Acessibilidade / Reportar erro

Repensar o "indivíduo soberano" de Nietzsche* * Tradução de Célia Machado Benvenho

Rethinking Nietzsche´s “Sovereign Individual”

Resumo:

O "indivíduo soberano" se apresenta como um hapax no corpus nietzschiano. No entanto, muitos comentadores consideraram-no como uma espécie de compendium da filosofia nietzschiana, como se, por meio dessa figura, Nietzsche defenderia um individualismo extremo, autárquico e mesmo cruel. Em contraste com essas interpretações reducionistas, este artigo reinscreve a noção de indivíduo soberano na longa história da moral. Isso equivale a repensar a individualidade como fruto de uma longa história, e fazer da subjetividade uma instância não mais fundadora, mas derivada. Por fim, esboçamos alguns prolongamentos contemporâneos dessa abordagem nietzschiana da individualidade em Michel Foucault e Judith Butler.

Palavras-chave:
individualismo; subjetividade filosofia social e política; animal político; história da moral

Abstract:

The "sovereign individual" appears as a hapax in the Nietzschean corpus. However, many commentators have seen in it as a kind of compendium of Nietzschean philosophy as if, through this figure, Nietzsche were defending an extreme, autarkic and even ferocious individualism. In contrast to these reductionist interpretations, this article puts the notion of the sovereign individual into the long history of morals. Which means to rethinking individuality as the fruit of a long history, and to making subjectivity not a founding but a derived instance. Finally, we outline some contemporary extensions of this Nietzschean approach to individuality in Michel Foucault and Judith Butler.

Keywords:
individualism; subjectivity; social and political philosophy; political animal; history of morality

A filosofia nietzschiana foi ao mesmo tempo interpretada no sentido de um individualismo extremo ou mesmo autárquico e acusada de ser incapaz de estabelecer um pensamento político construtivo. Essa ausência da política deu lugar a contrastes interpretativos impressionantes: por vezes, ela foi forçada no sentido máximo de um voluntarismo político radical1 1 Pensamos aqui em A. Bäumler, 1931, mas também, embora num sentido diametralmente oposto, G. Lukács, 1958-1959 e, mais recentemente, D. Losurdo, 2012. , por outras, ao contrário, foi minimizada no sentido de uma ética individual, centrada no autoaperfeiçoamento, privando, assim, a filosofia de Nietzsche de qualquer relevância social e política2 2 W. Kaufmann, 1950; A. Nehamas, 1994. . Ora, o tema do "indivíduo soberano" leva essas abordagens, por mais diferentes que sejam, a ver nele a quintessência da filosofia de Nietzsche: ligado a uma espécie de ideal autárquico todo-poderoso, indiferente às relações sociais e à ética da sociedade, o indivíduo soberano representaria um animal super-político, infra-político ou anti-político.

Em contraste com essas interpretações reducionistas, este artigo pretende repensar o tema do indivíduo soberano de uma forma alternativa, isto é, partir precisamente das prerrogativas sociais e políticas. Para isso, é preciso primeiro salientar que é particularmente no mundo anglófono (e mais discretamente no mundo germanófono) que essa noção de indivíduo soberano tem sido objeto de tentativas de reinterpretação, com o objetivo, justamente, de reinscrevê-la numa tradição de filosofia social e política3 3 Entre inúmeros exemplos: K. Ansell Pearson, 1991; R.J. White, 1997; R. Schacht, 2001; D. Owen, 2002; C.D. Acampora, 2006; K. Gemes e C. Janaway, 2006; L J. Hatab, 2008; H. Siemens, 2015; J. Church, 2021. . É, portanto, na sequência dessas reinterpretações que vamos construir a nossa proposta.

Para tanto, nosso propósito será organizado em três momentos. O primeiro recordará inicialmente o contexto interno da Genealogia da Moral onde a expressão “indivíduo soberano” aparece. Isso nos permitirá destacar os problemas associados à investigação genealógica, bem como as dificuldades, desta vez exegéticas, colocadas pela categoria de indivíduo soberano (I). Num segundo momento, desenvolveremos a nossa própria hipótese de leitura: a figura do indivíduo soberano não pode ser compreendida sem estar reinscrita no problema mais global da subjetividade e do processo da vontade de potência da qual depende (II). Dessa reinterpretação, apontaremos finalmente duas direções de pesquisa contemporâneas cuja abordagem da individualidade parece ser de inspiração claramente nietzschiana (III).

O indivíduo soberano e a "eticidade do costume”

A noção de indivíduo soberano emerge numa escala temporal que remete à longa pré-história do homem e sua psicologia animal, que Nietzsche assimila à "eticidade do costume”, da qual essa noção representa a "saída":

Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a árvore finalmente sazona seus frutos, onde a sociedade e sua eticidade do costume [Sittlichkeit der Sitte] finalmente trazem à luz aquilo para o qual eram apenas o meio: encontramos então, como o fruto mais maduro da sua árvore, o indivíduo soberano [das souveraine Individuum], igual apenas a si mesmo, novamente liberado [losgekommene] da eticidade do costume, o indivíduo autônomo supramoral [das autonome übersittlich Individuum] (pois "autônomo" e "moral" se excluem), em suma, o homem da vontade própria, duradoura e independente, o que pode fazer promessas [der versprechen darf] (GM/GM, II 2, KSA 5. 293)4 4 NT. Para as traduções da Genealogia da Moral utilizamos a tradução de Paulo César de Souza, publicada pela Companhia das Letras, salvo indicação contrária. Nesta citação, tradução modificada. NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. .

Como podemos ver, a noção de indivíduo soberano emerge no final de um "imenso processo" que Nietzsche simboliza aqui sob a forma orgânica de uma árvore e seus frutos. Tal movimento levanta, pelo menos, duas questões que iremos examinar uma após outra: qual é a natureza desse processo que Nietzsche designa por "eticidade do costume" e que tipo de soberania poderia atuar através desse indivíduo dito "soberano"?

O processo é primeiro apresentado no incipt da II Dissertação, como uma "tarefa paradoxal" que a natureza se impôs em relação ao homem e que representa, escreve Nietzsche, o "problema do homem", a saber: "criar um animal que pode fazer promessas [ein Thier heranzüchten, das versprechen darf]" (GM/GM, II 1, KSA 5. 291). Mas essa tarefa se revela duplamente paradoxal, uma vez que o indivíduo soberano pode ser interpretado tanto como uma figura paroxística, quanto uma saída para o paradoxo5 5 Como assinala corretamente Ken Gemes, o que permanece “confuso” (confusing), é que Nietzsche não deixa claro se estamos tratando, com o indivíduo soberano, de uma “criatura já realizada” ou uma “criatura em devir” (K. Gemes, C. Janaway, 2006, p. 326). . O primeiro paradoxo reside no fato de o homem, compreendido como um "animal humano", permanecer necessariamente esquecido. Entretanto, para prometer, é preciso contrariar o esquecimento e, assim, construir uma memória, que é redefinida não como uma memória passiva de registro do passado, mas como uma "memória da vontade" (GM/GM, II 1, KSA 5. 292), uma memória da promessa e, consequentemente, uma memória do futuro. Desse primeiro paradoxo relativo à contradição entre o esquecimento animal e a memória da promessa, segue-se um segundo paradoxo ainda mais fundamental, uma vez que se aplica a toda a história humana ("a longa história da origem da responsabilidade", § 2): “Para isso, quanto não precisou antes tornar-se ele próprio confiável [berechnenbar], constante [regelmässig], necessário [nothwendig], também para si, na sua própria representação, para poder enfim, como faz quem promete [ein Versprechender], responder por si como porvir!” (GM/GM, II 1, KSA 5. 292).

