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Reflexões sobre a morte e o morrer1 1 Este artigo é parte do projeto de doutorado da autora Anne Marise Koenig, aprovado pelo CEP HC/UFTM, sob número do parecer: 4.449.644, CAAE: 22275519.4.0000.8667.

Resumo

Este ensaio teórico tem por objetivo propor reflexões acerca da morte e do morrer sob o prisma de possíveis antagonismos, do adoecimento e das ocupações humanas envolvidas nesse processo. Os antagonismos são colocados em pauta obedecendo ao sentido de oposição mútua entre vida e morte, nascimento e morte, bem como entre sua previsão e sua negação. O adoecimento é discutido sob o prisma dos modelos dinâmico e ontológico de Laplantine, abrindo-se reflexões sobre o significado do adoecimento para o doente, muitas vezes expropriado de seu processo de morrer. Também aborda como a morte é impelida, atualmente, para os bastidores da vida social. Por último, são abordadas as ocupações da morte pautadas nos “princípios da boa morte”, sob o olhar da terapia ocupacional, sendo discorridos os preparativos e os ritos fúnebres desenvolvidos pelo morrente, seu círculo social e pelos profissionais da saúde, religiosos, agentes fúnebres e funcionários de cemitérios. Depreendemos que a morte é um processo social.

Palavras-chave:
Doença; Cuidados Paliativos; Rituais Fúnebres; Terapia Ocupacional

Abstract

This theoretical essay aims to propose reflections on death and dying through the prism of possible antagonisms, illness and human occupations involved in this process. The antagonisms are put up for discussion obeying the sense of mutual opposition between life and death, birth and death, as well as between their prediction and their negation. Illness is discussed from the perspective of Laplantine's dynamic and ontological models, opening up reflections on the meaning of illness for the patient, who is often expropriated from their dying process. It also addresses how death is currently pushed behind the scenes of social life. Finally, the occupations of death based on the “principles of good death” are approached from the perspective of occupational therapy, discussing funeral preparations and rites developed by the deceased, their social circle and by health professionals, religious people, funeral agents and cemetery workers. We understand that death is a social process.

Keywords:
Disease; Palliative Care; Funeral Rites; Occupational Therapy

Introdução

Não há lugar na terra onde a morte não nos encontre

Mesmo que voltemos a cabeça uma e outra vez olhando em todas as direções como numa terra estranha e suspeita...

Se houvesse um modo de conseguir abrigo contra os golpes da morte – não sou homem de recuar diante dela...

Mas é loucura pensar que se pode vencê-la (Rinpoche, 2013Rinpoche, S. (2013). O livro Tibetano do viver e do morrer. São Paulo: Palas Athenas., p. 40).

Todos experienciamos três eventos inexoráveis como seres humanos: o nascimento, a vida e a morte. Por sermos seres simbólicos, afirmam Machado et al. (2016)Machado, R. D. S., Lima, L. A. D. A., Silva, G. R. F. D., Monteiro, C. F. D. S., & Rocha, S. S. (2016). Finitude e morte na sociedade ocidental: uma reflexão com foco nos profissionais de saúde. Cultura de los Cuidados, 20(45), 91-97. http://dx.doi.org/10.14198/cuid.2016.45.10.
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, concebemos e atribuímos valores e sentidos pessoais, sociofamiliares, culturais, históricos, geográficos, políticos, espirituais, filosóficos, econômicos e sexuais a esses eventos. Somos conscientes (ou não) que, com base nessa atribuição, escolhemos como nos relacionar com a vida, com a morte e, por vezes, com os nossos (re) nascimentos.

Frente à morte, a forma como nos comportamos enquanto sociedade evidencia a nossa “identidade coletiva”, visto que exprime como nos organizamos culturalmente (Reckziegel & Steinmetz, 2016Reckziegel, J., & Steinmetz, W. (2016). Cuidados paliativos e o direito à morte digna. Direito Público, 13(72), 91-114.). Kellehear (2016)Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP. discute que um pré-requisito fundamental ao lidarmos com a morte é termos consciência dela, o que possibilita nos vermos como “gente morrente”. Isso é corroborado por Gardés et al. (2020Gardés, J. P. M., Andreotti, R. C., Nascimento, A. A., & Nascimento, H. A. (2020). Dignidade humana até o último suspiro: o direito à morte digna. In Anais do 1º Congresso Direito e Humanos (pp. 51-64). Barra do Garça: UniCathedral., p. 53), ao afirmarem que “ter consciência de sua própria finitude é uma dádiva humana e, ainda assim, tal fato é desdenhado com afinco, evitado sempre que possível por quase todos”. Elias (2001)Elias, N. (2001). A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar., por sua vez, afirma que a espécie humana é uma comunidade de mortais e a morte é um problema dos vivos, porque os mortos não têm problemas. Esse autor nos induz à reflexão de que não é a morte em si, mas o conhecimento dela que cria problemas aos seres humanos (Elias, 2001Elias, N. (2001). A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar.). Mas por quais motivos esse conhecimento nos faz enxergar a morte como um problema, se todos vivenciamos esse evento?

Fato é que a antecipação da chegada da morte e a reflexão de seus possíveis significados é um desafio para o ser humano (Kellehear, 2016Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP.), independentemente do ciclo vital, condição de saúde, credo ou cultura em que esse esteja inserido. Outro desafio, aventado por Montaigne com base na releitura feita pelo mestre Rinpoche (2013Rinpoche, S. (2013). O livro Tibetano do viver e do morrer. São Paulo: Palas Athenas., p. 40), é o valor que lhe atribuímos:

Para começar a tirar da morte seu grande trunfo sobre nós,

Adotemos o caminho contrário ao usual

Vamos privar a morte da sua estranheza

Vamos frequentá-la, acostumarmo-nos a ela

Não tenhamos nada senão ela em mente...

Não sabemos onde a morte nos espera: então vamos por ela esperar em toda parte.

Praticar a morte é praticar a liberdade.

Um homem que aprendeu como morrer desaprendeu a ser escravo.

Falar sobre a morte, desafiando-nos a pensar sobre seus possíveis significados e nos privando de sua estranheza, fará parte deste artigo de ensaio teórico. Este tem por objetivo propor reflexões acerca da morte e do morrer sob o prisma dos antagonismos, do adoecimento e das ocupações envolvidas nesse processo. Na primeira reflexão, os possíveis antagonismos entre vida e morte, nascimento e morte, além de previsão e negação da morte serão discutidos. A segunda incidirá sobre o adoecimento e a proximidade da morte, como também a expropriação do sujeito morrente sobre esta, ao ser a morte empurrada para os bastidores da vida social. Por último, na terceira reflexão, serão levantadas as ocupações que permeiam o processo da morte e de morrer pautadas nos princípios da boa morte, sob o olhar da terapia ocupacional, dando ênfase aos preparativos e ritos fúnebres, bem como a todos os personagens envolvidos, desde o sujeito morrente, seus familiares, até os profissionais de saúde, religiosos, agentes funerários e funcionários dos cemitérios.

