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Reflexões sobre liberdade e (in)tolerância

Reflections upon freedom and (in)tolerance

Resumos

Neste texto, refletimos sobre a concepção liberal de liberdade sinalizando que seu individualismo leva a atitudes de intolerância frente às diferenças sociais. Em contraposição, resgatamos o significado ontológico-social da liberdade que supõe a sociabilidade, a alteridade e a equidade.

Liberdade; Tolerância; Intolerância; Alteridade; Equidade


In this article, we discuss about the liberal conception of freedom, and we stress that its individualism leads to intolerant attitudes for social differences; on the other hand, we rescue the ontological and social meaning of freedom presupposing sociability, otherness and equity.

Freedom; Tolerance; Intolerance; Otherness; Equity


ARTIGOS

Reflexões sobre liberdade e (in)tolerância* * Essa produção integra a pesquisa Neoconservadorismo e irracionalismo contemporâneo: fundamentos teóricos e manifestações ideoculturais, desenvolvida pela autora entre 2011-2014, com o apoio do CNPq.

Reflections upon freedom and (in)tolerance

Maria Lucia S. Barroco

Assistente social, professora de Ética Profissional e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética e Direitos Humanos (Nepedh) do Programa de Estudos Pós-Graduados em ServiçoSocial da PUC-SP, Brasil. E-mail: barroco.lucia@gmail.com

RESUMO

Neste texto, refletimos sobre a concepção liberal de liberdade sinalizando que seu individualismo leva a atitudes de intolerância frente às diferenças sociais. Em contraposição, resgatamos o significado ontológico-social da liberdade que supõe a sociabilidade, a alteridade e a equidade.

Palavras-chave: Liberdade. Tolerância. Intolerância. Alteridade. Equidade.

ABSTRACT

In this article, we discuss about the liberal conception of freedom, and we stress that its individualism leads to intolerant attitudes for social differences; on the other hand, we rescue the ontological and social meaning of freedom presupposing sociability, otherness and equity.

Keywords: Freedom. Tolerance. Intolerance. Otherness. Equity.

Não se pode tolerar o intolerável. Pode-se, contudo, ser tolerante em relação a muita coisa, pode-se conviver com divergências e evitar "castigos".

Leandro Konder

Liberdade e individualismo: a exclusão do outro

A liberdade é um valor e uma categoria ético-política construída historicamente na práxis da humanidade e configurada teórica e ideologicamente de formas diferenciadas em cada momento histórico particular.

Na emergência da sociedade moderna, a liberdade objetivou-se como valor imanente, ocupando lugar de destaque no ideário da burguesia revolucionária, em seu processo de ruptura com a ordem feudal, na produção filosófica e na cultura humanista desenvolvida na Europa ocidental no período entre o Renascimento e a Revolução Francesa.

Nesse contexto, sua forma peculiar de objetivação teórico-prática correspondeu às possibilidades abertas ao indivíduo pela dinâmica do novo modo de produção. Superadas as formas limitadas da produção, os limites concretos da comunidade e das relações sociais feudais, com seus laços de dependência, o indivíduo emergiu como sujeito histórico capaz de decidir o seu destino.

Entretanto, a produção capitalista criou novos vínculos de dependência que se materializam a partir das relações de produção, determinando a instituição de uma sociabilidade mediada pelo mercado. A liberdade passa a se configurar como sinônimo de autonomia dirigida à realização individual pela apropriação privada de bens materiais e espirituais.

Esse modo de ser do indivíduo burguês, ou seja, esse ethos, tem uma base objetiva de sustentação fundada na forma de organização do modo de produção capitalista; atende às necessidades de reprodução dessa ordem social cuja dinâmica supõe a produção incessante e universalizante de novas mercadorias e sua apropriação privada.

