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Comentário IX

DEBATES

Comentário IX

Paulo C. Masiero

Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação-USP

Acervos digitais: reflexões baseadas em minha experiência com bibliotecas digitais

Minha experiência em relação ao armazenamento digital e difusão pela web de conteúdos completos de documentos – e não apenas de referências bibliográficas, como as do sistema Dedalus, da USP – ocorreu pela coordenação de dois projetos de bibliotecas digitais da Universidade de São Paulo: a biblioteca de teses e dissertações e a biblioteca de obras raras e especiais, sendo portanto nessa mídia que este texto se concentra. Enquanto a primeira preserva a produção intelectual contemporânea da USP, a segunda preserva a produção intelectual de sábios, pesquisadores e viajantes da antigüidade (www.saber.usp.br) e tem muita similaridade com os acervos fotográficos tratados pelo autor do texto O futuro do presente: acervos fotográficos diante do horizonte digital. Conseqüentemente minha experiência será usada para ilustrar e discutir algumas das questões formuladas no artigo citado. A experiência da biblioteca de teses e dissertações foi relatada em artigo publicado na revista Ciência da informação e tem facilitado a multiplicação desse tipo de biblioteca em outras universidades. Serviu também como base para a criação da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT)/Instituto Brasileiro de informação em Ciência e Tecnologia (IBICT).

À provocação do autor sobre a demanda ou público-alvo para projetos desse tipo, não tenho dúvida em afirmar que os dois aspectos desse empreendimento que mais me motivaram foram a universalização e a preservação. A possibilidade de tornar disponível para todo brasileiro, em qualquer parte do país, o acesso àquelas obras maravilhosas que caso contrário ficariam guardadas – e quase intocáveis – em suas bibliotecas foi a principal motivação. A universalização do acesso ao conteúdo cultural e intelectual permitido pela Internet é, a meu ver, um dos avanços mais importantes do mundo atual. Desviandome um pouco do tema, é interessante perceber que a própria Internet já possui parte de sua memória conservada por um colecionador/investidor que montou um sistema para coletar e armazenar as páginas iniciais de muitos sítios. Se você quiser saber, por exemplo, qual era o design do sítio na Internet da empresa Coca Cola em 1995-96, isso é possível!

Voltando ao nosso tema, a minha segunda motivação foi a possibilidade de preservar, em princípio para sempre, em meio digital, essas obras, uma vez que as obras originais, em papel, deterioram-se com o passar do tempo e estão sujeitas à destruição que pode ser causada pela natureza ou por vândalos. Entretanto, a preservação digital não é garantida sem algum esforço e custo, pois a tecnologia de armazenamento muda muito rapidamente, basta lembrar nos últimos 20 anos dos disquetes de oito polegadas, depois substituídos pelos de cinco polegadas, pelos CD-ROMs e agora pelos DVDs. Mas um simples cuidado resolve esse problema: migrar os arquivos digitais à medida que a tecnologia muda.

Um projeto como o da biblioteca de obras raras da USP não é muito diferente dos vários projetos relacionados à memória fotográfica paulista descritos pelo autor. A primeira dificuldade é que se trata sempre de um projeto caro, e os órgãos que detêm os originais quase sempre não possuem orçamento suficiente para essa finalidade. É preciso então buscar recursos externos, por meio de órgãos públicos de fomento ou patrocinadores privados. Há o custo dos equipamentos necessários para a digitalização e o dos profissionais envolvidos. Para o nosso projeto contratamos uma empresa especializada em fazer fotografia digital de livros raros e outros documentos similares e dar ao arquivo resultante um tratamento adequado para atender aos requisitos de qualidade da reprodução, que em nosso caso era muito alto. Como o recurso captado para a implantação da biblioteca era pouco, foi digitalizada uma pequena parte do acervo e atualmente buscamos alternativas para a expansão desse trabalho como novos patrocinadores e o uso de equipamentos internos disponíveis no Instituto de Estudos Brasileiros para que possamos no futuro fazer todo o processo com equipe própria.