Este processo de tornar o homem "confiável" pressupõe, ao mesmo tempo, submissão e comando, e é o próprio homem que designa o lugar onde essa relação ocorre. Daí a "eticidade do costume" que, em Nietzsche, refere-se ao "autêntico trabalho do homem em si próprio" (Arbeit des Menschen an sich) - "todo esse trabalho pré-histórico" (GM/GM, II 2, KSA. 5. 293) - em que o homem foi tornado obediente aos costumes (Sitte) da comunidade, e que o parágrafo 18 de Aurora considera como "a história universal, verdadeira e decisiva que determinou o caráter da humanidade" (M/A, I 18, KSA 3. 32)6 6 NIETZSCHE, F. Aurora: Reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. . O que exige duas observações capitais sobre esse processo, do qual, como já dissemos, deriva a figura do indivíduo soberano.

Em primeiro lugar, esse processo coloca o homem ao mesmo tempo na posição de criador ou sujeito (ele faz os costumes) e de criatura, na medida em que ele é o próprio objeto a que os costumes são aplicados7 7 "No homem estão unidos criador e criatura: no homem há matéria, fragmento, abundância, lodo, argila, absurdo, caos; mas no homem há também criador, escultor, dureza de martelo, deus-espectador e sétimo dia: - Vocês entendem essa oposição?" (JGB/BM, VII 225, KSA 5. 161). . A ambivalência da noção de cálculo (rechnen) torna isto claro: para "saber calcular" (berechnen), no sentido de promessa, o homem primeiro teve de ser feito confiável (berechenbar), no sentido de ter feito uma memória nele. Isso significa, em segundo lugar, que se essas duas dimensões de cálculo são inseparáveis do próprio processo, então o indivíduo soberano, definido como "supramoral (übersittlich) e autônomo", está inscrito diretamente nessa relação entre a previsibilidade do homem e a previsão ou fiabilidade daquele que, como ele, tem o direito de prometer.

Mas - e isto leva-nos à nossa segunda pergunta - Nietzsche assinala que esse indivíduo é totalmente "liberado" (losgekommene) ou emancipado, na medida em que ele detém "o direito de prometer", ou seja, o "extraordinário privilégio da responsabilidade" (GM/GM, II 2, KSA. 5. 294). Mas, qual é o seu privilégio? Em outros termos, de qual tipo de soberania se trata neste indivíduo chamado "soberano"?

A "soberania" do indivíduo soberano

Antes de continuarmos a nossa leitura, dois elementos merecem atenção. Primeiro, o fato de que em nenhum outro lugar do corpus nietzschiano se encontra a expressão "indivíduo soberano" ("das souveraine individuum"). Essa noção é, por conseguinte, apenas um hápax8 8 Do grego hápaks legómenon, palavra ou expressão que aparece apenas uma vez no corpo de trabalho de um determinado autor. que não deveria ser idealizado apressadamente, dado o seu estatuto relativamente marginal nos escritos de Nietzsche. Segundo, devemos também ter presente que o conceito de soberania joga, ao menos desde Jean Bodin (1576), um papel central no pensamento político moderno. De modo muito geral, é preciso recordar que as teorias políticas modernas de estilo contratualista colocam o indivíduo na origem da soberania política, devendo todo exercício de poder legítimo fundar-se num ato de liberdade individual - mesmo que este resida, segundo a fórmula rousseauniana, num "pacto de sujeição" (pactum subjectionnis).

O interesse valioso dos comentários recentes, como foi dito na introdução, consiste precisamente na adoção de uma leitura pós-metafísica da noção de indivíduo soberano, articulando-a com as modernas teorias sociais e políticas. Para tomar apenas dois exemplos significativos: Keith Ansell-Pearson e David Owen propõem reler o tema do indivíduo soberano como a defesa de um ideal de autonomia, exceto que este permanece não universalizável9 9 K. Ansell Pearson, 1991; D. Owen, 2002. . De acordo com essa interpretação, Nietzsche adotaria uma perspectiva anti-kantiana sobre a autonomia, prefigurando uma "política da diferença", visando mostrar que a autonomia compreendida universalmente é apenas uma ficção de ordem social e política. Mais radicalmente, Lawrence J. Hatab e Christa Davis Acampora propõem inverter as leituras positivas da noção de indivíduo soberano, reinterpretando-a como uma forma crítica de soberania individual, tal como se encontra na base das teorias contratualista do Estado, ou ainda da pretensa "soberania do sujeito moderno"10 10 L J. Hatab, 2008; C. D. Acampora, 2006. . Como escreve Hatab: "A filosofia social de Nietzsche mina os elementos centrais da individualidade em que se baseiam as teorias liberais do contrato social (elementos de soberania individual, igualdade e racionalidade)" (L J. Hatab, 2008HATAB, L J. Breaking the Contract Theory : The Individual and the Law in Nietzsche’s Genealogy. In: SIEMENS, H., V. ROODT, V. (hg.). Nietzsche, Powers and Politics : Rethinking Nietzsche’s Legacy for Political Thought. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2008, p.169-188. , p. 178). Gostaríamos, portanto, de seguir essas sugestões que, embora não sejam compatíveis entre si, têm a vantagem de enfatizarem a dimensão social e política do indivíduo soberano, recusando-se, assim, a torná-la uma figura metafísica do ultrapassamento ou da superação da humanidade, seja para a individualidade pura ou além-da-humanidade (surhumanité).

Voltemos à nossa leitura interna: se a soberania, como todos sabem, vem etimologicamente da ideia de superioridade (superus), Nietzsche explicita exatamente em que consiste a superioridade do indivíduo soberano:

Este liberto [dieser Freigewordne] ao qual é permitido prometer, este senhor [Herr] da vontade livre, este soberano [dieser Souverain] - como não saberia ele da superioridade [Überlegenheit] que assim possui sobre todos os que não podem prometer e responder por si, quanta confiança, quanto temor, quanta reverência desperta - ele "merece" as três coisas - e como, com esse domínio sobre si [Herrschaft über sich], lhe é dado também o domínio sobre as circunstâncias, sobre a natureza e todas as criaturas menos seguras e mais pobres de vontade? (GM/GM, II 2, KSA. 5. 293-294)11 11 Tradução modificada. .

Note-se, desde já, que a soberania a qual Nietzsche se refere é, concomitantemente, absoluta e relativa, uma vez que este homem é "aquele senhor da vontade livre" e, ao mesmo tempo, "tornado livre" (Freigewordne), sendo a sua superioridade expressa em termos de dominação (Herrschaft) sobre si próprio, sobre as circunstâncias e sobre a natureza, bem como sobre as criaturas de vontade menos confiáveis. Para que a sua soberania esteja aqui comparada com as "criaturas [...] menos confiáveis" (GM/GM, II, 2, KSA. 5. 293)12 12 Tradução modificada. que, como Nietzsche afirma algumas linhas mais adiante, "não podem prometer". Como podemos então compreender esses diferentes graus de promessa, dos quais a promessa soberana seria o grau mais elevado? Responder a essa pergunta é obviamente um ponto nodal na análise da soberania e permite dar conta, em parte, do conflito de interpretações.

