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Pecuária e saúde veterinária no sul de Moçambique no começo do século XX: um olhar a partir do combate à East Coast fever

Resumo

O artigo propõe um contributo para a historiografia sobre as dimensões sociais da saúde veterinária em contexto colonial e seus efeitos na pecuária a partir do caso do sul de Moçambique, região onde o gado bovino ocupou historicamente um papel importante. Mais especificamente, analisa-se a forma como a East Coast fever, uma protozoonose dos bovinos, foi combatida nesta região nas primeiras décadas do século XX. Enquadrando esse caso na historiografia do sudeste africano, destaca-se o caráter repressivo das medidas de polícia sanitária preconizadas pelas autoridades portuguesas, a forma como foram contestadas por diferentes agentes e o modo como permitiram a introdução de novas formas de controlo populacional e espacial.

saúde veterinária; Moçambique; colonialismo; história; África

Abstract

Drawing on the example of southern Mozambique, this article proposes a contribution to the historiography of the social dimensions of veterinary health in colonial contexts and their effects on livestock. More specifically, it analyses the way East Coast fever, a protozoonosis of cattle, was fought in this region in the first decades of the twentieth century by highlighting the repressive nature of the sanitary police measures put in place by Portuguese authorities, how they were contested by different agents and how they opened the way for the introduction of new modes of population and spatial control.

veterinary health; Mozambique; colonialism; history; Africa

O conhecimento a respeito do modo como Moçambique foi afetado, no final do século XIX e ao longo do século XX, por diferentes doenças veterinárias, das respostas das autoridades coloniais portuguesas e de seus efeitos nas sociedades agropecuárias africanas locais, é ainda extremamente limitado (Dube, 2015DUBE, Francis. “In the border regions of the Territory of Rhodesia, there is the greatest scourge...”: the border and East Coast Fever control in Central Mozambique and Eastern Zimbabwe, 1901-1942. Journal of Southern African Studies, v.41, n.2, p.219-235, 2015.; Mavhunga, Spierenburg, 2007).

Tal situação contrasta fortemente com a atenção prestada a esse assunto na historiografia de territórios vizinhos de Moçambique pertencentes ao Império britânico. Alguns estudos têm mostrado como no contexto do combate a doenças contagiosas responsáveis por uma elevada mortalidade do gado bovino, nomeadamente a peste bovina, as populações africanas foram particularmente afetadas por medidas coercivas de sanidade veterinária, que contestaram de diferentes formas. Essas medidas sanitárias, baseadas em percepções enviesadas sobre o gado local, acabariam por justificar limitações adicionais ao acesso dessas populações a recursos naturais, contribuindo para o seu empobrecimento e acentuando divisões raciais presentes nas sociedades coloniais (Bundy, 1987BUNDY, Colin. “We don’t want your rain, we won’t dip”: popular opposition, collaboration and social control in the anti-dipping movement, 1908-1916. In: Beinart, William; Bundy, Colin (ed.). Hidden struggles in Rural South Africa: politics and popular movements in the Transkei and Eastern Cape, 1890-1930. London: James Currey, 1987. p.191-221., p.199; Mwatwara, 2014MWATWARA, Wesley. A history of state veterinary services and African livestock regimes in colonial Zimbabwe, c.1896-1980. Dissertação (Doutorado em História) – Stellenbosch University, Stellenbosch, 2014., p.74; Sunseri, 2018SUNSERI, Thaddeus. The African rinderpest panzootic, 1897-1898. In: Spear, Thomas (ed.). Oxford research encyclopedia of African history. New York: Oxford University Press, 2018. p.1-33. Disponível em: <http://oxfordre.com/africanhistory/view/10.1093/acrefore/9780190277734.001.0001/acrefore-9780190277734-e-375?rskey=6IOdW7&result=2>. Acesso em: 19 fev. 2019.
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, p.19; Waller, 2004WALLER, Richard. “Clean” and “dirty”: cattle disease and control policy in colonial Kenya, 1900-1940. The Journal of African History, v.45, n.1, p.45-80, 2004.). Mas também têm sido analisadas as diferentes estratégias a que recorreram os criadores africanos para recuperar os seus rebanhos após as importantes perdas sofridas e para reabilitar as relações recíprocas em torno do gado, tão importantes ao funcionamento das suas sociedades (Phoofolo, 2004PHOOFOLO, Pule. Zafa! Kwahlwa! Kwasa!: African responses to the rinderpest epizootic in the Transkeian territories, 1897-1898. Kronos, n.30, p.94-117, 2004., p.106). O crescente interesse pela história do clima, por sua vez, tem permitido compreender os efeitos devastadores de doenças veterinárias no contexto da crise ecológica provocada pela seca no sudeste de África em meados da década de 1890 (Pribyl et al., 2019PRIBYL, Kathleen et al. The role of drought in agrarian crisis and social change: the famine of the 1890s in South-Eastern Africa. Regional Environmental Change, n.19, p.2683-2695, 2019., p.2688).

Neste artigo procuramos dar um contributo para a historiografia sobre as dimensões sociais da saúde veterinária a partir do caso do sul de Moçambique, uma região com características ecológicas apropriadas à pecuária e onde o gado bovino ocupou historicamente um papel destacado nas vidas das sociedades africanas locais, ao contrário de outras zonas do território. Mais especificamente, propomo-nos interrogar um conjunto de fontes primárias – documentação emanada dos serviços administrativos de Moçambique, relatórios oficiais, publicações em revistas especializadas e alguma imprensa da época – sobre a forma como a East Coast fever, uma protozoonose dos bovinos, foi combatida no sul de Moçambique nas primeiras décadas do século XX e sobre as suas consequências para a pecuária africana.1 1 Para o recorte temporal focado neste artigo, as nossas pesquisas a respeito de questões de saúde veterinária no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), em Lisboa, que alberga documentação relativa à administração colonial portuguesa em diferentes territórios, revelaram-se bastante infrutíferas até ao momento. No Arquivo Histórico de Moçambique (AHM), em Maputo, foi, no entanto, possível encontrar alguma documentação relevante, citada quando tal for pertinente. Recorremos, de resto, a fontes impressas e à imprensa. Essa análise permitirá destacar o caráter repressivo e excessivo das medidas de polícia sanitária preconizadas pelas autoridades portuguesas e esboçar, a partir de alguns exemplos, a forma como foram contestadas por diferentes agentes.

Dinâmicas da pecuária no sul de Moçambique no final do século XIX e início do XX

Nos últimos anos, um conjunto de estudos arqueológicos e históricos tem permitido reconstruir a história do sul de Moçambique, uma região de mais de 125.000km2 2 Para uma discussão sobre os diferentes povos do sul de Moçambique e as designações por que foram sendo conhecidos, ver Zamparoni (1998, p.43). , delimitada ao norte pelo rio Save e ao sul e oeste pela África do Sul, habitada maioritariamente por grupos de populações denominadas tsongas ou thongas, bem como chopis e ngunis, entre outros.2 2 Para uma discussão sobre os diferentes povos do sul de Moçambique e as designações por que foram sendo conhecidos, ver Zamparoni (1998, p.43). Rica em pastagens espontâneas, a região ao sul do Save foi historicamente povoada por importantes rebanhos de gado bovino africano dito landim, que ocupava um papel simbólico, social e econômico de enorme importância nas sociedades agropecuárias locais. O gado ovino, caprino ou asinino, por seu lado, ocupava também um papel relevante, mas menos central nessas sociedades (Brock, 1989BROCK, Lisa A. From kingdom to colonial district: a political economy of social change in Gazaland, Southern Mozambique, 1870-1930. Tese (Doutorado em História) – Northwestern University, Chicago, 1989., p.10; Newitt, 1997NEWITT, Malyn. A history of Mozambique. London: Hurst, 1997., p.149; Clarence-Smith, 2018CLARENCE-SMITH, Gervase. Equids in Mozambican history: the role of zebras, donkeys, horses, and their hybrids. Africana Studia, n.27, p.111-125, 2018., p.113; Ekblom, 2015EKBLOM, Anneli. A cattle country. India Seminar, v.sept., n.673, 2015. Disponível em: http://urn.kb.se/resolve?urn=urn:nbn:se:uu:diva-268955. Acesso em: 20 maio 2019.
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).

Uma das condições ecológicas que tornava o sul muito propício ao desenvolvimento da pecuária, e aquela que o distinguia de outras regiões de Moçambique, era a relativa ausência da mosca tsé-tsé. De fato, salvo em zonas limitadas, a mosca tsé-tsé, vetor da nagana ou tripanossomíase animal – doença causada pelo protozoário Trypanosoma e frequentemente fatal para o gado bovino –, não existia ao sul do Save. De Manica e Sofala ao Niassa, pelo contrário, e apesar das variações registadas ao longo do século XX e de algumas exceções, as manchas de tsé-tsé ocuparam boa parte do resto do território, limitando significativamente as possibilidades da pecuária (Silva, 1956SILVA, Mário de Andrade e. A tsé-tsé em Moçambique: a nossa ação contra a mosca e doenças que ela transmite. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, 1956., p.5).3 3 Transportada por diferentes tipos de moscas tsé-tsé (as chamadas glossinas, insetos hematófagos), portadoras de parasitas (tripanossomas), a nagana ou tripanossomíase animal e a doença do sono ou tripanossomíase africana (humana) transmitem-se pela picada e expandiram-se pela África subsaariana durante o século XIX. Na década de 1950, os estudos levados a cabo demonstravam que a mosca tsé-tsé mais fatal para os animais infestava 2/3 da área total de Moçambique, limitando as possibilidades da pecuária (Silva, 1956, p.5-11). Ainda assim, na Zambézia, graças ao investimento privado, foram, por exemplo, feitos na década de 1930 trabalhos de destronca da floresta de Zalala, o habitat da mosca, de modo a permitir a expansão da pecuária (Direção..., 16 ago. 1933). Sobre a pecuária em Manica e Sofala, a região do centro de Moçambique administrada pela Companhia de Moçambique entre 1891 e 1942, e o problema da mosca tsé-tsé, ver Companhia de Moçambique (1934) e Mavhunga e Spierenburg (2007).

A centralidade da pecuária no sul e as práticas e relações sociais específicas associadas a esta, bem como algumas variações regionais, mereceram a atenção de Henry Junod (1996a, 1996b), missionário suíço e principal etnógrafo das sociedades ditas tsonga, numa influente obra publicada originalmente em 1913. Desde o fato de os bovinos, símbolos de riqueza e poder, serem responsabilidade exclusiva de homens e rapazes, ao papel da carne e do leite na alimentação e como marcador da hierarquia social, foram vários os aspetos relevantes destacados (Junod, 1996b, p.301-308, 1996a, p.48-51). A principal instituição pela qual se fazia a distribuição do gado nos grupos estudados, e de resto peça-chave da vida familiar, era o chamado lobolo. Sendo o casamento encarado não como um acordo entre dois indivíduos, mas entre dois grupos, o lobolo – quando possível pago em cabeças de gado, mas em algumas zonas sem bovinos pago em enxadas ou libras esterlinas ganhas na África do Sul – servia para a família do noivo compensar a família da noiva pela perda de um membro, restabelecendo-se o equilíbrio perdido (Junod, 1996a, p.124-125).

