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HIV/Aids: avaliação democrática e a construção coletiva do conhecimento

HIV/AIDS: democratic evaluation and colective knowledge build-up

APRESENTAÇÃO

PRESENTATION

HIV/Aids: avaliação democrática e a construção coletiva do conhecimento

HIV/AIDS: democratic evaluation and colective knowledge build-up

Avaliação. Formação. Colaboração. Estes são alguns dos temas-chave que articulam o trabalho sobre HIV e Aids apresentado nos artigos deste número especial da Revista de Saúde Pública (RSP). Embora os artigos difiram entre si em relação aos temas e à população estudadas ¾ abordando desde crenças relacionadas à Aids, práticas dos caminhoneiros, prevenção de HIV entre jovens encarcerados, até construção de gênero nos cursos noturnos das escolas públicas ou desenvolvimento de equipe multidisciplinar em centros de referências de HIV/Aids ¾, ligam-se pela visão comum e pelo processo de criação. Eles nos permitem novas percepções, não apenas sobre seus objetos de estudo, mas principalmente sobre seu processo de estudo ¾ sobre desafios que devemos encarar na procura da formação dos recursos humanos necessários para confrontar a epidemia da Aids.

O desafio da avaliação continua entre os mais difíceis dilemas que o programa de DST/Aids do Brasil enfrenta atualmente (como ocorre também em outros países), o que significa avaliar em que nível ela deve ser operacionalizada e como colocar em prática esquemas de avaliação que consigam escapar das falsas esperanças das estratégias de gerenciamento tecnocrático (usado na administração das empresas) e permanecer fiel à dinâmica política de mobilização coletiva e saúde coletiva ¾ desafios não fáceis ou de solução simples. Para isso, devemos procurar novas formas de avaliação ¾ como a indicada por Spink (2001), que utiliza o precioso termo "avaliação democrática" para traduzir o que seria mais do que uma simples prestação de contas aos outros mais poderosos, porque incorpora a auto-avaliação como parte do processo de transformação social. Todavia, para iniciar as primeiras etapas dessa avaliação democrática, deve-se criar, antes de mais nada, a cultura na qual a técnica de avaliação possa se tornar parte da prática reflexiva, parte do processo dialético de reflexão pelo qual executamos os trabalhos, examinamos os resultados e transformamos nossas intervenções em um formato que nos permita atingir melhor nossos objetivos.

Nos artigos publicados neste número especial da RSP ¾ e talvez de forma ainda mais clara pelo processo com que foram articulados e produzidos ¾, esses desafios da busca pela forma democrática de avaliação encontram um dilema tão importante quanto a questão em si: a necessidade urgente de formar novos pesquisadores e de fornecer, às mulheres e aos homens trabalhando na linha de frente dessa epidemia (mais do que uma retaguarda da academia), as ferramentas necessárias para uma análise e reflexão rigorosas, respeitando suas preferências e as limitações do conhecimento prático. Considerando tudo que tem sido feito no Brasil na luta contra a Aids, a capacitação e a formação de uma nova geração de pesquisadores em saúde coletiva e na área da ciências sociais não têm tido tanto sucesso (ao se comparar com o que foi realizado no campo da epidemiologia). A formação de uma nova geração de pesquisadores em ciências sociais preparados para responder à Aids continua a ser um importante desafio. Este será dobrado se incluirmos nessa tarefa os ativistas trabalhando em organizações não-governamentais e como funcionários do sistema de saúde pública que não necessitam ser formados como pesquisadores acadêmicos, mas devem ser treinados com as ferramentas da pesquisa social que fornecem elementos adicionais na busca de fortalecer as bases de sua própria prática profissional.

Os artigos deste número especial são produtos de um experimento único voltado para o confronto de vários dilemas: (1) construção da avaliação como prática emancipadora mais do que apenas uma imposição (em geral externa) das agências financiadores; (2) colocação dos instrumentos da ciências sociais (e seu conhecimento sobre a vulnerabilidade social, da construção social do gênero e da sexualidade e das possibilidades de libertação pedagógica) para sustentar o desenvolvimento de trabalhos de prevenção do HIV/Aids; e (3) formação de um novo profissional, tanto para a academia quanto para a comunidade, que seja capaz de avançar na prática da prevenção e do cuidado como um exercício integrado de solidariedade que deve fazer parte da estrutura da prática da saúde coletiva.

Uma das qualidades mais marcantes desses experimentos foi precisamente o cuidado com o que os coordenadores descrevem o processo detalhista pelo qual a formação dos jovens pesquisadores e a produção de conhecimento foram tomando forma e sendo moldados no período de desenvolvimento deste projeto. Enquanto muitos "treinamentos" (pelo menos no campo da Aids) têm sido limitados a cursos rápidos sem um adequado seguimento ou continuidade depois de seu término, o modelo adotado pelos trabalhos deste suplemento, pelo contrário, estendeu-se por várias fases, da familiarização inicial com a teoria da pesquisa e do método até a concepção do projeto, sua realização por meio de várias formas de parcerias (entre pesquisadores e ativistas da comunidade ou entre investigadores mais experientes ou também entre seniores e os mais jovens), passando por coleta de dados, análise e processo de redação. Este ponto foi absolutamente crucial ¾ enquanto poucos programas de treinamento buscam atingir o processo de pesquisa de forma mais extensa, além do treinamento e da elaboração da proposta de pesquisa, outros poucos acompanham os estágios finais nos quais os dados coletados são transformados em interpretações (englobando a análise e a publicação) que é uma forma mais adequada de dividir com outros, de socializar os resultados das pesquisas e de disseminá-los de forma que possam ser conhecidos no discurso público e debatidos (seja por meio de encontros científicos ou outras atividades acadêmicas ou em veículos mais adequados para debate de políticas públicas). Buscar a qualidade nesse processo deve merecer a atenção de todos nós que lutamos com os desafios de orientar e formar uma nova geração de pesquisadores e profissionais capazes de confrontar a epidemia de Aids no Brasil e no mundo.

Esta coleção nos oferece uma contribuição-chave para o campo específico do HIV/Aids e, de um modo geral, para a área de saúde coletiva. Enfatiza as muitas qualidades que têm feito a resposta brasileira à Aids uma forma poderosa de mobilização social ¾ seu compromisso com o respeito às diferenças e aos valores da igualdade e com a expressão do valor da cidadania e da necessidade da solidariedade. Mas vai além do que conhecemos e entendemos dessa resposta: segue como um compromisso de construção consciente e crítica, com um pé firmemente plantado no chão e com as mãos na massa, de forma a confrontar a resposta a essa epidemia como um processo, como um trabalho em progresso ¾ um exercício que é ao mesmo tempo intelectual e prático e por meio do qual nós transformamos o mundo e nós mesmos.

Richard Parker

Department of Medical Sciences. School of Public Health,

University of Columbia, USA

REFERÊNCIA

Spink P. Avaliação democrática: propostas e práticas. Rio de Janeiro (RJ): Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids; 2001. (Coleção ABIA - Série Fundamentos de Avaliação, 3).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Out 2002
  • Data do Fascículo
    Ago 2002
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