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Abrigo, pobreza e negligência: percursos de judicialização

Shelter, poverty and negligence: ways of judicialization

Resumos

O trabalho discute a negligência como uma categorização que passa a justificar a intervenção estatal sobre famílias pobres, no que se refere à prática de abrigamento de crianças e adolescentes e como essa prática se instala na lógica de judicialização da vida. Com a emergência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), fica interditado abrigar por pobreza. Dessa maneira, a falta de recursos materiais perde força como justificativa, e se implanta um novo estatuto de criminalização da pobreza e de judicialização da vida, que se apoia no desrespeito a direitos estabelecidos na legislação: família negligente. Com esse referencial, a negligência passa a ser produzida como um dispositivo de afirmação da sociedade de segurança, tendo como parâmetro a lógica biopolítica de governo da vida.

negligência; infância e adolescência; abrigamento; judicialização


This work discusses the concept of negligence as a categorisation that justifies the intervention of the State in poor families, through the practice of sheltering children and adolescents. With the emergency of the Child and Adolescent Statute it becomes interdicted to shelter on behalf of poverty. For such, the lack of material resources becomes a weak justification and a new statute of criminalisation of poorness and judicialization of life is implanted, based on the disrespect of the rights established in the legislation: neglectful family. From this reference negligence comes to be produced as a device of affirmation of the society of security, having as parameter the biopolitical logic of the government of life.

negligence; childhood and adolescence; shelter; judicialization


ARTIGOS

Abrigo, pobreza e negligência: percursos de judicialização

Shelter, poverty and negligence: ways of judicialization

Maria Livia do Nascimento

Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil

RESUMO

O trabalho discute a negligência como uma categorização que passa a justificar a intervenção estatal sobre famílias pobres, no que se refere à prática de abrigamento de crianças e adolescentes e como essa prática se instala na lógica de judicialização da vida. Com a emergência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), fica interditado abrigar por pobreza. Dessa maneira, a falta de recursos materiais perde força como justificativa, e se implanta um novo estatuto de criminalização da pobreza e de judicialização da vida, que se apoia no desrespeito a direitos estabelecidos na legislação: família negligente. Com esse referencial, a negligência passa a ser produzida como um dispositivo de afirmação da sociedade de segurança, tendo como parâmetro a lógica biopolítica de governo da vida.

Palavras-chave: negligência; infância e adolescência; abrigamento; judicialização.

ABSTRACT

This work discusses the concept of negligence as a categorisation that justifies the intervention of the State in poor families, through the practice of sheltering children and adolescents. With the emergency of the Child and Adolescent Statute it becomes interdicted to shelter on behalf of poverty. For such, the lack of material resources becomes a weak justification and a new statute of criminalisation of poorness and judicialization of life is implanted, based on the disrespect of the rights established in the legislation: neglectful family. From this reference negligence comes to be produced as a device of affirmation of the society of security, having as parameter the biopolitical logic of the government of life.

Keywords: negligence; childhood and adolescence; shelter; judicialization.

Organizar a liberdade é criar servidão

Han Ryner

Com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), fica interditado abrigar por pobreza. Ou seja, o que pode parecer óbvio, nenhuma criança será retirada de sua família por ela ser pobre, precisou ser regulamentado juridicamente, já que ao longo da história brasileira da chamada proteção à infância tal procedimento esteve sempre presente, e a partir do início do século XX passou a ser amparado por outra lei, o Código de Menores. Durante a vigência desse Código foi se naturalizando uma lógica já bastante conhecida, mas que então se robustece: é preferível a institucionalização de crianças e adolescentes à permanência em suas famílias pobres. Tal argumento tem tamanha força que até as próprias famílias são subjetivadas, passando a acreditar que a internação seria o mais adequado para a proteção de seus filhos. Essa naturalização afirma que existiria uma verdade sobre como educar os filhos e que colocá-los em estabelecimentos fechados seria um meio de inserção e de adaptação social. Dessa maneira, em nome da proteção e do cuidado, implantam-se movimentos de controle e de aprisionamento da vida, apoiados pela prática jurídica. Ou seja, com o Código de Menores se estabelece uma forte aliança entre proteção e governo de condutas.

