das árvores ordinárias a não ser que elas se fazem mais a descoberto" (Maupertuis, 1965a, p. 167).

Maupertuis faz ainda uma última comparação com conseqüências teóricas de grande importância: as vegetações químicas são análogas aos animais produzidos por processos não-ordinários de geração, especialmente por geração espontânea:

"Essa espécie de árvore parece ser para as outras árvores aquilo que são para os outros animais aqueles que se produzem fora das gerações ordinárias, como os pólipos, como talvez as tênias, os áscaris, as enguias da farinha dissolvida; se for verdade que esses últimos animais são apenas reuniões de partes que ainda não pertencem a animais da mesma espécie" (Maupertuis, 1965a, p. 167).

Cristais simples, árvores químicas e seres vivos simples são gerados essencialmente da mesma maneira: pela agregação espontânea de partes materiais presentes em algum tipo de líquido que garantam um estado de fluidez a essas partes.

A geração dos animais que se formam espontaneamente conta fundamentalmente com a percepção das partes seminais:

"Há elementos tão suscetíveis de arranjo, ou nos quais a lembrança é tão confusa, que eles se arranjam com maior facilidade: e talvez veremos animais produzirem-se por meios diferentes das gerações ordinárias; como essas maravilhosas enguias que se pretende que se formem com a farinha dissolvida; e talvez tantos outros animálculos que pululam na maioria dos líquidos" (Maupertuis, 1965a, p. 161).

Nas gerações ordinárias, para que haja a produção repetida de uma mesma estrutura, as partes seminais envolvidas devem retomar também de maneira constante as posições ocupadas nos organismos; isso depende por sua vez da manutenção de uma mesma memória associada a essa estrutura. Mas o contrário também é verdadeiro, segundo reza a citação anterior: elementos seminais que possuem uma memória confusa não conseguem reter sempre a mesma posição orgânica e, assim, produzem diferentes animais mais ou menos ao acaso, de forma irregular e de acordo com encontros fortuitos em diversas substâncias. A intensidade de união de tais elementos também deve ser maior, pois agregam-se de maneira menos seletiva, produzindo formas orgânicas tão variadas como as citadas. Em uma palavra, a geração espontânea é tomada como o processo de base de todas as formas de geração.

VI

A teoria que expusemos até aqui explica como os corpos atuais são gerados segundo suas diversas modalidades e como ocorre a formação de novas espécies a partir de uma dada linhagem de organismos. Vamos, por fim, abordar o problema das origens da vida e das espécies. Como dissemos inicialmente, Maupertuis apresenta, segundo nossa interpretação, dois quadros teóricos distintos para o tratamento do problema das origens, um metafísico e outro físico. No interior do quadro metafísico, as propriedades psíquicas presentes na matéria, base de toda a teoria de Maupertuis, possuem uma origem sobrenatural:

"Se o Universo inteiro é uma prova tão forte de que uma Inteligência suprema o ordenou e o preside, podemos dizer que cada corpo organizado apresenta-nos uma prova proporcional à inteligência necessária para produzi-lo (...). Deus dotou cada uma das pequenas partes de matéria com alguma propriedade semelhante àquilo que em nós chamamos desejo, aversão e memória; a formação dos primeiros indivíduos sendo milagrosa, aqueles que lhes sucederam não são mais do que os efeitos dessas propriedades" (Maupertuis, 1965a, p. 156).

Apesar das profundas discordâncias de Maupertuis com a teoria da preexistência, vemos aqui grande semelhança dessas idéias com as de Malebranche que apresentamos anteriormente. Maupertuis também separa os âmbitos sobrenatural e natural e a partir deles define igualmente o domínio de investigação próprio da física: "Por quais leis este mundo, uma vez formado, se conserva? Quais são os meios que o Criador destinou para reproduzir os indivíduos que perecem? Aqui temos o campo livre e podemos propor nossas idéias" (Maupertuis, 1965a, p. 155). Maupertuis utiliza, portanto, o mesmo recurso que criticou na Vênus física: os primeiros indivíduos foram gerados milagrosamente por um ato de criação divina. Mas, junto dessa semelhança, há também uma diferença fundamental: apenas os primeiros indivíduos possuem uma origem sobrenatural. Os demais organismos serão efetivamente gerados como descendentes desses indivíduos primordiais.

