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Uma ratoeira bem confortável

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Kurt Ernst Weit

Professor no Departamento de Produção e Operações Industriais da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas, e decano da Congregação

Parkinson, C. Northcote. Uma ratoeira bem confortável. Trad. Isabel Cristina da Cunha Queiroz e Luiz Roberto S. S. Malta. São Paulo, Summus, 1980. 135p.

Uma resenha em homenagem a Ernst Muhr, 1926-1985.

O súbito desaparecimento do nosso colega Ernst Muhr deixa a Escola de Administração de Empresas da Funação Getúlio Vargas, o grupo Forsa, a ABNT, a Abinee, o jornal O Estado de São Paulo, a Gazeta Mercantil e tantas outras instituições, mais pobres. Quando ele foi arrancado do nosso convívio, estava prestes a defender uma tese de doutoramento na USP sobre uma das suas especialidades - a compra pública. Mas quantas especialidades tinha Ernst Muhr? Basta citar algumas: professor de análise de valor da FGV no início da década de 60, quando ainda não havia sido descoberta esta análise no Brasil, o que só se deu em início da década de 80, Colaborador de O Estado de São Paulo em filatelia, depois em questões de taxa de emprego, exímio conhecedor dos problemas dos conselhos regionais, já que durante seis anos fez parte do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura e depois colaborou no CRTA; conhecedor de línguas (parece que foram nove), da semântica, da filologia, de óperas de Wagner e de Gilbert e Sullivan, além de toda a música clássica, de administração, principalmente engenharia industrial e Finanças - a lista não termina.

Ernst Muhr faz falta, pois conseguiu não ter inimigos, mas adversários, quando tomava uma posição de estrita e definida legalidade numa acirrada discussão da Congregação da EAESP, não se devendo esquecer que ele também estudou direito até o terceiro ano, inclusive, na Faculdade de Direito da USP.

Ernst Muhr faz falta porque seu fino humor britânico conseguiu sempre atingir o alvo, ironia que divertia, mas não ofendia. Talvez os alvos mais atingidos por Muhr tenham sido os conselhos regionais de qualquer coisa, pois um conselho e uma regulamentação da profissão para ele só se justificavam se a profissão podia pelos seus profissionais ferir direitos ou o físico das pessoas - engenharia, medicina, enfermaria, veterinária (?) direito etc. Conselhos que só protegiam técnicas adquiridas por certas pessoas, privilégio da educação, para Muhr nem eram importantes nem deviam existir.

O que Muhr mais detestava era a pomposa auto-suficiência de pseudo-entendidos - como do hoje catedrático e já antigo diretor de uma das grandes universidades paulistas, que numa reunião da Congregação pedia a instalação de "microfonia" em todas as salas e recebeu a pronta resposta: "O colega quer instalar microfones, pois com microfonia não se ouvem estas suas profundas considerações."

Aproveitar as aulas do colega Muhr era um hábito adquirido; o neófito, exigido a pensar, ou exposto aos raios mortais da ironia, podia não achar nada de interessante no curso. E assim chega o resenhista ao ponto por que escolheu esta pequena coleção de ensaios de Parkinson como última homenagem a Muhr. Parkinson, um mestre de humor e ironia ingleses, tem na maneira de escrever os seus ensaios uma profunda semelhança com o nosso falecido colega. Enquanto Parkinson é oficial de Sua Majestade britânica e administrador por escolha e com formação nitidamente britânica, não parece ele chegar em cultura perto de Ernst Muhr, que só teve um lapso - não foi ele quem definiu a lei de Parkinson, chamando-a mundialmente de lei de Muhr: "A burocracia cresce na razão de 6% ao ano, qualquer que seja o serviço"; e a segunda lei: "A despesa cresce na mesma razão que a receita, mas é sempre maior que esta." Mas isso me lembra outra história (Muhr não escreveria estória, palavra inventada numa tarde chuvosa na redação do Shopping News em São Paulo e que não tem existência "legal") - a do fulano que registrou seis nomes de bebida: One-up, Two-up, Three-up, até Six-up. O que mostra como ele chegou perto de inventar o Seven-up. Muhr não deu a lei de Parkinson ao mundo, mas deixou um legado de finas observações, de muitos artigos e judiciosas opiniões. Ele vai fazer falta. Ou, como ele explicaria como colaborador do Brockhaus - enciclopédia alemã em 24 volumes - "Sou um diletante (do italiano dilettare = se divertir, amante de uma arte ou de uma ciência, que, mesmo sem nenhum curso acadêmico nesta, consegue sobressair-se) não profissionalmente, mas com seu profundo entendimento, como amador." Ele conseguiu sobressair-se profissional e amadoristicamente em tantas artes e ciências, que parecia um verdadeiro homem da Renascença, onde príncipes escreviam poesia, se digladiavam e faziam música, e ainda tinham tempo de trabalhar como arquitetos ou pintores.