Com efeito, Nietzsche pressupõe, no quinto parágrafo da II Dissertação, que é a partir da relação econômica e social entre um credor e seu devedor, que a promessa pode aparecer na história antiga13 13 “Precisamente nelas fazem-se promessas; justamente nelas é preciso construir uma memória naquele que promete; nelas, podemos desconfiar, encontraremos um filão de coisas duras, cruéis, penosas” (GM/GM, II 5, KSA. 5. 298-299). . Contudo, essa relação contratual não envolve uma simples capacidade, mas uma obrigação de promessa, no sentido de um direito de promessa. Se o soberano adquiriu o direito de prometer é porque ele foi simultaneamente autorizado a prometer por ele próprio e não mais por um outro (um terceiro), como exige a relação de dívida ou dependência14 14 Este ponto delicado ecoa no texto nietzschiano quando alguns tradutores escolhem traduzir “dürfen” como “capacidade” (“ter a força de”) e outros como “permissão” (“dar o direito”), sendo que esta segunda opção parece mais preferível. Sobre essa dificuldade: C. D. Acampora, 2006, p. 149. . Neste sentido, os graus de promessa podem ser lidos como diferentes níveis de relações sociais ou de socialização do animal humano, desde a maior dependência até a maior independência, aparecendo, então, o indivíduo soberano como o homem autorizado a prometer que já não depende mais diretamente de uma coerção externa: o indivíduo que se tornou livre no sentido de uma autonomia da promessa15 15 H. Arendt desenvolve, após Nietzsche, esta dimensão essencialmente social e antropológica da promessa, mostrando como ela permite compensar a imprevisibilidade inerente aos assuntos humanos. Ela contrasta assim "o vínculo das promessas" ("esforço conjunto") à "soberania política", entendida como um ato de vontade. Segue o que ela escreve a respeito da passagem que nos preocupa: "Nietzsche viu com incomparável clareza a conexão entre a soberania e a faculdade da promessa, o que o levou a intuições penetrantes sobre o parentesco do orgulho e da consciência. Infelizmente, estas intuições permaneceram isoladas, sem qualquer efeito sobre o conceito dominante da "vontade de potência", por isso os nietzschianos raramente as percebem. Podemos encontrá-las nos dois primeiros aforismos da Segunda dissertação da Genealogia da Moral" (H. Arendt, 1983, p. 312). Na sequência, nosso estudo consistirá, ao contrário, em não dissociar a promessa da vontade de potência como se Nietzsche, após revelado a dimensão social da promessa, a encobrisse imediatamente pelo conceito de vontade de potência. Isso implica ler a vontade de potência de forma diferente da de Arendt, a saber, como um processo sem sujeito e não como um sujeito que deseja se apropriar da potência. . Desse ponto de vista, a fórmula "criar um animal que pode fazer promessas” é equivalente, como Volker Gerhardt e, mais recentemente, Otfried Höffe demonstraram muito bem, a de "criar um animal político", uma vez que a promessa pode ser lida como o pressuposto de toda a vida social16 16 O. Höffe, 2010, p. 134-156 ; V. Gerhardt, 1992, p. 81-96. . Contudo, o animal político de Nietzsche não se baseia, como foi para Aristóteles, sobre o logos, mas num longo processo de "cultivo" (Züchtung) que, como vimos, envolve submissão e comando, violência e crueldade e, através dessas operações, toda uma economia de potência. Como escreve Nietzsche, não existem relações inter-humanas que não pressuponham "o hábito de comparar [vergleichen], medir [messen], calcular [berechnen] uma potência e outra [Macht an Macht]" (GM/GM, II 8, KSA. 5. 306)17 17 Tradução modificada. .

Na perspectiva que aqui emerge, surgiram duas interpretações muito diferentes entre os comentadores: ou a promessa e, por conseguinte, a responsabilidade são entendidas como provenientes apenas do indivíduo, isto é, como uma forma de emancipação de qualquer ligação social: o fruto do próprio processo é assim cortado e o indivíduo soberano é transformado num indivíduo autárquico, por outras palavras, num puro 'sujeito'18 18 Observamos que se a interpretação deleuziana parece escapar a esta alternativa, é porque situa a categoria do indivíduo soberano na "cultura considerada do ponto de vista pós-histórico" (G. Deleuze, 1999, pp. 155-158). Mas o fato é que Deleuze, ao fazer isso, ainda isola esse indivíduo vinculando-o ao que ele mais tarde designará como o devir por oposição à história propriamente dita. Sobre a noção de pós-história, ver as observações esclarecedoras de H. Lefebvre, 1970, p. 86 et seq. ; ou, inversamente, essa liberdade e domínio sobre si próprio (bem como sobre outras vontades mais fracas) podem ser entendidos como sendo sempre tributárias do processo de cultivo, seguindo uma linha interpretativa que desejamos explorar. Duas razões nos conduzem a isso.

A primeira é evitar a todo o custo substancializar o indivíduo soberano. O que, de uma forma muito problemática, equivaleria a interpretar a filosofia de Nietzsche no sentido de uma metafísica da subjetividade19 19 Referimo-nos aqui à interpretação heideggeriana da filosofia de Nietzsche como a realização da metafísica da subjetividade, sendo "a soberania do sujeito", para Heidegger, "o que dirige todo o humanismo e toda a compreensão moderna do mundo" (M. Heidegger, 1971, p. 114). O indivíduo soberano seria, nesse sentido, a expressão última da soberania absoluta do homem (a sua onipotência) sobre o mundo. Para uma interpretação diametralmente oposta: V. Gerhardt, 1996, p. 49. . E a segunda, correlata à primeira, consiste em lembrar que Nietzsche critica, por sua hipótese da vontade de potência, qualquer forma de dualismo e, ao fazê-lo, invalida, antecipadamente, a própria ideia de oposição entre o indivíduo e a sociedade - sendo o indivíduo, ao contrário, sempre pensado, segundo essa hipótese, como um coletivo, e a potência como uma "relação" entre potências20 20 A fim de exprimir a continuidade entre o microcosmo e o macrocosmo, entre o corpo individual e coletivo, Nietzsche arrisca várias formulações como, por exemplo, a do “indivíduo coletivo (Collectiv-Individuum)” (MA I/HH I, 94, KSA. 2. 91) ou ainda ‘sentimento de si coletivo (Collektiv-Selbstgefühle)” (Nachlass/FP XIII, 11 286, KSA 13. 112). . A psicologia nietzschiana conduz, de fato, a considerar que "em todo querer a questão é simplesmente mandar e obedecer, sobre a base, como disse, de uma estrutura social [Gesellschaftsbaus] de muitas almas" (JGB/BM, I 19, KSA 5. 33)21 21 NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. . Tendo chegado a esse ponto, a questão colocada pelo indivíduo soberano (e seu querer) é de saber como apreender o que o torna individual se a sua individualidade se baseia numa multiplicidade de forças que Nietzsche equaciona, neste contexto, com "muitas almas"?

Hipótese de leitura

Comecemos por insistir, primeiramente, na fórmula apresentada no final do segundo parágrafo da II Dissertação, quando o indivíduo soberano designa por "sua consciência" (sein Gewissen) uma forma de interiorização ou incorporação da promessa que se tornou nele um "instinto dominante":

O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência [Bewusstsein] dessa rara liberdade, dessa potência sobre si mesmo [Macht über sich] e o destino, desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante: - como chamará ele a esse instinto dominante, supondo que necessite de uma palavra para ele? Mas não há dúvida: este homem soberano [dieser souveraine Mensch] o chamará de sua consciência [sein Gewissen]... (GM/GM, II 2, KSA. 5. 294)22 22 Tradução modificada. .

A emergência da "sua consciência" como um instinto dominante sugere que esse homem soberano incorporou finalmente um condicionamento social (externo) e, como resultado, fez-se responsável por si próprio (autonomia). Nesta ótica da emergência da consciência moral, vemos que todas as hipóteses da Genealogia da Moral estão implicadas23 23 A esse respeito, é absolutamente necessário reler o cartão postal enviado a Franz Overbeck em 4 de janeiro de 1888, no qual Nietzsche especifica que a divisão da obra em três tratados é apenas artificial, cada tratado expressa um único primum mobile. . Por um lado, Nietzsche estabelece uma analogia entre a soberania desse indivíduo e o "pathos da distância" que, na I Dissertação, caracteriza o tipo do homem nobre: “O pathos da nobreza e da distância, como já disse, o duradouro, dominante sentimento global de uma elevada estirpe senhorial, em sua relação com uma estirpe baixa, como um 'sob' - eis a origem da oposição 'bom' e ‘ruim'” (GM/GM, I 2, KSA. 5. 259).