A maneira pela qual Maupertuis articula a ação sobrenatural aos fenômenos naturais leva, no âmbito da geração orgânica, a conseqüências bem diferentes em relação ao que aconteceu com a preexistência dos germes. Nesse sentido seria interessante examinarmos como essa mesma articulação ocorreu nos estudos de física e astronomia do autor que, ao lado de sua história natural, designaremos como sua cosmologia.

A prova de que uma Inteligência suprema ordena e preside o Universo é apresentada por Maupertuis como uma espécie de coroamento de sua cosmologia. Ao longo de seu desenvolvimento, o autor vai inicialmente incorporar, desenvolver e criticar elementos da filosofia natural de Newton. Posteriormente procurará por um princípio ainda mais geral que a atração, capaz de reduzir todas as leis físicas até então consideradas como mais fundamentais. Tal princípio vincula-se metafisicamente a uma concepção de Deus como produtor de leis capazes de garantir a estrutura do universo tal como revelam os fenômenos, e fisicamente a uma lei de conservação das ações envolvidas na produção desses mesmos fenômenos. Tal lei é o princípio da mínima ação: quando ocorre alguma mudança na natureza, a quantidade de ação necessária para tal mudança é a menor possível. Com tal princípio, Maupertuis pretendeu ter descoberto qual seria a verdadeira grandeza física que é economicamente despendida na natureza, a saber, a quantidade de ação, definida como o produto da massa dos corpos por sua velocidade e pelo espaço que percorrem. Com a expressão matemática desse princípio Maupertuis deduziu as leis da óptica, do repouso e do movimento dos corpos. Assim, uma vez que o princípio se mostrou cientificamente impecável, o autor tentou "derivar da mesma fonte verdades de um gênero superior e mais importantes" (Maupertuis, 1985, p. 103), a saber, buscar a prova da existência de Deus nas leis gerais da natureza.

A noção metafísica que fundamenta o princípio físico da mínima ação e que estabelece a relação de Deus com a natureza é, resumidamente, a seguinte: "todas as coisas estariam de um tal modo ordenadas que uma Matemática cega e necessária executa aquilo que a inteligência mais esclarecida e mais livre prescreveria" (Maupertuis, 1751, p. 66). Tal concepção permitiria privilegiar conjuntamente a sabedoria e o poder divinos e, mais importante, garantiria uma certa autonomia da natureza que está, porém, ao mesmo tempo, subordinada à vontade de Deus. Para Maupertuis, "não se pode duvidar que todas as coisas não sejam reguladas por um Ser supremo que, enquanto imprimiu na matéria forças que denotam sua potência, destinou-a a executar efeitos que marcam sua sabedoria" (1965b, p. 21). A regularidade dos fenômenos revelada nas leis é, em última análise, um efeito da ação de Deus sobre a natureza. Tal ação respeita um princípio metafísico de simplicidade cuja expressão fenomênica seria a economia da quantidade de ação despendida na produção dos fenômenos. Uma vez que a partir do princípio que expressa essa economia Maupertuis pode deduzir as principais leis físicas exigidas pela experiência, o autor conclui pela existência de um Ser Supremo responsável pelo estabelecimento desse princípio.

Acreditamos que esse procedimento metodológico utilizado na cosmologia também foi aplicado por Maupertuis, de maneira mais sintética, em sua história natural. Nela, o psiquismo, associável à vontade, ao instinto, à inteligência e à percepção, foi atribuído à matéria da mesma maneira que as forças que Deus imprimiu nos corpos. Tal psiquismo implica alguma forma de finalidade, mas que, em princípio, poderia ser uma finalidade natural, uma vez que é concebido como mais uma das propriedades dos corpos. Por outro lado, a origem desse psiquismo dos corpos, capaz de regular a geração, também possui uma finalidade transcendente, mas que atua apenas como princípio ou "lei biológica" geral. No detalhe dos fenômenos, a matéria pode exibir ampla autonomia e estar sujeita a uma série de contingências representadas por eventos fortuitos diversos, como vimos o autor afirmar em várias ocasiões. A mesma finalidade, que determina uma rígida lei de economia da ação para os fenômenos físicos mais gerais, permite uma concepção bem mais dinâmica e histórica da natureza no âmbito dos fenômenos biológicos.