Cria-se um modo de vida orientada para o consumo, a competitividade e o individualismo. Os indivíduos passam a valer enquanto proprietários de mercadorias e por isso são considerados legalmente iguais e livres. Os objetos materiais se expressam como qualidades humanas que, ao serem consumidas, passam a dar sentido à existência, e o próprio indivíduo passa a identificar a sua condição humana à condição de proprietário, consumidor. Para MacPherson, trata-se da identidade do individualismo possessivo:

O indivíduo numa sociedade de mercado possessivo é humano em sua qualidade de proprietário de sua própria pessoa; sua humanidade realmente depende de sua independência de quaisquer relacionamentos contratuais com outros, exceto os que são de seu interesse; sua sociabilidade realmente consiste de uma série de relações de mercado (MacPherson, 1979, p. 283).

Na medida em que cada indivíduo se reconhece como livre, independente, proprietário potencial de bens e proprietário de si mesmo (de seus desejos, necessidades, preferências), sua existência passa a ter como finalidade a objetivação de sua liberdade, o que significa a plena satisfação de seus desejos e a instituição social de garantias de que sua autonomia não seja posta em risco. O Estado e a lei garantem que seus bens privados sejam invioláveis, cabendo à ideologia garantir a sua legitimação moral.

A ideologia dominante exerce a função de controle social extraeconômico ao influir nas ideias dos homens entre si, motivando-os a se comportar de certo modo, valorado positivamente em função das necessidades de reprodução social da ordem burguesa. A moral se reproduz pelo hábito, pela repetição de normas e comportamentos de valor que moldam o comportamento dos indivíduos singulares na vida cotidiana, constituindo-se num campo favorável de reprodução da ideologia mercantil e da alienação.

Nesse sentido, para garantir a legitimidade da propriedade privada e a identidade do individualismo possessivo, são reproduzidas determinadas máximas que funcionam como normas de convivência, visando à regulação do comportamento dos indivíduos em sua convivência social. Dentre elas, destaca-se a máxima que afirma que "a sua liberdade termina quando começa a do outro". Ocultando a realidade ao invocar a proteção da liberdade de todos, ou seja, do "bem comum", difunde a falsa ideia de que a delimitação do espaço de liberdade de cada um equivale a uma atitude de respeito mútuo.

(In)tolerância: a face oculta da liberdade burguesa

Em geral, costuma-se definir tolerância como uma relação social que supõe a existência de alguma diferença aceita como um direito: o direito de ser diferente. Entretanto, alguns autores discordam do próprio uso do termo tolerância para retratar essa relação social. Jacquard, por exemplo, chama a atenção para não confundirmos respeito com tolerância, uma vez que "a tolerância é uma atitude muito ambígua (para isso, existem casas..., dizia Claudel). Tolerar é julgar-se em condições de dominar, julgar; é ter de si mesmo um conceito o bastante positivo para aceitar o outro com todos os seus defeitos" (Jacquard, 1997, p. 4).

O autor propõe substituir tolerância por alteridade "é necessário tomar um rumo completamente diferente e tomar consciência da contribuição dos outros, que se torna tanto mais rica quanto maior for a diferença em relação consigo mesmo" (Idem).

Para Cortella, o uso corrente do termo tolerância é problemático:

[...] Eu venho me rebelando há certo tempo contra a palavra "tolerância" [...] acho que a palavra "tolerância" produz quase um sequestro semântico, pois quando alguém a usa está querendo dizer que suporta o outro. Afinal tolerar é suportar [...] Eu o suporto, aguento. Você não é como eu, aceito isso, mas continuo sendo eu mesmo. Não quero ter contato, só respeito a sua individualidade. Em vez de utilizar a palavra "tolerância", tenho preferido outra: "acolhimento". Há uma diferença entre tolerar que você não tenha as mesmas convicções que eu — sejam religiosas, políticas ou outras — e acolher suas convicções. Porque acolher significa que eu recebo na qualidade de alguém como eu. (Cortella, 2005, p. 28-29)

Em qualquer caso, seja com o uso do termo ou substituindo-o por outro, trata-se sempre de uma relação social mediada pela presença e aceitação de uma diferença. Para Vázquez, não basta a existência da diferença (convicções, preferências, modos de vida etc.); é preciso que ela seja consciente, isto é, que seja reconhecida como tal e que nos afete de alguma forma, ou seja, que não fiquemos indiferentes a ela (Vázquez, 1999, p. 115).