O gado e os seus produtos eram também distribuídos de outras formas, reveladoras de relações de poder e hierarquias no clã. Junod (1996a, p.48) referiu-se, por exemplo, ao costume segundo o qual os pequenos criadores entregavam o seu gado aos grandes criadores, por estes terem rapazes para pastar os animais. Mas mais importante era o modo como o chefe entretinha relações de clientelagem com os chefes de aldeia, seus súditos, por meio de alianças matrimoniais, da distribuição de terras e do empréstimo de gado, garantes da sua lealdade, como se mostrou noutro estudo sobre a região (Harries, 1994HARRIES, Patrick. Work, culture, and identity: migrant laborers in Mozambique and South Africa, c. 1860-1910. Portsmouth: Heinemann, 1994., p.91). Em zonas de boas pastagens e de diferenciação social e econômica dos grandes criadores em relação aos restantes, como Magude e Moamba (antigo Sabié), tem ainda sido destacado o papel do empréstimo como estratégia para suprir as necessidades das famílias mais pobres em tempos de seca e fome (Manghezi, 1983MANGHEZI, Alpheus. Ku thekela: estratégia de sobrevivência contra a fome no Sul de Moçambique. Estudos Moçambicanos, n.4, p.19-39, 1983., p.28-29).4 4 Mackinnon (1999, p.104 e s.) analisa com propriedade a importância para as sociedades africanas de práticas semelhantes de empréstimo de gado na região sul-africana da Zululândia no início do século XX.

As condições políticas, sociais, ecológicas e sanitárias verificadas ao sul do Save ao longo do século XIX não eram, contudo, estáticas, e foram até bastante desfavoráveis à pecuária como vinha sendo praticada, fato já constatado pelo próprio Junod (1996b, p.254-256).5 5 A região ao sul do Save seria inicialmente dividida em três distritos (Gaza, Inhambane e Lourenço Marques), por sua vez divididos em circunscrições administrativas. Essa organização viria a sofrer várias alterações ao longo do século XX. Em primeiro lugar, a expansão Nguni, que culminaria na formação do Estado de Gaza, e as campanhas militares lançadas pelos portugueses desde meados do século XIX, ambas marcadas por razias e confiscações de bens, levaram a importantes reconfigurações políticas e sociais e a alterações no controlo sobre o gado bovino (Newitt, 1997NEWITT, Malyn. A history of Mozambique. London: Hurst, 1997., p.256; Harries, 1994HARRIES, Patrick. Work, culture, and identity: migrant laborers in Mozambique and South Africa, c. 1860-1910. Portsmouth: Heinemann, 1994., p.8).6 6 Alguns relatos sobre as campanhas portuguesas documentam tanto a forma como o gado era mantido e consumido pelas tropas, como era confiscado às forças africanas. Mostram ainda como o gado era concentrado por Gungunhana, imperador de Gaza contra quem lutavam as tropas portuguesas. Um episódio em particular destacado nesses relatos, ocorrido em Palule em 1897, originou mesmo uma revolta das populações, por as tropas portuguesas terem apreendido o gado dos criadores, e não apenas o gado de Gungunhana (Costa, 1899, p.68; Ornelas, 1934, p.45-47, 198).

Para a oscilação do armentio bovino terão ainda contribuído as secas que periodicamente afetaram a região, danificando as pastagens e debilitando a saúde dos animais (Newitt, 1997NEWITT, Malyn. A history of Mozambique. London: Hurst, 1997., p.253; Harries, 1994HARRIES, Patrick. Work, culture, and identity: migrant laborers in Mozambique and South Africa, c. 1860-1910. Portsmouth: Heinemann, 1994., p.145). Todo o sudeste de África atravessaria de resto uma grave crise ecológica motivada pela seca na segunda metade da década de 1890, acompanhada de outras calamidades como fomes, pragas de gafanhotos e doenças epidémicas (Pribyl et al., 2019PRIBYL, Kathleen et al. The role of drought in agrarian crisis and social change: the famine of the 1890s in South-Eastern Africa. Regional Environmental Change, n.19, p.2683-2695, 2019.). Assim, enquanto muitos bovinos terão morrido de inanição, outros terão sido abatidos em tempos de fome, cumprindo o seu papel tradicional de garantes da segurança alimentar (Junod, 1996a, p.50).

Para compreender essa oscilação é preciso ainda tomar em linha de conta a ocorrência regular de doenças epizoóticas. A mais fatal das epizootias a atingir a região nesse período terá sido a peste bovina, uma doença infecciosa viral dos ungulados selvagens e domésticos, nomeadamente bovinos, apenas erradicada globalmente em 2011 e caracterizada por uma elevada mortalidade. De acordo com as estimativas, a panzootia africana de peste bovina terá vitimado 90% do gado bovino de diversos territórios entre 1888 e 1897 (Sunseri, 2018SUNSERI, Thaddeus. The African rinderpest panzootic, 1897-1898. In: Spear, Thomas (ed.). Oxford research encyclopedia of African history. New York: Oxford University Press, 2018. p.1-33. Disponível em: <http://oxfordre.com/africanhistory/view/10.1093/acrefore/9780190277734.001.0001/acrefore-9780190277734-e-375?rskey=6IOdW7&result=2>. Acesso em: 19 fev. 2019.
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, p.1). Mas, ao contrário de alguns desses territórios, onde serviços veterinários incipientes e um investimento significativo com vista ao desenvolvimento de uma vacina não só permitiram determinar os danos causados pela doença, como ensaiar uma resposta a ela e avaliar a sua eficácia, em Moçambique pouco se fez quando a peste bovina alcançou o território, em 1897. A ausência de um arrolamento geral do gado anterior a 1897 não permitiu sequer às autoridades quantificar com rigor a escala dos danos provocados, muito embora as considerações de caráter impressionista das fontes disponíveis sejam unânimes em reconhecer que poucos bovinos terão sobrevivido (Costa, 1899COSTA, Gomes da, capitão. Gaza: 1897-1898. Lisboa: M. Gomes, 1899., p.124; 2a Circunscrição..., 1904; Relatórios..., 1908, p.22, 98; Junod, 1996a, p.48). A peste acabaria por desaparecer com a morte dos hospedeiros, isto é, o gado, e não em resultado da intervenção das autoridades (Mendes, 1998MENDES, António Martins. Notas históricas: a peste bovina em Angola e São Tomé. Revista Portuguesa de Ciências Veterinárias, v.93, n.526, p.104-114, 1998., p.114).7 7 As “Instruções sobre a vacina contra a peste bovina”, de 3 de agosto de 1897, publicadas no Boletim Oficial de Moçambique (Instruções..., 11 dez. 1897), indicavam a forma como deveria ser recolhido o fel – localizado numa bolsa debaixo das costelas – de um animal morto de peste, e como deveria ser administrado em animais sãos. Decerto porque essas instruções eram demasiado complexas para serem postas em prática por leigos, terá sido criado um posto de vacinação na capital, embora não tenhamos informações sobre o seu funcionamento (Nascimento, 2 out. 1897). Nas suas memórias sobre as campanhas em Gaza, o capitão Gomes da Costa (1899, p.124) dá conta de que alguns animais foram vacinados segundo o método seguido no Transvaal. Sobre a resposta igualmente fraca das autoridades portuguesas à peste bovina em Angola, outras das suas possessões coloniais, em contraste com o que se passara em São Tomé, ver Mendes (1998, p.114).

A reação insuficiente e ineficaz à peste bovina não surpreende se pensarmos que em 1897 as autoridades portuguesas estavam ainda em guerra pelo controlo do sul de Moçambique e que não tinham sido criados serviços veterinários, nem mesmo nas cidades. Em Lourenço Marques, como podemos observar a partir do relatório de saúde de 1886, as autoridades portuguesas estavam não só impreparadas para lidar com patologias veterinárias, como pouco preocupadas com essas ou com os riscos que o consumo de carnes sem vigilância sanitária poderiam colocar à higiene pública. De fato, o abate de gado ocorria normalmente nos quintais, e não havia o costume de as carnes destinadas ao consumo serem inspecionadas pelo delegado de saúde, posição em geral ocupada por técnicos sem conhecimentos de veterinária (Ferreira, 1890FERREIRA, António Maria Duarte. Relatório do Serviço de Saúde de Lourenço Marques relativo ao ano de 1886. Arquivos Médico-coloniais, n.4, p.45-88, 1890., p.49-50).

A intervenção de veterinários militares integrados nos contingentes vindos para as campanhas de ocupação portuguesas alterou pontualmente esse panorama a partir da década de 1890, tanto em Lourenço Marques como em algumas zonas rurais restritas, mas de forma limitada.8 8 Para uma lista de alguns dos médicos veterinários militares que desempenharam funções em Moçambique em finais do século XIX e início do século XX, ver Mendes (2005-2006, p.324-330). Durante as suas comissões de serviço de dois anos, alguns desses veterinários prestaram apoio ao gado existente nas regiões em que estavam colocados, mas tinham limitações de tempo e de conhecimentos óbvias sobre patologias “exóticas” ou “tropicais”, assim como escassos meios de diagnóstico ao seu dispor (Leal, 3 dez. 1903; Mendes, 2005-2006). Também não trabalhavam em regime de exclusividade, sobrando-lhes pouco tempo para acudir ao gado das autoridades civis e de particulares quando se ocupavam já da inspeção das carnes no matadouro de Lourenço Marques e da saúde dos cavalos e gado bovino do Exército, este último usado para transporte e alimentação (Leal, 3 dez. 1903). Negligenciada ficava também a fiscalização nos portos dos bovinos importados, por exemplo, de Madagascar (Campbell, 1990-1991), enquanto muitos animais escapavam a qualquer controlo entrando no território por terra, como foi o caso durante a Segunda Guerra Anglo-bôer (1899-1902) (Leal, 3 dez. 1903; Neves, 1932NEVES, Amadeu. As possibilidades da indústria pecuária na colónia. Boletim da Sociedade de Estudos de Moçambique, n.5, p.111-117, 1932., p.112).

O avançar dos mecanismos de dominação colonial postos em prática pelo governo português, nomeadamente obrigações fiscais e laborais, e a penetração do capitalismo também se refletiram na pecuária. Para poderem pagar o tão oneroso imposto de palhota, cobrado em moeda, os criadores africanos viram-se obrigados a vender o seu gado, sobretudo em épocas de más colheitas agrícolas (Serviço..., 1909).9 9 Sobre o imposto de palhota, suas origens e sua evolução no sul de Moçambique, ver Zamparoni (1998, p.43 e s.). Muitos dos homens que, segundo as tradições locais, se ocupavam normalmente dos bovinos, tinham sido forçados, em parte devido às secas, a procurar trabalho nas plantações de açúcar e nas minas da África do Sul, negligenciando as suas atividades habituais. Em cumprimento das novas obrigações laborais impostas pelos portugueses, o circuito para as minas do Rand de meados e finais do século XIX intensificou-se no início do século XX, assim como as migrações internas forçadas para a capital em crescimento e para as obras públicas e explorações agrícolas em diferentes zonas do território (Junod, 1996a, p.48-51; Newitt, 1997NEWITT, Malyn. A history of Mozambique. London: Hurst, 1997., p.406-411). Esses elementos, assim como a monetização da economia, já estavam a contribuir há muito para que o lobolo, como vimos tipicamente transacionado em bovinos, fosse em algumas zonas pago em enxadas ou em libras esterlinas (Junod, 1996b, p.255; Zamparoni, 1998ZAMPARONI, Valdemir. Entre narros e mulungos: colonialismo e paisagem social em Lourenço Marques, c.1890-c.1940. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998., p.56). Mas com o dinheiro ganho nas minas também houve quem conseguisse investir novamente em gado, quer para pagar o lobolo, quer simplesmente para reconstituir os rebanhos depauperados pela guerra, por doenças, pelas secas (Ferrão, 1909FERRÃO, Francisco. Circunscrições de Lourenço Marques: respostas aos quesitos feitos para a confecção do relatório sobre o distrito de Lourenço Marques, pelo Secretário dos Negócios Indigenas Dr. Francisco Ferrão. Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1909., p.102; Brock, 1989BROCK, Lisa A. From kingdom to colonial district: a political economy of social change in Gazaland, Southern Mozambique, 1870-1930. Tese (Doutorado em História) – Northwestern University, Chicago, 1989., p.202).10 10 Muito embora Magude tenha sido bastante afetada pela peste bovina, em 1908 já era a circunscrição com mais gado bovino de todo o distrito de Lourenço Marques, com 6.134 cabeças (Arrolamento..., 13 fev. 1909). Em 1909, dos 2.605 proprietários de gado, nove eram europeus, 11 “asiáticos” e os restantes africanos, sendo estes últimos donos de 5.985 dos 6.829 bovinos da circunscrição (Ferrão, 1909, p.101). Em 1917 o número de cabeças de gado bovino de Magude já era de 22.629, não se especificando, no entanto, quanto dele pertencia a criadores africanos (Anuário..., 1917-1918, p.357).

