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Guilherme Zarvos e o CEP 20.000: novas políticas da poesia na cidade

Guilherme Zarvos and CEP 20.000: new politics of poetry in the city

Guilherme Zarvos y el CEP 20.000: nuevas políticas de la poesía en la ciudad

Resumo

Neste artigo, será analisada a produção poética em torno do coletivo de poesia CEP 20.000 — Centro de Experimentação Poética, criado no ano de 1990 no Rio de Janeiro, e de um de seus criadores, o poeta Guilherme Zarvos, tendo em vista a ideia de que a cena artística, literária e cultural da década de 1990 parece acompanhar, no Brasil, certa transformação político-social operada nos meios de produção, respondendo a essa transformação a sua maneira. É proposta uma atualização do conceito de “campo ampliado” para a poesia, não mais pensando o termo com base na ampliação que ele descreve nos meios de produção de arte, mas sobretudo em sua relação com os modos de produção.

Palavras-chave:
CEP 20.000; Guilherme Zarvos; política

Abstract

In this article, the poetic production around the poetry collective CEP 20.000 — Centro de Experimentação Poética —, created in 1990 in Rio de Janeiro, and one of its creators, the poet Guilherme Zarvos, were analyzed, with a view to the idea that the artistic, literary, and cultural scene of the 1990s seem to accompany, in Brazil, a certain political and social transformation operated in the means of production, responding to this transformation in its own way. An update of the concept of “expanded field” for poetry is proposed, no longer thinking about the term from the expansion that it describes in the means of art production, but above all from its relationship with the modes of production.

Keywords:
CEP 20.000; Guilherme Zarvos; politics

Resumen

En este artículo, se analizó la producción poética en torno al colectivo de poesía CEP 20.000 — Centro de Experimentación Poética —, creado en 1990 en Río de Janeiro, y uno de sus creadores, el poeta Guilherme Zarvos, con miras a la idea de que el escenario artístico, literario y cultural de la década de 1990 parece acompañar, en Brasil, una cierta transformación política y social operada en los medios de producción, respondiendo a esa transformación a su manera. Se propone una actualización del concepto de “campo expandido” para la poesía, no pensando ya en el término desde la expansión que describe en los medios de producción del arte, sino sobre todo desde su relación con los modos de producción.

Palabras clave:
CEP 20.000; Guilherme Zarvos; política

Neste texto, analisamos a produção poética em torno do coletivo CEP 20.000 — Centro de Experimentação Poética, criado no ano de 1990, no Rio de Janeiro, e de um de seus criadores, o poeta Guilherme Zarvos, tendo em vista a ideia de que a cena artística, literária e cultural da década de 1990 do século XX parece acompanhar, no Brasil, certa transformação político-social operada nos meios de produção, respondendo a essa transformação a sua maneira.

Em nossa análise, o CEP articula uma relação entre poesia e política muito profícua, constituindo-se mesmo como um “espaço outro” na cena da produção literária do país à época, espaço de fabulação e reelaboração coletiva do mundo. Assim, poderíamos talvez inscrever o CEP como um exemplo de “poesia em campo ampliado” — mas não pensando o termo com base em sua relação com os “meios”, como veremos adiante, mas sobretudo em sua relação com os “modos” de produção (no caso, produção literária).

Para tanto, é importante retomarmos — apenas para que possamos avançar em relação a ele — um debate inicialmente proposto pela historiadora da arte estadunidense Rosalind Krauss a respeito da possibilidade de elasticidade crítica das categorias estéticas.

POESIA PÓS-MEDIUM, PÓS-AUTÔNOMA E PÓS-DISCIPLINAR

Para falarmos sobre um campo ampliado da poesia, é necessário recorrer ao texto de Krauss (2008)KRAUSS, Rosalind (2008). A escultura no campo ampliado. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, v. 17, n. 17, p. 128-137. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/52118/28402. Acesso em: 9 ago. 2021.
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. Ela, pela primeira vez, empregará a expressão “campo ampliado” para pensar, neste caso, toda uma heterogênea tipologia de obras de arte que, desde a década de 1960, vinham sendo chamadas de esculturas (“Nos últimos 10 anos coisas realmente surpreendentes têm recebido a denominação de escultura” [Krauss, 2008KRAUSS, Rosalind (2008). A escultura no campo ampliado. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, v. 17, n. 17, p. 128-137. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/52118/28402. Acesso em: 9 ago. 2021.
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, p. 129], afirma logo no início do artigo). Publicado originalmente em 1979, o texto se tornaria muito relevante no meio das artes, produzindo adaptações da ideia central, de campo ampliado, para várias outras linguagens e técnicas artísticas.

“Parece que nenhuma dessas tentativas, bastante heterogêneas, poderia reivindicar o direito de explicar a categoria escultura. Isto é, a não ser que o conceito dessa categoria possa se tornar infinitamente maleável”, argumenta Krauss (2008KRAUSS, Rosalind (2008). A escultura no campo ampliado. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, v. 17, n. 17, p. 128-137. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/52118/28402. Acesso em: 9 ago. 2021.
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, p. 129) após elencar uma série de inusitadas conformações de obras de arte; imediatamente a seguir, aponta “o processo crítico que acompanhou a arte americana do pós-guerra” como principal colaborador para esse grau de manipulação dos conceitos, afirmando que “categorias como escultura e pintura foram moldadas, esticadas e torcidas por essa crítica, numa demonstração extraordinária de elasticidade, evidenciando como o significado de um termo cultural pode ser ampliado a ponto de incluir quase tudo” (Krauss, 2008KRAUSS, Rosalind (2008). A escultura no campo ampliado. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, v. 17, n. 17, p. 128-137. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/52118/28402. Acesso em: 9 ago. 2021.
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, p. 129).

Com base nesse mote, a autora vai demonstrando como há um campo que orbita em torno de uma categoria estética (ou “um termo cultural”, como ela chama) utilizando uma estratégia crítica interessante: ela começa a definir o campo ampliado da escultura baseada naquilo que a escultura não é. Adotando como exemplos os trabalhos de artistas como Walter de Maria, Robert Morris e Mary Miss, Krauss situa a escultura como sendo não arquitetura, por um lado, e, por outro, não paisagem. Ora, definir uma categoria pelo que ela não é já cria, de saída, um campo ampliado dessa categoria. Isso porque, como no exemplo de Krauss, não sendo marcadamente arquitetura a escultura de algum modo está relacionada à arquitetura; e não sendo marcadamente paisagem está de algum modo relacionada a ela. Os trabalhos mostram isso muito bem: Mary Miss, por exemplo, chamará de escultura seu trabalho Perimeters/Pavillions/Decoys (1978) que consiste em uma espécie de buraco em uma colina (paisagem), por onde é possível entrar em um corredor de estruturas de madeira (arquitetura).

A ideia de que um empreendimento crítico pode produzir elasticidade em uma categoria estética é muito interessante, e também a literatura terá os seus objetos estéticos (o poema e o romance, por exemplo, mas também o objeto livro) “moldados, esticados e torcidos” em algum momento. O livro No contemporâneo: arte e escritura expandidas (2011), de Renato Rezende e Roberto Corrêa dos Santos, é exemplar na análise desse processo.

