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Ana Gabriela Macedo e Francesca Rayner (orgs.) -Género, cultura visual e performance: antologia crítica V. N Famalicão: Ed. Húmus e Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, 2011.

Macedo, Ana Gabriela; Rayner, Francesca. (orgs.) - Género, cultura visual e performance: antologia crítica V. N Famalicão: Ed. Húmus e Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, 2011.

A publicação de Género, cultura visual e performance: antologia crítica neste ano de 2011 traz o mérito de disponibilizar a investigadores e professores, em língua portuguesa, textos considerados imprescindíveis para quem trabalha com estudos de gênero, feminismos e artes. O caderno dá seguimento ao projeto iniciado em 2009, com a publicação de Estética e teorias da arte organizado por Vítor Moura e que se propõe a lançar no mercado textos até então não traduzidos para o português. Este volume, dedicado especialmente à cultura visual, apresenta artigos sobre artes visuais e questões de gênero, a retórica do corpo, os estudos performativos e a crítica feminista.

Não à toa, o artigo que abre a publicação, “Olhar feminista. Olhar o feminismo”, de Rosemary Betterton, aparece como espinha dorsal que aglutina os demais textos. A reflexão de Betterton, originalmente publicada em 2003 com o título Feminist viewing: viewing feminism, lembra o próprio feminismo olhando ao redor de si ou, em outras palavras, como o feminismo (assim, no singular, conforme o texto) influenciou nossas práticas de visionamento no século XXI. Trata-se de um exercício interessante para qualquer investigador/a que trabalhe no âmbito dos feminismos e dos estudos de gênero. Na prática, numa colocação aparentemente simplista, Betterton lança a questão de quem somos antes mesmo de respondermos o que é o objeto que observamos. Sugere que nossa localização na sociedade, nosso modo de ver, ler e interpretar o mundo diz, parcialmente, o que vemos e condiciona assim o próprio fazer feminista. Ela lembra oportunamente a citação da crítica de arte Griselda Pollock que anteriormente já havia levantado a questão: “O que estou a ver e o que procuro? Que conhecimento deseja o meu olhar? Quem sou eu quando observo algo?” (Betterton, 2011, p. 18).

A autora, para dar seguimento à proposição de Pollock, põe lado a lado o pensamento de uma de suas alunas e o da crítica de arte sobre a obra de Toulouse-Lautrec. Enquanto a jovem estudante defende as pinturas de Lautrec como a validação de sua própria identidade lésbica, Pollock descreve uma economia visual dependente de três olhares, os do artista masculino, e do voyeur masculino heterossexual, e o da crítica feminista que o recusa. Betterton não quer dizer com isso que uma pode ser correta e outra não. Ela compara os dois olhares com o objetivo de apontar sugestões possíveis, mas radicadas em posicionamentos e conhecimentos diferentes. Mesmo dentro de uma matriz feminista é possível mais de uma interpretação para um fato social ou uma obra de arte. A questão posta está então no modo como os significados são construídos e para quem.

Para a teorização da cultural visual, uma dúvida como esta muda o foco tradicional de preocupações da história da arte. Ao se questionar sobre os produtores e seus textos, o modelo de leitura dá atenção à inscrição das mulheres e outros grupos sociais, fazendo-nos questionar as relações de poder do texto autorizado e suas interpretações, repensando teorias e práticas, o papel de professores e alunos. Mais: mostra como a cultura visual valoriza o que antes era posto de lado. “A noção de cultura visual levanta, pois, uma questão chave que esteve até certo ponto ausente da crítica da arte feminista produzida recentemente: como teorizar os afectos, a identificação e o investimento em imagens feitas por mulheres e outros grupos sociais?” (id., p. 20).

Em relação à performance, a novidade é a tradução de Marvin Carlson, em texto acerca do conceito de performance. O artigo funciona como um passo inicial no assunto, ao mesmo tempo em que, para não iniciados no tema, avança ao problematizar a popularização do termo e sua presença em um leque de disciplinas. O que é performance?1 1 Tradução a partir do texto What is performance? (Bial, 2004, p. 68-72). abre a discussão reconhecendo a popularização da performance como algo recente e a variedade de usos que são feitos do conceito, das artes à literatura, sem com isso, no entanto, conseguir traduzir com facilidade do que afinal trata a atividade.

Mais que um apanhado de opiniões, passando por Mary Strine, Beverly Long, Mary Hopkins e Erik MacDonald (boas indicações bibliográficas), Carlson mostra um percurso pouco comum para a análise da performance. Em vez de optar em falar das influências que teriam “criado” a performance, como a dança e o teatro, ele tenta mostrar como os estudos perfomativos enriqueceram o que tem sido tradicionalmente chamado de “arte performativa”.

Carlson também separar o joio do trigo: “ato performativo”, performance e “comportamento reconstruído”, esse último termo cunhado por Richard Schechner. Um dos aspectos mais importantes é que a teorização sobre a nova categoriza terminou por gerar uma nova dinâmica sobre estudos sobre o teatro, para citar exemplo. A consciência da representação de papéis sociais (bem destacado pelos teóricos da sociologia) em dado momento da vida cotidiana, abre brecha para pensarmos que nossas vidas são estruturadas conforme comportamentos continuados e socialmente aceitos. Dessa forma, potencialmente vivemos em performance, pelo menos quando temos consciência desse fato. Ao contrário dos atos performativos, que são praticados sem a devida consciência de si.

Por fim, uma interessante colocação que anuncia o encerramento da reflexão de Carlson, trata da arte performativa moderna, que muito faz lembrar as performances contemporâneas de Hanna Wilker, Orlan e Carolee Schneermann. “Quase por definição, os seus participantes não baseiam o seu trabalho em personagens previamente criadas por outros artistas, mas nos seus próprios corpos, nas suas autobiografias, nas suas experiências específicas numa dada cultura ou no mundo, que se tornam performativos pelo facto de os praticantes terem consciência deles e por os exibirem perante o público” (Carlson, 2011, p. 29).