Em seguida, Nietzsche mostra, em particular no parágrafo 16 da II Dissertação, como a consciência (Gewissen) poderia ser novamente transformada em "má consciência" (schlechtes Gewissen) pela famosa hipótese da "interiorização dos instintos" e, a partir daí, como o homem tornado confiável se tornará, segundo a III Dissertação, um "homem doente" devido ao sentimento moral de culpa e à sua "reinterpretação sacerdotal" como pecado.

Estamos, agora, em condições de expor a nossa hipótese de leitura: se o indivíduo soberano pode aparecer como um fim, não nos parece que possa ser entendido como um sujeito no sentido de uma individualidade puramente abstrata. Ao contrário, temos de admitir que esse indivíduo é o resultado de um longo processo de dominação-submissão, e é por isso que, segundo a nossa opinião, a sua posição criadora, também chamada soberana (ou ainda sua "liberdade"), deve ser consideravelmente revisada, para não dizer completamente historicizada24 24 Este revisionismo não significa que Nietzsche procuraria em última análise reconsiderar as noções de liberdade e autonomia a fim de preservar a idealidade ou mesmo o regime de exceção do indivíduo soberano, cf. B. Leiter, 2011; J. Constâncio, 2012. Ao contrário, significa que Nietzsche defende, como Hegel, mesmo que num sentido diferente, uma concepção histórica da individualidade entendida aqui num sentido histórico-genealógico, leia-se: J. Church, 2021, p. IX-XII. . Acreditamos que Nietzsche apresenta tal hipótese de leitura numa passagem crucial na abertura do terceiro parágrafo, justamente após o parágrafo sobre o indivíduo soberano:

Sua consciência [Gewissen]?... Já se percebe que o conceito de "consciência", com que nos deparamos aqui em sua manifestação mais alta, quase desconcertante, tem uma longa história [Geschichte] e transmutação de formas [Form-Verwandlung] atrás de si. Poder responder por si, e com orgulho, ou seja, poder também dizer Sim a si mesmo - isto é, como disse, um fruto maduro, mas também um fruto tardio: quanto tempo teve esse fruto que pender da árvore, acre e amargo! E por um tempo ainda mais longo nada se podia ver desse fruto - ninguém podia prometê-lo [Niemand hätte sie versprechen dürfen] embora tudo na árvore estivesse preparado e crescesse justamente em vista dele! (GM/GM, II 3, KSA. 5. 294-295, destaque nosso).

Esse trecho pede duas observações: a primeira é que Nietzsche assinala, em relação ao indivíduo soberano, que "ninguém poderia ter feito dele um objeto de promessa". Este último já não se encontra, portanto, na posição de sujeito, mas, mesmo que negativamente, de objeto. Isso confirma a dimensão impessoal ou mesmo "transindividual" do processo do qual ele resulta. A segunda, e para nós ainda mais decisiva, é que Nietzsche fala desse processo em novos termos, invocando "uma longa história e transmutação de formas" (Form-Verwandlung). Essa nova terminologia atesta que o processo do qual resulta o indivíduo soberano, se trata, de fato, de uma história da vontade de potência.

O indivíduo soberano e a vontade de potência

Recordemos que ao formular a sua hipótese da vontade de potência, Nietzsche tenta interpretar a vida e, por extensão, a realidade, como uma ordem processual desprovida de qualquer fim, bem como de qualquer substrato. E é com base nessa hipótese que ele invalida conceitos filosóficos e políticos como "vontade", "liberdade" ou ainda "sujeito" que aparecem, de acordo com essa abordagem processual da realidade, como tantas "falsificações" ou "coisificações" do real que obscurecem o processo ininterrupto da vontade de potência: "a ação é tudo" (das Thun ist Alles), como Nietzsche gosta de fazer lembrar (GM/GM, I 13, KSA. 5. 279)25 25 Veja toda a primeira seção de Além do bem e do mal dedicada aos preconceitos dos filósofos, em particular, as ideias de substância, sujeito ou vontade livre. . Consequentemente, a categoria nietzschiana do indivíduo soberano e a sua "vontade livre" só podem ser compreendidos no interior do processo da vontade de potência e, por essa razão, não representa nem um fim da história humana, nem um ideal de humanidade, ainda menos um sujeito todo-poderoso (superego) que guia ou domina a história humana. Isso influencia consideravelmente a interpretação - chamemos-lhe consensual - que, de uma forma ou de outra, remete essa figura do indivíduo soberano a um "ideal", ético ou político para uns, metafísico para outros.

Como poderemos então reinterpretar esse indivíduo soberano à luz da hipótese da vontade de potência, isto é, sem torná-lo um super sujeito da história, ou mesmo da pós-história? Confiemos aqui, mais uma vez, na Genealogia que, no parágrafo 12 da II Dissertação, expõe a sua própria metodologia histórica:

O "desenvolvimento" [Entwicklung] de uma coisa, um uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus em direção a uma meta, menos ainda um progressus lógico e rápido, obtido com um dispêndio mínimo de forças, - mas sim, a sucessão de processos de subjugamento que nela ocorrem, mais ou menos profundos, mais ou menos interdependentes, juntamente com as resistências que a cada vez encontram, as transmutações [Form-Verwandlungen] tentadas com o fim de defesa e reação, e também os resultados de ações contrárias bem sucedidas [Gegenaktionen]. Se a forma é fluida, o "sentido" é mais ainda ... (GM/GM, II 12, KSA. 5. 314-315).26 26 Tradução modificada

Como se pode ver, Nietzsche usa aqui exatamente a mesma fórmula de "transmutação de forma" (Form-Verwandlungen) que empregou na abertura do § 3. O que nos convida, muito logicamente, a compreender o indivíduo soberano como uma destas "tentativas de transmutações de formas" no desenvolvimento e metamorfoses do homem que são elas próprias apenas formas de vida fluidas, e, portanto, também bastante precárias. Por exemplo, Nietzsche evoca, na Gaia ciência, os tempos corrompidos (die Zeiten der Corruption) como momentos históricos "quando as maçãs caem da árvore: refiro-me aos indivíduos"; que é, exatamente, a mesma imagem da Genealogia II, 2. Mas isso não nos retira da história humana. Pelo contrário, as individualidades florescentes apresentam-se sempre como manifestações históricas cuja particularidade é suscitar, sempre segundo Nietzsche, a necessidade de "renovação das organizações políticas e sociais" (FW/GC 23, KSA 3. 398)27 27 NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. . Os indivíduos são, portanto, tudo menos átomos soberanos, em solidariedade com as transformações imanentes à história dos povos e das suas instituições28 28 Sem poder desenvolvê-lo no quadro limitado deste artigo, o pensamento de Nietzsche sobre o indivíduo soberano é sem dúvida inspirado pelo historiador da Basileia Jacob Burckhardt quando este último assimila a originalidade sem precedentes da Renascença italiana à emergência de individualidades (individualidade do soberano, claro, mas também de toda a civilização renascentista, em particular por meio de seus gênios). Como Thierry Gonthier demonstra convincentemente, Nietzsche transfere claramente as análises sócio-históricas de Burckhardt para uma linguagem psico-antropológica (T. Gonthier, 2006). Sobre esse ponto, referimo-nos a um extrato do primeiro volume da A cultura do Renascimento na Itália: "como vimos, a tirania começa desenvolvendo ao máximo a individualidade do soberano, do próprio condottiere; depois desenvolve a do talento que ele protege, mas também daqueles que ele explora impiedosamente, do secretário, do funcionário público, do poeta, do familiar (...) Mesmo os súditos não eram totalmente alheios ao movimento que levou aos mestres" (J. Burckhardt, 1983, p. 165). Nessa perspectiva, é evidente que o desenvolvimento da individualidade entre os homens renascentistas foi o resultado de um movimento civilizacional e não de um poder inerente a um sujeito individual. .