O livro de Parkinson começa com um prefácio no qual ele cita "autores dramáticos (que escrevem) com a cabeça no esgoto" e em seguida passa a enumerar onde pronunciou as conferências ou publicou pela primeira vez os ensaios que encontramos neste pequeno volume, Nem todos os ensaios são realmente superiores, alguns correspondem a "por favor escreva algo para o nosso número especial de 1º de maio sobre o movimento trabalhista" etc. Mas o nível geral mantido é altíssimo mesmo neste tipo de artigo. É bom retirar imediatamente as jóias desta coleção, para não confundi-las com o joio. Dos 12 ensaios publicados, o melhor, na opinião deste resenhista, é o Compromisso de Peter. O autor, dentro do mais perfeito espírito das análises de Ernst Muhr, toma por base o princípio de Peter - de que todo mundo é incompetente. Todo mundo é promovido até o nível final da sua incompetência. Então, como diz Parkinson, conclui-se que todos os níveis de todas as burocracias e empresas do mundo estão em estado de incompetência. Isso, afirma Parkinson, não é o fato, pois nas empresas familiares ninguém que não seja da família é promovido aos cargos mais altos, e se esta não for incompetente, a empresa é bem conduzida. Da mesma maneira, de acordo com o organograma, a empresa é uma pirâmide e poucos são os promovidos de nível. Então em cada nível ficam os competentes.

Outro capítulo excelente e tipicamente Muhr é o nono: O direito é o esquerdo. Trata-se de um artigo que procura demonstrar que a Inglaterra está num desesperado embate anticonspiração EU-URSS de fazer todo mundo andar pelo lado direito da rua, principalmente automóveis. A lei que manda o tráfego andar pela esquerda, diz Parkinson, só perde em sensatez para a lei que estipula que qualquer veículo sem cavalo deve ser precedido nas estradas da Grã-Bretanha por um homem a pé com bandeira vermelha. Parkinson afirma que a revogação desta lei foi um erro, pois induziu a gastos imensos com a construção de estradas, tratamento de feridos etc. Os velhos caminhos eram melhores. Acredita o resenhista que o leitor destas linhas entenderá o porquê do meu paralelo entre Parkinson e Muhr.

O capítulo Sobre o humor é interessante, pois conta piadas das quatro categorias principais do mundo: a piada homérica; a piada frustrante; a piada sobre o sexo; a piada sobre palavras.

A piada homérica é sobre defeitos físicos ou morais, como cegueira ou covardia; a piada frustrante é sobre um resultado diferente do esperado; a piada sobre sexo torna desnecessários maiores detalhes, enquanto a quarta categoria é a do nosso trocadilho ou daquela transmissão radiofônica que ouvi no carro, quando o locutor, ao falar do papa, se referiu à recepção "com grande agitação de lençóis" (em lugar de lenços).

Além dessa classificação, Parkinson procura enquadrar piadas sobre autoridades. E para os nossos maníacos de Bolsa que apanharam em 1971, e talvez (abril 1985) venham a apanhar de novo, a piada sobre o especulador que comprou a ação em um dia por Cr$1, no dia seguinte ela subiu para Cr$2 e um dia depois para Cr$3. O especulador queria sair da ação "realizando seus lucros". Telefonou para o corretor para vender, e este respondeu "Para quem?" Piada inglesa, note bem.

