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A GLOSA NO SERTÃO DO PAJEÚ (PERNAMBUCO, BRASIL): FORMAS POÉTICAS E INTERAÇÕES SOCIAIS* * Os dados etnográficos e registros audiovisuais citados no artigo foram produzidos por João Miguel Sautchuk em 2015, 2017 e 2018, durante a pesquisa para o registro do repente como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, contando com recursos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan (Projeto 914BRZ4012/2015 e TED 001/2017) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) (Projeto 914BRZ4012/2015). Lucas Oliveira de Moura Arruda contribuiu com análises musicológicas e etnográficas sobre a glosa, realizando as transcrições em partitura incluídas neste artigo. O Dossiê resultante (Iphan, 2021) deve ser publicado em breve pelo Iphan. Agradecemos ao Iphan, em especial ao Departamento de Patrimônio Imaterial/Iphan, ao Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Iphan e à Superintendência do Iphan em Pernambuco. Agradecemos também a Carlos Sandroni (UFPE), pela elaboração de parâmetros para as análises musicológicas do Dossiê de Registro do Repente que foram seguidos aqui.

THE GLOSA AT SERTÃO DO PAJEÚ (PERNAMBUCO, BRASIL): POETIC FORMS AND SOCIAL INTERACTIONS

Resumo

Este artigo investiga nexos entre formas expressivas e interações sociais a partir de uma análise etnográfica da glosa - uma prática de improviso poético no sertão nordestino - e suas transformações contemporâneas. Para tal, buscou-se conciliar fundamentos teóricos da linguística (estruturação dos códigos comunicativos), da antropologia linguística (a centralidade da situação e dos contrastes entre diferentes códigos) e da etnomusicologia (a necessidade de captar a dimensão concreta, acessível aos sentidos, das estruturas e códigos culturalmente construídos). São referências nesse sentido as contribuições de Steven Feld à análise das artes verbais e suas reflexões teóricas sobre os trânsitos epistemológicos entre linguística e etnomusicologia e sobre as relações entre linguagem, música, som e vida social.

Palavras-chave:
Formas expressivas; Improviso; Poesia; Música; Linguagem

Abstract

This article investigates the links between expressive forms and social interactions from an ethnographic analysis of the glosa - a practice of poetic improvisation from the Sertão in the Brazilian Northeast - and its contemporaneous transformations. For such, we sought to combine theoretical frameworks of linguistics (structuring of communicative codes), linguistic anthropology (the central role of situation and contrast among various codes), and ethnomusicology (the need to capture the concrete, sense-accessible dimension of culturally established codes and structures). Steven Feld’s contributions to analyzing verbal arts and his theoretical thoughts on epistemological flows between linguistics and ethnomusicology and on the relations between language, music, sound, and social life are, thus, reference.

Keywords:
Expressive forms; Improvisation; Poetry; Music; Language

Neste artigo, desenvolvemos um conjunto de questões analíticas sobre os nexos entre formas expressivas e interações sociais, tendo como mote etnográfico a glosa - uma prática de improviso poético no sertão nordestino - e suas transformações contemporâneas. A presente perspectiva de análise consiste em exercitar uma troca criativa entre aportes da antropologia, linguística e etnomusicologia. Diante desse desafio, foi captada da linguística a estruturação dos códigos comunicativos (sua gramática); da antropologia linguística a centralidade da situação e dos contrastes entre diferentes códigos; e da etnomusicologia a necessidade de se alcançar a dimensão concreta, acessível aos sentidos, das estruturas e códigos culturalmente construídos. Nesse sentido, são inspiradoras as contribuições de Steven Feld (1982Feld, Steven. (1982). Sound and sentiment: birds, weeping, poetics and song in Kaluli Expression. Filadélfia: University of Pennsylvania Press.) à análise das artes verbais, bem como suas reflexões teóricas sobre os trânsitos epistemológicos entre linguística e etnomusicologia (Feld & Fox, 1999Feld, Steven & Fox, Aaron. (1999). Music. Journal of Linguistic Anthropology, 9/1-2, p. 159-162.) e sobre as relações entre linguagem, música e som (Feld et al., 2004Feld, Steven et al. (2004). Vocal anthropology: from the music of language to the language of song. In: Duranti, Alessandro (ed.). A companion to Linguistic Anthropology. Hoboken: Blackwell, p. 321-345.).