Um último fator deve ser referido: as atividades pecuárias das populações colonas. As autoridades coloniais em Moçambique esperavam que a expansão do setor da pecuária colona segundo métodos modernos, símbolo do desejado progresso económico da colónia, abastecesse regularmente Lourenço Marques e outras cidades com carne de qualidade e leite (Conacher, 1910CONACHER, Paul. Da criação de gado na província. Boletim da Repartição de Agricultura, n.1, p.75-78, 1910., p.76). No início do século ia crescendo lentamente o número de explorações de gado para carne e leite, sobretudo nas imediações da capital, em Marracuene e no Umbeluzi (Relatório..., 1910, p.123; Anuário..., 1917-1918, p.341). Alguns criadores europeus também se tinham fixado em zonas de boas pastagens mais afastadas da capital, como Magude e Sabié (Ferrão, 1909FERRÃO, Francisco. Circunscrições de Lourenço Marques: respostas aos quesitos feitos para a confecção do relatório sobre o distrito de Lourenço Marques, pelo Secretário dos Negócios Indigenas Dr. Francisco Ferrão. Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1909., p.74, 101).

Com exceção eventualmente de alguns reprodutores importados, os rebanhos dessas explorações eram constituídos por meio da aquisição de gado aos criadores africanos, fato que tem sido interpretado noutro contexto como um sinal da interdependência entre as pecuárias africana e europeia (Waller, 2004WALLER, Richard. “Clean” and “dirty”: cattle disease and control policy in colonial Kenya, 1900-1940. The Journal of African History, v.45, n.1, p.45-80, 2004., p.47). E ainda que, já em 1915, se começasse a esboçar uma tentativa de estimular o comércio da carne por meio da realização de feiras mensais em certas circunscrições, com a vigilância das autoridades locais, a compra e venda de gado era feita em geral sem a intervenção do Estado, muitas vezes em condições desvantajosas para os criadores africanos.11 11 Pela portaria provincial n.777, de 21 de julho de 1915 (Portaria..., 31 jul. 1915), criava-se a feira de Magude, destinada a “facilitar as transações entre criadores e negociantes”, a realizar no terceiro domingo de cada mês. Na prática, cabia aos chamados marchands, comerciantes de carne do mato, a dinamização do fluxo de animais e de carnes entre a capital e as explorações pecuárias. Mas a forma como se aproveitavam da vulnerabilidade dos criadores africanos, procurando comprar os animais pelo preço mais baixo, ou até recorrendo a estratégias fraudulentas, foram denunciadas no início do século por figuras de diferentes quadrantes (Albasini, 7 abr. 1909; Neves, 1932NEVES, Amadeu. As possibilidades da indústria pecuária na colónia. Boletim da Sociedade de Estudos de Moçambique, n.5, p.111-117, 1932., p.115).

Da peste bovina à East Coast fever no sul de África

No final de 1901, quando o continente apenas recuperava dos efeitos da peste bovina, chegaram notícias alarmantes de que o que aparentava ser uma “febre do carrapato” começara a matar o gado bovino em grandes números na Rodésia do Sul. A doença em causa, sabemos hoje, não era nova, mas tinha assumido proporções epidémicas. Tratava-se da East Coast fever (ECF), também conhecida na época como Rhodesia fever ou piroplasmose tropical (e atualmente denominada theileriose), uma protozoonose dos bovinos transmitida pelo carrapato castanho da orelha. Diagnosticada pela presença de sintomas comuns a outras doenças – febre, gânglios linfáticos inchados, anemia – manifestados após um período de incubação, a ECF, já endêmica em diferentes regiões do continente africano, caracterizou-se na época por uma elevada mortalidade, na ordem dos 95%, tendo sido frequentemente confundida com outra piroplasmose, a Texas fever, ou ferrujão, por sua vez transmitida pelo carrapato azul (Cranefield, 1991CRANEFIELD, Paul F. Science and empire: East Coast Fever in Rhodesia and the Transvaal. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.; Norval, Perry, Young, 1992).

Antes de olharmos para as suas repercussões em Moçambique, é importante salientar que a epizootia de ECF viria a afetar todo o sul e o leste de África e a ser um foco de atenção política e científica nas décadas vindouras, convocando os contributos de diferentes especialistas, tal como tinha acontecido com a peste bovina. Devido ao seu impacto regional e ao receio de infecção que inspirava, sobretudo na proximidade de zonas de pecuária europeia já existentes ou em expansão na Rodésia do Sul e nas repúblicas que, em 1910, formariam a União da África do Sul, a ECF marcou fortemente a política interna e externa da época, chegando mesmo a ser organizadas conferências veterinárias intercoloniais em grande parte dedicadas a ela (Cranefield, 1991CRANEFIELD, Paul F. Science and empire: East Coast Fever in Rhodesia and the Transvaal. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.; Norval, Perry, Young, 1992).12 12 A União da África do Sul seria formada a 31 de maio de 1910 a partir da junção sob um só governo da Colónia do Cabo, do Estado Livre de Orange, do Natal e do Transvaal. O fato de ser transmitida por um vetor tornava, por outro lado, a ECF uma doença mais complexa, que afetava animais mas também o ambiente, o que tinha implicações para a forma como seria combatida (Waller, 2004WALLER, Richard. “Clean” and “dirty”: cattle disease and control policy in colonial Kenya, 1900-1940. The Journal of African History, v.45, n.1, p.45-80, 2004., p.47).

Reeditando o que se tinha passado poucos anos antes com a peste bovina, especialistas europeus, o mais famoso dos quais era Robert Koch, e também Arnold Theiler, seriam contratados pelos governos britânico e bôer para determinar a etiologia e encontrar formas de combater a ECF (Norval, Perry, Young, 1992, p.13 e s.; Brown, 2005BROWN, Karen. Tropical medicine and animal diseases: Onderstepoort and the development of veterinary science in South Africa, 1908-1950. Journal of Southern African Studies, v.31, n.3, p.513-529, 2005.). O agente etiológico, o Piroplasma parvum, tinha sido descoberto por Koch em Dar es Salaam em 1897. Theiler, por seu lado, notabilizou-se por ter identificado o carrapato castanho da orelha como vetor da doença, em 1902. A investigação continuaria a ser desenvolvida em diferentes vertentes nos anos seguintes, tendo Koch e Theiler trabalhado em especial na área da imunização e da inoculação para proteger os animais sãos, mas tendo também realizado ensaios para tentar determinar uma forma de eliminar os carrapatos pelo velho método dos banhos arsenicais, já utilizado no combate ao carrapato azul, vetor da Texas fever (Norval, Perry, Young, 1992; Cranefield, 1991CRANEFIELD, Paul F. Science and empire: East Coast Fever in Rhodesia and the Transvaal. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.).

Theiler e Koch, no entanto, não foram particularmente bem sucedidos nos ensaios de imunização e inoculação. A sua principal contribuição acabaria por ser conseguida no domínio da etiologia da doença e no combate ao vetor por intermédio de medidas sanitárias. Em combinações diferentes, com ênfases diferentes e com meios diferentes, essas medidas sanitárias foram sendo aplicadas em toda a região. Refiro-me ao chamado stamping out – o “morticínio” ou abate dos animais doentes e dos que com eles tinham estado em contato –, à quarentena de regiões inteiras e consequente limitação do trânsito do gado para fora e por vezes dentro dessas, ao isolamento de animais sãos, ao cercamento de terrenos “sujos” e “limpos” (isto é, com e sem carrapatos), à proibição de importação de animais e forragens, assim como à imposição dos banhos arsenicais em intervalos regulares para matar os carrapatos (Norval, Perry, Young, 1992; Cranefield, 1991CRANEFIELD, Paul F. Science and empire: East Coast Fever in Rhodesia and the Transvaal. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.).

Porque as medidas de polícia sanitária como o abate de animais e a quarentena, copiados dos métodos britânicos de combate à peste bovina na Europa e aplicados contra a mesma doença em África, tinham tido graves consequências políticas, sociais e econômicas, provocando nomeadamente rebeliões de populações africanas, as autoridades do Transvaal e da Rodésia do Sul, confrontadas agora com a ECF, escolheram um caminho diferente (Gilfoyle, 2003GILFOYLE, Daniel. Veterinary research and the African rinderpest epizootic: the Cape Colony, 1896-1898. Journal of Southern African Studies, v.29, n.1, p.133-154, 2003., p.136; Sunseri, 2018SUNSERI, Thaddeus. The African rinderpest panzootic, 1897-1898. In: Spear, Thomas (ed.). Oxford research encyclopedia of African history. New York: Oxford University Press, 2018. p.1-33. Disponível em: <http://oxfordre.com/africanhistory/view/10.1093/acrefore/9780190277734.001.0001/acrefore-9780190277734-e-375?rskey=6IOdW7&result=2>. Acesso em: 19 fev. 2019.
http://oxfordre.com/africanhistory/view/...
, p.14). Apesar da pressão de territórios vizinhos, recusaram-se a pôr em prática o abate em grande escala, a não ser em casos de surtos, temendo tanto os seus efeitos na economia como a contestação das populações europeias e africanas, estas últimas já bastante empobrecidas pela peste bovina e pelas expropriações de terras. Preferiram, ao contrário, medidas menos eficazes a curto prazo, mais dispendiosas e mais dependentes de uma elevada vigilância nas zonas rurais. Nesse contexto, em 1904 e 1905, erigiram um sistema de cercamentos, e, para evitar a paralisação dos transportes, autorizaram o chamado gado “salgado” ou imune a circular em certos corredores considerados limpos de carrapatos. Continuou ainda assim a recorrer-se ao abate, por exemplo no Transvaal, onde uma campanha de grande escala iniciada em 1908 levou à morte de 28 mil cabeças de gado ao longo de três anos (Diesel, 1948DIESEL, A.M. The campaign against East Coast Fever in South Africa. Onderstepoort Journal of Veterinary Science and Animal Industry, v.23, n.1-2, p.21-27, 1948., p.25; Cranefield, 1991CRANEFIELD, Paul F. Science and empire: East Coast Fever in Rhodesia and the Transvaal. Cambridge: Cambridge University Press, 1991., p.196).

Uma vez comprovada cientificamente a eficácia dos banhos arsenicais, o investimento avultado numa grande rede de tanques e as medidas destinadas a efetivar a obrigatoriedade dos banhos em intervalos regulares permitiram o lançamento de uma fase, a partir de 1910, em que o combate ao carrapato ganhou maior preponderância, ajudando a reduzir a mortalidade animal de forma significativa, mas sem, no entanto, erradicar a doença (Diesel, 1948DIESEL, A.M. The campaign against East Coast Fever in South Africa. Onderstepoort Journal of Veterinary Science and Animal Industry, v.23, n.1-2, p.21-27, 1948., p.21-24).13 13 Sobre as diferentes formas de resistência mais ou menos encobertas das populações africanas aos banhos carracicidas em regiões da África do Sul e da Rodésia do Sul nesse período, ver Bundy (1987, p.199) e Mwatwara (2014, p.107). A combinação entre essas várias medidas, às quais se juntaria a marcação dos animais e o seu registo nos herd books (“livros de rebanhos”), continuaria a ser recomendada nas várias conferências veterinárias realizadas em anos seguintes (Diesel, 1948DIESEL, A.M. The campaign against East Coast Fever in South Africa. Onderstepoort Journal of Veterinary Science and Animal Industry, v.23, n.1-2, p.21-27, 1948., p.23; Norval, Perry, Young, 1992, p.28).14 14 Os mapas apresentados por Norval, Perry e Young (1992, p.28) permitem acompanhar a evolução da ECF no sul de África. Na União da África do Sul, o Transvaal foi a primeira província a conseguir a erradicação da doença, em 1946, mas essa se manteve por vários anos noutras zonas, enquanto na Rodésia do Sul o último surto foi registado em 1954 (Cranefield, 1991CRANEFIELD, Paul F. Science and empire: East Coast Fever in Rhodesia and the Transvaal. Cambridge: Cambridge University Press, 1991., p.220-221).