Esse reconhecimento não significa concordar com as opções do outro; não significa nem tentar mudar o modo de ser do sujeito tolerante nem do outro; significa aceitar o direito do outro a ser diferente com suas opções. Portanto, não existe consenso na tolerância; somente o dissenso reclama a tolerância (Idem).

Na intolerância, também ocorre uma relação social em que um dos sujeitos (ou um grupo, uma classe social etc.) é diferente ou faz algo diferente, e isso nos atinge. Porém nossa reação é oposta à da tolerância; aqui, diante das diferenças, assumimos atitudes destrutivas, fanáticas, racistas, reacionárias. A diferença é negada; mais do que isso, buscamos destruí-la, excluir a identidade do outro por meio da afirmação da nossa, tomada como a única válida (Idem, p. 116).

Assim, enquanto na tolerância a diferença é reconhecida e respeitada, embora não seja compartilhada, na intolerância a identidade do outro é rechaçada justamente por ser diferente. Enquanto a tolerância exige um horizonte de liberdade, uma reciprocidade objetivadora de relações de comum liberdade e igualdade, a intolerância objetiva uma relação assimétrica em que somente um é livre e quer impor a sua identidade ao outro (Idem, p. 117).

Voltamos à questão da liberdade liberal, expressa na máxima que define "a liberdade de um indivíduo termina onde começa a do outro" para considerar o seu caráter intolerante, manifesto no individualismo da sociedade burguesa. Em primeiro lugar, trata-se de uma liberdade individualista que não suporta a presença do outro com suas escolhas e modos de vida. Por isso, essa máxima só ganha sentido quando divulgada ou reproduzida em situações em que dois ou mais indivíduos têm escolhas diferentes. Vê-se, então, que a exclusão do outro se refere ao outro que se apresenta como diferente; mais do que excluir o outro, exclui-se a possibilidade de convivência entre sujeitos que têm escolhas, preferências ou modos de vida diferentes. Sendo assim, além de individualista, trata-se de uma norma de convivência intolerante.

A intolerância que se expressa de forma tão límpida na máxima que define a liberdade burguesa revela-se cotidianamente no contexto neoconservador atual. Parte da sociedade finge "tolerar" as escolhas alheias desde que elas se objetivem fora do espaço de convivência pública, desde que não perturbem a ordem social e moral, desde que não demande um envolvimento com os seus sujeitos. Isso ocorre também em situações que não derivam de escolhas alheias, mas de determinações sociais que não fazem parte do universo daqueles que são intolerantes: "tolera-se" a existência da pobreza desde que os pobres estejam presos, longe do convívio social e dos espaços públicos frequentados pela burguesia e pelas classes médias. É como lembrou o autor citado: as "casas de tolerância" foram assim chamadas na medida em que não se podia negar a existência de casas de prostituição e tratou-se de garantir que elas se estabelecessem nas periferias das cidades.

Marcuse se refere a uma "falsa tolerância", típica da sociedade de classes das democracias existentes no capitalismo; sociedades democráticas com organizações totalitárias determinadas pela desigualdade institucionalizada. Nesse contexto ocorre uma "tolerância" falsa e repressiva, especialmente veiculada pela publicidade, pela propaganda e pelo controle ideológico que reprime o impulso à liberdade, passando a falsa ideia de imparcialidade do poder dominante (Marcuse, apud Vázquez, 1999, p. 119-120).