Vamos mais longe: sabemos que Nietzsche, em vários fragmentos póstumos (1886-1888) contemporâneos da Genealogia da Moral, sugere a substituição da "sociologia" (ele tem em mente Comte, Spencer e Mill, que, segundo ele, têm em comum o fato de permanecerem fiéis a um "ideal do homem") por "uma teoria das configurações de domínio [Herrschafts-Gebilde]" (Nachlass/FP XII 2 [87] , KSA 12. 104)29 29 A propósito dessa noção tardia no corpus nietzschiano, ver também: (Nachlass/FP XII, 5 ?αμπ;#091;61?αμπ;#093; et 9 ?αμπ;#091;8?αμπ;#093;, assim como (Nachlass/FP XIV, 13 ?αμπ;#091;3?αμπ;#093; et 14 ?αμπ;#091;138?αμπ;#093;. . Seguindo uma tal operação de retradução da sociologia, o indivíduo soberano acaba por se revelar, na linguagem de Nietzsche, como o produto de uma configuração de dominação, cuja particularidade é permanecer sempre precária e, por isso, transformável. Tal como Platão, que já pensava na configuração da polis no modelo da psychè, Nietzsche repensa a potência como modo de organização, exceto que, ao contrário de Platão, jamais pode ser reduzida à unidade. Sobre esse ponto, citamos um fragmento póstumo, entre muitos outros, dedicado ao problema da vontade de potência como organização ou "configuração de dominação": “Toda a unidade [Einheit] é unidade apenas como uma organização e conjunto de coisas: tal como uma comunidade humana é uma unidade, e não de outra forma: assim, o oposto da anarquia atomística; e, portanto, uma configuração de domínio [Herrschafts-Gebilde], que significa o Um, mas não é um (Nachlass/FP XII 2 [87] , KSA 12. 104).

Atualizações contemporâneas (Michel Foucault e Judith Butler)

Se olharmos retrospectivamente para as nossas considerações anteriores, duas direções de investigação parecem ter sido seguidas, cada uma das quais lança uma nova luz sobre essa abordagem nietzschiana do indivíduo soberano.

A primeira deriva do processo do qual resulta o indivíduo soberano e que o tornou, sucessiva e inseparavelmente, um sujeito e um objeto de promessa. Essa duplicidade pode ser considerada, em referência ao trabalho de Michel Foucault, como um genuíno processo de subjetivação. Assim, a subjetivação do indivíduo soberano proíbe-nos, antecipadamente, de fazer desse indivíduo um sujeito constitutivo, uma vez que se trata de uma "configuração de dominação ou afeto", sempre precária, nomeada aqui "consciência". Seguindo o exemplo de Patrick Wotling, que fala do "egoísmo sem ego"30 30 “Portanto, torna-se necessário pensar em um egoísmo sem ego, isto é, reconhecer acima de tudo o caráter múltiplo da pessoa, do chamado "sujeito", e recusar a tendência metafísica que pressiona sempre a reduzir o múltiplo à unidade" (P. Wotling, 2008, p. 283). De outro modo, J. Constâncio fala de "subjetividade descentrada" na medida em que o objeto da psicologia nietzschiana não é a noção individual de alma ou sujeito, mas sim uma multiplicidade formada por um complexo de impulsos e afetos (J. Constâncio, 2015). em Nietzsche, poderíamos assim apresentar a ideia de uma "subjetivação sem sujeito". Como já foi dito, sua liberdade, que constituía sua soberania, foi inteiramente historicizada, e é por isso que foi transmutada num instinto dominante ("sua consciência"). A liberdade desse indivíduo não é, portanto, oposta, mas correlativa à lógica social, sendo que todo o interesse da hipótese da subjetivação do indivíduo soberano era defender a ideia de que a sua liberdade, para dizer desta vez nas palavras de Michel Foucault, não é contrária ao poder social, mas "uma condição para o exercício do poder"31 31 M. Foucault, 2001, p. 1057. Por esta razão, Foucault propõe substituir a ideia de antagonismo entre liberdade e poder pela de "agonismo", onde a luta como a reciprocidade têm precedência sobre a oposição e contradição. . A esse respeito, releiamos um fragmento póstumo extremamente importante do outono de 1884, no qual Nietzsche mostra como a vontade se ilude quando se acredita livre e soberana, pois é, na realidade, o efeito do comando (e, portanto, mais uma vez, uma relação entre poderes e afetos) que age e desperta em nós (povos ou indivíduos) um sentimento de resistência (Widerstand), sem o qual nenhum sentimento de liberdade ou potência poderia emergir.

Liberdade e sentimento de potência. O sentimento de jogo na superação [Überwindung] de grandes dificuldades, pelo virtuoso, por exemplo: autoconfiança, certeza de que a vontade será seguida pela ação que exatamente lhe corresponde - uma espécie de afeto de orgulho [Übermuthes] encontra-se aqui, soberania suprema [Souveränität] daquele que comanda. Deve também ter o sentimento de resistência, de pressão. - Mas isso é uma ilusão sobre a vontade: não é a vontade que vence a resistência - operamos uma síntese entre dois estados simultâneos onde introduzimos uma unidade [Einheit]. A vontade como fabulação [...] que se crê ser livre e soberana [souverän] porque a sua origem permanece oculta e porque o afeto característico do comando a acompanha (Nachlass/FP 27 [24] KSA 11. 281).32 32 Ver também: GD/CI, Incursões de um extemporâneo 38, KSA 6. 139-140.

A segunda direção da investigação pode ser definida como psico-sociológica, na medida em que consiste em reler a hipótese da vontade de potência no sentido de um desenvolvimento simultâneo ou isomórfico dos afetos e da sociedade humana ou, para dizer com Judith Butler, de um entrelaçamento entre o psíquico e o social: o duplo paradoxo acima referido parecia, de fato, ser de natureza psico-fisiológica (memória da promessa) e sócio-histórica por meio da previsibilidade do homem. Se seguirmos Butler, Nietzsche descobriria assim um paradoxo na complexa noção de sujeição, que não significa apenas (e negativamente) um poder exercido sobre um sujeito já constituído, mas, simultaneamente, um poder assumido pelo sujeito, por outras palavras, um processo de constituição do devir sujeito do indivíduo. O poder funciona, assim, não só para a dominação e opressão, mas, também para a formação de sujeitos (J. Butler, 2002BUTLER, J. La vie psychique du pouvoir. Trad. B. Matthieussent. Paris: Éditions Leo Scheer, 2002. , p. 35). É verdade que Nietzsche fala do indivíduo soberano em vez de sujeito soberano. Mas é necessário, entretanto, tornar essa figura definitivamente independente do processo de subjetivação do qual ela resulta? A essa questão crucial, Richard Schacht responde com uma analogia que resume bem o espírito e a forma de nossa proposição interpretativa: "mesmo o mais individual dos indivíduos soberanos de Nietzsche não é menos devedor que [subentendido: 'às variadas formas de vida', nota do autor] Shakespeare à língua inglesa" (R. Schacht, 2001SCHACHT, R. Nietzschean Normativity. In : SCHACHT, R. (ed.). Nietzsche’s Postmoralism. Essay on Nietzsche’s Prelude to Philosophy’s Future. Cambridge: Cambridge University Press , 2001, p. 149-180. , p. 163).