Apesar do recurso a medidas sanitárias menos repressivas do que as utilizadas poucos anos antes contra a peste bovina, nem por isso as estratégias de combate à ECF nesses territórios deixaram de ter como objetivo principal proteger a pecuária europeia. Como têm mostrado alguns estudos, em territórios marcados por políticas oficiais de discriminação das populações africanas no acesso à terra e a outros recursos, também as políticas veterinárias nesse início do século XX acabariam por ser racializadas. Na Rodésia do Sul e no Quénia, por exemplo, e apesar da reconhecida resistência do gado local a doenças transmitidas por carrapatos, os criadores africanos foram mais afetados por medidas sanitárias como quarentenas “cegas”, abrangendo regiões inteiras, e prejudicados quer no acesso aos banhos arsenicais, quer no acesso a cuidados veterinários de forma mais geral (Dube, 2015DUBE, Francis. “In the border regions of the Territory of Rhodesia, there is the greatest scourge...”: the border and East Coast Fever control in Central Mozambique and Eastern Zimbabwe, 1901-1942. Journal of Southern African Studies, v.41, n.2, p.219-235, 2015., p.231; Hughes, 2010HUGHES, Lotte. “They give me fever”: East Coast Fever and other environmental impacts of the Maasai moves. In: Brown, Karen; Gilfoyle, Daniel (ed.). Healing the herds: disease, livestock economies and the globalization of veterinary medicine. Ohio: Ohio University Press, 2010. p.146-162., p.156; Waller, 2004WALLER, Richard. “Clean” and “dirty”: cattle disease and control policy in colonial Kenya, 1900-1940. The Journal of African History, v.45, n.1, p.45-80, 2004., p.60).

“Um único caminho a seguir”

Em comparação com a experiência dos territórios vizinhos referidos, a história da ECF no sul de Moçambique é relativamente curta. Ao passo que nesses territórios – com governos dotados de maiores recursos e mais bem preparados do ponto de vista técnico-científico, mas também com mais a perder, em termos políticos e econômicos, devido às vastas zonas de expansão da pecuária colona existentes, à crescente influência política exercida pela classe dos criadores sobre os governos e ao ressentimento entre as populações africanas devido às recentes medidas de combate à peste bovina – a ECF continuava a existir na década de 1950, no sul de Moçambique sua história iniciou-se em 1901 e terminou, no essencial, em 1917.15 15 As autoridades veterinárias consideraram ter erradicado a ECF no sul de Moçambique em 1917, muito embora tenham sido reportados pequenos focos de infecção depois dessa data (Botelho, 1934, p.8; Diesel, 1948, p.21). Para uma breve análise das repercussões da ECF no centro de Moçambique, administrado pela Companhia de Moçambique, ver Dube (2015). As consequências das medidas de combate à peste bovina, bem como as formas de resistência que suscitaram em diferentes regiões de África, foram tratadas por Sunseri (2018).

Moçambique está, aliás, intimamente ligado à história dessa doença no sudeste de África. Os portos da Beira e de Lourenço Marques, no centro e no sul do território, respectivamente, pela sua localização estratégica, serviam frequentemente de ponto de entrada de carregamentos de animais importados pela Rodésia do Sul e pelo Transvaal, regiões sem ligação direta ao mar. Em 1901 chegou à Beira o carregamento de animais importados da Austrália a partir dos quais se terá dado o primeiro grande surto de ECF na Rodésia do Sul. Suspeita-se que a doença tenha alcançado o sul de Moçambique por via de um outro carregamento de animais, dessa vez importados da África Oriental Alemã para a Beira ou diretamente para Lourenço Marques, em 1901 ou 1902 (Norval, Perry, Young, 1992, p.11-13). Se no final desse ano seriam ainda poucas as zonas afetadas no sul de Moçambique, os avisos publicados com cada vez maior frequência no Boletim Oficial de Moçambique (BOM) a partir de 1904 dão conta dos casos registados em diversas circunscrições dos distritos de Gaza, Lourenço Marques e Inhambane, algumas delas em tempos ricas em gado, como Marracuene, Bilene, Chai-Chai, Sabié e Panda.16 16 Para exemplos dos avisos de casos de ECF anunciados pelos serviços de veterinária e publicados no BOM em 1908, ver Boletim... (22 ago. 1908, 3 out. 1908).

Estima-se num estudo que, entre 1901 e 1908, a ECF causou a morte de 45 mil bovinos em Moçambique, e que entre 1908 e 1917 terão sido vitimados 35 mil, ao passo que outros 25 mil terão sido abatidos em cumprimento do morticínio ordenado pelas autoridades (Norval, Perry, Young, 1992, p.37). Se o valor referido pelos autores desse estudo para o período entre 1908 e 1917 provém de uma fonte que não pudemos consultar diretamente nem confrontar com outras fontes, e abrange Moçambique como um todo, já o valor para o período anterior a 1908 resulta de uma estimativa, até porque, como já referimos, não existia um arrolamento do gado em 1900 capaz de permitir um estudo comparativo mais rigoroso. De resto, o primeiro arrolamento que encontrámos relativo ao sul do Save e que excluía Inhambane, indicava a existência, a 31 de dezembro de 1908, de 20.660 bovinos (Arrolamento..., 13 fev. 1909). Em 1915 seriam 60 mil as cabeças de bovinos no sul de Moçambique (Botelho, 1915BOTELHO, João. Medicina veterinária colonial: como melhorar o nosso gado bovino. Revista de Medicina Veterinária, ano 14, n.161, p.129-135, 1915., p.131). Segundo o arrolamento de 1932, a região já contaria com umas apreciáveis 375.770 cabeças, ficando ainda assim muito aquém dos valores registados em territórios vizinhos (Botelho, 1934BOTELHO, João. Primeira exposição colonial portuguesa: Serviços de Veterinária. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, 1934., p.7).

Muito embora os números apresentados por Norval, Perry e Young devam ser encarados com alguma cautela, não sendo para já possível quantificar com mais rigor nem a mortalidade causada pela ECF, nem pelas medidas de combate a essa, não restam dúvidas de que, pelo menos no papel, estava a ser seguido o caminho que outros territórios tinham seguido no combate à peste bovina: medidas de polícia sanitária.17 17 Em alguns relatórios e informações publicados nesta época pelos serviços veterinários constam dados sobre a quantidade de bovinos abatidos no matadouro de Lourenço Marques, mas não se especifica quantos o terão sido no cumprimento da política de combate à ECF. Ver, por exemplo, Mapa... (1914). De fato, apesar da informação incompleta e contraditória que circulava no início do século acerca da etiologia da doença, as fontes que pudemos consultar indicam-nos que, ainda antes da conferência veterinária de Bloemfontein (3-5 de dezembro de 1903), onde as investigações em curso sobre a ECF lideradas por Koch, Theiler e outros cientistas foram pela primeira vez debatidas e onde os portugueses foram pressionados a intervir contra a doença, já tinham sido dadas ordens no sul de Moçambique para limitar o movimento de gado entre zonas limpas e zonas infectadas e para “destruir” os animais considerados doentes (Leal, 3 dez. 1903).

Em Bloemfontein, a aparente impassibilidade do representante de Moçambique na conferência, o médico Amaral Leal, contrastava com o alarme e as tensas discussões entre os seus colegas. Talvez fosse porque, como o próprio admitira com humildade, não era veterinário e não dominava a língua inglesa. Ou, ainda, porque à época, como referiu no seu relatório, “apenas parte insignificante” dos distritos de Lourenço Marques e Gaza estavam infectados, ao passo que muitas cabeças de gado tinham já morrido nos territórios vizinhos. Desconfiado em relação aos progressos que poderiam vir do laboratório, e enquanto se aguardavam estudos mais conclusivos sobre o papel do carrapato como vetor, o médico recomendou o recenseamento imediato do gado nas zonas infectadas e a combinação entre morticínio e quarentena, bem como limitações às importações de animais para alimentação. O fraco desenvolvimento da rede de transportes, defendia, permitiria a Moçambique combater a ECF mais facilmente do que outros territórios (Leal, 3 dez. 1903).

O governo tentaria ir mais longe por meio da aprovação de um regulamento de defesa sanitária, em dezembro de 1903, que previa essas medidas sanitárias (Leal, 3 dez. 1903; Governador-geral, 17 set. 1904). Mas como dava conta um veterinário nas páginas da Revista de Medicina Veterinária, principal publicação da especialidade em Portugal, pouco se estava a fazer na prática para combater a ECF. O policiamento era praticamente inexistente, alegava, e o veterinário responsável pela inspeção de carnes, impossibilitado de abandonar o seu posto de trabalho, acabava por observar o gado apenas quando ele lhe era apresentado para ser abatido, quer estivesse ou não com ECF, e depois de provavelmente já ter contribuído para a infecção de outros animais no caminho para o matadouro (Guerra, 1907GUERRA, João. Piroplasmose dos bovídeos. Revista de Medicina Veterinária, v.6, n.62, p.41-46, 1907., p.45).

Quando Freire de Andrade assumiu o cargo de governador de Moçambique, em 1906, depois de ter acumulado uma larga experiência em assuntos militares e civis no território, os protestos dos veterinários portugueses e a pressão dos territórios vizinhos para uma intervenção mais eficaz seriam finalmente ouvidos. Em 1908 foram criados serviços veterinários oficiais destinados expressamente a combater atuais e futuras epizootias, a promover o “repovoamento” pecuário e a responder aos apelos à cooperação intercolonial em matérias de sanidade veterinária. Aprovou-se também um novo regulamento de sanidade pecuária, aplicável inicialmente apenas à região ao sul do rio Limpopo.18 18 Os serviços veterinários seriam criados pela portaria provincial n.113, de 5 de março de 1908 (Portaria..., 14 mar. 1908). Ver ainda, no mesmo número do BOM, o Regulamento de Sanidade Pecuária, de 5 de março de 1908 (Regulamento..., 14 mar. 1908). Esses serviços seriam, como veremos, dirigidos nos seus primeiros dois anos de vida por um veterinário vindo do Transvaal. Essa nomeação chocou particularmente os veterinários na metrópole, que o consideram uma ameaça aos interesses de Moçambique (Representação..., 1909, p.217). As autoridades portuguesas também seriam pressionadas a agir em Moçambique e em Angola para debelar várias doenças durante a conferência veterinária pan-africana em Pretória, realizada em janeiro de 1909, fato que levava o encarregado do governo de Moçambique a pedir um plano de ação metódico de sanidade veterinária de modo a promover o progresso da colónia e impedir novos ataques dos vizinhos à administração portuguesa (Secretaria-geral, 30 jan. 1909).