A intolerância percorre a trajetória da humanidade, destacando-se a religiosa e a étnica como dois grandes marcos da opressão e injustiça, a exemplo da escravidão, da Inquisição, dos genocídios. No Brasil, em pleno século XXI, práticas que remontam a um estágio histórico pré-civilizatório têm se apresentado cotidianamente, desvelando um cenário de barbárie intolerável, a exemplo do aumento de linchamentos, das práticas de "justiceiros" contra jovens infratores, das execuções sumárias realizadas pela polícia, da eliminação de grupos e populações indígenas, camponesas, quilombolas pelos latifundiários, entre outros.

A intolerância se reproduz ideologicamente no apoio dado a essas práticas por parte da sociedade e de certos meios de comunicação, incitando a pena de morte, o rebaixamento da maioridade penal, o armamento da população e o uso da força pelo Estado, respaldadas por uma intelectualidade irracionalista de direita que encontra espaço para se promover em jornais, em programas de TV, em cursos, em publicações próprias. Os "outros", os inimigos que impedem a liberdade da burguesia e das classes médias são os pobres, os favelados, os jovens moradores das periferias, os indígenas, os trabalhadores do campo e da cidade, principalmente quando eles comparecem coletivamente nas ruas, nas praças, nos espaços de lazer, como os shoppings, entre outros. Para a intelectualidade de direita, "os outros" são as forças organizadas de esquerda, os setores progressistas, os movimentos sociais, os militantes de direitos humanos.

Esse processo de barbárie tem sido contestado por parte da sociedade, resultando nas inúmeras manifestações populares que se espraiam por todo o país desde junho de 2013. Organizando-se em partidos, associações, movimentos sociais ou através dos meios virtuais, essa população comparece às passeatas, deflagra greves, para o trânsito de vias públicas e estradas em repúdio às ações de extermínio cometidas pela polícia nas favelas e periferias das cidades, denunciando a barbárie, reivindicando direitos e justiça social.

Trata-se, portanto, da coexistência entre a prática da liberdade e da tolerância e da sua negação, embora essa convivência seja desigual, na medida em que o movimento de negação tem uma base de sustentação objetiva na barbárie promovida pelas determinações conjunturais e estruturais do modo de produção capitalista.

Nesse sentido, voltando ao eixo de nossa reflexão, coloca-se uma questão ética e política que interessa àqueles que defendem e praticam a resistência à barbárie: a tolerância tem limites?

Uma questão ética e política: a tolerância tem limites?

Algumas correntes de pensamento consideram que devemos ser tolerantes em qualquer situação: tendências do relativismo cultural e do relativismo ético, com influências do irracionalismo e do pensamento pós-moderno. Para justificar o relativismo, apoiam-se na negação da universalidade dos valores, na defesa da diversidade, das particularidades e do pluralismo.

O relativismo cultural questiona a possibilidade de julgamento de um padrão cultural particular a partir de critérios considerados válidos para toda a humanidade. No âmbito da filosofia, as correntes do relativismo ético defendem a ideia de que "não é possível chegar a um acordo racional universal na discussão dos princípios éticos, sendo impossível discernir — entre juízos morais em conflito — qual é o correto" (Etxberria, 2001, p. 54).

A defesa do pluralismo encontra sua razão de ser nessas formas de pensar, pois a afirmação de que não é possível discernir eticamente entre valores e práticas diferentes implica considerar que as práticas e as ideias existentes têm o mesmo valor e, portanto, que todas devem ser respeitadas.

No entanto, quando nos deparamos com práticas que representam atos de violência inadmissíveis, cabe a pergunta: devemos tolerar o intolerável?

Podemos citar como exemplos de práticas culturais: o genocídio, o etnocídio, o racismo e várias práticas de discriminação e de violência contra a mulher, entre elas a da mutilação sexual e do apedrejamento, sem contar a lista interminável de violações que consta dos documentos de direitos humanos e que não se restringem a práticas culturais, tais como o trabalho escravo, a tortura, o terrorismo de estado, a guerra, a fome, a prostituição infantil etc. Por isso, é importante salientar que embora os exemplos a respeito das práticas culturais de violação aos direitos humanos acabem recaindo sobre os países não ocidentais, isso não significa afirmar que a civilização ocidental seja um exemplo de não violação.