Conclusão

Enquanto procurava apreender o sentido do “retorno à Nietzsche", que seu pensamento queria promover, Gilles Deleuze esteve sensivelmente confrontado com a mesma questão que nós nos colocamos: devemos entender o retorno à Nietzsche como um "retorno ao individualismo"? De uma forma bastante sutil, Deleuze respondeu que o individualismo de Nietzsche se apresenta como um "individualismo bizarro" (G. Deleuze, 2002DELEUZE, G. L’éclat de rire de Nietzsche. In: DELEUZE, G. L’île déserte. Textes et entretiens 1953-1974. Paris: Les Éditions de Minuit, 2002, p. 178-181. , p. 180) no sentido de que não se baseia em nenhum sujeito, nenhum eu, nenhum substrato. Nesse contexto, Deleuze pensava nos vários processos de individuação que ele, por sua vez, situava para além do sujeito, para além do eu. Nós pensamos que se trata menos de um resultado de um processo de, no indivíduo soberano, des-subjetivação ou de "dissolução do eu", à maneira deleuzeana, que de uma análise que expõe o fato crucial de que o individualismo nietzschiano nunca é principal, mas sempre o produto complexo de uma longa história da moral e dos valores, cujo caráter se revela, indistintamente, subjugador e formativo para a individualidade compreendida de maneira não unitária. O indivíduo soberano não deve, portanto, a sua soberania apenas a si próprio, mas às práticas socioculturais constitutivas das diversas formas de vida social, que podem sempre deixar escapar o que contradiz a sua aparente finalidade. Essa é uma outra maneira de dizer que a história da moral não é uma história teleológica, mas, de fato, genealógica, isto é, tecida de temporalidades heterogêneas, mesclando diacronia e sincronia, em que o indivíduo soberano aparece indissociavelmente como o fruto de um processo histórico e uma de suas recapitulações.