A Morte e seus Possíveis Antagonismos

Provocação. Essa é a palavra ao colocarmos o antagonismo em pauta quando abordamos a morte.

Temos como crença socialmente estabelecida a vida como antagônica da morte. Entretanto, Reckziegel & Steinmetz (2016)Reckziegel, J., & Steinmetz, W. (2016). Cuidados paliativos e o direito à morte digna. Direito Público, 13(72), 91-114. debatem que vida e morte não podem ser compreendidas de forma antagônica ou separada, pois a morte é o momento final da vida e, se temos direito à vida, também temos direito à morte (se possível, digna!). Então, não há antagonismos?

Segundo Maldonado (2021)Maldonado, C. E. (2021). Morte e complexidade. Revista Latinoamericana de Bioética, 21(1), 113-126. http://dx.doi.org/10.18359/rlbi.5376.
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, a antropologia descreve povos que celebram a morte, dançando e realizando banquetes, o que é corroborado por Kant em sua afirmativa: “Se vale a pena viver, e se a morte faz parte da vida, então morrer também vale a pena” (como citado em Salviano, 2012Salviano, J. (2012). A metafísica da morte de Schopenhauer. Ethic@ - Revista Internacional de Filosofia da Moral,11(2), 187-197. https://doi.org/10.5007/1677-2954.2012v11nesp1p187.
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, p. 189). Por outro lado, na cultura ocidental, nós nutrimos sentimento de tristeza, medo, solidão e desespero em relação à morte (Maldonado, 2021Maldonado, C. E. (2021). Morte e complexidade. Revista Latinoamericana de Bioética, 21(1), 113-126. http://dx.doi.org/10.18359/rlbi.5376.
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). Celebração e tristeza com a morte são antagonismos ou dois lados da mesma moeda?

Schopenhauer (2000)Schopenhauer, A. (2000). Metafísica do amor, metafísica da morte. São Paulo: Martins Fontes. afirma que vivemos nossas perdas e nos sensibilizamos com as perdas de outros seres, numa expressão de compaixão e de reconhecimento da sofridão gerada por estas; da mesma forma, repreendemos àqueles que não expressam esses sentimentos, como um quê do não reconhecimento da nossa humanidade (e do nosso temor) ou da possibilidade da extinção de nossa raça. Em contrapartida, desejamo-la aos nossos inimigos, àqueles que feriram profundamente nossos sentimentos ou que julgamos ter infringido normativas sociais estabelecidas, nas quais nos apoiamos (Schopenhauer, 2000Schopenhauer, A. (2000). Metafísica do amor, metafísica da morte. São Paulo: Martins Fontes.). Esse autor escancara esse desejo quando refere que: “[...] A sede de vingança, em seu grau mais elevado, procura a morte do adversário como o maior mal a lhe ser infligido” (Schopenhauer, 2000Schopenhauer, A. (2000). Metafísica do amor, metafísica da morte. São Paulo: Martins Fontes., p. 61). Esse desejo, inferimos, geralmente se restringe à linha do pensamento, das emoções, não gerando atos violentos nem destrutivos em relação ao outro. Isso é necessário inclusive, apontam as teorias psicanalíticas, para que o ato em si não ocorra. Mas, per se, não seria esse desejo antagonista em relação à sacralidade da vida?

O temor da morte será explorado sob a perspectiva do não-ser desse mesmo autor:

Se o que faz a morte aparecer-nos tão terrível fosse o pensamento do não-ser, então teríamos de pensar, com calafrio igual, no tempo em que ainda não éramos. Pois é incontestavelmente certo que o não ser após a morte não pode ser diferente daquele anterior ao nascimento, e, portanto, também não é lastimável (Schopenhauer, 2000Schopenhauer, A. (2000). Metafísica do amor, metafísica da morte. São Paulo: Martins Fontes., p. 65).

Para Schopenhauer (2000)Schopenhauer, A. (2000). Metafísica do amor, metafísica da morte. São Paulo: Martins Fontes., esse temor não faria o mínimo sentido, pois teríamos que ter esse mesmo sentimento pelo tempo em que ainda não éramos, anterior ao nosso nascimento: nascimento e morte, portanto, seriam experiências do não-ser (Lobato, 2018Lobato, M. D. P. (2018). A concepção filosófica da morte em Schopenhauer. Saberes: Revista Interdisciplinar de Filosofia e Educação, 1(17), 55-66.; Salviano, 2012Salviano, J. (2012). A metafísica da morte de Schopenhauer. Ethic@ - Revista Internacional de Filosofia da Moral,11(2), 187-197. https://doi.org/10.5007/1677-2954.2012v11nesp1p187.
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). Apoiando-se nesse pressuposto, compreendemos que o antagonismo da vida em relação à morte faria sentido, visto que o primeiro evento se refere à finitude e ao ser, e o segundo à infinitude e ao não-ser. Em contrapartida, depreendemos que, se olharmos o nascimento e a morte como contrários, pelo prisma do início e fim de nossa história, a vida de fato seria a experiência que se desenrola entre esses dois eventos temporais, sobre os quais temos pouco controle. Desse modo, o antagonismo entre nascimento e morte faria sentido. Lobato (2018)Lobato, M. D. P. (2018). A concepção filosófica da morte em Schopenhauer. Saberes: Revista Interdisciplinar de Filosofia e Educação, 1(17), 55-66., referindo Epicuro, aponta-nos outra perspectiva: de que a morte não nos pertence, visto que, quando estamos vivos, a morte não está manifesta; quando morremos, a vida não está manifesta.

Outro antagonismo manifesto é a previsão e a negação da morte. O que gera mais ansiedade: prevê-la ou negá-la? A previsão move as pessoas para reações antecipatórias defensivas, como o desejo de prognosticar sua chegada por meio da identificação dos riscos causadores, e assim repeli-la (Kellehear, 2016Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP.). Em contrapartida, gera processos de aceitação, como aprender acerca de, preparar-se para e planejar a morte (Kellehear, 2016Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP.). O desejo de prognosticá-la motiva a busca de conhecimento sobre o curso das doenças, além do desejo de buscar a cura, evitando a morte (Kellehear, 2016Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP.). A identificação dos riscos causadores e o desejo de repeli-los nos estimulam à inovação tecnológica, à desenvolvimento de políticas de defesa militar e de sistemas de alerta contra os ataques de outros povos, ao desenvolvimento de armas que matam remotamente, além da busca por locais de moradia seguros (Kellehear, 2016Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP.). A aprendizagem, a preparação e o planejamento perpassam pela observação histórica dos registros sobre a morte dos povos que nos antecederam, bem como da nossa realidade atual, no que tange a ritos, rituais, arte e cultura, desenvolvimento de organizações religiosas e científicas, desenvolvimento de tecnologias e da ciência (Kellehear, 2016Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP.). Mbembe, citado por Tranquilin-Silva (2020)Tranquilin-Silva, J. F. (2020). Da maldição que move o mundo: a banalização da vida. Espacios Transnacionales: Revista Latinoamericana-europea de Pensamiento y Acción Social, 7(14), 28-36., reitera que podemos adiar (prevendo-a) ou escapar da morte, e que isso nos é um poder, mas não absoluto, porque dependemos de outras pessoas.