O governo é uma prática concreta apoiada em aparelhos, equipamentos, instituições, procedimentos, que permitem o exercício de uma forma específica de poder. Tem por alvo uma população à qual se remete a partir de relações de controle, ditas de "segurança". Em suma, governar condutas é também proteger (Foucault, 2007).

Foi com a justificativa da proteção que o poder judiciário, sob a vigência do Código de Menores, atuou por décadas, impondo a retirada da criança pobre de sua família. A propósito das lógicas de criminalização da família pobre presentes nessa legislação, Marques, Oliveira, Nascimento e Miranda (2002) apontam que:

Em relação às famílias pobres, foi introduzido um sentimento de incapacidade de cuidar dos filhos, já que seus modos de vida eram considerados propícios ao surgimento de doenças, perversão e vadiagem. Baseando-se em tais princípios, o Estado dita regras de como deveria ser o funcionamento dessas famílias, utilizando diversos mecanismos de assistência e proteção, dentre eles o Juizado. (p.147)

Estabelecida essa associação entre recursos financeiros escassos e incapacidade moral para criar e educar os filhos, ficam instituídos discursos, crenças e práticas que passaram a justificar a internação dos filhos da pobreza.

Em meados dos anos de 1980, a partir do fortalecimento dos movimentos sociais e de uma maior participação da sociedade civil, ambos silenciados na década de 1970 com a instauração da ditadura militar no Brasil, emergem discussões sobre a política de direitos para a população de 0 a 18 anos. Outras perspectivas começam a ser construídas, criando tensões inclusive em alguns segmentos da própria justiça infanto-juvenil. O conjunto dos debates e ações que se dão naquele momento procura construir outras relações da sociedade com as questões referentes à infância e à adolescência, culminando com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal n. 8.069/90, 1990).

Dentre as muitas inovações jurídicas trazidas pelo Estatuto, cabe o destaque para o Artigo 23, que diz: "A falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do poder familiar." (Lei Federal n. 8.069/90, 1990). No entanto, uma lei não se estabelece por si só enquanto prática. No cotidiano da consolidação dessa legislação, a família pobre foi ganhando um novo estatuto: família negligente, categorização que passa a justificar a intervenção estatal e a continuidade da retirada de crianças e adolescentes de suas famílias. Em poucas palavras: não se retira por pobreza, mas por negligência, e são os pobres os considerados negligentes. De acordo com Nascimento, Cunha e Vicente (2007), mesmo com a presença do ECA, que configura a introdução de novas medidas de proteção, a partir da consideração da criança como sujeito de direitos, percebe-se o enquadramento em modelos hegemônicos de infância e família. Assim, as intervenções jurídicas e sociais continuam a punir os pobres, por exemplo, com a destituição do poder familiar, com abrigamentos apressados, com a imposição de normas de conduta.

Com a nova legislação, o discurso já não é mais o da falta de condições materiais para o cuidado dos filhos, mas o desrespeito aos direitos estabelecidos pelo ECA. Com esse referencial, a negligência passa a ser produzida como um dispositivo de afirmação da sociedade de segurança, tendo como parâmetro a lógica biopolítica de governo da vida.

Cabe apresentar as perspectivas do que é entendido como sociedade de segurança. Trata-se da sociedade que investe na segurança como paradigma central de governamentalidade. O texto Segurança território e população (Foucault, 2008b) traz ferramentas que nos instrumentalizam para pensar uma sociedade entendida como insegura, na qual pairam ameaças de uns contra os outros. O desejo por segurança invadiu a vida, tornando-se prioritário, instaurando a crença de que a melhor vida é aquela que se distancia dos riscos, segura, mesmo que se tenha que abrir mão de suas potências, de suas possibilidades. Na sociedade de segurança impõe-se a premissa que não se pode correr riscos. Entretanto, a vida humana tem fragilidades, e o risco faz parte dela. O risco faz parte da vida ativa. Já que ele é inerente à vida, aboli-lo é apostar na padronização, no controle contínuo e na redução da potência do viver.