Referências

  • ACAMPORA, C. D. On sovereignty and Overhumanity. In: ACAMPORA, C.D. (ed). Nietzsche’s On the Genealogy of Morals. Critical Essay Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2006, p.147-161.
  • ANSELL PEARSON, K. Nietzsche on Autonomy and Morality: the Challenge to Political Theory. In: Political Studies, n. 39, 1991, pp. 270-286.
  • ARENDT, H. Condition de l’homme moderne Trad. G. Fradier. Paris: Calmann-Lévy, 1983.
  • BAÜMLER, A. Nietzsche, der Philosoph und Politiker Leipzig: Reclam, 1931.
  • BURCKHARDT, J. La civilisation au temps de la Renaissance Trad. M. Schmitt. Paris: Éditions d’aujourd’hui, 1983.
  • BUTLER, J. La vie psychique du pouvoir Trad. B. Matthieussent. Paris: Éditions Leo Scheer, 2002.
  • CHURCH, J. Infinite Autonomy : The Divided Individual in the Political Thought of G.W.F. Hegel and Friedrich Nietzsche University Park, USA: Penn State University Press, 2021.
  • CONSTÂNCIO, J. “A sort of schema of ourselves”: on Nietzsche’s “ideal” and “concept” of freedom. In: Nietzsche-Studien, n. 41, 2012, pp. 128-162.
  • CONSTÂNCIO, J. Nietzsche on Decentered Subjectivity or, the Existential Crisis of the Modern Subject. In: CONSTÂNCIO J, BRANCO M.J.M., RYAN B. (ed.). Nietzsche and the Problem of Subjectivity Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2015, p. 279-316.
  • DELEUZE, G. Nietzsche et la philosophie Paris: Presses Universitaires de France, 1999.
  • DELEUZE, G. L’éclat de rire de Nietzsche. In: DELEUZE, G. L’île déserte. Textes et entretiens 1953-1974 Paris: Les Éditions de Minuit, 2002, p. 178-181.
  • FOUCAULT, M. Le sujet et le pouvoir. In: Dits et Écrits II, 1976-1988 Paris: Quarto-Gallimard, 2001, p.1041-1062.
  • GEMES, K., JANAWAY, C. “Nietzsche on free will, Autonomy and the Sovereign individual”. In: Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volumes 80 (1), 2006, pp. 321-357.
  • GERHARDT, V. „Das Thier, das versprechen darf“. Mensch, Gesellschaft und Politik bei Friedrich Nietzsche. In : HÖFFE, O. (Hrsg.). Der Mensch - ein politisches Tier? Essays zur politischen Anthropologie Stuttgart : Reclam Verlag, 1992, p. 134-156.
  • GERHARDT, V. Vom Willen zur Macht: Anthropologie und Metaphysik der Macht am exemplarischen Fall Friedrich Nietzsche Berlin, New York: Walter de Gruyter, 1996.
  • GONTIER, T. Nietzsche, Burchkardt et la “question” de la renaissance. In: Noesis, n.10, 2006, pp. 49-71.
  • HATAB, L J. Breaking the Contract Theory : The Individual and the Law in Nietzsche’s Genealogy. In: SIEMENS, H., V. ROODT, V. (hg.). Nietzsche, Powers and Politics : Rethinking Nietzsche’s Legacy for Political Thought Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2008, p.169-188.
  • HEIDEGGER, M. Nietzsche II Trad. P. Klossowski. Paris: Gallimard, 1971.
  • HÖFFE, O. Ein Thier heranzüchten, das versprechen darf (II, 1-3). In: HÖFFE, O. (hrsg.). Friedrich Nietzsche: Genealogie der Moral Berlin: Akademie Verlag, 2010, p. 65-79.
  • KAUFMANN, W. Nietzsche. Philosopher, Psychologist, Antichrist Princeton: Princeton University Press, 1950.
  • LEFEBVRE, H. La fin de l’histoire Paris: Les Éditions de Minuit , 1970.
  • LEITER, B. Who is the “sovereign individual”? Nietzsche on freedom. In: MAY, S. (ed.). Nietzsche’s Genealogy of Morality Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 101-119.
  • LOSURDO, D. Il rebelle aristocratico Turin: Bollati Boringhieri, 2002.
  • LUKACS, G. La destruction de la raison (2 Vol.). Trad. S. George, A. Gisselbrecht, E. Pfrimmer. Paris: L’Arche, 1958-1959.
  • NEHAMAS, A. La vie comme littérature Trad. V. Béguain. Paris: Presses Universitaires de France , 1994.
  • NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe Berlin/New York : Walter de Gruyter , 1999, 15 vol.
  • NIETZSCHE, F. Œuvres philosophiques complètes Paris : Gallimard, 1968-1997, 18 vol.
  • NIETZSCHE, F. Le gai savoir Trad. P. Wotling. Paris : Flammarion, 1997.
  • NIETZSCHE, F. La Généalogie de la morale Trad. P. Wotling. Paris: Le Livre de Poche, 2000p.
  • NIETZSCHE, F. . Par-delà bien et mal Trad. P. Wotling. Paris: Flammarion, 2000.
  • NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 1998.
  • NIETZSCHE, F. A gaia ciência Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
  • NIETZSCHE, F. Aurora: Reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2004.
  • OWEN, D. Equality, Democracy and Self-respect : Reflections on N’s Agonal Perfectionnism. In : Journal of Nietzsche Studies, n. 24, 2002, pp.113-131.
  • SCHACHT, R. Nietzschean Normativity. In : SCHACHT, R. (ed.). Nietzsche’s Postmoralism. Essay on Nietzsche’s Prelude to Philosophy’s Future Cambridge: Cambridge University Press , 2001, p. 149-180.
  • SIEMENS, H. Nietzsche’s Socio-Physiology of the Self. In: CONSTÂNCIO J, BRANCO M.J.M., RYAN B. (ed.). Nietzsche and the Problem of Subjectivity Berlin/Boston: Walter de Gruyter , 2015, p. 629-653.
  • WHITE, R.J. Nietzsche and the Problem of Sovereignty Urbana and Chicago: University of Illinois, 1997.
  • WOTLING, P. La philosophie de l’esprit libre. Introduction à Nietzsche Paris: Champs-Essais, 2008.
  • *
    Tradução de Célia Machado Benvenho
  • 1
    Pensamos aqui em A. Bäumler, 1931BAÜMLER, A. Nietzsche, der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931. , mas também, embora num sentido diametralmente oposto, G. Lukács, 1958-1959LUKACS, G. La destruction de la raison (2 Vol.). Trad. S. George, A. Gisselbrecht, E. Pfrimmer. Paris: L’Arche, 1958-1959. e, mais recentemente, D. Losurdo, 2012LOSURDO, D. Il rebelle aristocratico. Turin: Bollati Boringhieri, 2002. .
  • 2
    W. Kaufmann, 1950KAUFMANN, W. Nietzsche. Philosopher, Psychologist, Antichrist. Princeton: Princeton University Press, 1950. ; A. Nehamas, 1994NEHAMAS, A. La vie comme littérature. Trad. V. Béguain. Paris: Presses Universitaires de France , 1994. .
  • 3
    Entre inúmeros exemplos: K. Ansell Pearson, 1991ANSELL PEARSON, K. Nietzsche on Autonomy and Morality: the Challenge to Political Theory. In: Political Studies, n. 39, 1991, pp. 270-286. ; R.J. White, 1997WHITE, R.J. Nietzsche and the Problem of Sovereignty. Urbana and Chicago: University of Illinois, 1997. ; R. Schacht, 2001SCHACHT, R. Nietzschean Normativity. In : SCHACHT, R. (ed.). Nietzsche’s Postmoralism. Essay on Nietzsche’s Prelude to Philosophy’s Future. Cambridge: Cambridge University Press , 2001, p. 149-180. ; D. Owen, 2002OWEN, D. Equality, Democracy and Self-respect : Reflections on N’s Agonal Perfectionnism. In : Journal of Nietzsche Studies, n. 24, 2002, pp.113-131. ; C.D. Acampora, 2006ACAMPORA, C. D. On sovereignty and Overhumanity. In: ACAMPORA, C.D. (ed). Nietzsche’s On the Genealogy of Morals. Critical Essay. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2006, p.147-161. ; K. Gemes e C. Janaway, 2006GEMES, K., JANAWAY, C. “Nietzsche on free will, Autonomy and the Sovereign individual”. In: Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volumes 80 (1), 2006, pp. 321-357. ; L J. Hatab, 2008HATAB, L J. Breaking the Contract Theory : The Individual and the Law in Nietzsche’s Genealogy. In: SIEMENS, H., V. ROODT, V. (hg.). Nietzsche, Powers and Politics : Rethinking Nietzsche’s Legacy for Political Thought. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2008, p.169-188. ; H. Siemens, 2015SIEMENS, H. Nietzsche’s Socio-Physiology of the Self. In: CONSTÂNCIO J, BRANCO M.J.M., RYAN B. (ed.). Nietzsche and the Problem of Subjectivity. Berlin/Boston: Walter de Gruyter , 2015, p. 629-653. ; J. Church, 2021CHURCH, J. Infinite Autonomy : The Divided Individual in the Political Thought of G.W.F. Hegel and Friedrich Nietzsche. University Park, USA: Penn State University Press, 2021. .
  • 4
    NT. Para as traduções da Genealogia da Moral utilizamos a tradução de Paulo César de Souza, publicada pela Companhia das Letras, salvo indicação contrária. Nesta citação, tradução modificada. NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 1998..
  • 5
    Como assinala corretamente Ken Gemes, o que permanece “confuso” (confusing), é que Nietzsche não deixa claro se estamos tratando, com o indivíduo soberano, de uma “criatura já realizada” ou uma “criatura em devir” (K. Gemes, C. Janaway, 2006GEMES, K., JANAWAY, C. “Nietzsche on free will, Autonomy and the Sovereign individual”. In: Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volumes 80 (1), 2006, pp. 321-357. , p. 326).
  • 6
    NIETZSCHE, F. Aurora: Reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004NIETZSCHE, F. Aurora: Reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2004..
  • 7
    "No homem estão unidos criador e criatura: no homem há matéria, fragmento, abundância, lodo, argila, absurdo, caos; mas no homem há também criador, escultor, dureza de martelo, deus-espectador e sétimo dia: - Vocês entendem essa oposição?" (JGB/BM, VII 225, KSA 5. 161).
  • 8
    Do grego hápaks legómenon, palavra ou expressão que aparece apenas uma vez no corpo de trabalho de um determinado autor.
  • 9
    K. Ansell Pearson, 1991ANSELL PEARSON, K. Nietzsche on Autonomy and Morality: the Challenge to Political Theory. In: Political Studies, n. 39, 1991, pp. 270-286. ; D. Owen, 2002OWEN, D. Equality, Democracy and Self-respect : Reflections on N’s Agonal Perfectionnism. In : Journal of Nietzsche Studies, n. 24, 2002, pp.113-131. .
  • 10
    L J. Hatab, 2008HATAB, L J. Breaking the Contract Theory : The Individual and the Law in Nietzsche’s Genealogy. In: SIEMENS, H., V. ROODT, V. (hg.). Nietzsche, Powers and Politics : Rethinking Nietzsche’s Legacy for Political Thought. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2008, p.169-188. ; C. D. Acampora, 2006ACAMPORA, C. D. On sovereignty and Overhumanity. In: ACAMPORA, C.D. (ed). Nietzsche’s On the Genealogy of Morals. Critical Essay. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2006, p.147-161. .