Podemos, então, propor uma primeira conclusão mais geral, dentro desse quadro metafísico das origens. Se definirmos o problema da origem da vida, como freqüentemente se entende a partir das teorias científicas mais atuais, como o estudo sob bases exclusivamente físicas e materiais do aparecimento das primeiras formas de vida na Terra, podemos afirmar que Maupertuis não possui um tal projeto de investigação e, assim, não poderíamos dizer que ele chega a investigar propriamente a "origem da vida", fenômeno que permanece no âmbito sobrenatural dos milagres. Por outro lado, a teoria de Maupertuis trouxe a geração dos organismos para o domínio físico e natural, ao contrário do que fazia a teoria da preexistência, que incluía todas as gerações no âmbito sobrenatural.

VII

Passaremos, por fim, ao problema da origem das espécies, que discutiremos a partir do quadro físico das origens. Retomando novamente a cosmologia de Maupertuis, a prova da existência de Deus a partir das leis gerais da natureza que o autor pretende ter encontrado também foi sustentada a partir do exame e da crítica de outras provas alternativas que visavam obter o mesmo resultado. Maupertuis criticou particularmente as provas oferecidas por Newton e seus seguidores, "tiradas da uniformidade e da conveniência das diferentes partes do Universo" (Maupertuis, 1751, p. 32). Além de não aceitar como suficiente o argumento baseado na necessidade de uma escolha para o estabelecimento do movimento dos planetas, atacou duramente as provas oriundas da conveniência refletida nas partes dos animais. Nessas provas, cada detalhe da estrutura dos organismos (sobretudo aqueles que a microscopia passou a revelar) é vinculada a uma função vital específica e, assim, a perfeição com que todas as necessidades dos organismos são satisfeitas provaria a ação da Providência divina nos mínimos detalhes da natureza. Cada novo conhecimento acerca da estrutura associada ao modo de vida dos organismos seria uma prova adicional da existência de Deus. Mas Maupertuis considera que a ingenuidade e mesmo o modo ridículo com que tais argumentos foram construídos poderiam antes encorajar o ateísmo do que proporcionar uma tal prova. Segundo o autor,

"Quase todos os Autores modernos que trataram da Física ou da História natural não fizeram outra coisa senão estender as provas que tiramos da organização dos Animais e das Plantas e levá-las até os menores detalhes da Natureza. Para não citar exemplos muito indecentes, que seriam muito comuns, eu falo apenas daquele que encontra Deus nas pregas da pele de um Rinoceronte, pois esse animal estando coberto de uma pele muito dura não poderia se mexer sem essas pregas. Não é prejudicar a maior das verdades querer prová-la com tais argumentos? Que diríamos daquele que negasse a Providência porque a carapaça da tartaruga não possui pregas nem articulações? O raciocínio daquele que a prova pela pele do Rinoceronte tem a mesma força: deixemos essas bagatelas àqueles que nelas não percebem a frivolidade" (Maupertuis, 1751, p. 27).