Em nome de quais valores tais práticas são justificáveis? Devemos nos manifestar em oposição a isso ou devemos "respeitar" esses valores? Respondemos a tais indagações afirmando que a tolerância tem limites e que os parâmetros para essa afirmação são teóricos e históricos.

Para Bobbio, "a tolerância absoluta é uma pura abstração" (Bobbio, in Vázquez, 1999, p. 120). Vázquez adota como medida a liberdade, afirmando que "deve tolerar-se o que amplia ou enriquece a liberdade e, ao contrário, não se deve tolerar o que a obstaculiza ou nega" (Vázquez, 1999, p. 121).

Entretanto, como já afirmamos, a categoria liberdade pode ser utilizada em diferentes práticas e discursos, com significados opostos. Por isso, é preciso informar quais são os critérios teóricos e históricos, éticos e políticos que orientam nossa defesa dos limites da tolerância.

O caráter universal dos valores e os limites da tolerância

A ética é aqui concebida como uma forma de práxis: uma ação prática consciente derivada de uma escolha racional entre alternativas de valor que visa produzir uma transformação de valor nos homens entre si. A ética permite ao indivíduo sair de sua singularidade para estabelecer uma conexão consciente com o humano genérico; logo, é uma atividade universalizante, mesmo sendo realizada por um indivíduo singular.

A criação de alternativas funda a capacidade de escolha (liberdade), e a valoração das escolhas objetiva a criação de valores e as escolhas de valor, instituindo a possibilidade do agir ético-moral. Logo, valor e liberdade são fundantes da práxis ética, e seu significado ontológico é dado pela sua objetividade na reprodução do ser social: esses componentes da práxis são liberados e liberam pelas/as forças e capacidades humanas essenciais postas em movimento no processo de (re)produção humana a partir do trabalho: a liberdade, a sociabilidade, a consciência e a universalidade humana.

Desse modo, o caráter universalizante dos valores é um dado ontológico historicamente observável. Basta observar a história social da liberdade, em que sua objetividade é dada por todas as situações históricas de emancipação de homens, mulheres, de povos, classes e grupos sociais em face de situações de dominação, exploração, escravidão, de sofrimento material e espiritual provocado pelo impedimento forçado de liberação das capacidades e forças essenciais humanas. Portanto, negar a universalidade dos valores só tem sustentação em formas de pensar irracionalistas e a-históricas.

Marx trata da riqueza humana1 1 . "Em todas as formas, ela [a riqueza representada pelo valor] se apresenta sob forma objetiva, quer se trate de uma coisa ou de uma relação mediatizada por uma coisa, que se encontra fora do indivíduo e casualmente a seu lado [...]. Mas, in fact, uma vez superada a limitada forma burguesa, o que é a riqueza se não a universalidade dos carecimentos, das capacidades, das fruições, das forças produtivas etc., dos indivíduos, criada no intercâmbio universal? O que é a riqueza se não o pleno desenvolvimento do domínio do homem sobre as forças da natureza, tanto sobre as da chamada natureza quanto sobre as da sua própria natureza? O que é a riqueza se não a explicitação absoluta de suas faculdades criativas, sem outro pressuposto além do desenvolvimento histórico anterior, que torna finalidade em si mesma essa totalidade do desenvolvimento, ou seja, do desenvolvimento de todas as forças humanas enquanto tais, não avaliadas segundo um metro já dado?" (Marx, 1970, I, p. 372). construída pelo gênero como a base fundante da livre e múltipla atividade de todo o indivíduo (Heller, 1978, p. 40). Por riqueza humana, ele concebe a universalidade das necessidades e capacidades, o domínio do homem sobre a natureza, a explicitação absoluta de suas faculdades criativas, em suas palavras: "Uma explicitação na qual o homem não se reproduz numa dimensão determinada, mas produz sua própria totalidade..." (Marx, 1970, I, 372).