Por sua vez, o que é a negação da morte senão a produtora do escudo da imortalidade ou da jornada do herói de cada um? Remen (1998Remen, R. N. (1998). Histórias que curam: conversas sábias ao pé do fogão. São Paulo: Ágora., p. 96) refere que “a negação da morte é o modo com que habitualmente todos nós montamos nossa versão da vida”. Kovács (2021Kovács, M. J. (2021). Educação para a morte: quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys Editora., p. 3), por sua vez, aponta que o tema da morte se tornou proibido no Século XX (se estendendo até os dias atuais), por conta de um distúrbio na comunicação denominado “conspiração do silêncio”, ou seja, negamos de forma tão veemente a morte que falar sobre ela se tornou ato proibido na maioria dos contextos familiares, sociais e institucionais. Corroborando com essa afirmação, Pinto & Baia (2013Pinto, L. F., & Baia, Â. F. (2013). A representação da morte: desde o medo dos povos primitivos até a negação na atualidade. Revista Hum@nae, 7(1), 1-15., p. 9) reiteram que, “nos tempos atuais, a morte deve ser dissimulada; passa-se a esconder do doente seu verdadeiro estado de saúde, pois deve-se morrer na ignorância da própria morte”. Seriam, então, previsão e negação comportamentos antagônicos ou complementares?

Sobre o Adoecimento e a Morte

A doença, sob o olhar de Laplantine, discutido por Sarti (2010)Sarti, C. (2010). Corpo e doença no trânsito de saberes. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 25(74), 77-90. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092010000300005.
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, obedece a dois modelos não necessariamente excludentes: o modelo ontológico, que se refere às medicinas centradas na doença, baseadas no corpo físico, como um “ser” da doença; e o modelo relacional ou dinâmico, concernente às medicinas centradas no sujeito, que considera a dinâmica interna do organismo e sua relação com o meio. O modelo ontológico, predominante na sociedade ocidental contemporânea, separa corpo e sujeito, causando-nos estranheza, pois essa separação autonomiza o corpo em corpo biológico (Sarti, 2010Sarti, C. (2010). Corpo e doença no trânsito de saberes. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 25(74), 77-90. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092010000300005.
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), havendo uma clara exclusão da nossa identidade e narrativa, o que nos expropria do processo do adoecimento e morte.

Depreendemos que o adoecimento nos desvia daquilo que tínhamos como certo e programado no curso da vida: viver sem grandes percalços (de preferência felizes e saudáveis), envelhecer e morrer (de preferência sem sofrimento).

Indubitavelmente, adoecer, principalmente para aqueles gravemente enfermos, é uma experiência assustadora e por vezes solitária, impondo reflexões sobre o curso da vida, do seu sentido, da gravidade e letalidade da doença, se permanecerá na sua apresentação aguda ou mesmo se tornará crônica, se trará prejuízos funcionais, se haverá destituição de sua independência e autonomia, se será abandonado (Kovács, 2014Kovács, M. J. (2014). A caminho da morte com dignidade no século XXI. Revista Bioética, 22(1), 94-104. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422014000100011.
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, 2021Kovács, M. J. (2021). Educação para a morte: quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys Editora.). Acrescido a isso, ocorre, muitas vezes, o isolamento do doente pelo temor do contágio, o distanciamento de familiares e amigos (e seu ressentimento pelo distanciamento), além do temor da dor, de outros sintomas desagradáveis, da degeneração e da perda de controle da própria vida (Kovács, 2021Kovács, M. J. (2021). Educação para a morte: quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys Editora.). Percebe-se que pode haver também a manifestação da velada, porém real, inveja do saudável, o estremecimento na relação com seu divino, a exaustão quando o quadro se prolonga ou se torna crônica e, em muitos casos, a iminência da morte. É sofrível adoecer!

Outro aspecto a ser observado é que a visão de um semelhante adoecido naturalmente nos afasta dele (construímos muralhas), pois abala as fantasias sobre a nossa imortalidade, sendo um terreno fértil para o desenvolvimento da solidão daquele semelhante (Elias, 2001Elias, N. (2001). A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar.).

No âmbito da saúde, uma das dificuldades é que as instituições (e as equipes) comumente se pautam no modelo biomédico convencional, reduzindo o sujeito (paciente) à doença, esquivando-se do ser humano pleno, integral, excluindo o cuidado biopsicossocial (Baère et al., 2017Baère, T. D., Faustino, A. M., & Miranda, A. F. (2017). A importância da prática interdisciplinar da equipe de saúde nos cuidados paliativos. Revista Longeviver, (53), 5-19.).

Ademais, temos o impulso civilizatório, que empurrou a morte para os bastidores da vida social, tanto como processo quanto como imagem mnemônica, fazendo com que os doentes também sejam isolados e empurrados para esses bastidores e condenados à solidão (Elias, 2001Elias, N. (2001). A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar.). Depreendemos que não é incomum que esses bastidores, ou contextos do adoecer e morrer, estejam mascarados (ou disfarçados) em nossa sociedade, como o quarto dos fundos, a edícula no final do terreno da casa principal, as instituições de longa permanência, o hospital. O adoecimento, mas principalmente a morte deixaram de ser experiências comunitárias, públicas, para se tornarem silenciosas, solitárias, assépticas e tecnicistas, com pouca ou nenhuma possibilidade da expressão da nossa humanidade (Kovács, 2014Kovács, M. J. (2014). A caminho da morte com dignidade no século XXI. Revista Bioética, 22(1), 94-104. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422014000100011.
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, 2021Kovács, M. J. (2021). Educação para a morte: quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys Editora.; Menezes, 2004Menezes, R. A. (2004). Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz.). A expressão dos sentimentos, desejos, anseios e preocupações dos doentes e de seus familiares, principalmente daqueles em situação de doença ameaçadora da vida, não é permitida na maioria desses contextos (Reckziegel & Steinmetz, 2016Reckziegel, J., & Steinmetz, W. (2016). Cuidados paliativos e o direito à morte digna. Direito Público, 13(72), 91-114.; Kovács, 2014Kovács, M. J. (2014). A caminho da morte com dignidade no século XXI. Revista Bioética, 22(1), 94-104. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422014000100011.
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; Menezes, 2004Menezes, R. A. (2004). Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz.). Observa-se que, sob o jugo da ciência cartesiana, comumente se instaura uma surdez e uma cegueira relacional entre esses personagens e a equipe de saúde, polidamente disfarçada pela linguagem e conhecimento técnicos, excesso de afazeres, padronização de condutas e, principalmente, pela arraigada cultura da cura do corpo físico, em que a morte é vista como fracasso ou incompetência técnica (Kovács, 2021Kovács, M. J. (2021). Educação para a morte: quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys Editora.; Kellehear, 2016Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP.; Menezes, 2004Menezes, R. A. (2004). Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz.; Elias, 2001Elias, N. (2001). A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar.). Kovács (2014Kovács, M. J. (2014). A caminho da morte com dignidade no século XXI. Revista Bioética, 22(1), 94-104. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422014000100011.
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, p. 95) menciona que:

A morte pode se tornar evento solitário, sem espaço para a expressão do sofrimento e para rituais. A caricatura que a representa é o paciente que não consegue morrer, com tubos em orifícios do corpo, tendo por companhia ponteiros e ruídos de máquinas, expropriado de sua morte.

A expropriação da morte redefine o cenário e os papéis desempenhados pelos atores envolvidos. O contexto deixa de ser o de produção de vida e o morrente perde o protagonismo para se tornar coadjuvante na própria morte (Menezes, 2004Menezes, R. A. (2004). Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz.; Elias, 2001Elias, N. (2001). A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar.). Estratégias de enfrentamento negativas e positivas são desenvolvidas pelos personagens envolvidos no intuito de lidar com a problemática, sendo a primeira estratégia negativa relativa ao abandono do doente por parte de familiares, amigos e de sua comunidade, delegando-se os cuidados e a responsabilidade sobre sua vida e morte aos “bastidores”, principalmente ao contexto hospitalar (Kovács, 2014Kovács, M. J. (2014). A caminho da morte com dignidade no século XXI. Revista Bioética, 22(1), 94-104. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422014000100011.
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, 2021Kovács, M. J. (2021). Educação para a morte: quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys Editora.; Elias, 2001Elias, N. (2001). A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar.). A segunda, inferimos, retrata a aceitação passiva do papel de coadjuvante por parte do doente, com claro abandono de si mesmo, destituído de seus direitos e deveres, comportando-se como “paciente”, ou seja, aquele que “conformadamente” espera.

Quanto às estratégias positivas, tem sido implementada a humanização do cuidado daqueles com doenças ameaçadoras da vida, resultado da mudança de paradigma por parte dos profissionais de saúde, comunidade científica, familiares e pelos próprios doentes sobre os cuidados em saúde frente ao moderno movimento hóspice e aos avanços dos Cuidados Paliativos (Kovács, 2021Kovács, M. J. (2021). Educação para a morte: quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys Editora.; Perezim & Camargo, 2018Perezim, I. M. D. A., & Camargo, L. O. D. L. (2018). Hospitalidade e Morte: Análise da Produção Científica em Dissertações e Teses. Brasil, 1988-2012. Rosa dos Ventos - Turismo e Hospitalidade, 10(4), 712-732. https://doi.org/10.18226/21789061.
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; Reckziegel & Steinmetz, 2016Reckziegel, J., & Steinmetz, W. (2016). Cuidados paliativos e o direito à morte digna. Direito Público, 13(72), 91-114.; Floriani, 2013Floriani, C. A. (2013). Moderno movimento hospice: kalotanásia e o revivalismo estético da boa morte. Revista Bioética, 21(3), 397-404. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013000300003.
http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013...
; Esslinger, 2013Esslinger, I. (2013). De quem é a vida afinal? Descortinando os cenários da morte no hospital. São Paulo: Casa do Psicólogo.; Menezes, 2004Menezes, R. A. (2004). Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz.). Outro aspecto se relaciona à capacidade de empoderamento do doente, quando esse é capaz de arrogar seu protagonismo e seus direitos e deveres nessa experiência.

Corroborando com a ideia de empoderamento do doente, enquanto estratégia de enfrentamento positiva, Esslinger (2013Esslinger, I. (2013). De quem é a vida afinal? Descortinando os cenários da morte no hospital. São Paulo: Casa do Psicólogo., p. 30) menciona que, “[...] para a pessoa doente, a morte é sua morte, sendo natural reivindicar o direito de sobre ela ter controle, segundo suas próprias necessidades, convicções individuais e valores nos quais crê”. Se ver como gente morrente e ter consciência da própria morte é requisito essencial do processo de morrer (Kellehear, 2016Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP.). O reconhecimento de que o fim se aproxima inaugura um ciclo mental de reflexões geralmente permeadas pela análise da vida, esclarecimento dos valores, mediações sobre ganhos e perdas, experiências de crise e negociações em derredor da tristeza, solidão, medo pessoal ou ao dar sentido (Kellehear, 2016Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP.). Consequentemente, a liberdade de falar sobre a morte se torna um ato de respeito à própria identidade, à liberdade e à compaixão ao ser biográfico e narrativo do doente (Esslinger, 2013Esslinger, I. (2013). De quem é a vida afinal? Descortinando os cenários da morte no hospital. São Paulo: Casa do Psicólogo.). Falar da morte é falar da vida: é refletir sobre “qualidade de vida” durante o processo de morrer (Esslinger, 2013Esslinger, I. (2013). De quem é a vida afinal? Descortinando os cenários da morte no hospital. São Paulo: Casa do Psicólogo.); aquele que se permite dizer “eu vou morrer” pode também ser o ator de sua partida, organizando-a (Menezes, 2004Menezes, R. A. (2004). Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz.).