Para os autores, “interessam as questões formuladas e as aberturas propostas por obras de constituição indecidível, que lidam com tipos múltiplos de escrita e de plasticidade a um só instante, reforçando, em especial, a tensão afirmativa entre arte e escritura” (Rezende e Santos, 2011REZENDE, Renato; SANTOS, Roberto Corrêa (2011). No contemporâneo: arte e escritura expandidas. Rio de Janeiro: Circuito., p. 8). Tomando o mote de Rosalind Krauss, eles vão pensar em obras de arte contemporânea brasileiras que produzem uma ampliação no campo da literatura; que se situam, utilizando a terminologia que será mais cara aos autores, numa zona de indecidibilidade entre as artes visuais e a escrita.

Fazendo um breve apanhado histórico, que se inicia, justamente, nos Estados Unidos do pós-guerra (momento que para Krauss será crucial do ponto de vista crítico, com a atuação do crítico estadunidense Clement Greenberg a respeito da obra de artistas como Jackson Pollock, que estavam, àquela altura, esgarçando os limites mesmos da própria ideia de obra de arte), Renato Rezende e Roberto Corrêa destacam a década de 1960 como o momento de força do redimensionamento do campo da arte no Brasil. Isso sem deixar de marcar, como parece ser uma constante da crítica de arte, o papel divisor das vanguardas europeias na produção artística subsequente.

Da poesia engajada e nacionalista dos CPCs (Violão de Rua) às proposições abstratas e vanguardistas de Wlademir Dias-Pino, passando pela polêmica Concretismo/Neoconcretismo e pela aproximação entre poesia/ música/artes visuais proporcionada pelo Tropicalismo e seus principais componentes, a poesia até o final da década de 1960 estava aberta, exercitada em várias frentes de pesquisa.

Processo histórico do fim das vanguardas: novas formas e novos suportes para a poesia continuam então sendo explorados, mas de uma maneira periférica em relação ao mainstream: poesia sonora, vídeo poesia, poesia visual, computer poetry, poesia digital etc. (Rezende e Santos, 2011REZENDE, Renato; SANTOS, Roberto Corrêa (2011). No contemporâneo: arte e escritura expandidas. Rio de Janeiro: Circuito., p. 15).

Em ensaio sobre a obra do poeta Antonio Cícero, Alberto Pucheu (2010)PUCHEU, Alberto (2010). Apresentação. In: CICERO, Antonio (org.). Antonio Cicero / por Alberto Pucheu. Rio de Janeiro: EdUERJ. p. 9-72. fará a pergunta talvez mais apropriada à questão que ora colocamos: “O que é […] tão decisivo nas vanguardas a ponto de elas estabelecerem uma cisão, um antes das Vanguardas (a.V.) e um depois das Vanguardas (d.V.) […]?” (Pucheu, 2010PUCHEU, Alberto (2010). Apresentação. In: CICERO, Antonio (org.). Antonio Cicero / por Alberto Pucheu. Rio de Janeiro: EdUERJ. p. 9-72., p. 26). Dá-se que as vanguardas, em sua leitura, representaram uma aprendizagem sobre a poesia que passou no campo “exclusivamente cognitivo ou conceitual, não estético” (Pucheu, 2010PUCHEU, Alberto (2010). Apresentação. In: CICERO, Antonio (org.). Antonio Cicero / por Alberto Pucheu. Rio de Janeiro: EdUERJ. p. 9-72., p. 27). Isto é, as vanguardas ofereceram uma aprendizagem fundamental, que teria sido a de “não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade — em princípio — de que a poesia empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes” (Cícero, 1995 apud Pucheu, 2010PUCHEU, Alberto (2010). Apresentação. In: CICERO, Antonio (org.). Antonio Cicero / por Alberto Pucheu. Rio de Janeiro: EdUERJ. p. 9-72., p. 27)

Não se pode retroceder a essa aprendizagem, pensar a poesia contemporânea desde o lugar onde isso não foi aprendido, pois a aprendizagem é irreversível. E, embora seja impossível oferecer de novo essa aprendizagem, isto é, embora seja impossível ser outra vez um poeta vanguardista, “é importante lembrar que o esgotamento das vanguardas não significa o esgotamento dos experimentalismos, de novos caminhos, de novas matérias, de novas técnicas, de novas formas, de novas linguagens, de novas mídias, etc.” (Pucheu, 2010PUCHEU, Alberto (2010). Apresentação. In: CICERO, Antonio (org.). Antonio Cicero / por Alberto Pucheu. Rio de Janeiro: EdUERJ. p. 9-72., p. 24).

Para os autores trazidos até aqui, a ideia de campo ampliado relaciona-se sobretudo à questão dos meios. Rosalind Krauss (2000)KRAUSS, Rosalind (2000). A voyage in the north sea: art in the age of the post-medium condition. Nova York: Thames and Hudson. Disponível em: https://artecontemporaneaeahc.files.wordpress.com/2016/10/krauss_voyage-on-the-north-sea.pdf. Acesso em: 6 ago. 2021.
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, na introdução de seu livro A voyage in the north sea: art in the age of the post-medium condition, faz uma longa argumentação sobre como o campo das artes visuais, a partir da década de 1960, nos Estados Unidos, começou a dissolver as especificidades de cada meio artístico, sendo meio entendido como técnica, abrindo assim caminho para isto que viemos discutindo aqui, a que ela chamou de “campo ampliado”. Chamando a arte contemporânea, então, de arte pós-medium, Krauss problematiza o uso indistinto da palavra “medium” na crítica de arte apoiada no já mencionado Clement Greenberg, chegando a dizer que a “greenberguização”1 1 A autora, no original, utiliza como neologismo o verbo “to Greenbergize” (Krauss, 2000, p. 6). da palavra a teria distanciado de possíveis sentidos anteriores e a despojado de suas camadas de complexidade, a que ela chama de “estruturas recursivas” (Krauss, 2000KRAUSS, Rosalind (2000). A voyage in the north sea: art in the age of the post-medium condition. Nova York: Thames and Hudson. Disponível em: https://artecontemporaneaeahc.files.wordpress.com/2016/10/krauss_voyage-on-the-north-sea.pdf. Acesso em: 6 ago. 2021.
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, p. 7). Desse modo, diz a autora:

Ademais, que essa estrutura recursiva é algo construído, ao invés de algo dado, é o que está latente na conexão tradicional do “medium” às questões da técnica, como quando as artes eram divididas na Academia em ateliês representando os diferentes meios — pintura, escultura, arquitetura — com vistas ao ensino (Krauss, 2000KRAUSS, Rosalind (2000). A voyage in the north sea: art in the age of the post-medium condition. Nova York: Thames and Hudson. Disponível em: https://artecontemporaneaeahc.files.wordpress.com/2016/10/krauss_voyage-on-the-north-sea.pdf. Acesso em: 6 ago. 2021.
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, p. 7, tradução minha)2 2 No original: “Further, that this recursive structure is something made, rather than something given, is what is latent in the traditional connection of ‘medium’ to matters of technique, as when the arts were divided up within the Academy into ateliers representing the different mediums — painting, sculpture, architecture — in order to be taught”. .