Esses fundamentos fornecem uma medida de valor para julgar as ações humanas:

São de valor positivo as relações, os produtos, as ações, as ideias sociais que fornecem aos homens maiores possibilidades de objetivação, que integram sua sociabilidade, que configuram mais universalmente sua consciência e que aumentam sua liberdade social. Consideramos tudo aquilo que impede ou obstaculiza esses processos como negativo, ainda que a maior parte da sociedade empreste-lhe um valor positivo. (Heller, 1972, p. 78)

Assim, a defesa da existência de limites à tolerância é alicerçada numa concepção ontológica e histórica baseada no nível de desenvolvimento da humanidade, em termos de suas conquistas emancipatórias e valores. Elas expressam a autoconsciência emancipatória do gênero humano e tornam-se conscientes para os indivíduos em suas lutas políticas particulares. É nesse movimento entre o particular e o humano genérico que as conquistas e os valores se universalizam. As conquistas também são traduzidas em documentos, leis, declarações, em âmbito nacional e internacional que visam obter um consenso em torno de princípios para balizar os limites entre o tolerável e o intolerável, a exemplo da Declaração de Direitos Humanos de 1948, elaborada no pós-Segunda Guerra, objetivando um posicionamento universal em face dos crimes praticados pelo nazismo.

Uma das questões abordadas pelas correntes do relativismo cultural refere-se ao fato de que os padrões utilizados para o julgamento das violações de direitos humanos são marcados pela cultura da civilização ocidental. Esses padrões não podem ser considerados universais, o que não deixa de ter sentido (Diniz, 2001). Entretanto, a questão é muito mais complexa, pois a negação de um posicionamento baseado no argumento de recusa à dominação imperialista tem seus desdobramentos, com implicações éticas e políticas que podem produzir um resultado objetivo oposto ao desejado pela sua crítica.

Assim, as tendências que defendem a diversidade, considerando que devemos respeitar a totalidade de práticas e ideias particulares em nome da liberdade, encontra uma contradição insolúvel quando se depara com práticas que negam a própria liberdade, mais do que isso, a humanidade do outro. Na verdade, acabam propondo um posicionamento neutro em face de crimes e violações de direitos humanos.

Consideramos que o enfrentamento dessa problemática não se resolve pelo relativismo, mas o inverso — a defesa do universal — também implica muitas mediações. A validade ou a abrangência dos documentos e leis que tratam dos direitos humanos deve ser medida pelo nível de incorporação das diferentes culturas e modos de ser, das reivindicações dos diversos movimentos e lutas sociais, na construção de um debate orientado pelo horizonte da emancipação humana e pela noção de que, para o humano, a medida de valor é o próprio homem.

Quanto ao chamado relativismo ético, com sua defesa da impossibilidade de haver um acordo racional diante de vários códigos morais em conflito, consideramos uma negação irracionalista e niilista da ética, pois anula a capacidade de escolha do sujeito e a sua responsabilidade em face de situações que demandam escolhas de valor. Na medida em que a ética, com sua exigência de posicionamento; a razão, com sua capacidade de conhecer a essência da realidade; a ação política, com sua interferência na realidade social, deixam de ter sentido, essa forma de pensar passa a coincidir com a ideia defendida pela ideologia dominante: "cada um na sua".

Pelo exposto, podemos considerar que as diferenças culturais, sociais, políticas, teóricas podem expressar a multiplicidade de capacidades e possibilidades do gênero humano rico em necessidades e formas de satisfação. Ao mesmo tempo, podem expressar desigualdade, dominação, exploração, discriminação, empobrecimento da humanidade. Isto porque, em sua história de desenvolvimento, a humanidade tem produzido, ao mesmo tempo, a riqueza e a miséria; a humanização e a barbárie.