  • 11
    Tradução modificada.
  • 12
    Tradução modificada.
  • 13
    “Precisamente nelas fazem-se promessas; justamente nelas é preciso construir uma memória naquele que promete; nelas, podemos desconfiar, encontraremos um filão de coisas duras, cruéis, penosas” (GM/GM, II 5, KSA. 5. 298-299).
  • 14
    Este ponto delicado ecoa no texto nietzschiano quando alguns tradutores escolhem traduzir “dürfen” como “capacidade” (“ter a força de”) e outros como “permissão” (“dar o direito”), sendo que esta segunda opção parece mais preferível. Sobre essa dificuldade: C. D. Acampora, 2006ACAMPORA, C. D. On sovereignty and Overhumanity. In: ACAMPORA, C.D. (ed). Nietzsche’s On the Genealogy of Morals. Critical Essay. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2006, p.147-161. , p. 149.
  • 15
    H. Arendt desenvolve, após Nietzsche, esta dimensão essencialmente social e antropológica da promessa, mostrando como ela permite compensar a imprevisibilidade inerente aos assuntos humanos. Ela contrasta assim "o vínculo das promessas" ("esforço conjunto") à "soberania política", entendida como um ato de vontade. Segue o que ela escreve a respeito da passagem que nos preocupa: "Nietzsche viu com incomparável clareza a conexão entre a soberania e a faculdade da promessa, o que o levou a intuições penetrantes sobre o parentesco do orgulho e da consciência. Infelizmente, estas intuições permaneceram isoladas, sem qualquer efeito sobre o conceito dominante da "vontade de potência", por isso os nietzschianos raramente as percebem. Podemos encontrá-las nos dois primeiros aforismos da Segunda dissertação da Genealogia da Moral" (H. Arendt, 1983ARENDT, H. Condition de l’homme moderne. Trad. G. Fradier. Paris: Calmann-Lévy, 1983. , p. 312). Na sequência, nosso estudo consistirá, ao contrário, em não dissociar a promessa da vontade de potência como se Nietzsche, após revelado a dimensão social da promessa, a encobrisse imediatamente pelo conceito de vontade de potência. Isso implica ler a vontade de potência de forma diferente da de Arendt, a saber, como um processo sem sujeito e não como um sujeito que deseja se apropriar da potência.
  • 16
    O. Höffe, 2010HÖFFE, O. Ein Thier heranzüchten, das versprechen darf (II, 1-3). In: HÖFFE, O. (hrsg.). Friedrich Nietzsche: Genealogie der Moral. Berlin: Akademie Verlag, 2010, p. 65-79., p. 134-156 ; V. Gerhardt, 1992GERHARDT, V. „Das Thier, das versprechen darf“. Mensch, Gesellschaft und Politik bei Friedrich Nietzsche. In : HÖFFE, O. (Hrsg.). Der Mensch - ein politisches Tier? Essays zur politischen Anthropologie. Stuttgart : Reclam Verlag, 1992, p. 134-156. , p. 81-96.
  • 17
    Tradução modificada.
  • 18
    Observamos que se a interpretação deleuziana parece escapar a esta alternativa, é porque situa a categoria do indivíduo soberano na "cultura considerada do ponto de vista pós-histórico" (G. Deleuze, 1999DELEUZE, G. Nietzsche et la philosophie. Paris: Presses Universitaires de France, 1999. , pp. 155-158). Mas o fato é que Deleuze, ao fazer isso, ainda isola esse indivíduo vinculando-o ao que ele mais tarde designará como o devir por oposição à história propriamente dita. Sobre a noção de pós-história, ver as observações esclarecedoras de H. Lefebvre, 1970LEFEBVRE, H. La fin de l’histoire. Paris: Les Éditions de Minuit , 1970. , p. 86 et seq.
  • 19
    Referimo-nos aqui à interpretação heideggeriana da filosofia de Nietzsche como a realização da metafísica da subjetividade, sendo "a soberania do sujeito", para Heidegger, "o que dirige todo o humanismo e toda a compreensão moderna do mundo" (M. Heidegger, 1971HEIDEGGER, M. Nietzsche II. Trad. P. Klossowski. Paris: Gallimard, 1971. , p. 114). O indivíduo soberano seria, nesse sentido, a expressão última da soberania absoluta do homem (a sua onipotência) sobre o mundo. Para uma interpretação diametralmente oposta: V. Gerhardt, 1996GERHARDT, V. Vom Willen zur Macht: Anthropologie und Metaphysik der Macht am exemplarischen Fall Friedrich Nietzsche. Berlin, New York: Walter de Gruyter, 1996. , p. 49.
  • 20
    A fim de exprimir a continuidade entre o microcosmo e o macrocosmo, entre o corpo individual e coletivo, Nietzsche arrisca várias formulações como, por exemplo, a do “indivíduo coletivo (Collectiv-Individuum)” (MA I/HH I, 94, KSA. 2. 91) ou ainda ‘sentimento de si coletivo (Collektiv-Selbstgefühle)” (Nachlass/FP XIII, 11 286, KSA 13. 112).
  • 21
    NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992..
  • 22
    Tradução modificada.
  • 23
    A esse respeito, é absolutamente necessário reler o cartão postal enviado a Franz Overbeck em 4 de janeiro de 1888, no qual Nietzsche especifica que a divisão da obra em três tratados é apenas artificial, cada tratado expressa um único primum mobile.
  • 24
    Este revisionismo não significa que Nietzsche procuraria em última análise reconsiderar as noções de liberdade e autonomia a fim de preservar a idealidade ou mesmo o regime de exceção do indivíduo soberano, cf. B. Leiter, 2011LEITER, B. Who is the “sovereign individual”? Nietzsche on freedom. In: MAY, S. (ed.). Nietzsche’s Genealogy of Morality. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 101-119. ; J. Constâncio, 2012CONSTÂNCIO, J. “A sort of schema of ourselves”: on Nietzsche’s “ideal” and “concept” of freedom. In: Nietzsche-Studien, n. 41, 2012, pp. 128-162.. Ao contrário, significa que Nietzsche defende, como Hegel, mesmo que num sentido diferente, uma concepção histórica da individualidade entendida aqui num sentido histórico-genealógico, leia-se: J. Church, 2021CHURCH, J. Infinite Autonomy : The Divided Individual in the Political Thought of G.W.F. Hegel and Friedrich Nietzsche. University Park, USA: Penn State University Press, 2021. , p. IX-XII.
  • 25
    Veja toda a primeira seção de Além do bem e do malNIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. dedicada aos preconceitos dos filósofos, em particular, as ideias de substância, sujeito ou vontade livre.
  • 26
    Tradução modificada
  • 27
    NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2001NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2001..
  • 28
    Sem poder desenvolvê-lo no quadro limitado deste artigo, o pensamento de Nietzsche sobre o indivíduo soberano é sem dúvida inspirado pelo historiador da Basileia Jacob Burckhardt quando este último assimila a originalidade sem precedentes da Renascença italiana à emergência de individualidades (individualidade do soberano, claro, mas também de toda a civilização renascentista, em particular por meio de seus gênios). Como Thierry Gonthier demonstra convincentemente, Nietzsche transfere claramente as análises sócio-históricas de Burckhardt para uma linguagem psico-antropológica (T. Gonthier, 2006GONTIER, T. Nietzsche, Burchkardt et la “question” de la renaissance. In: Noesis, n.10, 2006, pp. 49-71. ). Sobre esse ponto, referimo-nos a um extrato do primeiro volume da A cultura do Renascimento na Itália: "como vimos, a tirania começa desenvolvendo ao máximo a individualidade do soberano, do próprio condottiere; depois desenvolve a do talento que ele protege, mas também daqueles que ele explora impiedosamente, do secretário, do funcionário público, do poeta, do familiar (...) Mesmo os súditos não eram totalmente alheios ao movimento que levou aos mestres" (J. Burckhardt, 1983BURCKHARDT, J. La civilisation au temps de la Renaissance. Trad. M. Schmitt. Paris: Éditions d’aujourd’hui, 1983. , p. 165). Nessa perspectiva, é evidente que o desenvolvimento da individualidade entre os homens renascentistas foi o resultado de um movimento civilizacional e não de um poder inerente a um sujeito individual.
  • 29
    A propósito dessa noção tardia no corpus nietzschiano, ver também: (Nachlass/FP XII, 5 ?αμπ;#091;61?αμπ;#093; et 9 ?αμπ;#091;8?αμπ;#093;, assim como (Nachlass/FP XIV, 13 ?αμπ;#091;3?αμπ;#093; et 14 ?αμπ;#091;138?αμπ;#093;.
  • 30
    “Portanto, torna-se necessário pensar em um egoísmo sem ego, isto é, reconhecer acima de tudo o caráter múltiplo da pessoa, do chamado "sujeito", e recusar a tendência metafísica que pressiona sempre a reduzir o múltiplo à unidade" (P. Wotling, 2008WOTLING, P. La philosophie de l’esprit libre. Introduction à Nietzsche. Paris: Champs-Essais, 2008. , p. 283). De outro modo, J. Constâncio fala de "subjetividade descentrada" na medida em que o objeto da psicologia nietzschiana não é a noção individual de alma ou sujeito, mas sim uma multiplicidade formada por um complexo de impulsos e afetos (J. Constâncio, 2015CONSTÂNCIO, J. Nietzsche on Decentered Subjectivity or, the Existential Crisis of the Modern Subject. In: CONSTÂNCIO J, BRANCO M.J.M., RYAN B. (ed.). Nietzsche and the Problem of Subjectivity. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2015, p. 279-316. ).
  • 31
    M. Foucault, 2001FOUCAULT, M. Le sujet et le pouvoir. In: Dits et Écrits II, 1976-1988. Paris: Quarto-Gallimard, 2001, p.1041-1062. , p. 1057. Por esta razão, Foucault propõe substituir a ideia de antagonismo entre liberdade e poder pela de "agonismo", onde a luta como a reciprocidade têm precedência sobre a oposição e contradição.
  • 32
    Ver também: GD/CI, Incursões de um extemporâneo 38, KSA 6. 139-140.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2022
  • Aceito
    12 Dez 2022
Grupo de Estudos Nietzsche Rodovia Porto Seguro - Eunápolis/BA BR367 km10, 45810-000 Porto Seguro - Bahia - Brasil, Tel.: (55 73) 3616 - 3380 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadernosnietzsche@ufsb.edu.br