A equipe para um projeto desse tipo é multidisciplinar e geralmente numerosa. Facilitou o nosso trabalho o fato do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP já ter feito anteriormente ao início do projeto o levantamento das obras raras do acervo da universidade, a catalogação e a definição dos descritores para esse tipo de obra, que estão reunidos na coleção denominada Bibliotheca Universitatis, publicada pela Edusp. A passagem dos livros raros para o meio eletrônico, portanto, exigiu mais do que a simples transcrição dos descritores bibliográficos usuais. O trabalho em si envolveu um grupo grande de bibliotecárias e uma especialista em obras raras que definiu o conjunto inicial de obras a serem digitalizadas, uma vez que não poderíamos digitalizar todas. Alguns dos critérios para essa escolha foram a importância da obra, a ausência de cópia digital em outra biblioteca, a abrangência de várias áreas do conhecimento e a priorização dos livros sobre a História do Brasil. O projeto contou também com especialistas em informática, que já tinham experiência por terem desenvolvido a biblioteca de teses e dissertações. No caso de acervos fotográficos, principalmente trabalhando-se com negativos, a necessidade de especialistas para manipular os originais é uma necessidade adicional às comentadas acima.

A visualização pelo monitor de vídeo de um computador também pode exigir funcionalidades adicionais relacionadas a diferentes possibilidades de busca e manipulação dos negativos.

Um dos parâmetros para medir o grau de universalização do conteúdo tornado disponível em forma digital é a comparação com o número de acessos ao objeto físico e o número de acessos ao objeto virtual. Nas duas bibliotecas digitais da USP temos contadores para o total de visitas e o número de acessos a cada obra, bem como a origem do visitante (país). As teses foram visitadas neste ano, em média, por 2.800 pessoas por dia, e as obras raras por duzentas.

Ainda que esses números pareçam pequenos, são na realidade valores significativos para esse tipo de documento, muito superiores aos acessos às obras físicas. Esse poderia ser futuramente o objeto de uma pesquisa acadêmica. Certamente, o mesmo vale para outros acervos, como os fotográficos. O sistema pode também se relacionar com o cliente, solicitando o preenchimento de informações que ajudam a definir o perfil e as necessidades dos usuários.

Curiosamente, a questão levantada pelo autor, relacionada ao perfil do usuário, pode ser respondida depois da implantação do projeto, e isso é importante, pois pode determinar com mais certeza os melhores rumos para a evolução do sistema e do acervo.

Embora a experiência digital impeça inevitavelmente o contato com o objeto físico, acredito que ela atenda às necessidades do leitor na grande maioria dos casos e acrescente outras facilidades e experiências enriquecedoras que o meio tradicional não oferece ou dificulta muito. Voltando às obras raras, foram digitalizadas todas as capas e páginas dos livros, mesmo as em branco. O leitor pode ler o livro usando a metáfora seqüencial sugerida pelo objeto físico, mas pode também usar o índice para ter acesso direto a qualquer página.

O índice virtual contém anotações sobre cada página, como a informação de que ela contém um índice (uma meta-informação) ou uma figura. É possível também solicitar uma ampliação da página, que permite ver detalhes que no original só seriam vistos com auxílio de uma lupa, por exemplo. Embora não implementadas na versão atual, é possível imaginar muitas outras funcionalidades que essa biblioteca poderia oferecer aos leitores. Vem à mente como possibilidade ligar à obra outras publicações fortemente relacionadas com ela, como teses, análises e críticas de especialistas, criando-se assim um hipertexto muito rico, o que permitiria aos leitores comuns a realização de anotações públicas sobre a sua experiência e emoções ao ler a obra.

Uma outra questão relevante levantada de forma apropriada pelo autor é o uso que pode ser feito do material disponibilizado (quase) livremente pela Internet. Associado a esse problema, há um outro não mencionado pelo autor que é o dos direitos do autor ou, em certas situações, os direitos do proprietário da obra. Esses são temas que nos preocuparam bastante nas duas bibliotecas digitais da USP. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o tornar disponível pela web não cria um problema novo, mas amplifica – e muito – o problema já existente em relação ao objeto físico. Aumentar o número de leitores da obra aumenta proporcionalmente o número de usos incorretos e abusivos.