Ou seja, para ela, a ideia de “meios” estaria artificialmente ligada à de técnica. Ao tentar buscar outra palavra para fazer sua análise (mesmo que, ao fim e ao cabo, ela acabe desistindo e optando por usar, enfim, “medium”), Krauss (2000)KRAUSS, Rosalind (2000). A voyage in the north sea: art in the age of the post-medium condition. Nova York: Thames and Hudson. Disponível em: https://artecontemporaneaeahc.files.wordpress.com/2016/10/krauss_voyage-on-the-north-sea.pdf. Acesso em: 6 ago. 2021.
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cogita a palavra “automatism”, na qual estariam inscritas ideias como as de autonomia, de improvisação e de risco. Para a autora, o fenômeno que no contemporâneo produz esse tipo de esmaecimento das fronteiras entre as linguagens, técnicas ou, enfim, mediums artísticos, está muito mais ligado a uma atitude arriscada, autônoma e improvisada do artista, no sentido de assumir um risco diante de meios aos quais foram completamente arrancadas as garantias artísticas que os instituíam enquanto tal (no sentido de uma história da arte com seus paradigmas), do que à possibilidade de mesclar categorias estéticas consolidadas com vistas a uma produção estéril e, eventualmente, domesticada de formatos “híbridos”.

Mas há outro conjunto de autores para os quais a ideia de campo ampliado, ou mesmo de maior autonomia da obra de arte em relação aos parâmetros que definiam as linguagens artísticas, não se aplica propriamente à noção de meio. Em Frutos estranhos, por exemplo, a teórica argentina Florencia Garramuño (2014)GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco. aposta na ideia de “não pertencimento” como eixo central para seu debate acerca do campo ampliado da literatura, ou do processo que ela nomeia como inespecífico da literatura, recusando contentar-se com a conclusão de que a obra de arte no contemporâneo se caracteriza por um caráter híbrido em relação a seus meios e suportes. Segundo a autora:

Se o entrecruzamento de meios e suportes é a face mais evidente desse questionamento da especificidade, o fato é que essa aposta no inespecífico se aninha também no interior do que poderíamos considerar uma mesma linguagem, desnudando-a em sua radicalidade mais extrema. Porque é na implosão da especificidade no interior de um mesmo material ou suporte que aparece o problema mais instigante nessa aposta no inespecífico (Garramuño, 2014GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco., p. 15).

Ou seja, para ela, não se trata de observar que é possível realizar, no contemporâneo, sem prejuízo crítico em relação a seu autor ou à obra mesma, operações que mesclem formatos, meios e suportes, como, por exemplo, o vídeo e o poema, ou a literatura e as artes visuais. Há, no conjunto de textos que interessam à sua análise, “algo diferente do hibridismo formal, da mistura de linguagens ou da colagem” (Garramuño, 2014GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco., p. 23). Ora, que as fronteiras entre as linguagens artísticas têm sido esmaecidas, e a especificidade das linguagens dissolvida por experimentações artísticas e por empreendimentos críticos, pelo menos desde os anos 1960, já é fato sabido e assimilado pelas gerações subsequentes de artistas e escritores. O que Garramuño (2014)GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco. assinala é que sua aposta no inespecífico se dá pela via do pertencimento, ou melhor, do não pertencimento. “Não pertencimento à especificidade de uma arte em particular, mas também, e sobretudo, não pertencimento a uma ideia de arte como específica” (Garramuño, 2014GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco., p. 16).

Garramuño (2014)GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco. problematiza o uso da expressão “não pertencimento”, que, para ela, teria um sentido de negatividade, dado pelo advérbio de negação “não” posto em relação ao substantivo “pertencimento”, que parece não interessá-la tanto. Ela busca um sentido mais ativo para a sua ideia, chegando mesmo a afirmar que “désappartenance [em francês, mencionado pela autora no parágrafo anterior] ou disbelonging, em inglês, conservam um sentido mais ativo que negativo que eu gostaria de manter para essas práticas” (Garramuño, 2014GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco., p. 28). Tais práticas de não pertencimento consistiriam, diz a autora na sequência, em “um modo que, mais que exibir uma carência, faz da invenção do comum e do desindividualizante uma proposta ativa para imaginar mundos alternativos, que talvez a palavra impertinência permita sugerir com mais facilidade” (Garramuño, 2014GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco., p. 28).

Não é nosso objetivo aqui questionar escolhas de palavras feitas pela autora e suas eventuais traduções, mas o fato é que a noção de impertinência leva a ideia de inespecificidade da obra de arte no contemporâneo a outro patamar crítico, subtraindo o debate à esfera exclusiva da obra per se; pois se uma obra é impertinente, se uma obra não pertence a algum lugar, o que está em jogo neste caso é tanto a obra quanto o lugar por onde ela se desloca, o local de onde ela, a obra, se esquiva, se retira, o lugar ao qual a obra não pertence. Garramuño (2014GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco., p. 33) chega mesmo a manifestar seu interesse em se desvincular de uma “forte marca estruturalista” que Rosalind Krauss (2008)KRAUSS, Rosalind (2008). A escultura no campo ampliado. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, v. 17, n. 17, p. 128-137. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/52118/28402. Acesso em: 9 ago. 2021.
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teria imprimido em seu ensaio acima mencionado sobre a escultura em campo ampliado, sem, contudo, deixar de marcar a importância da contribuição de Krauss (2000KRAUSS, Rosalind (2000). A voyage in the north sea: art in the age of the post-medium condition. Nova York: Thames and Hudson. Disponível em: https://artecontemporaneaeahc.files.wordpress.com/2016/10/krauss_voyage-on-the-north-sea.pdf. Acesso em: 6 ago. 2021.
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; 2008KRAUSS, Rosalind (2008). A escultura no campo ampliado. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, v. 17, n. 17, p. 128-137. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/52118/28402. Acesso em: 9 ago. 2021.
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) para sua proposta.

Distanciando-se da ideia de Krauss (2000KRAUSS, Rosalind (2000). A voyage in the north sea: art in the age of the post-medium condition. Nova York: Thames and Hudson. Disponível em: https://artecontemporaneaeahc.files.wordpress.com/2016/10/krauss_voyage-on-the-north-sea.pdf. Acesso em: 6 ago. 2021.
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; 2008KRAUSS, Rosalind (2008). A escultura no campo ampliado. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, v. 17, n. 17, p. 128-137. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/52118/28402. Acesso em: 9 ago. 2021.
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) de uma arte pós-medium, por manifestar claramente que sua “aposta no inespecífico”, em termos da produção artística contemporânea, não se refere aos meios, mas ao pertencimento da obra, Garramuño (2014)GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco. deseja aproximar-se mais, por exemplo, do pensamento da teórica argentina Josefina Ludmer (2010)LUDMER, Josefina (2010). Literaturas pós-autônomas. Tradução de Flávia Cera. Sopro, Desterro, n. 20, p. 1-4. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf. Acesso em: 9 ago. 2021.
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, cujo ensaio “Literaturas pós-autônomas”, de 2007, foi de grande relevância no cenário da crítica literária contemporânea.

Nesse pequeno ensaio, Ludmer (2010)LUDMER, Josefina (2010). Literaturas pós-autônomas. Tradução de Flávia Cera. Sopro, Desterro, n. 20, p. 1-4. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf. Acesso em: 9 ago. 2021.
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indica estar interessada em olhar para escrituras do presente, sobretudo na América Latina, que, ao borrar uma série de fronteiras entre parâmetros que categorizavam e, em alguma medida, definiam o objeto literário, rompem com a experiência de autonomia desse objeto (o texto, o livro, a obra). Acabam assim por produzir novas políticas da literatura, não mais alicerçadas no que se costumava chamar “o especificamente literário”.

