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Discurso de apresentação do prêmio Kluge

HOMENAGEM: PRÊMIO JOHN W. KLUGE 2012

Discurso de apresentação do prêmio Kluge* [* ] Sesc Anchieta, São Paulo, 17 de agosto de 2012.

Paula Montero

É com imensa alegria que o Cebrap celebra a premiação John W. Kluge que foi outorgada a Fernando Henrique Cardoso pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos em julho de 2012. Trata-se do maior reconhecimento que um cientista social pode receber. O Prêmio Kluge, que começou a ser concedido em 2003, distingue o conjunto de uma obra científica nas áreas das humanidades não cobertas pelo Prêmio Nobel reconhecendo seu impacto e influência para a compreensão da experiência humana e social.

Fernando Henrique Cardoso foi o primeiro latino-americano a ser agraciado com o prêmio; ele foi escolhido pelos membros do conselho curador da Biblioteca do Congresso americano, após consulta a cerca de três mil intelectuais e homens públicos. Apenas sete pessoas foram reconhecidas com o prêmio antes de Fernando Henrique: o filósofo e historiador polonês Leszek Kolakowski, conhecido pelos seus estudos sobre o marxismo; o filósofo e pensador francês Paul Ricoeur; o historiador norte-americano Jaroslav Pelikan; o emérito também historiador norte-americano especialista em escravidão John Hope Franklin; o filósofo chinês Yu Ying-shih; o escocês Peter Robert Lamont Brown, especialista em história antiga e medieval; e a historiadora indiana Romila Thapar.

Nas palavras de James Billington, historiador e responsável pela Biblioteca do Congresso, os curadores que decidiram a premiação reconheceram que "a obra de Fernando Henrique Cardoso, voltada para o estudo das estruturas sociais, da economia e das relações raciais no Brasil, estabeleceu a base intelectual de sua liderança como presidente na transformação do Brasil em uma democracia de inclusão e com forte crescimento".

O Kluge Center, enquanto patrocinador do prêmio, espera que seu vencedor seja uma referência importante para os estudantes em todas as áreas, para os envolvidos em assuntos públicos e para os leigos em geral, no que diz respeito aos valores acadêmicos e modos de pensar.

Ninguém poderia preencher melhor esse figurino do que nosso homenageado, Fernando Henrique Cardoso.

O empresário da indústria televisiva John W. Kluge escolheu a Biblioteca do Congresso como beneficiária de seu endowment por reconhecê-la como a maior e mais respeitada instituição depositária do conhecimento humano. Ao criar o prêmio, Kluge afirmou seu desejo de ajudar a impulsionar a biblioteca para além do seu papel de líder em educação e conhecimento. "Minha esperança", disse ele à época, "é que este novo prêmio possa contribuir para melhorar o diálogo entre estudiosos e legisladores em benefício do fortalecimento da democracia em nossas sociedades."

Em seu discurso de agradecimento no dia da premiação Fernando Henrique reconhece sua dupla vocação de intelectual e homem público. "Ao longo dos anos, muitas pessoas sábias me disseram das dificuldades enfrentadas por aqueles que tentam a vocação dupla de político e acadêmico", asseverou em sua fala. "Alguns sugeriram até que a conciliação dessa dicotomia exige um 'pacto com o diabo'. Isso sempre me pareceu um exagero. Mas minha história é, em muitos aspectos, profundamente enraizada nessas escolhas: entre valores e prática, entre a razão e a emoção."

A visão de que a sociologia é, como se dizia nos tempos antigos, uma ciência moral permitiu, segundo Fernando Henrique, "vincular sua formação acadêmica a seu impulso para promover a mudança e influir na realidade".

Como sabemos todos, o Cebrap foi fruto dessa utopia.

Ainda que temesse por sua segurança pessoal, Fernando Henrique, ao invés de deixar o país naqueles dias difíceis, preferiu ficar e resistir, fazendo o que fosse possível para criar as condições de continuidade de um pensamento livre. Fundado como um think tank independente, o Cebrap se tornou, naquele período, o que Fernando Henrique chamou de "uma espécie de mosteiro na Idade das Trevas vocacionado para manter viva a chama da resistência e preservar os pequenos espaços de liberdade de pensamento".

Nos anos 1970, especialmente na segunda metade, a questão central para a geração fundadora do Cebrap passou a ser a democracia, tema que ainda não recebera a devida atenção na literatura daquele período. No entanto, diferentemente do Iseb, o mais influente think tank do país naquele momento, o Cebrap não se assumiu como porta-voz dos movimentos sociais, não pretendeu se transformar em centro formulador de doutrinas. Sua influência se estabeleceu por meio de sua capacidade de oferecer sólidas análises do contexto social e político do país.