O processo de morrer pode ser experienciado de formas distintas pelo doente, de acordo com os significados atribuídos, e depende em boa medida do quanto esse sente que sua vida foi significativa e realizada ou frustrada e sem sentido (Elias, 2001Elias, N. (2001). A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar.; Menezes, 2004Menezes, R. A. (2004). Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz.). Podemos supor que, para aqueles que se sentem realizados, a morte é mais fácil; para aqueles que se sentem fracassados, mais difícil. Além disso, existem os que, por mais que sua vida tenha sido bem-sucedida, sentem que sua maneira de morrer, em si, não faz sentido (Elias, 2001Elias, N. (2001). A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar.). Logo, cada ser morrente morre imbuído de seus significados, bem como dos significados histórico-sociais vigentes, que devem permitir que o protagonismo seja exercido, de fato, pelo morrente (Kellehear, 2016Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP.). Saunders (como citado em Floriani, 2013Floriani, C. A. (2013). Moderno movimento hospice: kalotanásia e o revivalismo estético da boa morte. Revista Bioética, 21(3), 397-404. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013000300003.
http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013...
, p. 401), ao se dirigir a uma plateia na Associação Britânica de Medicina, explanou com absoluta lucidez:

Falar de aceitação da morte quando sua abordagem se torna inevitável não é mera resignação ou fragilidade por parte do paciente, tampouco é derrota ou negligência por parte do médico [profissionais da saúde]. Para ambos, é [justamente] o oposto de não fazer nada. Nosso trabalho, então, é o de alterar a característica desse inevitável processo, de modo que ele não seja visto como uma derrota da vida, mas como uma positiva conquista no [processo do] morrer; um feito heroico intensamente individual para o paciente.

A Morte como Derradeira Ocupação Humana

Somos por natureza seres ocupacionais, dado que realizamos atividades cotidianas, produzimos bens materiais e imateriais, estamos em constante movimento, exercemos papéis familiares e sociais, escrevemos nossa história e compomos a dos demais, relacionamo-nos por meio da nossa utilidade e nos preparamos para a morte, como derradeira ocupação (Costa et al., 2017Costa, E. F., Oliveira L. S. M., Corrêa, V. A. C., & Folha, O. A. A. C. (2017). Ciência ocupacional e terapia ocupacional: algumas reflexões. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional – REVISBRATO,1(5), 650-663. https://doi.org/10.47222/2526-3544.rbto9687.
https://doi.org/10.47222/2526-3544.rbto9...
; Mills & Payne, 2015Mills, K., & Payne, A. (2015). Enabling occupation at the end of life: a literature review. Palliative & Supportive Care, 13(6), 1755-1769. http://dx.doi.org/10.1017/S1478951515000772.
http://dx.doi.org/10.1017/S1478951515000...
). Etimologicamente, a palavra ocupação vem da raiz latina “occupatione” e seu significado está atrelado ao tempo dedicado a realizar algo, aos afazeres cotidianos, a uma ação em determinado tempo e espaço (Costa et al., 2017Costa, E. F., Oliveira L. S. M., Corrêa, V. A. C., & Folha, O. A. A. C. (2017). Ciência ocupacional e terapia ocupacional: algumas reflexões. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional – REVISBRATO,1(5), 650-663. https://doi.org/10.47222/2526-3544.rbto9687.
https://doi.org/10.47222/2526-3544.rbto9...
). Ela é considerada uma necessidade humana básica, com forte influência sobre a saúde e o bem-estar das pessoas (Costa et al., 2017Costa, E. F., Oliveira L. S. M., Corrêa, V. A. C., & Folha, O. A. A. C. (2017). Ciência ocupacional e terapia ocupacional: algumas reflexões. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional – REVISBRATO,1(5), 650-663. https://doi.org/10.47222/2526-3544.rbto9687.
https://doi.org/10.47222/2526-3544.rbto9...
; Salles & Matsukura, 2016Salles, M. M., & Matsukura, T. S. (2016). O uso dos conceitos de ocupação e atividade na Terapia Ocupacional: uma revisão sistemática da literatura. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 24(4), 801-810. http://dx.doi.org/10.4322/0104-4931.ctoAR0525.
http://dx.doi.org/10.4322/0104-4931.ctoA...
), inclusive no seu processo ativo de morte. Sob esse prisma terapêutico ocupacional, discutiremos os preparativos que envolvem a morte.

Morrer é um processo biológico e social, uma ocupação vivenciada não somente pelo morrente, mas por seu círculo social, profissionais da saúde, religiosos, agentes funerários e funcionários de cemitérios (Kellehear, 2016Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP.; Elias, 2001Elias, N. (2001). A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar.). É, portanto, uma jornada interpessoal que inclui preparativos e/ou ritos materiais, religiosos, financeiros, médicos e familiares, bem como testes, tentativas e, muitas vezes, experiências sociais inesperadas que envolvem outras pessoas (Kellehear, 2016Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP.). Excetuando-se as mortes súbitas, trágicas e, de certa forma, decorrentes de pandemias ou epidemias por doenças infectocontagiosas, como é o caso da atual pandemia por SARS-CoV-2/Covid-19 – quando nos vemos restritos ou impedidos da vivência dos preparativos do morrer e da morte –; nas demais situações, esses preparativos estão presentes. A expressão do sofrimento gerado por esse impedimento é retratada por Tranquilin-Silva (2020Tranquilin-Silva, J. F. (2020). Da maldição que move o mundo: a banalização da vida. Espacios Transnacionales: Revista Latinoamericana-europea de Pensamiento y Acción Social, 7(14), 28-36., p. 31): “Nossas ancestralidades morrem. Nossas memórias coletivas, afetivas, se vão. Os depositários de nosso amor se vão em meio ao nosso desespero”. Elias (2001)Elias, N. (2001). A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar. afirma que as pessoas se unem quando seus ritos e as ideias sobre a morte são comuns, e se separam quando são divergentes.

As ocupações do morrer, compreendidas como preparativos e ritos (estes vão além da ação e são repletos de símbolos), têm variado enormemente ao longo do tempo e do espaço, mas seus padrões estruturais são bem reconhecidos em toda parte (Kellehear, 2016Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer. São Paulo: UNESP.). Historicamente, muitos autores investigaram e descreveram a morte (e suas ocupações), desde a Alta Idade Média até o Século XXI (Phillip Ariés; Marcel Mauss; Geoffrey Gorer; Michel Foucault; Norbert Elias; Barney Glaser; Anselm Strauss; David Sudnow; Claudine Herzlich; Cicely Saunders; Marie de Hennezel; Ira Byock; Tony Walter; Nicholas Albery; Stephanie Wienrich), e a organizaram em modelos denominados de “morte tradicional”, “morte moderna” e “morte contemporânea” (Menezes, 2004Menezes, R. A. (2004). Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz.). No que tange à morte tradicional, ela é um conjunto de modelos presentes desde a Alta Idade Média até o Século XVIII. Nesse período, o nascimento e a morte tinham caráter público e eram vivenciados por toda a comunidade, seus ritos eram aceitos e cumpridos, sem dramas ou gestos de emoção excessivos. A morte simplesmente era aceita e o moribundo era agente de seu próprio processo (Combinato & Martin, 2017Combinato, D. S., & Martin, S. T. F. (2017). Necessidades da vida na morte. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 21(63), 869-880. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0649.
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016....
; Menezes, 2004Menezes, R. A. (2004). Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz.). Sem demora, no Século XIX, surgiu a morte moderna desde o estabelecimento da família como núcleo central e de valor social do sujeito, agregado à consolidação das instituições hospitalares. Esses contextos passaram a ofertar uma morte administrada e controlada pela medicina, e se tornaram referências centrais no que tange à vida, à saúde, ao adoecimento e à morte. Nesse modelo, ocorreu e ainda ocorre o ocultamento da verdade ao enfermo sobre seu estado de saúde (Combinato & Martin, 2017Combinato, D. S., & Martin, S. T. F. (2017). Necessidades da vida na morte. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 21(63), 869-880. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0649.
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016....
; Menezes, 2004Menezes, R. A. (2004). Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz.). A morte moderna, para Moritz (como citado em Medeiros & Lustosa, 2011Medeiros, L. A., & Lustosa, M. A. (2011). A difícil tarefa de falar sobre morte no hospital. Revista da SBPH, 14(2), 203-227., p. 206), vista como adversária, é genuinamente caracterizada pelo:

Ato prolongado gerado pelo desenvolvimento tecnológico, um fato científico gerado pelo aperfeiçoamento da monitoração, um fato passivo já que as decisões pertencem aos médicos e aos familiares e não ao enfermo, um ato profano por não atender a crenças e a valores do paciente e finalmente um ato de isolamento, já que o ser humano morre socialmente em solidão.

Contrapondo-se a essa morte administrada, controlada e solitária, surgiu, desde a segunda metade do Século XX, a morte contemporânea, humanizada, também denominada “boa morte”, amplamente discutida pela abordagem dos Cuidados Paliativos e pelo moderno movimento hóspice (Floriani, 2013Floriani, C. A. (2013). Moderno movimento hospice: kalotanásia e o revivalismo estético da boa morte. Revista Bioética, 21(3), 397-404. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013000300003.
http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013...
; Combinato & Martin, 2017Combinato, D. S., & Martin, S. T. F. (2017). Necessidades da vida na morte. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 21(63), 869-880. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0649.
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; Baère et al., 2017Baère, T. D., Faustino, A. M., & Miranda, A. F. (2017). A importância da prática interdisciplinar da equipe de saúde nos cuidados paliativos. Revista Longeviver, (53), 5-19.). Esse modelo recente se pauta em ações multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares, que visam melhorar a qualidade de vida do tempo residual do enfermo, tendo como objetivo o morrer socialmente compartilhado, suave, com estratégias de enfrentamento que dão sentido à morte (Floriani, 2013Floriani, C. A. (2013). Moderno movimento hospice: kalotanásia e o revivalismo estético da boa morte. Revista Bioética, 21(3), 397-404. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013000300003.
http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013...
; Baère et al., 2017Baère, T. D., Faustino, A. M., & Miranda, A. F. (2017). A importância da prática interdisciplinar da equipe de saúde nos cuidados paliativos. Revista Longeviver, (53), 5-19.; Dourado & Cedotti, 2021Dourado, F. C. S., & Cedotti, W. (2021). Equipe multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. In R. K. Castilho, V. C. S. Silva & C. S. Pinto (Eds.), Manual de cuidados paliativos da Academia Nacional de Cuidados Paliativos – ANCP (pp. 213-216). Rio de Janeiro: Atheneu.). Tem como proposições que o morrer seja livre de ônus evitável (como medidas heroicas e obstinação terapêutica), com mínimo sofrimento para o doente e seus familiares, que se respeite os desejos e anseios do doente dentro do factível e que seja congruente com a clínica atual, a cultura e a ética vigente (Floriani, 2013Floriani, C. A. (2013). Moderno movimento hospice: kalotanásia e o revivalismo estético da boa morte. Revista Bioética, 21(3), 397-404. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013000300003.
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). Sugerimos aqui ampliar a visão desse modelo para além do enfermo, abarcando toda gente morrente.

No ano 2000, a revista britânica British Medical Journal - BMJ publicou um artigo descrevendo os 12 princípios da boa morte, traduzidos para o Brasil por Menezes (2004)Menezes, R. A. (2004). Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz.:

1) saber quando a morte está chegando e compreender o que deve ser esperado;

2) estar em condições de manter o controle sobre o que ocorre;

3) poder ter dignidade e privacidade;

4) ter controle sobre o alívio da dor e demais sintomas;

5) ter possibilidade de escolha e controle sobre o local da morte (na residência ou em outro local);

6) ter acesso à informação e aos cuidados especializados de qualquer tipo que se façam necessários;

7) ter acesso a todo tipo de suporte espiritual ou emocional, se solicitado;

8) ter acesso a cuidados paliativos em qualquer local, não somente no hospital;

9) ter controle sobre quem está presente e quem compartilha o final da vida;

10) estar apto a decidir as diretivas que assegurem que seus direitos sejam respeitados;

11) ter tempo para dizer adeus e para ter controle sobre outros aspectos; e

12) estar apto a partir quando for o momento, de modo que a vida não seja prolongada indefinidamente (Menezes, 2004Menezes, R. A. (2004). Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz.; Smith, 2000Smith, R. (2000). A good death - An important aim for health services and for us all. BMJ (Clinical Research Ed.), 320(7228), 129-130. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.320.7228.129.
http://dx.doi.org/10.1136/bmj.320.7228.1...
; Floriani, 2013Floriani, C. A. (2013). Moderno movimento hospice: kalotanásia e o revivalismo estético da boa morte. Revista Bioética, 21(3), 397-404. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013000300003.
http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013...
).