O tema dos atos performativos reaparece no artigo de Judith Butler2 2 “Actos performativos e constituição de gênero: um ensaio sobre a fenomenologia e teoria feminista”, tradução a partir do texto Performative acts and gender constitution, an essay in phenomenology and feminist theory (Bial, 2004, p. 154-66). , autora que, embora bastante conhecida e lida no Brasil, tem poucos trabalhos traduzidos para o português. Butler refere-se aos atos para falar sobre a constituição do gênero. Este seria, portanto, uma identidade instituída através da repetição estilizada de atos. Ela acrescenta ainda que, o gênero, é formado pela estilização do corpo. Os gestos corporais, os movimentos e as encenações, nesse entendimento, dão a ilusão de um “eu” permanentemente definido pelo gênero. Assim, atos, gênero e corpo estão co-relacionados.

Se a base da identidade de gênero está na repetição e estilização dos atos performativos, as possibilidades de rupturas de gênero estão na relação arbitrária entre esses atos, ou seja, na quebra ou na inauguração de uma repetição dissonante. Se pensarmos na literatura, algumas transgressões, em termos de representações, estarão naquelas em que aparecem comportamentos dissonantes, promovendo a quebra dessa repetição de atos que estabelecem os homens, as mulheres, os transexuais etc.

Neste artigo, o desafio de Butler é analisar de que modo o gênero é constituído através de atos corporais específicos, e que possibilidades existem para ocorrer uma mudança cultural a partir desses atos. Enquanto MerleauPonty diz que o corpo é uma ideia histórica, Butler acrescenta que esse mesmo corpo não é uma materialidade idêntica a si própria, mas sim uma materialidade que, minimamente, traduz significado, e a maneira como o faz é fundamentalmente dramática. Ela diz: “Por dramático quero dizer que o corpo não é apenas matéria, mas uma contínua e incessante materialização de possibilidades. Não somos simplesmente um corpo, mas, num sentido verdadeiramente essencial, fazemos o nosso corpo, e fazemo-lo diferentemente tanto dos nossos contemporâneos como dos nossos antecessores e sucessores” (Butler, 2011, p. 72). Ainda concordando com Merleau-Ponty e Beauvoir, o corpo é uma situação histórica, mas também uma maneira de representar, dramatizar e reproduzir uma situação histórica.

Assim, a célebre e repetida frase de Beauvoir, de que não se nasce mulher, mas toca numa questão crucial do estado histórico salientado por Butler. A afirmação reconhece que ser do sexo feminino é uma faticidade sem significado, mas ser mulher é obrigar o corpo a aceitar e se adaptar a uma ideia histórica, a uma situação na qual está submerso. Ser mulher é “induzir o corpo a tornar-se um signo cultural, a materializar-se em obediência a uma possibilidade historicamente delimitada, e fazê-lo como um projecto corporal continuado sustentado e repetido” (Butler, 2011, p. 73).

O texto que encerra a publicação, A cultura de massas como mulher: o “outro” do modernismo, de Andreas Huyssen, apresenta outra face das questões de gênero ao tratar da cultura de massas3 3 Andreas Huyssen usa o termo “cultura de massas” referindo-se a folhetins em série, revistas populares e familiares, material de bibliotecas públicas, best-sellers de fi cção. e sua associação com a mulher. Assim como a mulher é associada a uma leitora de literatura inferior, “subjetiva, emocional e passiva”, segundo os termos de Huyssen. Enquanto isso, os homens continuam associados à cultura autêntica, à arte de elite. A importância dessa reflexão atravessa uma das questões fundamentais da literatura: a produção da mulher escritora, cujo objetivo literário pode ser semelhante ao de um autor homem. Ou seja, a associação da cultura de massa à mulher e a desvalorização dessa mulher como consumidora, ao apontar potenciais gostos femininos, fala para além da recepção, fala na produção e na inserção das mulheres no campo literário.

O autor recupera ainda a importância do teatro para que as mulheres pudessem se manifestar, uma vez que na sociedade burguesa, poucos espaços permitiam seu lugar nas artes. No entanto, como o teatro era visto como mero exercício de imitação e reprodução, ou seja, não original e produtivo, prerrogativas masculinas, era permitido às mulheres. Andreas Huyssen é outro autor que vale a pena conferir nesta publicação. Dele também, mas publicado apenas em espanhol, é o Modernismo después de la posmodernidad, organizado por Néstor García Canclini, e que saiu em março deste ano pela editora espanhola Gedisa.

O que Género, cultura visual e performance faz é lançar mais munição para que o diálogo entre autores/as diversos fomente as discussões em torno dos gêneros, das artes e de uma gama de assuntos que bordejam essas duas áreas. Servir como uma arena de polêmicas e abrir espaço para que textos basilares sejam lidos em língua portuguesa são partes de um caminho necessário em tempos em que a “outridade” é nossa melhor matéria de reflexão.

  • 1
    Tradução a partir do texto What is performance? (Bial, 2004, p. 68-72).
  • 2
    “Actos performativos e constituição de gênero: um ensaio sobre a fenomenologia e teoria feminista”, tradução a partir do texto Performative acts and gender constitution, an essay in phenomenology and feminist theory (Bial, 2004, p. 154-66).
  • 3
    Andreas Huyssen usa o termo “cultura de massas” referindo-se a folhetins em série, revistas populares e familiares, material de bibliotecas públicas, best-sellers de fi cção.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2011
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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