Formado por um grupo de pesquisadores oriundos de diversos campos do conhecimento, o filósofo José Arthur Giannotti, a demógrafa Elza Berquó, o sociólogo Candido Camargo Procópio, o economista Paul Singer e o cientista político Juarez Brandão Lopes, o Cebrap, já em seu primeiro relatório anual de 1970, define sua missão em contraposição ao que se fazia então na universidade: pretendia implementar novos métodos de trabalho científico para superar a compartimentalização do conhecimento, estimular o trabalho coletivo, expor-se ao debate crítico dos seus pares e suplantar os constrangimentos burocráticos da estrutura universitária tradicional.

Em 1980 o Cebrap se estabeleceu no endereço atual, na Vila Mariana.

Nessa década produziu seus diagnósticos mais influentes sobre a pobreza e a desigualdade no Brasil: São Paulo: o povo em movimento, de Paul Singer e Vinícius Caldeira Brandt (1980), e São Paulo: trabalhar e viver, de Vinícius Caldeira Brandt (1989).

Essas obras completam a trilogia iniciada em 1975 com o clássico São Paulo: crescimento e pobreza, no qual Fernando Henrique, ao lado de Lúcio Kowarick, Vinícius Caldeira Brandt, Candido Procópio e outros pesquisadores, demonstra que, paradoxalmente, nos anos do chamado milagre brasileiro, apesar do forte desenvolvimento econômico, 80% da população sofreu uma queda na sua renda real.

Com o afastamento de Fernando Henrique do Cebrap em 1983, Giannotti assume a direção da casa por quase doze anos. Foi ele quem construiu a ponte para as novas gerações. Ao seu lado, Elza Berquó, pioneira nos estudos de dinâmica populacional no Brasil, tornou o Cebrap referência no campo de estudos de reprodução humana. Nos anos 1970 e 1980 a questão das populações tornara-se um problema político decisivo. O debate opunha, de um lado, os que faziam apologia das políticas de controle populacional e, do outro, os que achavam que era preciso povoar o Brasil. Mas, na verdade, havia um vazio de informações a respeito do tema. Em sua atuação no Cebrap ao longo dessas quatro décadas Elza Berquó dedicou-se ao aprimoramento das metodologias de coleta de informações e a fazer-se ouvir nos fóruns governamentais e internacionais sobre as questões candentes que envolvem a saúde da mulher, o planejamento familiar e o comportamento sexual. Como ela mesma observa em uma entrevista, o Cebrap, com seu trabalho, estava "exibindo a cara do Brasil por meio do trabalho científico".

Desde então o Cebrap e o Brasil mudaram muito.

Quanto ao Cebrap, embora tenha permanecido fiel à vocação de seus fundadores de vincular a formação acadêmica ao impulso de promover a mudança, os temas de pesquisa se ampliaram e agruparam em grandes áreas de interesse e núcleos de pesquisa. O corpo de pesquisadores também cresceu e se diversificou. Ao completar seus quarenta anos em 2011, o Cebrap contava com algo em torno de 68 pesquisadores entre sêniores, plenos e assistentes.

Mas, é claro, nem tudo foram flores.

A abertura democrática, a criação e a consolidação de programas de pós-graduação nas universidades, o afastamento de alguns membros da primeira geração, inclusive o de Fernando Henrique para se tornar senador, tiveram um profundo impacto na instituição obrigando-a a iniciar um longo período de transição geracional e de redefinição institucional. Com o andamento do processo de redemocratização emerge o sentimento de que talvez o Cebrap tivesse perdido sua razão de existir, sua função primeira de crítica social. As mudanças estruturais da sociedade brasileira passaram a exigir uma complexificação dos alinhamentos teóricos, fazendo com que o Cebrap perdesse sua problemática unificadora. As gerações que se seguiram, algumas delas formadas nos centros de pós-graduação em ciência política dos Estados Unidos, trouxeram novos instrumentais analíticos para enfrentar os debates mais contemporâneos sobre democracia, Estado, partidos políticos e eleições. Para o bem e para o mal, já não era mais possível esperar que todos os pesquisadores do Cebrap dispusessem de uma linguagem teórica compartilhada. As virtudes do período heroico - o pluralismo intelectual, a recusa em transformar a instituição em centro produtor de doutrinas e porta-voz de grupos específicos, a diversificação temática, fatores tão importantes na consolidação do Cebrap como centro de referência - pareciam não funcionar tão bem nos anos 1990.