Depreendemos que esses princípios visam à apropriação da morte e de suas ocupações por parte do morrente (e devem se antecipar a uma possível perda de consciência), com envolvimento efetivo dos demais personagens. Sob essa ótica, o sujeito morrente se torna ator principal, realizando ocupações que considera significativas e cruciais no seu caso (Kovács, 2021Kovács, M. J. (2021). Educação para a morte: quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys Editora.; Souza et al., 2019Souza, J. B., Batista, M. P. P., & Almeida, M. H. M. (2019). Terapia ocupacional com processos de terminalidade, morte e luto. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 30(1), 45-52. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v30i1p45-52.
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-614...
; Combinato & Martin, 2017Combinato, D. S., & Martin, S. T. F. (2017). Necessidades da vida na morte. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 21(63), 869-880. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0649.
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016....
; Mills & Payne, 2015Mills, K., & Payne, A. (2015). Enabling occupation at the end of life: a literature review. Palliative & Supportive Care, 13(6), 1755-1769. http://dx.doi.org/10.1017/S1478951515000772.
http://dx.doi.org/10.1017/S1478951515000...
). Dentre essas, o exercício da autonomia por meio da discussão com a equipe e família sobre: como deseja que o seu tratamento e o controle dos sintomas sejam feitos; o arrogar e a prática de seus direitos e deveres; o desenvolvimento de suas diretivas antecipadas de vontade ou, ainda, do codicilo (Kovács, 2021Kovács, M. J. (2021). Educação para a morte: quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys Editora.; Combinato & Martin, 2017Combinato, D. S., & Martin, S. T. F. (2017). Necessidades da vida na morte. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 21(63), 869-880. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0649.
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016....
; Machado et al., 2016Machado, R. D. S., Lima, L. A. D. A., Silva, G. R. F. D., Monteiro, C. F. D. S., & Rocha, S. S. (2016). Finitude e morte na sociedade ocidental: uma reflexão com foco nos profissionais de saúde. Cultura de los Cuidados, 20(45), 91-97. http://dx.doi.org/10.14198/cuid.2016.45.10.
http://dx.doi.org/10.14198/cuid.2016.45....
; Mills & Payne, 2015Mills, K., & Payne, A. (2015). Enabling occupation at the end of life: a literature review. Palliative & Supportive Care, 13(6), 1755-1769. http://dx.doi.org/10.1017/S1478951515000772.
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); a execução de sonhos, se o desejar; a saciedade de vontades relativas à alimentação e ao autocuidado, o recebimento ou não de visitas, as atividades de lazer e hobby, a expressão da sua fé e a preparação dos ritos fúnebres, que perpassam pela toalete mortuária, pela escolha da urna, local de sepultamento ou dispersão de suas cinzas, além da identificação das pessoas que deseja estarem presentes em seu funeral (Combinato & Martin, 2017Combinato, D. S., & Martin, S. T. F. (2017). Necessidades da vida na morte. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 21(63), 869-880. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0649.
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016....
; Mills & Payne, 2015Mills, K., & Payne, A. (2015). Enabling occupation at the end of life: a literature review. Palliative & Supportive Care, 13(6), 1755-1769. http://dx.doi.org/10.1017/S1478951515000772.
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; Kovács, 2014Kovács, M. J. (2014). A caminho da morte com dignidade no século XXI. Revista Bioética, 22(1), 94-104. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422014000100011.
http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422014...
). Ainda dentro dos preparativos, o despedir-se de pessoas, animais de estimação, objetos significativos, sua casa e dos lugares que marcaram sua história ou visitar os que são de seu desejo conhecer; por meio do encontro face-a-face, dos abraços, dos beijos, do toque, da produção de presentes significativos, da escrita de cartas, mensagens de despedida gravadas ou produção de Live streaming e diário de bordo (Mills & Payne, 2015Mills, K., & Payne, A. (2015). Enabling occupation at the end of life: a literature review. Palliative & Supportive Care, 13(6), 1755-1769. http://dx.doi.org/10.1017/S1478951515000772.
http://dx.doi.org/10.1017/S1478951515000...
; Kovács, 2014Kovács, M. J. (2014). A caminho da morte com dignidade no século XXI. Revista Bioética, 22(1), 94-104. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422014000100011.
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). Fundamental é que se reconheça que quem morre se despede de tudo o que conhece, inclusive de sua própria história e de sua imagem.

Adicionalmente, tem-se as pendências de ordem legal, financeira, social, afetiva, emocional, relacional e espiritual, que o morrente poderá resolver, caso deseje. As pendências legal e financeira se referem à aposentadoria, pensão e contas bancárias, bem como questões jurídicas como bens, propriedades, tutela de filhos, tutela de animais, entre outras. Pendências sociais se referem à reorganização, organização e reconhecimento dos papéis sociais desenvolvidos pelo sujeito, produção de autobiografia e organização de ritos, como batismo, casamento, bênçãos e formatura. As de ordem afetiva, emocional e relacional pertencem ao ato de pedir perdão ou perdoar a alguém e amar em tempo os seus. Da ordem da espiritualidade e religiosidade, esse pode pedir perdão ou perdoar àquele que transcende para si, vivenciar rituais religiosos, produzir e/ou manter consigo objetos religiosos e expressar sua espiritualidade por meio de leituras, reprodução de músicas religiosas e visitas a templos religiosos (Menezes, 2004Menezes, R. A. (2004). Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz.; Floriani, 2013Floriani, C. A. (2013). Moderno movimento hospice: kalotanásia e o revivalismo estético da boa morte. Revista Bioética, 21(3), 397-404. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013000300003.
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; Baère et al., 2017Baère, T. D., Faustino, A. M., & Miranda, A. F. (2017). A importância da prática interdisciplinar da equipe de saúde nos cuidados paliativos. Revista Longeviver, (53), 5-19.; Kovács, 2014Kovács, M. J. (2014). A caminho da morte com dignidade no século XXI. Revista Bioética, 22(1), 94-104. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422014000100011.
http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422014...
).

O círculo social composto por familiares e amigos, por sua vez, ocupa-se do cuidado ao morrente ofertando: apoio emocional; os cuidados com a saúde e bem-estar, incluindo banho, alimentação, organização da cama/leito, oferta de medicamentos; e o auxílio nos preparativos para a morte (Kovács, 2021Kovács, M. J. (2021). Educação para a morte: quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys Editora.; Mills & Payne, 2015Mills, K., & Payne, A. (2015). Enabling occupation at the end of life: a literature review. Palliative & Supportive Care, 13(6), 1755-1769. http://dx.doi.org/10.1017/S1478951515000772.
http://dx.doi.org/10.1017/S1478951515000...
). Ademais, esse círculo realiza o rito fúnebre, que, para Bayard, citado por Souza & Souza (2019Souza, C. P., & Souza, A. M. (2019). Rituais fúnebres no processo do luto: significados e funções. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 35, 1-7. http://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e35412.
http://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e3541...
, p. 3)

Os ritos fúnebres têm início com a agonia e coincidem com a fase inicial do luto. O segmento se dá com o velório, as exéquias, as condolências e o luto público (para pessoas de destaque), social (como no caso do uso de cor específica de roupa) e psicológico (o sentimento da perda), prolongando-se com o culto dos mortos ou a visita ao cemitério, como ocorre no dia de finados.

Os ritos de oblação também são ofertados, demonstrados pelo zelo com o defunto, como, por exemplo, a toalete mortuária ou a missa de sétimo dia. Realizam-se ainda os ritos de passagem, nos quais há exaltação da separação entre o morto e os vivos, assegurando a inclusão do morto em um estatuto post mortem (Kovács, 2021Kovács, M. J. (2021). Educação para a morte: quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys Editora.; Souza & Souza, 2019Souza, C. P., & Souza, A. M. (2019). Rituais fúnebres no processo do luto: significados e funções. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 35, 1-7. http://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e35412.
http://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e3541...
).