Trata-se de obras que se situam, para usar uma expressão da autora, “em êxodo”, “em posição diaspórica” (Ludmer, 2010LUDMER, Josefina (2010). Literaturas pós-autônomas. Tradução de Flávia Cera. Sopro, Desterro, n. 20, p. 1-4. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf. Acesso em: 9 ago. 2021.
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, p. 1) em relação aos parâmetros que definiam o que é (e o que não é, eu acrescentaria) a literatura: porque, estando na fronteira, estão ao mesmo tempo dentro e fora (da literatura). Tais parâmetros, esclarecerá Ludmer (2010)LUDMER, Josefina (2010). Literaturas pós-autônomas. Tradução de Flávia Cera. Sopro, Desterro, n. 20, p. 1-4. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf. Acesso em: 9 ago. 2021.
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mais à frente, são as

divisões e oposições tradicionais entre formas nacionais ou cosmopolitas, formas do realismo ou da vanguarda, da “literatura pura” ou “da literatura social” ou comprometida, da literatura rural e urbana, e também termina a diferenciação literária entre realidade (histórica) e ficção (Ludmer, 2010LUDMER, Josefina (2010). Literaturas pós-autônomas. Tradução de Flávia Cera. Sopro, Desterro, n. 20, p. 1-4. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf. Acesso em: 9 ago. 2021.
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, p. 3).

Isto é, se nas décadas de 1960 e 1970 o campo literário havia, segundo a autora, conquistado uma autonomia quase definitiva em relação a tudo o que estivesse fora desse campo, forjando uma “identidade literária” e mesmo um “valor literário” (Ludmer, 2010LUDMER, Josefina (2010). Literaturas pós-autônomas. Tradução de Flávia Cera. Sopro, Desterro, n. 20, p. 1-4. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf. Acesso em: 9 ago. 2021.
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, p. 3), certos textos contemporâneos teriam o poder, segundo a leitura de Ludmer (2010)LUDMER, Josefina (2010). Literaturas pós-autônomas. Tradução de Flávia Cera. Sopro, Desterro, n. 20, p. 1-4. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf. Acesso em: 9 ago. 2021.
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, de produzir algo como uma “desidentificação” da literatura, e mesmo uma “desvalorização” desta, no sentido de valor atribuído no texto (talvez fosse melhor utilizar a expressão “desvaloração”).

Para dar conta de caracterizar essas novas escrituras que constituiriam o que ela chama de “literaturas pós-autônomas”, Ludmer (2011)LUDMER, Josefina (2011). Notas para literaturas pós-autônomas III. Tradução de Flávia Cera. Sopro, Desterro, n. 52, p. 2-3. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n52scribd.pdf. Acesso em: 9 ago. 2021.
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recorre a um vocabulário de neologismos que justapõem em uma mesma palavra os atributos segundo os quais os textos eram separados, classificados, categorizados: “A queda do mundo bipolar produz fusões de opostos e desdiferenciação entre os polos anteriores. Imaginar/pensar/sentir em fusão com palavras como intimopúblico, realidadeficção, dentrofora, abstratoconcreto” (Ludmer, 2011LUDMER, Josefina (2011). Notas para literaturas pós-autônomas III. Tradução de Flávia Cera. Sopro, Desterro, n. 52, p. 2-3. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n52scribd.pdf. Acesso em: 9 ago. 2021.
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, p. 2).

Se as vanguardas artísticas do começo do século passado abriram caminho para a manipulação e esgarçamento das categorias da arte, seja do texto literário, do objeto livro, seja pintura ou da escultura, no sentido de um rearranjo radical da relação entre arte e vida, o que as textualidades (ou escrituras, como prefere Ludmer, 2011LUDMER, Josefina (2011). Notas para literaturas pós-autônomas III. Tradução de Flávia Cera. Sopro, Desterro, n. 52, p. 2-3. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n52scribd.pdf. Acesso em: 9 ago. 2021.
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) contemporâneas operam é a rearticulação, em obra, de outros pares: pares de opostos, como classifica a autora. Alberto Pucheu (2014)PUCHEU, Alberto (2014). A poesia contemporânea. Rio de Janeiro: Azougue., em seu artigo “A poesia contemporânea”, observa que “a singularidade de Josefina Ludmer […] é que, ao invés de lidar com o par arte(literatura)-vida, ela pensaria o par literatura(arte)-realidade” (Pucheu, 2014PUCHEU, Alberto (2014). A poesia contemporânea. Rio de Janeiro: Azougue., p. 256). Isto porque, entre os pares de opostos apresentados pela autora destacados acima, aquele sobre o qual mais se debruça a sua investigação é o par realidade-ficção.

Sobre esta oposição, dirá a autora:

No caso da realidade e da ficção (uma oposição antes bipolar) poderia imaginar-se a fusão do seguinte modo: um polo come o outro, a ficção come a realidade. Na realidade, a ficção muda de estatuto porque abarca a realidade até confundir-se com ela. É possível que o desenvolvimento das tecnologias da imagem e dos meios de reprodução tenha liberado uma forma de imaginário onde a ficção se confunde com a realidade […]. O resultado é a realidadeficção, que não é uma matéria feita das duas, não é uma mescla, uma mestiçagem, um híbrido ou uma combinação, senão uma fusão onde cada termo é, de modo imediato, o outro: a realidade, ficção e a ficção, realidade (Ludmer, 2011LUDMER, Josefina (2011). Notas para literaturas pós-autônomas III. Tradução de Flávia Cera. Sopro, Desterro, n. 52, p. 2-3. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n52scribd.pdf. Acesso em: 9 ago. 2021.
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, p. 2).

Se falamos até aqui de uma perspectiva pós-autônoma e de uma perspectiva pós-medium para as artes, que situam o escopo deste trabalho, gostaríamos, por fim, de mencionar ainda uma terceira perspectiva, que dialoga permanentemente com as duas primeiras, pois caracteriza muito mais, pelo menos no sentido que nos interessa aqui, um momento histórico-político que propriamente uma linguagem artística, ou uma quantidade de obras, ou certo modo de produção do sensível. Trata-se da ideia de pós-disciplinar, apresentada por Reinaldo Laddaga (2012)LADDAGA, Reinaldo (2012). Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes. em seu livro Estética da emergência, publicado originalmente em 2006.

Para Laddaga (2012)LADDAGA, Reinaldo (2012). Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes., no início do século XXI estaria sendo experimentada uma mudança radical nos modos de produção da cultura em todo o mundo, com a emergência de práticas artísticas que se distanciavam das operações que, ao longo de todo o século anterior (na realidade, desde meados do século XIX), vinham construindo um paradigma para a elaboração e, consequentemente, para a crítica de certos tipos de objetos chamados obras de arte. Ou seja, teríamos, segundo ele, chegado ao fim do século XX dotados de um arsenal crítico suficiente para produzir, ler, fruir, interpretar obras que se enquadravam em um regime estético (ou, para usar a expressão de Rancière retomada por Laddaga (2012)LADDAGA, Reinaldo (2012). Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes., um regime político das artes [p. 29]): livros, quadros, filmes etc. Mas haveria uma quantidade de artistas que estariam realizando projetos artísticos que não seriam passíveis de se enquadrar em tal regime, apontando, portanto, para nossa insuficiência crítica no sentido de apreender tais projetos (sublinho esta palavra por ser aquela que o autor escolhe para se referir a uma nova tipologia de trabalhos artísticos que se encontra ainda sem nome, ou seja, ainda radicalmente deslocalizada) e, ao mesmo tempo, para a emergência de um novo regime estético. A esses projetos, de naturezas variadas e híbridas, Laddaga (2012)LADDAGA, Reinaldo (2012). Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes. chamará “ecologias culturais” e dedicará seu livro a fazer uma leitura de algumas delas.