O argumento mais comum que se apresenta para refutar o emprego desse finalismo exagerado vai na direção totalmente oposta, ou seja, apelar para o acaso e para a ausência total de finalidade na natureza. Maupertuis apresenta como exemplo de tal posição uma passagem do livro IV do Rerum Natura de Lucrécio – que o autor designa como "maior inimigo da Providência" – nos seguintes termos: "a utilidade não foi de modo algum o objetivo, (...) ela foi a conseqüência da construção das partes dos Animais (...) o acaso, tendo formado os olhos, as orelhas, a língua, serviu-se deles para ver, para escutar e para falar" (Maupertuis, 1751, p. 24). Em resumo, temos aqui um dilema entre duas posições extremas associadas à relação entre forma e função dos organismos. Segundo o atomismo, a forma, produzida casualmente, precede e determina a função e, assim, não haveria sentido em atribuir quaisquer desígnios ou finalidades aos seres vivos. Mas a conveniência generalizada observada na natureza entre as formas e as funções orgânicas reclama o oposto: a função ou utilidade é anterior à forma que lhe está associada.

A posição de Maupertuis frente a esse dilema já ultrapassa o problema cosmológico da prova da existência de Deus e determina conseqüências em sua história natural. Ele adota uma posição que acreditamos ser intermediária e que tenta aplicar, consistentemente com essa cosmologia, um finalismo restrito às produções naturais. Sua resposta, que introduz os primeiros elementos de seu quadro físico das origens, é a seguinte:

"Mas não podemos dizer que, na combinação fortuita das produções da Natureza, como havia apenas aquelas onde se encontrassem certas relações de conveniência que pudessem subsistir, é maravilhoso que essa conveniência se encontre em todas as espécies que atualmente existem? O acaso, diríamos, teria produzido uma multidão inumerável de indivíduos; um pequeno número encontrar-se-ia construído de maneira que as partes do animal pudessem satisfazer suas necessidades; em um outro número infinitamente maior, não havia nem conveniência nem ordem: todos estes últimos pereceram: animais sem boca não podiam sobreviver, outros que careciam de órgãos para a geração não podiam perpetuar-se; os únicos que restaram são aqueles onde se encontravam a ordem e a conveniência: e essas espécies que vemos hoje são apenas a mínima parte daquilo que um destino cego havia produzido" (Maupertuis, 1751, p. 24).

Aparentemente essa descrição da produção dos primeiros organismos é a mesma do esquema atomista, pois os organismos são produzidos pela combinação fortuita das produções naturais. Mas acreditamos existir uma diferença sutil na conjectura de Maupertuis, capaz de garantir uma certa fidelidade à explicação atomista e, ao mesmo tempo, evitar o apelo irrestrito ao acaso com comprometimento da validade de seu princípio gerativo fundamental. É essa solução que introduz o que designamos como quadro físico das origens.

As estruturas produzidas de modo fortuito não satisfazem automaticamente as necessidades orgânicas; a maioria delas não se fixa no tempo através da geração por não exibir a combinação de partes ou de órgãos capaz de garantir o desempenho necessário à sobrevivência. O acaso pode produzir seres vivos, mas não é ele que estabelece quais serão as estruturas funcionalmente viáveis. Parece-nos que essa conjectura assume algum tipo de predeterminação com relação à composição conveniente de órgãos que engendraria um ser vivo. Tal predeterminação é explicada apenas no interior do quadro metafísico das origens, mas sua atuação no âmbito físico regula e seleciona as combinações fortuitas e, desse modo, produz como resultado o fato de que os organismos pertencentes a todas as espécies existentes exibam uma perfeita combinação de forma e função que se realiza na construção de estruturas que atendam a necessidades. Esse fato maravilhoso e surpreendente pode, portanto, ser explicado a partir de um princípio geral da natureza. Essa interpretação da conjectura de Maupertuis parece-nos capaz de garantir a combinação de acaso e necessidade exigida por uma solução alternativa entre os modelos atomista e providencialista extremos. Ela também é consistente com a proposta, defendida por Maupertuis em sua cosmologia, de inclusão de causas finais nas explicações físicas. Como já mencionamos, a finalidade que reflete a presença de Deus na natureza deve ser buscada apenas nos fenômenos mais gerais e, assim, conclui finalmente Maupertuis, "Não é, portanto nos pequenos detalhes, nessas partes do Universo de que conhecemos muito pouco as ligações, que devemos procurar o Ser supremo; é nos Fenômenos cuja universalidade não sofre qualquer exceção e cuja simplicidade expõe-se inteiramente à nossa vista" (1751, p. 54).