Os estudos sobre risco emergem de forma mais intensa a partir das últimas décadas do século XX. O acontecimento risco ganha espaço e vai sendo tecido no interior das práticas sociais como preocupação do governo dos corpos, especialmente de crianças e jovens. A partir do momento em que uma população é classificada como estando em risco, passa a ser vigiada, controlada e observada. É preciso destacar que as variáveis de risco são diferentes entre os grupos de indivíduos. No contemporâneo todos os grupos sociais se sentem em risco, mas há uma construção subjetiva que afirma a pobreza como mais exposta a situações de vulnerabilidade. Por isso, a análise minuciosa dos riscos tem operado e estado presente com mais frequência entre os pobres, apontando uma virtualidade que os identifica com o crime. Para Scheinvar (2007), "o risco passou a ser um dispositivo de aprisionamento dos indivíduos que se disseminam pelo espaço social: daqueles que não são mais contidos nos seculares espaços fechados de organização social, como escolas,estabelecimentos fixos de trabalho ou moradia familiar" (p. 68).

Centralizar a ideia de risco em determinadas populações que teriam propensão ao desvio coloca a infância pobre como um segmento que vai exigir mais atenção. Não se pode esquecer que a imposição de tal condição tem uma datação histórica. Ela emerge com a família burguesa que recebe do Estado "uma função educativa que não possuía anteriormente. Os pais devem cuidar dos filhos, não devem deixá-los morrer, devem educá-los para entregá-los prontos, mais tarde, para exercerem a cidadania, o civismo, a vida laboral" (Branco, 2009, p. 36).

Dessa maneira, são impostos cuidados para evitar a mortalidade, as doenças, o abandono, os maus-tratos, o abuso sexual e, claro, a chamada negligência dos pais. Todos esses procedimentos funcionam como controle biopolítico de regulação do corpo social. A governamentalidade traça caminhos a serem seguidos, e escapar desse destino é se colocar em risco. Foucault (2002) discute o modo como o poder se transformou, na passagem do século XVIII ao XIX, em um dispositivo de governo não somente dos indivíduos, pelo eixo das disciplinas, mas também como poder sobre a vida, sobre a qual se deve investir através da sujeição dos corpos e da gestão calculada da população pelo cuidado político.

É no mundo formatado pelos riscos presentes no cotidiano social e pelas formas flexíveis e sutis de controle e governo das populações e dos indivíduos que vão emergir determinados acontecimentos que se justificam por produzir segurança. É por essa lógica, por exemplo, que práticas de resistências são apaziguadas pelo conforto de não se correr risco, e que se institui um perigo no seio da família pobre: a negligência.

A emergência da família negligente

Cabe uma pergunta: para que serve a família negligente? Dentre outras coisas, para enquadrar, dar uma individualidade. O negligente, ao ser enquadrado, se conforma e nessa conformidade é paralisado. É negligente porque resistiu a uma ordem, a certo modo de vida. Ao ser enquadrado, formatado pelo poder, fica eliminada uma diversidade. Outra pergunta segue essa primeira: como a família dita negligente participa da subjetividade contemporânea de judicialização da vida? A ampliação do domínio jurídico tem se estendido por espaços antes habitados por outros saberes e outras práticas, capilarizando a função do tribunal nas diversas esferas do cotidiano. No que concerne especificamente ao contexto da chamada proteção à infância e à adolescência, vemos que existe um desejo de ordem e justiça no processo de enquadramento das famílias como negligentes. Tal movimento segue o clamor público por punição que vemos atualmente se expandir com exuberância nas relações sociais. Como isto aparece nos casos dos considerados pais negligentes? Prevalecem práticas de punição que podem ser localizadas nas diversas ameaças que esses pais sofrem ao circularem em órgãos públicos como conselhos tutelares, abrigos e juizados. Instala-se uma espécie de máquina punitiva que vai definindo a perda do poder familiar (deixa-se de ter direito sobre o filho), a adoção por família dita estruturada (porque a pobre é desestruturada), a colocação em abrigo (tido como o melhor lugar para ficar o filho do negligente), o calendário restrito de visita aos filhos abrigados e tantos outros castigos destinados àqueles julgados como pais negligentes.

Para pensar essas questões, pode-se aqui fazer um recorte: o abrigamento de crianças e adolescentes tomado como prática de proteção, as mecânicas, as técnicas e os efeitos que vão se construindo no momento em que essa proteção afirma que o abrigo é o melhor lugar para certas crianças, certos adolescentes. Esse recorte lança como proposta de análise a compreensão de que a negligência pode ser tomada como um efeito da proteção, que passa a ser considerada como um dispositivo de controle biopolítico de regulação da população.