Interessa-nos a observação do autor de que a ruptura com aquele antigo regime das artes que marcou a modernidade, ou seja, essa radical transformação no campo da cultura, é acompanhada por uma ruptura igualmente significativa no campo sociopolítico e econômico. Michel Foucault (2013)FOUCAULT, Michel (2013). De espaços outros. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 79, p. 113-122. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/68705/71285. Acesso em: 3 mar. 2022.
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dedicou parte de sua obra a pensar o modo como se estruturavam, na modernidade, as sociedades ditas disciplinares, ou seja, sociedades organizadas segundo a lógica das disciplinas, às quais correspondiam certas instituições que produziam, por meio de uma perspectiva biopolítica, corpos e subjetividades dóceis e úteis à produção capitalística; ao mesmo tempo, mostrou que nas últimas décadas do século XX tais sociedades se encontravam em declínio. Reinaldo Laddaga (2012)LADDAGA, Reinaldo (2012). Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes., logo, articula o declínio dessas sociedades de disciplina, de que falara Foucault e que ele descreve como “modernidade do capitalismo industrial e do Estado nacional” (Laddaga, 2012LADDAGA, Reinaldo (2012). Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes., p. 10), ao declínio do regime moderno das artes. Segundo ele:

Não foi por acaso que as duas coisas tenham entrado em crise ao mesmo tempo, cerca de três décadas atrás, quando o impulso das duas vanguardas se extenuava, o aparecimento de novas formas de subjetivação e associação transbordava as estruturas organizativas do Estado social e o capitalismo de grande indústria entrava em turbulência (Laddaga, 2012LADDAGA, Reinaldo (2012). Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes., p. 10).

Ou seja, o advento de uma nova formatação de manifestações artísticas, de “práticas que supunham menos a realização de objetos concluídos do que a exploração de modos experimentais de coexistência de pessoas e de espaços, de imagens e tempos” (Laddaga, 2012LADDAGA, Reinaldo (2012). Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes., p. 50), disso que ele chama “ecologias culturais”, coincide com um momento em que o projeto de sociedade moderna calcado na lógica das disciplinas teria atingido seu ápice, seu ponto ótimo, encaminhando-se para o declínio. É fundamental sublinhar que Laddaga (2012)LADDAGA, Reinaldo (2012). Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes. não infere, de modo algum, que um fenômeno tenha sido causa ou efeito do outro; mas que, tendo eles ocorrido simultaneamente, representam bem um momento histórico que ele chama “pós-disciplinar”.

Os projetos que ele analisa ao longo do livro e o modo como ele os analisa dão a ver certa mirada com alto grau de entusiasmo para essa nova cena das artes que começa a se estabelecer no final do século XX e no início do XXI. Se por um lado Laddaga (2012)LADDAGA, Reinaldo (2012). Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes. descreve a “‘queda de intensidade da fé na cultura literária e artística’ que define o domínio das artes nas três últimas décadas” (Lahire, 2004 apud Laddaga, 2012LADDAGA, Reinaldo (2012). Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes., p. 28), ele parece, por outro lado, depositar bastante esperança nesses novos projetos, que retiram do indivíduo artista a exclusividade da experiência de realização da obra e produzem (não mais em obra, mas nesse novo fazer ainda sem nome) alargamentos da experiência em escala espacial e temporal para coletividades e mesmo comunidades inteiras.

Embora não seja o caso de analisarmos o CEP 20.000, criado justamente na última década do século XX e mantido, com vigor, durante os primeiros anos do século XXI, estritamente como uma ecologia cultural, nos será fundamental situar o coletivo nesse giro que propomos — de um debate sobre os meios estéticos de produção (as categorias estéticas que especificaram e separaram tradicionalmente as linguagens e as disciplinas das artes e se encontraram em crise) para um debate sobre os modos políticos de produção (as condições de articulação produtiva do sensível, que também se encontraram em crise à mesma época).

CEP 20.000

Para introduzir a produção em torno do CEP 20.000 sob a lógica descrita acima, gostaríamos de iniciar com duas citações, feitas em momentos distintos por pessoas que estiveram ligadas ao CEP, que podem disparar apontamentos interessantes para nossa análise.

A primeira é retirada da tese de doutorado de Dado Amaral (2014)AMARAL, Luiz Eduardo Franco do (2014). A voz do boato: poesia falada, performance e experiência coletiva no RJ dos anos 90. Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., poeta ligado ao coletivo Boato, que fazia apresentações no CEP 20.000 desde seu início em 1990, tendo sido importante para firmá-lo como espaço de produção cultural e literária na cidade do Rio de Janeiro à época. Ali, Amaral problematiza o termo “coletivo” para designá-lo, afirmando: “Pedro Rocha vê o CEP como ‘aglutinador deglutinador de individualidades artísticas gerando um coletivo’ […]. Não vejo o CEP como um coletivo efetivo. Talvez uma coletividade, uma plataforma de encontros, de conexões” (Amaral, 2014AMARAL, Luiz Eduardo Franco do (2014). A voz do boato: poesia falada, performance e experiência coletiva no RJ dos anos 90. Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., p. 262-263).

A segunda citação é retirada de um depoimento do escritor e músico Botika, colhido em publicação comemorativa por ocasião dos 15 anos do CEP, em 2005, organizada por um de seus fundadores, o poeta Guilherme Zarvos. Diz Botika (2005 apud Rezende, 2010REZENDE, Renato (2010). Guilherme Zarvos: poesia e política. In: ZARVOS, Guilherme. Guilherme Zarvos / por Renato Rezende. Rio de Janeiro: EdUERJ., p. 13):

O CEP não é um lugar. O CEP é um convite, uma proposta, uma creche de lunáticos que salvam o mundo com seus pavios acesos na ponta de suas almas vibrantes. […] O CEP me inspira a pensar e propagar a ideia e a vontade de mudar o que se classifica como geração, como tempo envolto por gerações… Ou seja, acho que o CEP oferece, naturalmente, uma lucidez. O CEP oferece uma parceria, uma dança com o que está acontecendo e uma soma ao que está acontecendo…

De todo o parágrafo, interessa-nos particularmente a primeira frase: “O CEP não é um lugar”. Tal afirmação leva-nos a refletir acerca das possibilidades de inscrição da poesia contemporânea em uma territorialidade: o que significa, afinal, para um fenômeno cultural (que se diz libertário e que se encontra, de acordo com o que vimos acima, em um momento pós-autônomo e pós-disciplinar da produção artística) ocupar um espaço, ter/ser um lugar?

Para nos ajudar a pensar nas questões que ora colocamos, do CEP como um coletivo (ou como uma coletividade) e do CEP como um lugar (ou um não lugar, ou, ainda, como veremos, um contralugar), vamos recorrer principalmente ao trabalho de Guilherme Zarvos, poeta que esteve de alguma maneira à frente da criação do CEP e de sua persistência como espaço criativo na cidade. Na já mencionada publicação do CEPensamento, por ocasião da comemoração dos 15 anos de existência do CEP 20.000, Zarvos (2008 apud Rezende, 2010REZENDE, Renato (2010). Guilherme Zarvos: poesia e política. In: ZARVOS, Guilherme. Guilherme Zarvos / por Renato Rezende. Rio de Janeiro: EdUERJ., p. 30) diz o seguinte:

Qual a diferença de um CEP e a carreira do Rei Roberto. Afinal o Rei produziu cinema música poesia juntou gente alegrou milhões de pessoas. Qual a diferença do meu doutorado na PUC e o CEP. Afinal lá se produz pensamento ideologia e dá poder. […] Há alguma diferença entre a carreira do Rei o diploma da PUC e o CEP.