No caso da biblioteca de teses, a preocupação é com relação ao plágio, que pode ocorrer mesmo com relação à obra impressa disponível na biblioteca de alvenaria, o que já ocorreu de fato em várias ocasiões. É possível dificultar um pouco esses atos, disponibilizando a obra em um formato que impeça a sua cópia por meio de operações de baixa de arquivos (download), "cortar e colar" ou impressão de todo o documento, permitindo apenas a cópia da página que está na tela, o que exigiria uma longa e tediosa impressão página por página. Mas nada disso evita completamente o problema. Outra solução é registrar os usuários e exigir senha de acesso. Essa solução é um pouco melhor, mas também não evita completamente os problemas, além de dificultar e restringir o acesso à obra. Considerando que queremos difundir o uso da obra, a solução, a meu ver, é universalizar o acesso e resolver os problemas se, e quando, eles aparecerem!

O problema dos direitos de propriedade é mais difícil de lidar e tem interferência com leis complexas, mas sempre podem ser resolvidos. Na USP, está muito claro que o autor da tese ou dissertação – que é o aluno de pósgraduação e não o orientador – é quem deve decidir pela inserção e divulgação da tese na biblioteca digital. No caso das obras raras, em que o autor está provavelmente morto, e o direito autoral da editora já expirou, ocorre o mesmo que nos acervos fotográficos do passado. Qual o risco de que alguém se aproprie de uma foto ou de uma gravura e a utilize com fins comerciais, reproduzindo-a em livros, usando-as em campanhas publicitárias, etc? Se isso ocorrer o que fazer? Seria justo esperar que o proprietário da obra, mesmo sendo um órgão público, fosse recompensado pelos custos incorridos em sua preservação – que não são desprezíveis. O risco certamente existe, embora não seja fácil quantificálo, mas isso não deve impedir que o órgão depositário de um bem cultural importante para toda a humanidade ou para certo grupo da população restrinja o acesso ao bem podendo não fazê-lo. Por isso, no caso das obras raras da USP, optamos apenas por alertar os usuários do sistema com uma frase simples: "Todos os direitos reservados. Proibido o uso para fins comerciais." Até o momento não ocorreram casos de mau uso que tivéssemos tomado conhecimento. Situações graves que ocasionalmente ocorrerem poderão ser tratadas com medidas judiciais.

Concordo integralmente com o autor quando afirma que a questão administrativa é, isoladamente, o ponto de maior dificuldade e que deve ser analisada em conjunto com as questões técnicas. Os comentários acima, relacionados ao financiamento, direitos autorais e de propriedade são questões administrativas. Mas há outras que podem causar grande impacto ao projeto.

Uma delas é a manutenção do acervo digital depois de sua instalação, que é também um problema da coleção física. A instalação, com todas as dificuldades, tem o sabor do desafio a ser vencido, a satisfação de ter consciência da importância do projeto, o que gera motivação muito facilmente. Depois da instalação, é preciso preservar os originais digitais, ampliar constantemente a coleção, operar os computadores, atualizá-los periodicamente, etc. Continua sendo necessário ter orçamento e pessoas. Na USP adotamos um modelo de comissões multidisciplinares e multiinstitucionais para gerir as bibliotecas digitais. O modelo é bom, mas não é perfeito. As comissões nem sempre funcionam bem, pois dependem de pessoas ocupadas e com maior ou menor interesse no acervo, o que leva a um funcionamento instável das comissões. O orçamento exige conscientização institucional dos altos escalões dirigentes sobre a importância do projeto. É necessário elevar periodicamente o nível de informação sobre os objetivos e os resultados do projeto e para isso deve-se fazer campanhas, distribuir material informativo, etc.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Ago 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2004
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