Por sua vez, os profissionais, incluindo-se aqui as equipes de saúde, religiosos, agentes funerários e funcionários de cemitérios, também se encontram amplamente envolvidos nas ocupações com a morte. As equipes de saúde se ocupam, principalmente no processo ativo da morte, com os cuidados clínicos, de conforto, farmacológicos, psicológicos, sociais e de assistência religiosa e espiritual (de acordo com a Lei n° 9.982 de 2000) do morrente, bem como do acolhimento, escuta ativa, passagem de más notícias e a preparação do corpo no post mortem (Saad et al., 2018Saad, M., Medeiros, R., & Peres, M. F. P. (2018). Assistência religiosa-espiritual hospitalar: os “porquês” e os “comos”: Aplicações práticas. HU Revista, 44(4), 499-505. http://dx.doi.org/10.34019/1982-8047.2018.v44.16964.
http://dx.doi.org/10.34019/1982-8047.201...
; Dourado & Cedotti, 2021Dourado, F. C. S., & Cedotti, W. (2021). Equipe multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. In R. K. Castilho, V. C. S. Silva & C. S. Pinto (Eds.), Manual de cuidados paliativos da Academia Nacional de Cuidados Paliativos – ANCP (pp. 213-216). Rio de Janeiro: Atheneu.; Baère et al., 2017Baère, T. D., Faustino, A. M., & Miranda, A. F. (2017). A importância da prática interdisciplinar da equipe de saúde nos cuidados paliativos. Revista Longeviver, (53), 5-19.). Acompanham familiares no reconhecimento do corpo e liberam o atestado de óbito (Américo, 2012Américo, A. F. Q. (2012). As últimas quarenta e oito horas de vida. In R. T. Carvalho & H. F. Parsons (Orgs.), Manual de Cuidados Paliativos ANCP Ampliado e atualizado (pp. 533-543). São Paulo: ANCP.; Hermes & Lamarca, 2013Hermes, H. R., & Lamarca, I. C. A. (2013). Cuidados paliativos: uma abordagem a partir das categorias profissionais de saúde. Ciencia & Saude Coletiva, 18(9), 2577-2588.). Os religiosos e seus auxiliares se ocupam da assistência religiosa e espiritual destinados ao morrente, bem como a seu círculo social, por meio dos cuidados com o corpo, vestimenta da toalete mortuária, extrema-unção, bênçãos e orações, condução das exéquias e cultos/missas (Pereira, 2013Pereira, J. C. (2013). Procedimentos para lidar com o tabu da morte. Ciencia & Saude Coletiva, 18(9), 2699-2709. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232013000900025.
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232013...
). As agências funerárias, por intermédio de seus agentes funerários e auxiliares de preparação, ocupam-se do translado do corpo, realizam a tanatopraxia, organizam urnas e ornamentam as salas de velório, acolhem familiares e conduzem o sepultamento (Neves & Damo, 2016Neves, M. F. A., & Damo, A. S. (2016). Dinheiro, emoção e agência: uma etnografia no mercado funerário de Porto Alegre. Mana, 22(1), 7-36. http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132016v22n1p007.
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). Cabe ainda, aos funcionários do cemitério, escavar o solo, conduzir o carro de transporte do corpo até à sepultura, descer a urna por meio de cordas, além de cobri-la com terra ou colocá-la em jazigo (Classificação Brasileira de Ocupações, 2021Classificação Brasileira de Ocupações – CBO. (2021). CBO 5166-05 - Trabalhadores auxiliares dos serviços funerários - Salário, Piso Salarial, Descrição do Cargo. Recuperado em 24 de março de 2021, de https://www.salario.com.br/ocupacao/cargos/cbo-516605-cargos/
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).

Isso posto, depreendemos que a morte é um processo social composto por muitos personagens e ocupações com significado cultural, ético-moral, religioso, político, histórico e geográfico.

Considerações Finais

Os seres humanos são conscientes de que a morte existe e habitualmente a encaram como um problema. Essa problemática poderá ser transposta se os atos de falar sobre ela e vivenciá-la no cotidiano se tornarem um hábito social e cultural, acolhendo-a como uma experiência inerente à existência humana. Faz-se necessário enfatizar que acolher é a antítese de banaliza-la, face à violência política, econômica e social a qual todos estamos expostos, principalmente em nosso país.

A política, a cultura, a moral vigente, os costumes e as ocupações que permeiam não somente o sujeito morrente (adoecido ou envelhecido), mas seu ciclo social e todos os profissionais envolvidos (chamamos a atenção em especial do terapeuta ocupacional) apontam que essa experiência não deve ser encarada somente como um processo biológico, mas como um processo social e ocupacional.

Efetivamente, poucas vezes na história se falou tanto sobre a morte como agora, período da pandemia do SARS-CoV-2/Covid-19. Reafirmamos a morte como um problema quando em decorrência da necropolítica aplicada em inúmeros países, das mortes em massa e da imposição de restrições severas na expressão de ocupações envolvidas na morte e no morrer, principalmente dos preparativos e ritos fúnebres. Hoje, essas restrições não se referem somente às vítimas diretas e indiretas desse vírus, mas se ampliou a todos que morrem por outros motivos nesse momento.

As mudanças decorrentes dessas restrições, necessárias para a contenção do vírus, aumentaram a hospitalização e a mecanização das mortes. O morrente geralmente morre em solidão ou com a sensação de ter sido abandonado pelo seu círculo social, quando não compreende a situação. Para seu círculo social, por sua vez, não poder se despedir pessoalmente, receber o corpo de seu ente envolto em saco plástico, inviabilizando sua visualização, sofrer a redução do período de tempo para vela-lo, ter uma diminuição do contingente de pessoas que podem estar presentes para apoiá-los e acolhê-los, além do luto coletivo em detrimento do individual (pois não há espaço para tal) são modificações dos preparativos e rituais muito severos e impactantes para todos os envolvidos, gerando mudanças ocupacionais. O resultado dessa experiência perturbadora será visualizado somente no futuro. Naquele momento, teremos a chance de avançar ou retroceder no tocante a como nos relacionamos com a morte e o morrer, enquanto experiência pessoal e social.

  • 1
    Este artigo é parte do projeto de doutorado da autora Anne Marise Koenig, aprovado pelo CEP HC/UFTM, sob número do parecer: 4.449.644, CAAE: 22275519.4.0000.8667.
  • Como citar: Koenig, A. M., & Teixeira, L. A. S. (2022). Reflexões sobre a morte e o morrer. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30, e3157. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoEN242031571

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Editado por

Editor de seção

Prof. Dr. Milton Carlos Mariotti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2021
  • Revisado
    08 Mar 2022
  • Aceito
    23 Mar 2022
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