Depois de anos de diagnósticos errados e de o território ter estado, na prática, “abandonado a si próprio” do ponto de vista da saúde veterinária, 1908 trouxe finalmente consigo o reconhecimento de que o sul estava infectado com ECF, como admitiria um dos seus futuros diretores (Botelho, 1913BOTELHO, João. Estado sanitário atual no distrito de Lourenço Marques (30 de maio de 1913). Boletim da Repartição de Agricultura, n.5, p.36-40, 1913., p.36), e agora munido de um regulamento sanitário, “fortemente repressivo” (Mendes, 2006MENDES, António Martins. A criação de serviços pecuários em Moçambique, 2a parte. Revista Portuguesa de Ciências Veterinárias, v.101, n.557-558, p.5-15, 2006., p.8). Os esforços de inoculação e imunização de bovinos postos em prática em territórios vizinhos continuaram a não ter paralelo no sul de Moçambique, apostando-se em medidas de polícia sanitária. Assim, em zonas declaradas afetadas por epizootias, o gado teria de ser cercado pelos proprietários num prazo de noventa dias, sob pena de ser abatido, obrigação de que poderiam ser dispensados os proprietários que permitissem aos serviços o abate para consumo. Sabendo-se que os criadores africanos não teriam meios para tais cercamentos e que poucos cederiam voluntariamente os seus rebanhos, ainda que fossem indemnizados, deixava-se claro que, na realidade, a principal medida a tomar seria o abate dos animais, quer no local onde se encontravam, quer, depois, no matadouro.19 19 Regulamento de Sanidade Pecuária, de 5 de março de 1908 (Regulamento..., 14 mar. 1908). As fontes consultadas não permitem reconstruir com profundidade a experiência dos diferentes tipos de criadores europeus em relação às medidas de combate à ECF. Sabemos, no entanto, que alguns destes criadores tinham meios para cercar as suas propriedades, conseguindo assim evitar as medidas mais drásticas previstas no regulamento (6a Circunscrição, 1909). Alguns construíram também tanques carracicidas para os banhos dos seus animais (Botelho, 1914, p.231-233). Outros, por exemplo no Sabié, terão sido abrangidos pelas medidas de abate e quarentena, mas nada indica que não tenham sido compensados, assinalando uma diferença de tratamento em relação aos criadores africanos (Relatório..., 1910, p.88). A execução dessas medidas ficaria em princípio a cargo do pessoal dos serviços de veterinária, e muito em especial de auxiliares europeus e africanos. Na prática, porém, por não haver pessoal suficiente para sanear todo o sul, caberia também aos funcionários administrativos das circunscrições contribuir para esse esforço, como veremos mais à frente.20 20 Em 1913 havia apenas dois médicos veterinários ao serviço na região ao sul do Save, sendo um deles o chefe da repartição de veterinária, João Botelho; havia ainda cinco polícias europeus distribuídos pelas circunscrições, auxiliados por vários “indígenas”. Mas esses polícias europeus acabavam por abandonar frequentemente as suas funções por razões de saúde, ficando a fiscalização por fazer (Botelho, 1914, p.242-243). Sobre a aplicação das medidas de combate à ECF pelos administradores das circunscrições e sobre as suas críticas aos serviços veterinários, ver parte “Um golpe de morte nesta riqueza do indígena”.

O pensamento do primeiro diretor dos serviços veterinários, Paul Conacher, parecia estar alinhado com essa estratégia repressiva, mas não necessariamente pelas razões expectáveis. Preocupado com o avançar da ECF, Conacher reconhecia num relatório elaborado pouco depois da sua tomada de posse a dificuldade em policiar todo o território e em impedir o que chamava de trânsito “clandestino” de gado. Donde a sua insistência numa rede de cercamentos, a custear pelo governo e eventualmente a ser reembolsada pelos particulares quando abrangesse terrenos seus (Conacher, 1909, p.424-425). Sobre o abate de animais afirmou sem pejo, num outro texto, que o grande potencial pecuário do sul teria de ser feito à custa do gado landim. Apesar da sua adaptabilidade ao meio e comprovada resistência a diversas doenças, esse gado era, na sua opinião, “degenerado”, devido a cruzamentos erráticos e uma alimentação deficiente, tornando-o impróprio para a produção de carne e de leite segundo as exigências de um mercado moderno. “A doença”, defendia, “veio, portanto, em auxílio da nova ordem de coisas, eliminando o gado sem préstimo” e libertando as pastagens para animais criados segundo os preceitos da zootecnia. Além dos animais que já tinham morrido, era necessário abater muitos mais, salvando apenas aqueles que poderiam ser cruzados para criar animais mais pesados, com carne mais suculenta e capazes de produzir mais leite (Conacher, 1910CONACHER, Paul. Da criação de gado na província. Boletim da Repartição de Agricultura, n.1, p.75-78, 1910., p.79).

Se a visão acerca da inferioridade inerente do gado local não era novidade no sul de África, tendo motivado políticas oficiais de melhoramento em diferentes territórios e problematizadas na historiografia (Hughes, 2010HUGHES, Lotte. “They give me fever”: East Coast Fever and other environmental impacts of the Maasai moves. In: Brown, Karen; Gilfoyle, Daniel (ed.). Healing the herds: disease, livestock economies and the globalization of veterinary medicine. Ohio: Ohio University Press, 2010. p.146-162., p.149; Mwatwara, Swart, 2016, p.342), Conacher ia mais longe ao defender que a ECF estava a servir como uma espécie de estratégia natural de controlo de raças bovinas “inferiores”. E, de caminho, estava a defender que no sul de Moçambique por si idealizado não havia espaço para a pecuária africana em moldes ditos tradicionais, apenas para a pecuária moderna assente na exploração de animais importados e de gado landim melhorado. Era, afinal de contas, o fim do modo de vida das comunidades africanas agropastoris do sul que aqui se propunha.

Chegada ao fim a sua comissão de serviço, em junho de 1911, Conacher seria substituído por um veterinário militar português, João Botelho, a quem tem sido atribuído o sucesso na erradicação da ECF no sul de Moçambique (Neves, 1932NEVES, Amadeu. As possibilidades da indústria pecuária na colónia. Boletim da Sociedade de Estudos de Moçambique, n.5, p.111-117, 1932., p.114; Mendes, 2006MENDES, António Martins. A criação de serviços pecuários em Moçambique, 2a parte. Revista Portuguesa de Ciências Veterinárias, v.101, n.557-558, p.5-15, 2006., p.13). Embora sem parecer partilhar da visão radical de Conacher a respeito dos efeitos positivos da ECF sobre a renovação da população bovina “inferior” do sul, mas sem se mostrar, tal como o seu antecessor, preocupado com a situação dos criadores africanos, Botelho não se afastou da linha de ação que vinha sendo traçada, favorável a medidas de polícia sanitária firmes no combate à ECF. Como admitiu num relatório de maio de 1913, face ao tempo e ao capital avultado exigidos pela montagem de uma rede de tanques, bem como às dúvidas a respeito do melhor método de divisão de terrenos por lotes, havia “um único caminho a seguir: o despovoamento de bovídeos das regiões infectadas e quarentenar estas durante o tempo que se julgasse necessário para as carraças morrerem. Foi por este que se seguiu” (Botelho, 1913BOTELHO, João. Estado sanitário atual no distrito de Lourenço Marques (30 de maio de 1913). Boletim da Repartição de Agricultura, n.5, p.36-40, 1913., p.37). E os resultados estavam à vista, defendia, já que em meados de 1913 apenas se registava um novo foco da doença, no Chibuto, fruto da falta de vigilância, enquanto os focos de anos anteriores, responsáveis por milhares de vítimas em seis das dez circunscrições do sul do Save, tinham sido erradicados. Só nessa região do Chibuto, quinhentas cabeças de gado já tinham sido abatidas, em parte no terreno, em parte no matadouro (p.37).21 21 Um estudo da década de 1980 sugere que, pese embora a falta de estudos epidemiológicos, as condições ecológicas menos propícias aos carrapatos e a baixa densidade do gado no sul de Moçambique também possam ter contribuído para a erradicação mais rápida da ECF do que em territórios vizinhos (Mazibe, Lopes, 1989, p.17).

Os poucos dados existentes sobre as medidas sanitárias complementares ao abate – os cercamentos, os tanques carracicidas, as quarentenas, as restrições à circulação – permitem ainda assim demonstrar a sua reduzida eficácia. Quanto aos cercamentos, só os criadores europeus mais abastados terão recorrido a eles, e, mesmo em terrenos seus, o governo tardou em construí-los.22 22 A estação zootécnica central de Chobela, criada em 1917, falhou, aliás, nas suas primeiras experiências de seleção e reprodução porque os seus 2.800 hectares de terrenos só foram vedados entre 1937 e 1940 (Aires, 1947, p.44). A esmagadora maioria dos criadores africanos, ainda que cientes da importância de manter animais doentes separados de animais sãos, onerados como estavam por impostos e desejando manter as suas práticas de transumância, dificilmente poderiam ou quereriam limitar o seu movimento dessa forma. O primeiro tanque carracicida, por sua vez, começou a ser construído em maio de 1911 na Estação do Umbeluzi, numa altura em que a pior fase da ECF já tinha passado (Oliveira, 1913OLIVEIRA, Martinho de M.R. de. Relatório sobre a estação zootécnica do Umbeluzi (maio de 1911 a junho de 1912) do médico veterinário. Boletim da Repartição de Agricultura, n.6, p.55-60, 1913., p.55). Mas, como admitia Botelho no seu relatório sobre o ano de 1913, o governo não quis investir seriamente nos tanques enquanto se fazia a evacuação do gado, e poucos particulares tinham construído tanques nas suas propriedades; por isso havia um risco elevado de surgirem novos focos à medida que chegavam os bovinos importados para o “repovoamento” pecuário do sul (Botelho, 1914BOTELHO, João. Relatório do chefe da Seção de Veterinária, referente ao ano de 1913 (excerto). Boletim da Repartição de Agricultura, n.19-21, p.225-252, 1914., p.231-233).23 23 Pela portaria n.351, de 4 de agosto de 1917 (Portaria..., 4 ago. 1917), os banhos tornavam-se obrigatórios.

De mais a mais, a julgar pelos avisos dos serviços veterinários publicados no Boletim Oficial, várias zonas terão sido saneadas por 15 ou até 18 meses, até ser recomendado o seu repovoamento.24 24 Ver, por exemplo, Aviso... (22 out. 1910). Mas estando as medidas de quarentena dependentes da separação entre zonas “limpas” e “sujas” por meio de cercamentos, da restrição da circulação do gado, de banhos regulares em tanques antes do repovoamento, isto é, de uma enorme estrutura de saneamento e vigilância que praticamente não existia, como vimos, e com poucos funcionários ao serviço, entre veterinários e polícias, em todo o território de Moçambique, dificilmente terão sido efetuadas com o rigor necessário (Botelho, 1914BOTELHO, João. Relatório do chefe da Seção de Veterinária, referente ao ano de 1913 (excerto). Boletim da Repartição de Agricultura, n.19-21, p.225-252, 1914., p.242-243; Anuário..., 1917-1918, p.151).

“Um golpe de morte nesta riqueza do indígena”

Como veremos nesta última parte, algumas fontes permitem-nos começar a compreender os aspetos sociais das políticas de combate à ECF, em particular as suas repercussões para os criadores de gado africanos ao sul do Save. Em zonas não atingidas pela doença, como Magude, os dados apontam que os criadores se mostraram até favoráveis à ação dos serviços veterinários para fazer crescer os seus rebanhos (Uma representação..., 19 jul. 1912). Mas em zonas declaradas infectadas, ao contrário, as medidas de polícia sanitária foram sentidas por muitos criadores como particularmente violentas e injustas devido ao fato de o abate ter sido feito em grande escala; devido à deficiente informação sobre as medidas previstas no regulamento sanitário e nas ordens emitidas pelos serviços veterinários; devido à falta de compensação em troca do abate, ou a uma compensação insuficiente; devido à violência dos métodos empregues; e devido à desigualdade de tratamento de criadores africanos e europeus.25 25 No seu relatório de 1913, João Botelho (1914, p.226) já tinha admitido as dificuldades em pagar a compensação devida aos criadores africanos “por falta de verbas”. Alguns elementos mostram-nos como o morticínio foi recebido pelas populações africanas. Quando alguns dos animais abatidos foram mortos a tiro pelos administradores em frente aos seus criadores na circunscrição de Maputo, estes últimos dirigiram uma queixa ao jornal O Africano (Gado morto..., 9 set. 1911). Ver também a resposta do administrador em causa e a sua tentativa de justificação (Vianna, 12 out. 1911). Num outro episódio relatado por Albasini (6 dez. 1913), face aos rumores de que o seu gado seria abatido ou vendido por conta da ECF, alguns criadores africanos mataram o seu próprio gado. Quanto à situação dos criadores europeus, ver como um caso de favorecimento de alguns destes criadores, poupados às medidas de polícia sanitária aplicadas aos criadores africanos, foi por exemplo denunciado no Bilene em 1909 (6a Circunscrição, 1909). E como veremos a partir de alguns exemplos, essa experiência negativa das medidas de combate à ECF era partilhada pelos criadores africanos, por algumas elites urbanas mestiças e negras e até pelos funcionários administrativos no terreno, agentes com perspectivas, interesses e poderes diferentes.