O texto Nascimento da biopolítica (Foucault, 2008a) pode trazer sustentação para esse tipo de raciocínio. Em que circunstâncias uma mãe é considerada negligente? Quando não cuida do filho, não provê alimentação, higiene, vestuário e outros tantos cuidados, quando se diz que relaxa o olhar atento, e ele sofre um acidente, quando doente não busca socorro médico. Enfim, quando seu modo de ser mãe não está em acordo com normas de proteção instituídas. É preciso lembrar que esses modelos da boa higiene, da boa alimentação, do bem cuidar, do correto tratamento médico foram historicamente construídos, pautados em verdades estabelecidas a partir de um campo de forças específico compatível com a lógica capitalista. Pode-se dizer que para que exista a condição de negligente é preciso que exista antes um modelo de proteção. Existindo esse modelo, qualquer desvio a ele é negligência. Portanto, embora as construções subjetivas afirmem a negligência como algo a ser sanado, como um problema, no sentido de algo ruim, o que aqui se coloca como um problema, no sentido de algo a ser posto em análise, não é propriamente a negligência de maneira isolada, mas o par proteção-negligência.

Colocar a proteção como um problema implica retirá-la do lugar no qual é compreendida como naturalmente boa, quando vista em sua forma imediata e aparente obviedade, como uma linha cujo plano de organização se sustenta na fixação. A proposta é, pois, pensar a proteção como um problema que abarca acontecimentos sociais que emergem quando diferentes forças entram em ação, produzindo efeitos que não podem ser antecipados expondo uma forte relação entre proteção e prevenção. Divergir da versão naturalizada de proteção envolve discutir a prevenção, o controle da vida, a despotencialização do cotidiano, o questionamento das chamadas políticas públicas, os investimentos econômicos feitos em seu nome, e a produção de saberes e de especialistas nesse campo. Tomar a proteção como um problema é incluir todas essas dimensões em sua análise, privilegiando os exercícios capilares de saber-poder que geram realidades vistas e ditas sobre ela.

Introduzir a proteção através de um campo de problematizações comporta perguntar sobre a possibilidade de bifurcação da existência. A subjetividade negligência codifica, construindo sujeitos negligentes, em um movimento de hiperterritorialização, fazendo com que esse território fechado, organizado, formatado seja o único ponto de investimento no atendimento às famílias. O atendimento já tem um a priori, e isso fecha a possibilidade para outras experimentações, usurpando a potência de variação.

A noção de território é inseparável da de fronteira, e essas famílias estão esquadrinhadas nas fronteiras do dever-ser, nas quais uma única porta se abre, a da negligência, e as brechas, que por ventura se constituem, vão sendo capturadas no próprio território, camada sobre camada, hiperterritorializando o campo. Para essas famílias vai-se criando um território de onde dificilmente se escapa, construído pela reprodução persistente de modelos instituídos. Território no qual não importa o que façam, serão sempre culpabilizadas. O que isso quer dizer? Quer dizer que a proteção oficial, ao produzir o lugar da família negligente, atua por um mecanismo de hiperterritorialização, pela reprodução persistente de modelos institucionais.

Se pensarmos as relações familiares de cuidado de filhos como um campo de inúmeras portas de entrada, a negligência seria apenas aquela mais aparente, dada sua institucionalização. Pode-se dizer que as intensidades dessas relações não cabem em modelos estandardizados. Não são poucas as mães que deixam os filhos trancados em casa para cuidar de suas múltiplas tarefas, para elas práticas de proteção, para a proteção oficial, negligência. Nesse exemplo, permanecem fechadas as portas de entrada que poderiam receber a alternativa de trancar os filhos, um possível para poder trabalhar, para poder fazer suas tarefas cotidianas. A única porta que se abre tem respaldo nas regras morais que produzem a negligência.