No capítulo XXII, sobre a Genialidade, Parkinson, sem humor, mas com clareza, apresenta um estudo sobre o sucesso em negócios, com atributos além de honestidade e competência. O capítulo estuda a literatura inglesa do século XVI e verifica que a análise literária de obras, mesmo de autores médios e de médio sucesso, mostra genialidade, mas mal aproveitada. As conclusões não são para mim (como professor especializado em treinamento de administradores) as mais indicadas, mas afinal Parkinson também tem uma opinião: "Quando muitos são bons, alguém emergirá como supremo" - frase que não acho muito aplicável, pois está dentro do "um pode errar, dois é difícil e três impossível", uma falácia comum.

O capítulo sobre juventude revoltada, sério, de uma conferência na Universidade de Heidelberg, procura definir o motivo da insatisfação da juventude que fez o levante em 1969. O artigo é de pouco interesse para o administrador, a não ser o escolar. A explicação da geração atingida é convincente, o que não quer dizer que ela esteja certa.

Outro capítulo de pouca importância administrativa, mas interessante, é Da mão para a boca, que trata da gesticulação na fala. O capítulo se movimenta dentro das teorias "o corpo fala" de Pierre Weil.

"Como a placa da estrada, o consultor indica o caminho - mas não o segue." Opinião de Parkinson sobre consultores (que ele também é) no capítulo VI, muito importante e lúcido, puro Ernst Muhr: "O consultor pode fazer tudo, exceto cuidar de seu próprio negócio." Após citar a definição de Townsend - Up the organization (Que viva a organização) - sobre o consultor, Parkinson afirma que, pelo fato de Townsend ter mandado passear todo o Departamento de Recursos Humanos, o que "foi bem sensato fazer", ele ainda não é profeta completo quanto à consultoria. Na análise de Parkinson o consultor tem sucesso porque é um ator, que se coloca no papel de administrador de determinada empresa. Ainda, o consultor é como o capitão de rebocador de emergência (em navios). Só conhece desastres, mas não o dia-a-dia. Para Parkinson o sintoma de mais fácil diagnóstico pelo consultor é o excesso de papelada e, a partir desta, parte para o que Peter Drucker chama de "o tempo do administrador".

No capítulo Anunciar ou Parecer: "Nenhum volume de publicidade venderá o que não for vendável" é a regra parkinsoniana clara para os mercadólogos. O capítulo faz um estudo sobre prospectos de viagens e hotéis - é lógico e sério.

O capítulo da ratoeira, que é de nossa própria escolha, é moralizante demais para o meu gosto, apesar de certo quando trata da imobilidade no emprego. Incentivos e penalidades fala de Gênesis, no início, para em seguida tratar de poder e satisfação no trabalho, com uma referência ao desincentivo, o método descrito como o do porrete, a anticenoura administrativa.

No capítulo sobre o governo e os negócios, Parkinson mostra que uma empresa governamental, ou o governo, se interessa em primeiro lugar pelo país, em segundo lugar está desinteressada do lucro, ou outro sistema de avaliação. "O fracasso de um governo só aparece quando há revolução", diz o autor. Em terceiro lugar, o governo faz coisas mais complexas, que se referem à felicidade de mais pessoas, do que acontece na maior parte das empresas de homens de negócios. Parkinson vê duas possibilidades para as empresas; ou elas são nacionalizadas ou elas assumem o governo, como os Medicis, na Florença do século XV. Dos Medicis até os EUA de hoje é um pulo. Assim, a solução certa é a câmara dos lordes (ou o senado italiano, segundo o resenhista). Lá se colocam os industriais, eles pensam que têm poder, e tudo fica azul.

Finalmente, o capítulo dedicado às despesas gerais, que são muito altas, é uma criteriosa análise sobre despesas gerais em casos de empresas comerciais. A frase, conhecida geralmente, que se o raticida mata todos os ratos, a empresa vai à falência, Portanto...

Assim, o livro de Parkinson é uma amena leitura, um guia de administração pela sabedoria dele, bem traduzido (sem erros visíveis e de leitura fácil, portanto não é tradução tipo antiliterária) e relativamente curto, podendo ser digerido num fim de semana. Recomendado, portanto. Ou então devemos ter a certeza de que alguém vai publicar os artigos do colega Muhr, de O Estado de S. Paulo, da Gazeta Mercantil, as cartas à Redação, as observações etc., para ler Muhr em lugar de Parkinson e ter a lembrança de um professor que faz falta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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