A imprensa mestiça e negra de Moçambique, pelo esforço dedicado à denúncia da exploração colonial, tem-se revelado uma fonte essencial para compreender o quotidiano da situação colonial das populações africanas, e pode ajudar-nos a compreender a sua experiência das medidas de combate à ECF. Com efeito, ao passo que outros jornais da época se centravam na defesa dos interesses da população europeia, O Africano (1908-1920) e, depois dele, O Brado Africano (1918-1974), jornais de grande circulação nascidos das atividades do Grémio Africano (1908) – associação que reunia alguma da pequena elite mestiça e negra de Lourenço Marques, empregada em diversos setores –, tiveram uma presença longa no espaço público de Moçambique e dirigiam-se em primeiro lugar à população não branca instruída (Zamparoni, 1988ZAMPARONI, Valdemir. A imprensa negra em Moçambique: a trajetória de “O Africano”, 1908-1920. África, n.11, p.73-86, 1988., p.80; Rocha, 2000ROCHA, Ilídio. A imprensa de Moçambique: história e catálogo, 1854-1975. Lisboa: Livros do Brasil, 2000., p.90). E, se a luta pelos direitos das populações “assimiladas”, sobretudo urbanas, ocupava várias páginas desses jornais, as condições de vida das populações ditas “indígenas” e a forma como eram afetadas, por exemplo, pela política laboral e fundiária do governo, também tinham destaque.26 26 O colonialismo português em África desde os finais do século XIX assentou, nas suas principais colónias, numa distinção fundamental, fixada na legislação, entre populações ditas indígenas, essencialmente africanas e vivendo de acordo com os seus costumes e tradições em meio rural, limitadas nos seus direitos, com onerosos deveres laborais e fiscais e consideradas inferiores, e populações ditas civilizadas, essencialmente europeias, com plenos direitos perante o Estado. Outra categoria, a das chamadas populações assimiladas, veio abranger aqueles indivíduos negros e mestiços que, habitando sobretudo nas cidades, tinham por diferentes formas feito prova do abandono das supostas tradições africanas para abraçar uma “vida moderna”. Para uma discussão dessas diferentes categorias ver Newitt (1997, p.387 e s.) e Zamparoni (1998, cap. 10). Em alguns editoriais e notícias particularmente contundentes, O Africano (1908-1920) chamou a atenção para a experiência traumática dos criadores africanos no período de combate à ECF, apontando sérias críticas às políticas sanitárias do governo.27 27 Sobre essa elite, as suas atividades políticas e cívicas e as contradições dos seus posicionamentos em relação ao colonialismo português, ver Zamparoni (1988) e Penvenne (1996). Para uma história da imprensa em Moçambique desde o século XIX, é essencial o contributo de Rocha (2000).

Caberia a João Albasini, destacado membro da pequena burguesia mestiça da capital e fundador de O Africano, inaugurar as críticas ao regulamento de sanidade pecuária de 1908 num duríssimo artigo de 7 de abril de 1909, em pleno combate à ECF.28 28 Albasini (6 dez. 1913) voltaria, anos mais tarde, a denunciar duramente a aplicação do regulamento e as medidas de combate à ECF. Mas esse tema também seria discutido em cartas ao jornal vindas de criadores africanos, em colunas de opinião de outros autores, e até numa carta de um administrador, em resposta à denúncia da violência do abate do gado na sua circunscrição. A esse respeito, ver as referências indicadas acima na nota 25. A partir da leitura de um telegrama de “habitantes de Gaza” – africanos, entenda-se –, recentemente recebido pela imprensa, onde se queixavam da forma como estavam a ser prejudicados pelas disposições do regulamento que estipulavam o preço a receber por cabeça de gado a abater em caso de epizootia, Albasini (7 abr. 1909) acusou o governo de estar a espoliar “violentamente” os criadores. Não era tanto o juízo técnico-científico que presidira à decisão de abater o gado que Albasini punha em dúvida aqui, mas sim a forma deficiente como as autoridades tinham dado conhecimento da medida aos criadores e a falta de pagamento da compensação. Ao privar injustamente, sem esperança e sem as devidas explicações os criadores do seu gado, defendia Albasini, as autoridades estavam diretamente a contribuir para a degradação da vida familiar e econômica tradicional, manifestada por excelência no vício do álcool. O “preto” estava a “beber o seu gado”, dizia – isto é, o pouco dinheiro recebido em troca do gado vendido para abate estava a ser gasto em álcool, contribuindo assim para a deterioração da saúde das populações e desinteressando-as do trabalho em prol do fomento do sul do território. Conjugado esse fator com a “exploração colonial e capitalista” que empurrava a mão de obra africana para o Transvaal, os campos do sul de Moçambique, vazios de gente e de animais, estavam cada vez mais longe do tão prometido “progresso” (Albasini, 7 abr. 1909).

Ao dirigir as suas queixas ao jornal, os criadores africanos vinham denunciar a forma como a manutenção dos seus modos de vida e atividades econômicas estavam a ser postas em causa por um abate em grande escala, radical e quase sem compensação. A intervenção de João Albasini, por sua vez, revelava as sensibilidades muito particulares de certa elite mestiça e negra de Lourenço Marques, já apontadas na historiografia, a respeito do papel diferenciado das populações assimiladas e dos chamados indígenas (Penvenne, 1996PENVENNE, Jeanne M. João dos Santos Albasini (1876-1922): the contradictions of politics and identity in colonial Mozambique. The Journal of African History, v.37, n.3, p.419-464, 1996.). Embora denunciando a situação de injustiça a que estavam sujeitos os criadores africanos no contexto do combate à ECF, para Albasini o verdadeiro problema era que as políticas do governo estavam a colocar em risco o “progresso” do sul. E esse “progresso” teria de ser feito pelo trabalho da mão de obra “indígena”, embora com os direitos e os deveres que o governo português não lhes reconhecia na altura. Assim, a questão da sanidade animal não podia ser apenas encarada nem isoladamente, nem num quadro estritamente técnico – tratava-se de um problema social, econômico e político.

A política de combate à ECF também suscitaria vivas críticas dos funcionários administrativos no terreno, como podemos ver a partir do caso da circunscrição do Sabié. Visado em 1909 por uma ordem de evacuação devido à ECF, o gado dessa região acabaria, em resultado de uma decisão dos serviços veterinários, por ser abatido num raio de 30km dos focos de infecção, e não de 6km, como noutros casos, o que, para o seu administrador, tinha representado uma “violência” e “um golpe de morte nesta riqueza do indígena” (Relatório..., 1910, p.88).29 29 As quarentenas “cegas”, abrangendo regiões administrativas inteiras povoadas por populações africanas, tinham também sido prática corrente no Quénia na fase inicial de combate à ECF, em contraste com as medidas menos danosas aplicadas nas zonas de pecuária europeia (Waller, 2004, p.60). Se já era complicado convencer os criadores africanos residindo próximo das zonas infectadas a evacuar o gado, as dificuldades aumentavam quanto mais distantes do local de contágio se encontravam os rebanhos (Ferrão, 1909FERRÃO, Francisco. Circunscrições de Lourenço Marques: respostas aos quesitos feitos para a confecção do relatório sobre o distrito de Lourenço Marques, pelo Secretário dos Negócios Indigenas Dr. Francisco Ferrão. Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1909., p.76). Essas medidas eram desadequadas ao Sabié, defendia o administrador, onde apesar da ECF havia muito gado, que era bem cuidado pelo criador africano. Em substituição do abate e da quarentena defendia, pelo contrário, uma maior vigilância na região (Ferrão, 1909FERRÃO, Francisco. Circunscrições de Lourenço Marques: respostas aos quesitos feitos para a confecção do relatório sobre o distrito de Lourenço Marques, pelo Secretário dos Negócios Indigenas Dr. Francisco Ferrão. Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1909., p.76-77).

A administração do Sabié condenava assim a política repressiva e excessiva seguida pelos serviços veterinários, em parte executada pelos próprios funcionários administrativos, que estava a colocar em risco a “riqueza” local. Mas as queixas vindas dessa circunscrição tinham ainda outra motivação. Pela sua proximidade com a África do Sul, o Sabié era há muito uma zona de emigração legal e “clandestina”, e o “terror” do recrutamento militar era, segundo o seu administrador, a principal causa da diminuição da população africana da circunscrição nos últimos anos, e, por conseguinte, da diminuição da sua principal fonte de receitas: o imposto de palhota. Mas o descontentamento causado pelo cumprimento do regulamento de sanidade pecuária também estava a afugentar as populações (Ferrão, 1909FERRÃO, Francisco. Circunscrições de Lourenço Marques: respostas aos quesitos feitos para a confecção do relatório sobre o distrito de Lourenço Marques, pelo Secretário dos Negócios Indigenas Dr. Francisco Ferrão. Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1909., p.79-81).30 30 Dos mais de 34 mil escudos de receitas da circunscrição do Sabié no ano de 1908-1909, mais de 26 mil tinham sido obtidos com a arrecadação do imposto de palhota (Ferrão, 1909, p.91).

Olhando mais de perto para alguma correspondência da época, percebemos o nexo claro entre pecuária, fixação das populações africanas e impostos.31 31 Alguns anos mais tarde, o então administrador do Sabié, preocupado com o restabelecimento dos rebanhos dos criadores africanos após a crise da ECF, denunciou as crescentes tensões entre estes e os concessionários europeus, cada vez mais atraídos pelas pastagens da região e pelo potencial económico da pecuária. Defendia, nesse contexto, a criação de cinco reservas indígenas para salvaguardar a situação das populações africanas, assim como um limite máximo de 10 mil hectares às concessões a europeus (Administração..., 16 set. 1915). Num contexto de diminuição das receitas tributárias, e numa altura em que estava proibida a venda de gado dos africanos a compradores sem licença, por conta do combate à ECF, em agosto de 1909 o administrador do Sabié solicitou aos Serviços dos Negócios Indígenas que, tendo em conta que se aproximava a época da cobrança do imposto e que havia o hábito de vender o gado para esse efeito, fosse autorizada a venda do gado. Explicava-se, além do mais, que tinham fugido para o Transvaal algumas populações residentes em zonas consideradas infectadas onde tinham sido obrigadas a vender o gado, muito embora não houvesse casos de ECF nos seus rebanhos, o que tinha gerado protestos dos criadores (3a Circunscrição..., 1909).32 32 No artigo que publicou no jornal O Africano em 1909, Albasini (7 abr. 1909) já tinha alertado para o risco de os criadores africanos, despojados do seu gado e sem mulheres, não terem alternativa se não partir para as minas, despovoando Moçambique. O administrador do Sabié estava no fundo a mostrar na prática as contradições das medidas sanitárias: quem ficava no Sabié, ou via o seu gado ser abatido, ou tinha dificuldades em pagar o imposto por não poder vendê-lo; quem partia para evitar ter de evacuar o seu gado, levava consigo a “riqueza” da região e não pagava o imposto, em detrimento dos cofres da circunscrição. O que o administrador pedia, então, era uma maior vigilância do gado, permitindo a venda controlada para garantir o pagamento do imposto e para manter as populações fixadas na circunscrição.33 33 Para críticas semelhantes dos administradores locais às medidas de quarentena aplicadas no Quénia e ao problema da falta de pagamento do imposto, ver Waller (2004, p.58). O chefe de veterinária, persuadido da necessidade de medidas radicais, manteve-se no entanto inflexível perante a situação relatada no Sabié (Serviço..., 1909).