A universalidade histórica dos valores, como construções humanas, fornecem parâmetros universais para avaliar o que é barbárie, tendo como medida o nível de humanização do ser social atingido até hoje e documentado em manifestos, acordos, leis, elaborados universalmente. Como seres humanos e sociais, somos dotados de discernimento ético para fazer distinção entre valores, com base nas conquistas já efetuadas historicamente. Os torturadores podem dizer que estavam agindo em nome da "liberdade"; parte da sociedade pode até apoiá-los. Mas o patamar emancipatório conquistado pela humanidade em termos da autoconsciência da liberdade e dos direitos humanos permite a contestação por parte dos que não toleram o que é intolerável.

Isso significa afirmar que a discussão acerca do que é tolerável, nos marcos de uma sociedade cindida pela divisão entre classes e interesses econômicos e políticos, não é somente uma discussão ética filosófica; trata-se de um embate ético-político prático que envolve referências teóricas, projetos sociais, ideologias e valores.

Por isso, a questão do pluralismo, assim como a da diversidade, não significa ausência de conflitos e interesses, mas sim o posicionamento diante deles, a possibilidade de todos se manifestarem, a responsabilidade ética de tomar uma posição diante do que não concordamos e a condição política de lutar pela hegemonia do projeto societário que defendemos e pela universalização dos valores a ele conectados.

A liberdade liberal, portanto, é enganosa porque divulga uma falsa noção de respeito ao outro, quando, na verdade, exclui o outro porque é diferente. A concepção de liberdade aqui tratada não se separa da sociabilidade. Pressupõe-se que indivíduos sejam livres em relação uns com os outros; não podemos ser livres enquanto os outros não o são. Isso supõe o enfrentamento dos conflitos, das contradições, a aceitação consciente dos demais como seres iguais e diferentes.

Nesse sentido, o Código de Ética dos(as) Assistentes Sociais (CFESS, 1993) é transparente quando afirma que os assistentes sociais elegem como princípios fundamentais a liberdade, a democracia, a equidade, a justiça social, o empenho na eliminação de todas as formas de preconceito e de discriminação por questões de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção sexual, idade e condição física, incentivando o respeito à diversidade, à discussão das diferenças e a garantia do pluralismo, por meio do respeito às correntes profissionais democráticas existentes.

De forma explícita, o Código indica uma concepção de pluralismo que limita a tolerância ao campo democrático, negando as práticas, ideias e manifestações que produzem o racismo, a xenofobia, o nacionalismo agressivo, o fascismo, o preconceito, a discriminação por motivos diversos, enfim que negam os valores que dão suporte à ética profissional.

Recebido em 9/5/2014

Aprovado em 2/6/2014

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    Essa produção integra a pesquisa
    Neoconservadorismo e irracionalismo contemporâneo: fundamentos teóricos e manifestações ideoculturais, desenvolvida pela autora entre 2011-2014, com o apoio do CNPq.
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    . "Em todas as formas, ela [a riqueza representada pelo valor] se apresenta sob forma objetiva, quer se trate de uma coisa ou de uma relação mediatizada por uma coisa, que se encontra fora do indivíduo e casualmente a seu lado [...]. Mas,
    in fact, uma vez superada a limitada forma burguesa, o que é a riqueza se não a universalidade dos carecimentos, das capacidades, das fruições, das forças produtivas etc., dos indivíduos, criada no intercâmbio universal? O que é a riqueza se não o pleno desenvolvimento do domínio do homem sobre as forças da natureza, tanto sobre as da chamada natureza quanto sobre as da sua própria natureza? O que é a riqueza se não a explicitação absoluta de suas faculdades criativas, sem outro pressuposto além do desenvolvimento histórico anterior, que torna finalidade em si mesma essa totalidade do desenvolvimento, ou seja, do desenvolvimento de todas as forças humanas enquanto tais, não avaliadas segundo um metro já dado?" (Marx, 1970, I, p. 372).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Aceito
      02 Jun 2014
    • Recebido
      09 Maio 2014
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