Podemos tratar agora diretamente do problema da origens das espécies e, para tanto, sugerimos inicialmente uma distinção. Uma teoria sobre a "origem das espécies" pode ser entendida sob dois pontos de vista distintos: como uma explicação do processo pelo qual uma nova espécie é produzida a partir de uma outra preexistente ou como uma explicação para o surgimento de todas as espécies existentes a partir de uma ou várias espécies primordiais. A teoria da geração de Maupertuis inclui, como vimos, uma explicação para a origem de novas espécies no primeiro desses sentidos; a questão que agora estará em foco diz respeito ao segundo.

Como vimos anteriormente, mesmo que os primeiros indivíduos tenham surgido do encontro fortuito de partes materiais, havia uma finalidade a garantir que apenas aqueles bem adaptados poderiam estabelecer-se e, pela reprodução, formar a diversidade de espécies existentes na Terra – reprodução ocorrida tanto por processos ordinários como não-ordinários. Essa concepção atomista modificada, apresentada inicialmente como alternativa tanto ao finalismo como ao acaso extremos, aparece mais desenvolvida no Sistema da natureza na forma de uma conjectura física mais explícita para a possível origem dos primeiros "indivíduos": "tudo nos faz conhecer que todas as matérias que vemos sobre a superfície de nossa Terra foram fluidas (...) [e] se encontravam no mesmo caso que os licores no interior dos quais nadam os elementos que devem produzir os animais" (Maupertuis, 1965a, p. 169). À primeira vista, teríamos aqui uma possível explicação totalmente naturalizada para a primeira origem dos seres vivos, em flagrante oposição àquela apresentada no interior do quadro metafísico: havia na superfície da Terra uma espécie de fluido seminal universal, análogo aos fluidos seminais encontrados no interior dos organismos e, a partir dele, foram produzidos corpos organizados por geração espontânea: nesse estado de fluidez "os metais, os minerais, as pedras preciosas foram bem mais fáceis de formar-se que o inseto menos organizado. As partes menos ativas da matéria teriam formado os metais e os mármores; as mais ativas, os animais e o homem" (Maupertuis, 1965a, p. 169).

Por razões que aqui não discutiremos em detalhe, não podemos concluir se essa descrição corresponderia com certeza a uma "primeira" origem dos organismos. No Ensaio de cosmologia, parece ser esse o caso, mas aqui no Sistema da natureza ela aparece mais como o efeito de uma catástrofe que teria ocorrido com a Terra após a criação. A discussão dessa questão exigiria a inclusão de muitos outros elementos da teoria de Maupertuis (ligados sobretudo à história da Terra e à origem das raças humanas) que as atuais limitações de espaço não permitiriam. Em linhas gerais, essa descrição poderia referir-se tanto a uma condição natural, primordial em algum sentido, como a uma condição posterior à criação sobrenatural, produzida por catástrofes naturais envolvendo todo o planeta (como a aproximação de um cometa). Mas, mesmo com esse problema em mãos, a teoria de Maupertuis apresenta uma clara conjectura para um quadro físico e natural das origens, que, no entanto, não seria necessariamente o primeiro.

Há, por fim, um último elemento ligado a esse quadro físico das origens. No capítulo XLV do Sistema da natureza, Maupertuis faz uma conjectura aparentemente sem qualquer relação com a questão das origens, mas que veremos estar profundamente relacionada com ela. O autor assume inequivocamente a possibilidade de que grandes grupos de organismos estejam unidos hereditariamente e que este vínculo se estabeleça por meio da reprodução "ordinária" ou sexuada. Logo após explicar como certos novos arranjos orgânicos mais potentes podem dominar arranjos mais antigos, o autor diz:

"Não se poderia explicar assim como de dois únicos indivíduos pôde surgir a multiplicação das mais diferentes espécies? Elas deveriam sua primeira origem a algumas produções fortuitas, nas quais as partes elementares não teriam retido a ordem que mantinham nos animais pai e mãe; cada grau de erro teria feito uma nova espécie; e à força de sucessivos desvios constituir-se-ia a diversidade infinita dos animais que hoje vemos; que crescerá talvez ainda com o tempo, mas à qual a seqüência dos séculos não trará senão acréscimos imperceptíveis" (Maupertuis, 1965a, p. 164).