Assim, no Sabié como noutras regiões do sul, apesar da contestação vinda de diferentes agentes e manifestada nos jornais, em relatórios publicados, na correspondência entre serviços, mas também visível por meio (Albasini, 7 abr. 1909) da migração das populações africanas para o Transvaal, a política repressiva dos serviços veterinários vingou.

Considerações finais

No rescaldo da passagem devastadora da peste bovina, a ECF confrontou novamente o governo de Moçambique com as suas limitações. Dessa vez, munido de um regulamento sanitário repressivo, dirigido por veterinários inflexíveis e pressionado por outras potências coloniais, o governo fez uma escolha informada pelo recurso ao abate de animais em grande escala, não apostando na imunização e inoculação e investindo poucos meios em tanques carracicidas e noutras medidas complementares. Essa política reativa e violenta, que segundo a bibliografia comparativa não foi possível nos mesmos moldes em territórios vizinhos devido à experiência recente do combate à peste bovina e ao receio da oposição dos criadores europeus e africanos, foi justificada como a única solução possível devido à falta de recursos. Mas o fato de a população de criadores europeus ser ainda bastante reduzida nesse período, e o fato de, em geral, esses terem tido uma experiência menos negativa das medidas de combate à ECF, também terá facilitado a execução dessa política entre 1908 e 1917.

Recorrer ao abate em grande escala dessa forma tão penalizadora para as populações africanas significava, em certo sentido, prolongar por mais alguns anos o período de ocupação colonial, isto é, a guerra, com o seu repertório próprio de violência. E a ausência de uma preocupação e de uma reflexão sobre a violência do abate, a crença na necessidade de medidas radicais e a continuação das políticas apesar da contestação, evidenciam a grande distância que separava os veterinários da realidade social e econômica do sul e a sua indiferença, nessa época, perante o visível empobrecimento das populações.

A contestação a essas políticas pelos criadores africanos, mas também pelas elites negras e mestiças urbanas e pelos funcionários administrativos locais, com as suas diferentes motivações, veio por seu lado mostrar como a pecuária continuava a ser importante do ponto de vista social e econômico apesar dos fatores políticos, sociais, sanitários e ambientais que a vinham afetando desde o século XIX, e agora mais intensamente no século XX, com a ocupação efetiva portuguesa.

A institucionalização da medicina veterinária no período estudado, e em particular o combate a uma doença com a complexidade da ECF, trouxe de fato consigo novas formas de controlo sobre as populações africanas, sobre o seu gado, sobre as suas atividades, sobre a sua mobilidade e sobre o espaço, que não tinham sido ainda devidamente analisadas na historiografia e que nos ajudam a compreender melhor as estruturas do colonialismo português no início do século XX.

AGRADECIMENTOS

A investigação para o presente trabalho foi financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), I.P., no âmbito de uma bolsa de pós-doutoramento (SFRH/BPD/114805/2016) e de um contrato CEEC (CEECIND/01948/2017), e por meio do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (UIDB/00286/2020 e UIDP/00286/2020). Agradeço à Isabel Amaral, ao Nuno Domingos, ao Frederico Ágoas, ao Sílvio Marcus de Souza Correa e aos dois revisores anónimos os comentários a uma versão preliminar deste artigo.

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    » http://oxfordre.com/africanhistory/view/10.1093/acrefore/9780190277734.001.0001/acrefore-9780190277734-e-375?rskey=6IOdW7&result=2>
  • UMA REPRESENTAÇÃO justíssima. O Africano, p.1, 19 jul. 1912.
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  • ZAMPARONI, Valdemir. A imprensa negra em Moçambique: a trajetória de “O Africano”, 1908-1920. África, n.11, p.73-86, 1988.