Na hiperterritorialização não importa o que as famílias façam, serão sempre culpabilizadas, como no exemplo da mãe surda. Diz o especialista: "o bebê deve ser abrigado porque a mãe é surda e não vai conseguir ouvi-lo quando ele chorar anunciando suas necessidades". Diz outro: "mas ela já tem outro filho do qual cuidou bem, apesar da surdez e das dificuldades financeiras.". Volta o primeiro: "então é pior, já que tem dois para cuidar, vai negligenciar com algum deles". Não importa que já tenha se organizado para cuidar do filho primogênito. Com o segundo certamente irá negligenciar, diz a proteção oficial. Dessa maneira, a negligência vai sendo construída como um lugar, em uma repetição desse espaço como única possibilidade para a existência dessas pessoas.

Como se bifurca o sujeito hiperterritorializado na negligência, condição produzida pelo exercício da proteção? Como ele pode sair desse lugar no qual o corpo se encontra diminuído em sua potência, já que é visto como habitando um desvio, mas não um desvio qualquer, o desvio como falta?

Tais questões conduzem a pensar os funcionamentos da proteção como uma estratégia de biopoder, visto que tanto atua nas famílias em particular, modelando seus corpos, ao indicar como a mãe deve se comportar, por exemplo, quanto na população, já que ao fazer essas determinações nos modos de viver, produz saberes que vão estabelecer estratégias de regulação sobre um conjunto maior de pessoas. A proteção é, pois, uma prática de governo que controla as famílias pelos dispositivos da segurança e da prevenção. Tal compreensão bifurca os sentidos do que é estar protegido.

Negligência, práticas de culpabilização e judicialização da vida

Sob a justificativa bem intencionada da proteção ou da prevenção, individualizam-se os desvios da norma, culpabiliza-se, vitimiza-se, criminaliza-se; enfim, pequenas e grandes mortificações do deixar morrer. Aliada a esta lógica encontra-se também a da judicialização, que tem como funcionamento a produção massiva de discursos e práticas punitivo-criminalizantes, que no contemporâneo vão se espalhando no tecido social, produzindo, como já apontado por Foucault (2002), os racismos de Estado, estratégia de normalização que garante a superioridade e a pureza da raça pela articulação dos saberes biológicos e biomédicos com os dispositivos jurídico-institucionais. O racismo de Estado pode se manifestar de várias formas, não se referindo apenas à morte física, mas também à morte indireta, à morte política, à segregação, à eliminação das diferenças. O que Foucault destaca nessa questão do racismo é a lógica do poder. Aquele que diverge da norma, que se encontra na diferença é sempre segregado e deve ser tocado pelo poder, por meio das práticas de proteção, pelo controle, pela sedução de um mundo mais seguro, ou o mais frequente, pela punição.

É preciso punir os indivíduos em desvio, no caso as famílias consideradas negligentes, ou tidas como negligentes em potencial. O "senso comum punitivo" (Batista, 2003) transformou a punição em uma panaceia que solucionará todos os problemas da sociedade. Dessa maneira, movimentos de "lei e ordem" (Wacquant, 2008) ganham, a cada dia, mais força, construindo uma subjetividade que faz com que se peça vigilância, cumprimento da lei e castigos de maneira muito natural e esperada, levando a um processo de judicialização da vida, que compreende um movimento no qual o poder judiciário se torna instituição mediadora do viver. Essa ampliação do domínio jurídico tem se estendido por espaços antes habitados por outros saberes e práticas, capilarizando a função do tribunal às diversas esferas do cotidiano.

A judicialização se dá porque se acredita e se teme a lei. Ela se torna a referência para atuar, dificultando saídas singulares e criativas. Os tempos atuais criaram toda uma máquina jurídica: Os juízes, soberanos vitalícios, os promotores nos tribunais e o Ministério Público são instâncias que a todo o momento podem ser acionadas. As leis estão aí mesmo para serem utilizadas com rigor, e em geral são vistas como sendo poucas e insuficientes. A demanda é que outras sejam criadas. Porém, mais que isso, a máquina jurídica se multiplica nas ações cotidianas, por exemplo, na figura de técnicos que vestem a toga e passam a modular a vida dos pais considerados negligentes, ou do vizinho que como em um tribunal acusa o morador do lado de violador dos direitos dos filhos. Tal se viu na história de uma mãe que conhecendo bem os hábitos de seu filho pequeno, seus horários e ritmos de sono, deixa-o dormindo enquanto vai com rapidez fazer uma compra e ao chegar vê que o vizinho a denunciou ao conselho tutelar em um dia, que por azar, a criança acordou, e chorando despertou a atenção. Chamou-se o conselho, que conduziu essa criança ao abrigo, ficando a mãe enquadrada em abandono de incapaz, diz a lei, dizem os juízes de plantão, tanto os doutores quanto os leigos.