Desde a Vênus física, está estabelecido que a partir de um casal podem surgir várias espécies, mas aqui parece haver algo mais: a partir de um casal poderia ter surgido a diversidade infinita dos animais que vemos atualmente. Isso significa que, para Maupertuis, seria possível que todas as espécies animais se originassem a partir de um único casal de animais? Temos aqui a mesma dificuldade de interpretação que anteriormente encontramos para as origens a partir da geração espontânea. As mais diferentes espécies poderiam surgir de um único casal, mas não todas; a diversidade infinita dos animais que hoje vemos poderia ter surgido a partir de vários casais. De qualquer maneira, Maupertuis já apresenta a possibilidade de produção natural de grupos monogenéticos de espécies, com um ancestral comum. Porém, muito provavelmente, essa comunidade de descendência não se estenderia a todas as espécies.

Diante dessas dificuldades, podemos oferecer apenas uma conjectura que, talvez, possa integrar em uma visão coerente esse quadro físico das origens. Houve um estado primitivo da Terra no qual todas as matérias e seus elementos estiveram em um estado de fluidez que reúne as condições básicas à geração dos corpos organizados. Organismos de diferentes ordens de complexidade puderam ser produzidos a partir desse líquido primordial. Inicialmente os corpos organizados poderiam ser produzidos da matéria em estado fluido a partir do mecanismo básico de geração espontânea, quando os elementos seminais encontram-se fora dos organismos. Alguns desses primeiros corpos produzidos – os organismos vivos – puderam reproduzir-se pela manutenção do estado de fluidez das partes seminais internas, outros continuariam a ser gerados espontaneamente a partir de fluidos seminais externos. Já os corpos organizados minerais não se reproduziriam devido à perda do estado de fluidez interna. O processo de desagregação dos corpos causado por fatores externos pode ocorrer mais de uma vez e novas espécies poderão surgir espontaneamente, bem como organismos e espécies preexistentes poderão extinguir-se. Os organismos vivos gerados a partir dos elementos dissolvidos no ambiente terrestre primitivo são os primeiros ancestrais dos organismos posteriormente existentes, pelo menos aqueles que se reproduzirão sexuadamente. É possível tomar esse quadro primitivo como uma descrição física da origem de organismos e de espécies sem necessariamente considerá-lo como uma primeira origem dos seres.

Até o presente, não pudemos decidir com segurança se tal conjectura estaria de acordo com as idéias de Maupertuis ou se sua obra contém efetivas aporias decorrentes das tensões entre cosmologia e história natural. Assim, não podemos decidir se na obra biológica de Maupertuis comparece uma "origem das espécies" como origem de toda a diversidade a partir de uma ou várias espécies primordiais que sejam efetivamente as primeiras formas de vida sobre a Terra.

  • EHRARD, J. L'idée de nature en France dans la primière moitié du XVIIIe siècle Paris, Albin Michel, 1994.
  • MAUPERTUIS, P.-L. M. de. Essai de cosmologie S/loc., s/ed., 1751.
  • _______. Oeuvres. Vol. II. Hildesheim, Georg Olms, 1965a.
  • _______. Oeuvres. Vol. IV. Hildesheim, Georg Olms, 1965b.
  • _______. El orden verosímil del cosmos Madri, Alianza, 1985.
  • PYLE, A. J. "Animal generation and the mechanical philosophy: some light on the role of biology in the scientific revolution". In: History and Philosophy of Life Sciences 9, 2, 1987, p. 225-54.
  • ROGER, J. Les sciences de la vie dans la pensée du XVIIIe siècle: la génération des animaux de Descartes à l'Encyclopédie Paris, Armand Colin, 1993.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jul 2010
  • Data do Fascículo
    Mar 2003
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