NOTAS

  • 1
    Para o recorte temporal focado neste artigo, as nossas pesquisas a respeito de questões de saúde veterinária no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), em Lisboa, que alberga documentação relativa à administração colonial portuguesa em diferentes territórios, revelaram-se bastante infrutíferas até ao momento. No Arquivo Histórico de Moçambique (AHM), em Maputo, foi, no entanto, possível encontrar alguma documentação relevante, citada quando tal for pertinente. Recorremos, de resto, a fontes impressas e à imprensa.
  • 2
    Para uma discussão sobre os diferentes povos do sul de Moçambique e as designações por que foram sendo conhecidos, ver Zamparoni (1998ZAMPARONI, Valdemir. Entre narros e mulungos: colonialismo e paisagem social em Lourenço Marques, c.1890-c.1940. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998., p.43).
  • 3
    Transportada por diferentes tipos de moscas tsé-tsé (as chamadas glossinas, insetos hematófagos), portadoras de parasitas (tripanossomas), a nagana ou tripanossomíase animal e a doença do sono ou tripanossomíase africana (humana) transmitem-se pela picada e expandiram-se pela África subsaariana durante o século XIX. Na década de 1950, os estudos levados a cabo demonstravam que a mosca tsé-tsé mais fatal para os animais infestava 2/3 da área total de Moçambique, limitando as possibilidades da pecuária (Silva, 1956SILVA, Mário de Andrade e. A tsé-tsé em Moçambique: a nossa ação contra a mosca e doenças que ela transmite. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, 1956., p.5-11). Ainda assim, na Zambézia, graças ao investimento privado, foram, por exemplo, feitos na década de 1930 trabalhos de destronca da floresta de Zalala, o habitat da mosca, de modo a permitir a expansão da pecuária (Direção..., 16 ago. 1933). Sobre a pecuária em Manica e Sofala, a região do centro de Moçambique administrada pela Companhia de Moçambique entre 1891 e 1942, e o problema da mosca tsé-tsé, ver Companhia de Moçambique (1934) e Mavhunga e Spierenburg (2007)MAVHUNGA, Clapperton; SPIERENBURG, Marja. A finger on the pulse of the fly: hidden voices of colonial anti-tsetse science on the Rhodesian and Mozambican borderlands, 1945-1956. South African Historical Journal, v.58, n.1, p.117-141, 2007..
  • 4
    Mackinnon (1999MACKINNON, Aran S. The persistence of the cattle economy in Zululand, South Africa, 1900-1950. Canadian Journal of African Studies, v.33, n.1, p.98-135, 1999., p.104 e s.) analisa com propriedade a importância para as sociedades africanas de práticas semelhantes de empréstimo de gado na região sul-africana da Zululândia no início do século XX.
  • 5
    A região ao sul do Save seria inicialmente dividida em três distritos (Gaza, Inhambane e Lourenço Marques), por sua vez divididos em circunscrições administrativas. Essa organização viria a sofrer várias alterações ao longo do século XX.
  • 6
    Alguns relatos sobre as campanhas portuguesas documentam tanto a forma como o gado era mantido e consumido pelas tropas, como era confiscado às forças africanas. Mostram ainda como o gado era concentrado por Gungunhana, imperador de Gaza contra quem lutavam as tropas portuguesas. Um episódio em particular destacado nesses relatos, ocorrido em Palule em 1897, originou mesmo uma revolta das populações, por as tropas portuguesas terem apreendido o gado dos criadores, e não apenas o gado de Gungunhana (Costa, 1899COSTA, Gomes da, capitão. Gaza: 1897-1898. Lisboa: M. Gomes, 1899., p.68; Ornelas, 1934ORNELAS, Aires de. Coletânea das suas principais obras militares e coloniais. v.2. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1934., p.45-47, 198).
  • 7
    As “Instruções sobre a vacina contra a peste bovina”, de 3 de agosto de 1897, publicadas no Boletim Oficial de Moçambique (Instruções..., 11 dez. 1897), indicavam a forma como deveria ser recolhido o fel – localizado numa bolsa debaixo das costelas – de um animal morto de peste, e como deveria ser administrado em animais sãos. Decerto porque essas instruções eram demasiado complexas para serem postas em prática por leigos, terá sido criado um posto de vacinação na capital, embora não tenhamos informações sobre o seu funcionamento (Nascimento, 2 out. 1897). Nas suas memórias sobre as campanhas em Gaza, o capitão Gomes da Costa (1899COSTA, Gomes da, capitão. Gaza: 1897-1898. Lisboa: M. Gomes, 1899., p.124) dá conta de que alguns animais foram vacinados segundo o método seguido no Transvaal. Sobre a resposta igualmente fraca das autoridades portuguesas à peste bovina em Angola, outras das suas possessões coloniais, em contraste com o que se passara em São Tomé, ver Mendes (1998MENDES, António Martins. Notas históricas: a peste bovina em Angola e São Tomé. Revista Portuguesa de Ciências Veterinárias, v.93, n.526, p.104-114, 1998., p.114).
  • 8
    Para uma lista de alguns dos médicos veterinários militares que desempenharam funções em Moçambique em finais do século XIX e início do século XX, ver Mendes (2005-2006, p.324-330).
  • 9
    Sobre o imposto de palhota, suas origens e sua evolução no sul de Moçambique, ver Zamparoni (1998ZAMPARONI, Valdemir. Entre narros e mulungos: colonialismo e paisagem social em Lourenço Marques, c.1890-c.1940. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998., p.43 e s.).
  • 10
    Muito embora Magude tenha sido bastante afetada pela peste bovina, em 1908 já era a circunscrição com mais gado bovino de todo o distrito de Lourenço Marques, com 6.134 cabeças (Arrolamento..., 13 fev. 1909). Em 1909, dos 2.605 proprietários de gado, nove eram europeus, 11 “asiáticos” e os restantes africanos, sendo estes últimos donos de 5.985 dos 6.829 bovinos da circunscrição (Ferrão, 1909FERRÃO, Francisco. Circunscrições de Lourenço Marques: respostas aos quesitos feitos para a confecção do relatório sobre o distrito de Lourenço Marques, pelo Secretário dos Negócios Indigenas Dr. Francisco Ferrão. Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1909., p.101). Em 1917 o número de cabeças de gado bovino de Magude já era de 22.629, não se especificando, no entanto, quanto dele pertencia a criadores africanos (Anuário..., 1917-1918, p.357).
  • 11
    Pela portaria provincial n.777, de 21 de julho de 1915 (Portaria..., 31 jul. 1915), criava-se a feira de Magude, destinada a “facilitar as transações entre criadores e negociantes”, a realizar no terceiro domingo de cada mês.
  • 12
    A União da África do Sul seria formada a 31 de maio de 1910 a partir da junção sob um só governo da Colónia do Cabo, do Estado Livre de Orange, do Natal e do Transvaal.
  • 13
    Sobre as diferentes formas de resistência mais ou menos encobertas das populações africanas aos banhos carracicidas em regiões da África do Sul e da Rodésia do Sul nesse período, ver Bundy (1987BUNDY, Colin. “We don’t want your rain, we won’t dip”: popular opposition, collaboration and social control in the anti-dipping movement, 1908-1916. In: Beinart, William; Bundy, Colin (ed.). Hidden struggles in Rural South Africa: politics and popular movements in the Transkei and Eastern Cape, 1890-1930. London: James Currey, 1987. p.191-221., p.199) e Mwatwara (2014MWATWARA, Wesley. A history of state veterinary services and African livestock regimes in colonial Zimbabwe, c.1896-1980. Dissertação (Doutorado em História) – Stellenbosch University, Stellenbosch, 2014., p.107).
  • 14
    Os mapas apresentados por Norval, Perry e Young (1992, p.28) permitem acompanhar a evolução da ECF no sul de África.
  • 15
    As autoridades veterinárias consideraram ter erradicado a ECF no sul de Moçambique em 1917, muito embora tenham sido reportados pequenos focos de infecção depois dessa data (Botelho, 1934BOTELHO, João. Primeira exposição colonial portuguesa: Serviços de Veterinária. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, 1934., p.8; Diesel, 1948DIESEL, A.M. The campaign against East Coast Fever in South Africa. Onderstepoort Journal of Veterinary Science and Animal Industry, v.23, n.1-2, p.21-27, 1948., p.21). Para uma breve análise das repercussões da ECF no centro de Moçambique, administrado pela Companhia de Moçambique, ver Dube (2015)DUBE, Francis. “In the border regions of the Territory of Rhodesia, there is the greatest scourge...”: the border and East Coast Fever control in Central Mozambique and Eastern Zimbabwe, 1901-1942. Journal of Southern African Studies, v.41, n.2, p.219-235, 2015.. As consequências das medidas de combate à peste bovina, bem como as formas de resistência que suscitaram em diferentes regiões de África, foram tratadas por Sunseri (2018)SUNSERI, Thaddeus. The African rinderpest panzootic, 1897-1898. In: Spear, Thomas (ed.). Oxford research encyclopedia of African history. New York: Oxford University Press, 2018. p.1-33. Disponível em: <http://oxfordre.com/africanhistory/view/10.1093/acrefore/9780190277734.001.0001/acrefore-9780190277734-e-375?rskey=6IOdW7&result=2>. Acesso em: 19 fev. 2019.
    http://oxfordre.com/africanhistory/view/...
    .
  • 16
    Para exemplos dos avisos de casos de ECF anunciados pelos serviços de veterinária e publicados no BOM em 1908, ver Boletim... (22 ago. 1908, 3 out. 1908).
  • 17
    Em alguns relatórios e informações publicados nesta época pelos serviços veterinários constam dados sobre a quantidade de bovinos abatidos no matadouro de Lourenço Marques, mas não se especifica quantos o terão sido no cumprimento da política de combate à ECF. Ver, por exemplo, Mapa... (1914).
  • 18
    Os serviços veterinários seriam criados pela portaria provincial n.113, de 5 de março de 1908 (Portaria..., 14 mar. 1908). Ver ainda, no mesmo número do BOM, o Regulamento de Sanidade Pecuária, de 5 de março de 1908 (Regulamento..., 14 mar. 1908). Esses serviços seriam, como veremos, dirigidos nos seus primeiros dois anos de vida por um veterinário vindo do Transvaal. Essa nomeação chocou particularmente os veterinários na metrópole, que o consideram uma ameaça aos interesses de Moçambique (Representação..., 1909, p.217). As autoridades portuguesas também seriam pressionadas a agir em Moçambique e em Angola para debelar várias doenças durante a conferência veterinária pan-africana em Pretória, realizada em janeiro de 1909, fato que levava o encarregado do governo de Moçambique a pedir um plano de ação metódico de sanidade veterinária de modo a promover o progresso da colónia e impedir novos ataques dos vizinhos à administração portuguesa (Secretaria-geral, 30 jan. 1909).
  • 19
    Regulamento de Sanidade Pecuária, de 5 de março de 1908 (Regulamento..., 14 mar. 1908). As fontes consultadas não permitem reconstruir com profundidade a experiência dos diferentes tipos de criadores europeus em relação às medidas de combate à ECF. Sabemos, no entanto, que alguns destes criadores tinham meios para cercar as suas propriedades, conseguindo assim evitar as medidas mais drásticas previstas no regulamento (6a Circunscrição, 1909). Alguns construíram também tanques carracicidas para os banhos dos seus animais (Botelho, 1914BOTELHO, João. Relatório do chefe da Seção de Veterinária, referente ao ano de 1913 (excerto). Boletim da Repartição de Agricultura, n.19-21, p.225-252, 1914., p.231-233). Outros, por exemplo no Sabié, terão sido abrangidos pelas medidas de abate e quarentena, mas nada indica que não tenham sido compensados, assinalando uma diferença de tratamento em relação aos criadores africanos (Relatório..., 1910, p.88).
  • 20
    Em 1913 havia apenas dois médicos veterinários ao serviço na região ao sul do Save, sendo um deles o chefe da repartição de veterinária, João Botelho; havia ainda cinco polícias europeus distribuídos pelas circunscrições, auxiliados por vários “indígenas”. Mas esses polícias europeus acabavam por abandonar frequentemente as suas funções por razões de saúde, ficando a fiscalização por fazer (Botelho, 1914, p.242-243). Sobre a aplicação das medidas de combate à ECF pelos administradores das circunscrições e sobre as suas críticas aos serviços veterinários, ver parte “Um golpe de morte nesta riqueza do indígena”.
  • 21
    Um estudo da década de 1980 sugere que, pese embora a falta de estudos epidemiológicos, as condições ecológicas menos propícias aos carrapatos e a baixa densidade do gado no sul de Moçambique também possam ter contribuído para a erradicação mais rápida da ECF do que em territórios vizinhos (Mazibe, Lopes, 1989, p.17).
  • 22
    A estação zootécnica central de Chobela, criada em 1917, falhou, aliás, nas suas primeiras experiências de seleção e reprodução porque os seus 2.800 hectares de terrenos só foram vedados entre 1937 e 1940 (Aires, 1947AIRES, António. Relatório da chefia dos serviços de veterinária e indústria animal, referente ao período de 1940 a 1946. Anais dos Serviços de Veterinária e Indústria Animal, n.1, p.5-75, 1947., p.44).
  • 23
    Pela portaria n.351, de 4 de agosto de 1917 (Portaria..., 4 ago. 1917), os banhos tornavam-se obrigatórios.
  • 24
    Ver, por exemplo, Aviso... (22 out. 1910).
  • 25
    No seu relatório de 1913, João Botelho (1914BOTELHO, João. Relatório do chefe da Seção de Veterinária, referente ao ano de 1913 (excerto). Boletim da Repartição de Agricultura, n.19-21, p.225-252, 1914., p.226) já tinha admitido as dificuldades em pagar a compensação devida aos criadores africanos “por falta de verbas”. Alguns elementos mostram-nos como o morticínio foi recebido pelas populações africanas. Quando alguns dos animais abatidos foram mortos a tiro pelos administradores em frente aos seus criadores na circunscrição de Maputo, estes últimos dirigiram uma queixa ao jornal O Africano (Gado morto..., 9 set. 1911). Ver também a resposta do administrador em causa e a sua tentativa de justificação (Vianna, 12 out. 1911). Num outro episódio relatado por Albasini (6 dez. 1913), face aos rumores de que o seu gado seria abatido ou vendido por conta da ECF, alguns criadores africanos mataram o seu próprio gado. Quanto à situação dos criadores europeus, ver como um caso de favorecimento de alguns destes criadores, poupados às medidas de polícia sanitária aplicadas aos criadores africanos, foi por exemplo denunciado no Bilene em 19096a CIRCUNSCRIÇÃO de Lourenço Marques (Bilene). Ofício n.193, de 2 de dezembro de 1909, da administração da 6a Circunscrição de Lourenço Marques (Bilene) para o Serviço dos Negócios Indígenas, Fundo da Direção dos Negócios Indígenas, cota 1267, maço “East Coast Fever, processo 71” (Arquivo Histórico de Moçambique, Maputo). 1909. (6a Circunscrição, 1909).
  • 26
    O colonialismo português em África desde os finais do século XIX assentou, nas suas principais colónias, numa distinção fundamental, fixada na legislação, entre populações ditas indígenas, essencialmente africanas e vivendo de acordo com os seus costumes e tradições em meio rural, limitadas nos seus direitos, com onerosos deveres laborais e fiscais e consideradas inferiores, e populações ditas civilizadas, essencialmente europeias, com plenos direitos perante o Estado. Outra categoria, a das chamadas populações assimiladas, veio abranger aqueles indivíduos negros e mestiços que, habitando sobretudo nas cidades, tinham por diferentes formas feito prova do abandono das supostas tradições africanas para abraçar uma “vida moderna”. Para uma discussão dessas diferentes categorias ver Newitt (1997NEWITT, Malyn. A history of Mozambique. London: Hurst, 1997., p.387 e s.) e Zamparoni (1998ZAMPARONI, Valdemir. Entre narros e mulungos: colonialismo e paisagem social em Lourenço Marques, c.1890-c.1940. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998., cap. 10).
  • 27
    Sobre essa elite, as suas atividades políticas e cívicas e as contradições dos seus posicionamentos em relação ao colonialismo português, ver Zamparoni (1988)ZAMPARONI, Valdemir. A imprensa negra em Moçambique: a trajetória de “O Africano”, 1908-1920. África, n.11, p.73-86, 1988. e Penvenne (1996)PENVENNE, Jeanne M. João dos Santos Albasini (1876-1922): the contradictions of politics and identity in colonial Mozambique. The Journal of African History, v.37, n.3, p.419-464, 1996.. Para uma história da imprensa em Moçambique desde o século XIX, é essencial o contributo de Rocha (2000)ROCHA, Ilídio. A imprensa de Moçambique: história e catálogo, 1854-1975. Lisboa: Livros do Brasil, 2000..
  • 28
    Albasini (6 dez. 1913) voltaria, anos mais tarde, a denunciar duramente a aplicação do regulamento e as medidas de combate à ECF. Mas esse tema também seria discutido em cartas ao jornal vindas de criadores africanos, em colunas de opinião de outros autores, e até numa carta de um administrador, em resposta à denúncia da violência do abate do gado na sua circunscrição. A esse respeito, ver as referências indicadas acima na nota 25.
  • 29
    As quarentenas “cegas”, abrangendo regiões administrativas inteiras povoadas por populações africanas, tinham também sido prática corrente no Quénia na fase inicial de combate à ECF, em contraste com as medidas menos danosas aplicadas nas zonas de pecuária europeia (Waller, 2004WALLER, Richard. “Clean” and “dirty”: cattle disease and control policy in colonial Kenya, 1900-1940. The Journal of African History, v.45, n.1, p.45-80, 2004., p.60).
  • 30
    Dos mais de 34 mil escudos de receitas da circunscrição do Sabié no ano de 1908-1909, mais de 26 mil tinham sido obtidos com a arrecadação do imposto de palhota (Ferrão, 1909FERRÃO, Francisco. Circunscrições de Lourenço Marques: respostas aos quesitos feitos para a confecção do relatório sobre o distrito de Lourenço Marques, pelo Secretário dos Negócios Indigenas Dr. Francisco Ferrão. Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1909., p.91).
  • 31
    Alguns anos mais tarde, o então administrador do Sabié, preocupado com o restabelecimento dos rebanhos dos criadores africanos após a crise da ECF, denunciou as crescentes tensões entre estes e os concessionários europeus, cada vez mais atraídos pelas pastagens da região e pelo potencial económico da pecuária. Defendia, nesse contexto, a criação de cinco reservas indígenas para salvaguardar a situação das populações africanas, assim como um limite máximo de 10 mil hectares às concessões a europeus (Administração..., 16 set. 1915).
  • 32
    No artigo que publicou no jornal O Africano em 1909, Albasini (7 abr. 1909) já tinha alertado para o risco de os criadores africanos, despojados do seu gado e sem mulheres, não terem alternativa se não partir para as minas, despovoando Moçambique.
  • 33
    Para críticas semelhantes dos administradores locais às medidas de quarentena aplicadas no Quénia e ao problema da falta de pagamento do imposto, ver Waller (2004WALLER, Richard. “Clean” and “dirty”: cattle disease and control policy in colonial Kenya, 1900-1940. The Journal of African History, v.45, n.1, p.45-80, 2004., p.58).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2020
  • Aceito
    23 Mar 2020
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