Sobre esse texto, o crítico Renato Rezende afirma se tratar de um exemplar da poética de Guilherme Zarvos,

na medida em que seus textos — o próprio corpo de sua literatura — são constituídos pelo lugar de confluência entre a poesia, o discurso político, o relato biográfico, a missiva, o manifesto e outras vozes, numa mistura de gêneros e intenções que, por sua vez, se confundem com seu trabalho como performer e ativista cultural (Rezende, 2010REZENDE, Renato (2010). Guilherme Zarvos: poesia e política. In: ZARVOS, Guilherme. Guilherme Zarvos / por Renato Rezende. Rio de Janeiro: EdUERJ., p. 21).

Acrescentaria ainda à mistura de vozes a do teórico — pois Zarvos o foi, durante toda a trajetória que o levou a criar, junto com Chacal e outros poetas, o Centro de Experimentação Poética: é “saindo do dia a dia da política real e entrando no mundo das artes” (Zarvos, 2008 apud Rezende, 2010REZENDE, Renato (2010). Guilherme Zarvos: poesia e política. In: ZARVOS, Guilherme. Guilherme Zarvos / por Renato Rezende. Rio de Janeiro: EdUERJ., p. 30), após abandonar o doutorado em Ciência Política em Berlim com todas as desilusões político-sociais acarretadas pela queda do Muro, que Zarvos, retornando ao Brasil, motiva-se para fundar o CEP; e é fazendo um balanço dos mais de 15 anos do CEP que o poeta escreve sua tese de doutorado, amalgamando memórias do coletivo.

Desse modo, compreendemos sua tese de doutorado na PUC, lançada em livro sob o título Branco sobre branco, na qual o poeta traça um panorama histórico da vida cultural brasileira que o levou a criar o CEP 20.000, pensando em toda a trajetória do coletivo em uma cena da poesia e da política no Rio, no Brasil e na América Latina, como exemplar do tipo de produção literária de que viemos falando: pós-autônoma e, certamente, pós-disciplinar. Amalgamando ali várias vozes, fazendo fluir pelo corpo da tese uma série de fotografias, desenhos, relatos de amigos, notícias de jornais e sites, pequenas prosas de ficção, um vídeo (anexado em CD ao livro), reproduções de trabalhos de artes, poemas, Zarvos cria um tecido feito de brechas (como o seja, talvez, todo o tecido) — pois ao mesmo tempo em que tudo isso flui na direção de um pensamento, que é seu, ele dissolve a noção de autoria: ele autoriza outras vozes, outros procedimentos, outros suportes a falar não por ele, mas junto com ele; a falar não em lugar do suporte tradicional da tese, mas junto com o suporte tradicional da tese. É nesse sentido que ele convoca os camaradas, abdicando da palavra final que poderia dizer, de modo definitivo e autoritário, a memória do CEP. “Quando um movimento de divulgação da poesia se deixa inscrever como memória”, dizem-nos Marília Rothier e Roberto Corrêa dos Santos, coorientadores da tese, “transmite a esse registro a energia das vozes, gestos e afetos que o impulsionaram” (Rothier e Santos, 2009 apud Zarvos, 2009ZARVOS, Guilherme (2009). Branco sobre branco: CEP 20.000/CEPensamento (1990-2008): uma possível rota. São Paulo: Ateliê; Rio de Janeiro: Nonoar., p. 7). Há, de certa forma, em sua escrita — mesmo na escrita usualmente tão oficial de uma tese de doutorado — certa dissolução da autoria, no sentido da proposição de uma coletividade, de uma rede.

Rosana Kohl Bines analisa de modo particularmente interessante essa dissolução da autoria em Branco sobre branco, atribuindo à escrita de Zarvos a ideia de uma “escrita indigente”. O trecho, incluído na malha da tese, vale à pena ser integralmente reproduzido aqui:

Oi, Guilherme. Cheguei à ideia de uma “escrita indigente” a partir da leitura da página 2 do seu exame de qualificação:

“Deu no Jornal — Gay assassinado será enterrado como indigente. Após ter o filho assassinado durante uma briga com o pai, a dona de casa Renata Moreira de Souza, de 33 anos, enfrentou ontem mais um dia de sofrimento ao saber que o rapaz terá que ser enterrado como indigente. Rogério Moreira de Souza, de 18 anos, não havia sido registrado em cartório.”

A indigência nesta manchete de jornal tem a ver com o fato de o rapaz não ter sido registrado em cartório, possivelmente pela omissão do pai, que não reconhece o filho ao nascer e não o reconhece novamente aos 18, como “gay”. Daí pensar uma “grafia indigente” como escrita órfã, de pai e de país. A certidão de nascimento de sua escrita não passa pelo crivo da nação burocrática, de suas instituições, de seus carimbos e sintaxes protocolares. Tampouco passa pelo crivo paterno. Sua escrita quer outra forma de existir, que não nasce de uma linhagem vertical, hierarquizada, de pai/pátria para filho, mas se espraia horizontalmente, buscando as conexões fraternais, os irmãos do CEP, a rede de amigos. A grafia indigente funda uma outra família. Na página escrita, o que se lê é quase uma ação entre amigos. O “eu” autoral quase não sobrevive, sem as histórias, poemas, imagens, afetos que não lhe pertencem e que o atravessam. A indigência se faz sentir também aí. No “eu” paupérrimo que assina a tese. Mas que fique claro, a pobreza não é contingência. É eleição, é arte de complexa urdidura.

Espero que este breve verbete dê conta do recado.

Um beijo, Rosana (Bines, 2009 apud Zarvos, 2009ZARVOS, Guilherme (2009). Branco sobre branco: CEP 20.000/CEPensamento (1990-2008): uma possível rota. São Paulo: Ateliê; Rio de Janeiro: Nonoar., p. 23-24).

Essa definição de Rosana, da “escrita indigente” como aquela que é sem pai e sem país, leva a um patamar político a ausência (de nome próprio, de meio específico, de pertencimento a uma disciplina ou mesmo a certa ideia de arte) de que viemos falando. É na medida em que desfilia sua escrita da hereditariedade biológica e política, tornando-a órfã (e tornando-se órfão), que Zarvos abre espaço para pensar novos modos de existência. Ele não renuncia à palavra, mas faz de sua palavra uma palavra sem pai, fazendo da escritura uma manifestação não do patriarcado, mas de uma fraternidade.