Cabe destacar, no entanto, duas grandes iniciativas que, a meu ver, marcaram a trajetória e o perfil do Cebrap nas décadas de 1990 e 2000. A criação, em 1986, do Programa de Formação de Quadros Profissionais, dirigido por Giannotti e apoiado pela Capes, e a fundação, em 2000, do Centro de Estudos da Metrópole, apoiado pela Fapesp.

Pelo Programa de Formação de Quadros passaram mais de 120 bolsistas de diferentes disciplinas, que trabalhavam ao longo de dois anos sob a batuta exigente de seu mentor. O programa tinha como objetivo renovar o Cebrap, formar novos quadros, tentando contrabalançar, na visão de Giannotti, o processo de massificação que tomava conta, então, do ensino superior com a rápida expansão das universidades. O programa reavivou e estendeu para as novas gerações uma das qualidades mais significativas do ethos fundador da instituição: a formação de um espírito científico fundado no esmero do aprendizado, no rigor das ideias, na amplitude dos interesses e no gosto pelo debate.

A criação do Centro de Estudos da Metrópole dez anos mais tarde foi também um marco importante na redefinição da instituição. A elaboração do projeto inicial galvanizou o Cebrap como um todo. Ao longo de vários meses seminários e debates internos procuraram, ao mesmo tempo, fazer convergir os temas trabalhados para um campo comum de interesses e construir uma linguagem teórica compartilhada. Posso testemunhar, porque estive à frente desse esforço coletivo ao lado de Argelina Figueiredo, que foi uma experiência extraordinária. O esforço, além de colocar novamente a competência acadêmica a serviço de uma sinergia interdisciplinar, contribuiu para revitalizar e redefinir a outra face do ethos fundador da instituição: sua vocação política, ou, dito ao modo de Fernando Henrique, seu impulso para promover a mudança e influir na realidade social. E isto o cem, e o Cebrap, vêm fazendo com qualidade e expertise em áreas como educação, saúde, trabalho, desigualdade e pobreza. Sem perder o rigor inerente à pesquisa científica de alta qualidade, tem colocado o avanço do conhecimento e a inteligência metodológica a serviço das políticas públicas em questões de grande complexidade na área social.

O Cebrap nunca pretendeu consolidar-se como uma escola de pensamento na qual gerações sucessivas se integrassem a uma mesma proposta analítica. A diversidade de pensamento sempre foi sua moeda forte. Mas, olhando para trás, podemos ver que as novas gerações, de diversas maneiras, deram continuidade a seu projeto original. O desejo e o empenho em criar as condições de um futuro melhor para o Brasil enfrentando sua imensa desigualdade social, compreendendo suas possibilidades de desenvolvimento econômico e, sobretudo, fortalecendo suas instituições democráticas, estavam lá, na origem, e ainda estão aqui, hoje, em nossa maneira de atuar.

Fernando Henrique afirmou, em seu discurso de premiação, que sua formação acadêmica foi a base para tudo que veio depois. Os temas de suas pesquisas mudaram ao longo do tempo, mas nunca seus objetivos iniciais: "Eu queria entender o que estava acontecendo no Brasil contemporâneo", disse ele. "Eu queria derrubar mitos." Fernando Henrique reconhece que seu preparo acadêmico lhe forneceu as ferramentas que lhe permitiram aventurar-se no mundo e tentar, à sua maneira, um pequeno passo de cada vez, desbastar essa teimosa fachada da desigualdade brasileira.

Essa é a chave do legado que Fernando Henrique deixou para nós, no Cebrap. Assim, ainda que eu reconheça que a honra de ter sido agraciado pelo prêmio "é toda dele", como ele bem lembrou jocosamente a um amigo no jantar da premiação, gostaria de compartilhar essa honra com todo o Cebrap, instituição que ele fundou e que há quatro décadas persevera na crença do valor do trabalho do pensamento para a transformação da vida social.

Celebramos como cebrapianos e brasileiros o reconhecimento que lhe foi conferido pela comunidade científica mundial ao lhe outorgar tão importante premiação. Ela vem coroar uma trajetória que, para nós, é parte de nossa história. Por tudo isso, só posso dizer hoje, ao nosso homenageado, estamos orgulhosos e nos congratulamos com a honraria recebida: o seu gesto inaugural há quatro décadas, fez toda a diferença. Muito obrigada.

Em sua homenagem neste dia, e como expressão de reconhecimento de que o Cebrap faz parte do legado que você nos deixou, gostaríamos de presenteá-lo, pelas mãos de Elza Berquó, com um fac-símile da ata de fundação do Cebrap, de 1969.

PAULA MONTERO é professora titular da FFLCH-USP e presidente do Cebrap.

  • [*
    ] Sesc Anchieta, São Paulo, 17 de agosto de 2012.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Nov 2012
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