Definida pela negação, a família negligente é considerada "culpada" por suas estratégias de sobrevivência, autuada pelo que "não fez", por uma falta de ação no provimento das necessidades da criança. A família negligente é a que não faz coisas esperadas, e não se encontra potência de vida nas coisas que faz, que em geral não são aquelas que se espera que ela faça. Não se potencializa o que existe, já que o valor maior está no mundo das ideias, e não nas práticas vivas.

Nos órgãos de assistência social por onde passa a família considerada negligente, a abordagem é toda feita pelo campo jurídico, como se evidencia a partir do próprio vocabulário utilizado: intencional, culposo, ato por omissão. Essa perspectiva considera os filhos como sujeitos de direitos e os pais como passíveis de serem julgados por seus crimes e infrações. Nesse contexto, a negligência se insere como uma infração e os pais como pessoas a quem é necessário julgar: culpados ou inocentes? Na maioria das vezes são tidas como culpadas; incorreu no erro, e isso é sua culpa. A causa do mal deve ser responsabilizada, e o próximo passo é a aplicação da pena, que pode ser, por exemplo, a destituição do poder familiar.

Para punir é preciso antes criminalizar. Desqualificar as famílias que divergem de um modelo instituído e classificar os pais de negligentes é uma forma de criminalização da pobreza, em uma associação imediata entre os pobres e o fora da ordem.

Os espaços de proteção demandam práticas de assistência. A construção da subjetividade crianças e adolescentes profundamente desamparados se apoia no discurso da falta de cuidados e das negligências que levaram ao abrigamento. Colocar essas crianças e adolescentes no lugar da vítima produz uma população que precisa de assistência, que se torna objeto de políticas públicas, criando arranjos sofisticados entre cuidado e práticas de governo. Ao mesmo tempo demandam práticas de justiça e sua tradicional proposta de enquadramento da vida. Aos pais é dito: você deveria ter cuidado do seu filho. Não o fez, será, pois, enquadrado nas normas. Há um poder de julgamento que se instala, sempre por coação. Enfim, a proteção é uma prática de regulação que produz a negligência que se instala por percursos de judicialização da vida.

As questões aqui levantadas não visam a moralizar e apontar a prática de abrigamento de forma absoluta como um erro, algo ruim. Não se trata disso. Há situações em que abrigar atende aos interesses de uma família, se coloca como medida provisória enquanto ela se reorganiza para poder cuidar de seus filhos. Ou ainda quando não há quem cuide da criança. A problematização se faz em torno do abrigamento como salvação, como caminho único para famílias pobres, quando se destinam recursos apenas para o abrigamento e não para outras possibilidades. Na prática de judicialização o cenário mais imediato é o da punição, do castigo, porque não há escuta ou lentes para outras possibilidades, só se enxerga o caminho da errância. A proposta empreendida foi pensar os funcionamentos da prática de abrigamento como uma estratégia de biopoder, e todo o aparato em torno dela como movimentos de judicalização da vida.

Referências

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Marques, A. E. A., Oliveira, F. G., Nascimento, M. L., & Miranda, P. C. (2002). In M. L. Nascimento (Org.), PIVETES: a produção de infâncias desiguais (pp.144-165). Niterói, RJ: Intertexto; Rio de Janeiro: Oficina do Autor.

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Wacquant, L. (2008). As duas faces do gueto. Rio de Janeiro: Boitempo.

Recebido em: 04/02/2012

Aceite em: 05/05/2012

Maria Livia do Nascimento é Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFF. Doutora pela PUC/SP. Coordenadora de pesquisas no grupo PIVETES (Programa de intervenção voltado às engrenagens e territórios de exclusão social) nas áreas de abrigo, proteção à infância, legislação e direitos da infância e da adolescência, judicialização da vida. Endereço: Universidade Federal Fluminense, Campus Gragoatá, Bloco O, sala 214. Niterói/ RJ, Brasil. CEP 24210-350. Email: mlivianascimento@gmail.com

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    2012

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2012
  • Aceito
    05 Maio 2012
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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