“Se era para ser rico e poder ministrar rapazes e casar e fazer política comprando Rádios de Mato Grosso do Sul até São Paulo, pelo interior, orientava meu gurupai, o pássaro dos sonhos, era o que eu fui fazer”, diz Guilherme em um momento de seu texto, explicando a razão de ter ido estudar economia. “Papito disse: — Se não fizer economia não entra na fazenda. Entrei para a PUC sem saber o que era uma equação de segundo grau” (Zarvos, 2009ZARVOS, Guilherme (2009). Branco sobre branco: CEP 20.000/CEPensamento (1990-2008): uma possível rota. São Paulo: Ateliê; Rio de Janeiro: Nonoar., p. 205). Além da narrativa de uma parte de sua trajetória, no entanto, outra coisa coloca-se em jogo nesse trecho: o alto teor de ironia com que o poeta se refere a seu pai, figura sempre tratada por ele, pelo menos em sua literatura, com certa violência. Longe de querer justificar a motivação de sua escrita pelas vias psicologizantes de uma suposta superação do trauma, é interessante observar como, do ponto de vista temático/narrativo, aparece, paralelamente ao parricídio formal executado por Zarvos, de que Rosana fala, uma notável ruptura com a figura do pai. No poema “Mandamento”, lemos os versos: “Não vou xingar mais uma vez meu pai. / Tenho gente mais solene para xingar” (Zarvos, 2009ZARVOS, Guilherme (2009). Branco sobre branco: CEP 20.000/CEPensamento (1990-2008): uma possível rota. São Paulo: Ateliê; Rio de Janeiro: Nonoar., p. 52). E em “Amanhã vou ao fórum”, arrebatador poema de Guilherme também constante da tese (Zarvos, 2009ZARVOS, Guilherme (2009). Branco sobre branco: CEP 20.000/CEPensamento (1990-2008): uma possível rota. São Paulo: Ateliê; Rio de Janeiro: Nonoar., p. 41-43), o poeta encerra o texto com o seguinte verso, síntese da ideia de Rosana Bines: “MateiminhamãemeupaiopaísinteiroDepoi sdaprisãomerecupereiJájulgueieabsolviAliberdademefoidadapelapalavraescrita” (Zarvos, 2009ZARVOS, Guilherme (2009). Branco sobre branco: CEP 20.000/CEPensamento (1990-2008): uma possível rota. São Paulo: Ateliê; Rio de Janeiro: Nonoar., p. 43).

A dureza do enfrentamento da figura paterna — síntese/símbolo das estruturas de dominação social que detêm os meios de opressão — vai, no entanto, sendo diluída por uma perspectiva afetiva que permeia todo o tecido da escritura da tese e que encontra grande ponto de contrabalanço na figura, por outro lado, da mãe. Em um trecho dedicado a essa personagem, há a seguinte sequência: o fac-símile de uma carta de sua mãe para ele de 1978, em que, chamando-o por “filho amado”, ela diz: “Deixe de ser reclamão. Minhas cartas são curtas porque, reconheço, sou um pouco preguiçosa, mas também, principalmente, porque as notícias daqui me parecem pobres demais para serem mandadas a quem está levando uma vida empolgante como vocês”, e segue narrando a volta do exílio de Chico Buarque e Antônio Callado; seguido de fotografias dela — trata-se da prestigiada jornalista Thereza Cesario Alvim nos anos 1950 e 70; seguidas de um poema de Zarvos que começa com os versos “Como a gente se debate para morrer. Para trocar de vida / Sair do abrigo. Onde está minha família? Estou refreado” e termina com os versos “Sentado no quarto e sala, ainda, como amo cada pedaço daqui / Não consigo morrer tão fácil. Não consigo esquecer. E, sem isso, fica / mais difícil renascer”; seguido de uma imagem do tragediógrafo Sófocles, autor de Édipo-Rei, a conhecida tragédia grega em que é encenado o mito de Édipo, que mata seu pai e desposa sua mãe (Zarvos, 2009ZARVOS, Guilherme (2009). Branco sobre branco: CEP 20.000/CEPensamento (1990-2008): uma possível rota. São Paulo: Ateliê; Rio de Janeiro: Nonoar., p. 101-103). Poemas, imagens, afetos que não lhe pertencem, estritamente, mas que o atravessam, levando-o a esse ato de imensa coragem poética: inventar uma escrita indigente, órfã, sem pai e sem país — fraternal, solidária, afetiva, híbrida.

É sempre importante salientar que não se trata, com esse tipo de escrita, de uma tentativa de, como dissemos, “superar traumas”, ou sequer de dá-los a ver, como se se tratasse de uma tentativa de salvação ou de cura pela arte. Zarvos parece estar bastante consciente do que diria, por exemplo, o filósofo Gilles Deleuze (1997)DELEUZE, Gilles (1997). Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: 34. a respeito da relação entre literatura e vida:

Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são passagens de vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado. A doença não é processo, mas parada do processo […]. A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde […]. Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior deles? […] A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça a origem ou a destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações (Deleuze, 1997DELEUZE, Gilles (1997). Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: 34., p. 13-14).

Inventar um povo que falta é, possivelmente, a tarefa a que certa poesia, como nos parece ser a de Zarvos e boa parte da que gira em torno do CEP, se lança. Inventar um povo que falta é, ao mesmo tempo, inventar um outro do lugar, u-thopos, utopia, e tal tarefa só pode ser levada a cabo de modo coletivo. É assim que, mesmo em sua tese de doutorado, os nomes dos “capítulos” que aparecem no índice são todos nomes de amigos/teóricos; ao final do texto, em vez de um índice onomástico, há uma “rede onomástica”, direcionando o leitor para as várias pessoas que falam e são faladas na malha afetiva de Guilherme. O corpo desse texto — se se trata disso — é, então, descorporificado, ou pelo menos desencarnado, para juntar-se ao corpo da cidade, o corpo coletivo. Mais uma vez, não negar, destruindo-o, o pilar da autoria, mas reinventá-lo por modos outros de operar a escrita.

O próprio Guilherme Zarvos utiliza outra expressão interessante para pensar sua poesia: “estética da sinceridade”. Diz ele:

A estética da sinceridade é a tentativa de pensar as máscaras e deixar as máscaras moldarem. Porém, tendo o compromisso ético que todos os humanos merecem. […] A estética da sinceridade pode fugir da autobiografia, da escrita confessional sem pulsão. Tem o sadomaso…, o poder de encantar, mas tem o pedagogo e crente no futuro melhor. O universo das palavras de colaboradores que não querem que o mundo seja mais libertário, o poder, que varia através da grande mídia, e as vanguardas desligadas dos necessitados; sempre estará sendo feita ação para os necessitados, mas a completa e obscena junção que o Moderno conseguiu amalgamar até o presente é injusta e ignóbil. Daí a sinceridade para dizer a verdade momentânea e para utilizar a Máscara, mais uma máscara. A sinceridade pode jogar com a força do outro como um lutador de jiu-jitsu (Zarvos, 2009ZARVOS, Guilherme (2009). Branco sobre branco: CEP 20.000/CEPensamento (1990-2008): uma possível rota. São Paulo: Ateliê; Rio de Janeiro: Nonoar. apud Rezende, 2010REZENDE, Renato (2010). Guilherme Zarvos: poesia e política. In: ZARVOS, Guilherme. Guilherme Zarvos / por Renato Rezende. Rio de Janeiro: EdUERJ., p. 37).

O crítico Renato Rezende (2010)REZENDE, Renato (2010). Guilherme Zarvos: poesia e política. In: ZARVOS, Guilherme. Guilherme Zarvos / por Renato Rezende. Rio de Janeiro: EdUERJ. fala dessa prática literária como “antiestética”, no sentido de uma superação da estética, ou pelo menos do juízo estético tal como formulado por Kant. Efetivamente, Zarvos procura criar uma dimensão social para a poesia, como dirá Rezende (2010REZENDE, Renato (2010). Guilherme Zarvos: poesia e política. In: ZARVOS, Guilherme. Guilherme Zarvos / por Renato Rezende. Rio de Janeiro: EdUERJ., p. 38):

Através de uma prática literária nesse sentido fundamentalmente antiestética, a obra de Zarvos procura o contato com o Outro e o emprego de uma palavra que, trazendo-o para perto de si, num verdadeiro corpo a corpo, possa em última análise transformar as relações sociais.

A esse contato com o Outro, com os muitos outros possíveis na lógica de funcionamento da cidade, não conseguimos pensar em outro nome que não “coletivo”. Compreendemos que, ao problematizar o termo “coletivo” para designar o CEP, preferindo substituí-lo por “coletividade”, Dado Amaral (2014)AMARAL, Luiz Eduardo Franco do (2014). A voz do boato: poesia falada, performance e experiência coletiva no RJ dos anos 90. Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. tinha em mente a noção dos coletivos de arte, que possuem já certa tradição (ainda que jovem) na história da arte e que talvez não coloquem tanto em jogo a noção de autoria ou o estatuto mesmo da produção artística. Independentemente do nome, o fato é que o CEP, assim como todo o trabalho de Zarvos, extrapola a lógica do indivíduo e funda-se como um espaço outro na lógica da partilha do sensível.

Podemos problematizar o alcance desta coletividade e a profundidade de sua alteridade: pois o CEP 20.000 sempre teve suas atividades acontecendo na Zona Sul do Rio de Janeiro, espaço economicamente mais privilegiado da cidade, tendo tido duas figuras masculinas e brancas como espécies de “mitos fundadores” e sendo frequentado majoritariamente por uma elite intelectual e financeira da cidade. Se o CEP pôde desmobilizar certos estatutos da produção literária, certamente ter contado com o protagonismo dessa elite foi fator sine qua non. Ainda assim, acreditamos que o coletivo tenha produzido potências de articulações entre política e estética, que se espraiaram e, de alguma forma, produziram reverberações em outras estratégias artísticas que vieram depois.

Para concluir, gostaríamos de, retomando a problemática do CEP como um lugar, trazer muito rapidamente o conceito foucaultiano de heterotopia, que nos parece adequar-se melhor ao coletivo do que a ideia de utopia. Para Foucault (2013)FOUCAULT, Michel (2013). De espaços outros. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 79, p. 113-122. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/68705/71285. Acesso em: 3 mar. 2022.
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, as utopias seriam lugares irreais, enquanto as heterotopias seriam

lugares reais, lugares efetivos, lugares que são desenhados na própria instituição da sociedade e que são espécies de contra-alocações, espécies de utopias efetivamente realizadas, nas quais as alocações reais, todas as outras alocações reais que podem ser encontradas no interior da cultura, são simultaneamente representadas, contestadas e invertidas; espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora sejam efetivamente localizáveis (Foucault, 2013FOUCAULT, Michel (2013). De espaços outros. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 79, p. 113-122. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/68705/71285. Acesso em: 3 mar. 2022.
https://www.revistas.usp.br/eav/article/...
, p. 115-116).

Se o poeta Botika, em seu depoimento, menciona que o CEP não é um lugar, mas um convite, uma proposta (ou seja, uma espécie de vir-a-ser, e não um já-sido), parece-nos razoável utilizar a terminologia de Foucault (2013)FOUCAULT, Michel (2013). De espaços outros. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 79, p. 113-122. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/68705/71285. Acesso em: 3 mar. 2022.
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e pensá-lo como um contrassítio, uma heterotopia.

O filósofo francês, pensando uma história e, de alguma maneira, uma arqueologia das heterotopias, aponta dois tipos possíveis: as heterotopias de crise, que consistiriam em “lugares privilegiados, ou sagrados, ou proibidos, reservados a indivíduos que, em relação à sociedade e ao meio humano no interior do qual vivem, se encontram em estado de crise” (Foucault, 2013FOUCAULT, Michel (2013). De espaços outros. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 79, p. 113-122. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/68705/71285. Acesso em: 3 mar. 2022.
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, p. 116) e que estariam em vias de desaparecimento em nosso tempo, e as de desvio. Estas últimas, Foucault (2013FOUCAULT, Michel (2013). De espaços outros. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 79, p. 113-122. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/68705/71285. Acesso em: 3 mar. 2022.
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, p. 117) as caracteriza como aquelas “em que se alocam os indivíduos cujo comportamento é desviante em relação à média, ou à norma exigida”, referindo-se a instituições como asilos e hospitais psiquiátricos (onde idosos e pessoas em sofrimento psíquico, entendidas como desviantes em relação às normas social e moral vigentes, são internadas).

Consideramos pertinente produzir um giro na conceituação das heterotopias de desvio e pensar que há lugares — ou melhor, contralugares — em que a produção do desvio em relação à norma social vigente não é imposta por um processo coercitivo e por uma dinâmica disciplinar, como estabelece o filósofo; mas, como no caso do CEP, ocorre justamente desde o lado de dentro, fissurando mesmo as normas sociais, desmoronando as instituições (em nosso caso, não tanto o Centro Cultural Sérgio Porto, instituição cultural do bairro do Humaitá no Rio de Janeiro, onde ocorriam os eventos do CEP, mas a própria noção de sarau literário enquanto instituição, a própria noção de poesia enquanto instituição), promovendo encontros, convites, propostas, devires, convocando o povo que falta para a reelaboração de certo mundo, de certo futuro. Não seria exagero dizer que esse tipo de heterotopia de desvio produz, de dentro para fora, fabulações possíveis.

Guilherme Zarvos, no já mencionado texto sobre os 15 anos do CEP, conclui dizendo: “O CEP consolidou meu fazer e meu amar. Para mim é muito” (Zarvos, 2009ZARVOS, Guilherme (2009). Branco sobre branco: CEP 20.000/CEPensamento (1990-2008): uma possível rota. São Paulo: Ateliê; Rio de Janeiro: Nonoar. apud Rezende, 2010REZENDE, Renato (2010). Guilherme Zarvos: poesia e política. In: ZARVOS, Guilherme. Guilherme Zarvos / por Renato Rezende. Rio de Janeiro: EdUERJ., p. 31). Terminamos aqui afirmando que o CEP consolidou o fazer e o amar de muitas pessoas, funcionando mesmo como um espaço de imaginação de outras possibilidades para o fazer e o amar coletivos. E isso é muito — isso é ainda mais.

  • 1
    A autora, no original, utiliza como neologismo o verbo “to Greenbergize” (Krauss, 2000KRAUSS, Rosalind (2000). A voyage in the north sea: art in the age of the post-medium condition. Nova York: Thames and Hudson. Disponível em: https://artecontemporaneaeahc.files.wordpress.com/2016/10/krauss_voyage-on-the-north-sea.pdf. Acesso em: 6 ago. 2021.
    https://artecontemporaneaeahc.files.word...
    , p. 6).
  • 2
    No original: “Further, that this recursive structure is something made, rather than something given, is what is latent in the traditional connection of ‘medium’ to matters of technique, as when the arts were divided up within the Academy into ateliers representing the different mediums — painting, sculpture, architecture — in order to be taught”.

REFERÊNCIAS

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    » https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/68705/71285
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Editores de Seção: Paulo César Thomaz e Rejane Pivetta

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2022
  • Aceito
    06 Jan 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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