Ao lidar com poesia, é incontornável a reflexão sobre as relações entre forma e significado. Jakobson (1975Jakobson, Roman. (1975). Linguística e poética. In: Jakobson, Roman. Linguística e comunicação. 8. ed. São Paulo: Cultrix, p. 118-162.) mostrou que na poesia o foco da comunicação se direciona mais intensamente para o próprio código comunicativo (em detrimento de um privilégio ao conteúdo conceitual ou referencial). Daí, elementos formais passam a elaborar eles mesmos construções semânticas (como a ocorrência de semelhanças sonoras em posições rítmicas específicas de uma estrofe - isto é, a rima -, o que cria relações de significado entre palavras). Tal reflexão inspirou análises antropológicas sobre eficácia semântica de paralelismos formais (Caton, 1990Caton, Steven Charles. (1990). “Peaks of Yemen I summon”: poetry as cultural practice in a North Yemeni tribe. Berkeley: University of California Press.; Peirano, 2001Peirano, Mariza. (2001). A análise antropológica de rituais. In: Peirano, Mariza (org.). O dito e o feito: análise antropológica de rituais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 17-40.; Sautchuk, 2012Sautchuk, João Miguel. (2012). A poética do improviso: prática e habilidade no repente nordestino. Brasília: Editora UnB.; Tambiah, 1985Tambiah, Stanley Jeyaraja. (1985). Culture, thought, and social action: an anthropological perspective. Cambridge: Harvard University Press.). Assim, considerando a poesia, em razão da estruturação de seu código expressivo, como uma forma ritualizada da linguagem (pois a poesia reveste-se de eficácia e significados específicos na medida em que altera a estrutura da linguagem corriqueira), procuramos compreender como, analogamente, as situações em que sua prática ocorre podem variar em função de maior ou menor estruturação de padrões de comportamento e papéis sociais. Ou seja, perguntamos pelas relações entre diferenciação social e diferenciação discursiva, bem como pelos significados da mudança de formalidade nos eventos comunicativos (Irvine, 2001Irvine, Judith. (2001). Formality and informality in communicative events. In: Duranti, Alessandro (ed.). Linguistic anthropology: a reader. Hoboken: Wiley, p. 189-207.: 197).

Em contraste com outras práticas de poesia improvisada comuns no Nordeste (como o repente, o aboio e o coco de embolada), a glosa não é cantada, mas declamada. Inspirados nas importantes contribuições de Seeger (2015Seeger, Anthony. (2015). Por que cantam os Kĩsêdjê: uma antropologia musical de um povo amazônico. São Paulo: Cosac & Naify.) e Lortat-Jacob (1998Lortat-Jacob, Bernard. (1998). Prononcer en chantant: analyse musicale d’un texte parlé (Castelsardo, Sardaigne). L’Homme, 38/146, p. 87-112.), ousaremos uma análise musical da declamação da glosa. Ou seja, procuraremos compreender os sentidos locais da poesia e do improviso sistemicamente em relação à fala e ao canto. Nesse sentido, para além de abordar música e fala por um enquadramento semiótico unificado do som, buscamos compreender esses polos como domínios expressivos dialógica e fenomenalmente interrelacionados (Feld et al., 2004Feld, Steven et al. (2004). Vocal anthropology: from the music of language to the language of song. In: Duranti, Alessandro (ed.). A companion to Linguistic Anthropology. Hoboken: Blackwell, p. 321-345.: 340).

Nosso objetivo mais amplo é vislumbrar relações entre a codificação das formas expressivas e a estruturação das interações, como proposto por Irvine (2001Irvine, Judith. (2001). Formality and informality in communicative events. In: Duranti, Alessandro (ed.). Linguistic anthropology: a reader. Hoboken: Wiley, p. 189-207.) e Goffman (1986Goffman, Erving. (1986). Frame analysis: an essay on the organization of experience. Boston: Northeastern University Press.). Nosso ponto de partida é a codificação da poesia. Em sua proposta de uma teoria linguística da métrica poética, Caton (1990Caton, Steven Charles. (1990). “Peaks of Yemen I summon”: poetry as cultural practice in a North Yemeni tribe. Berkeley: University of California Press.: 275) apontou a sílaba como “unidade linguística relevante da métrica”, nos sistemas de versificação. Assim, a partir da matéria básica das sílabas, há sistemas que acrescentam acentos, variações tonais ou de duração para organizar o material silábico em unidades maiores (pés, versos, estrofes e assim por diante). Segundo Caton, as formas corriqueiras da linguagem apresentam vários níveis e padrões de ênfase, enquanto a linguagem poética reduz esses diversos níveis para privilegiar a oposição binária entre sílabas marcadas e não marcadas. Isso constitui, se não uma tendência universal (como argumenta Caton), uma formidável base para comparação entre práticas de poesia e também entre os processos de elaboração formal das enunciações linguísticas e das relações sociais.

Sobre a glosa, os poucos registros escritos e as entrevistas que realizamos a descrevem como uma prática marcada pela espontaneidade e pela fluidez de seus papéis sociais: quase sempre ocorre sem momento previamente planejado e com alternância nos papéis de poeta e ouvinte. Atualmente, é comum a realização das mesas de glosas, espetáculos com maior grau de formalização e oficialidade. Assim como a poesia, entre a diversidade de ênfases da fala, realça a oposição entre sílabas marcadas e não marcadas, esse novo modelo de apresentação, analogamente, reforça a separação dos papéis de poeta e ouvinte na interação, o que é efetivado pela atuação de mediadores, como os organizadores e o apresentador do evento. Nos interessa também o sentido dessa inovação.

A GLOSA, O REPENTE E A POESIA NO NORDESTE BRASILEIRO

A glosa integra um universo de práticas denominadas no Nordeste como poesia - englobando também repente, aboio, embolada, ciranda, maracatu de baque solto (na Zona da Mata de Pernambuco), tambor de crioula (no Piauí e no Maranhão), poesia de bancada1 1 A poesia de bancada é escrita para ser declamada e pode ser tanto lírica quanto narrativa. Muitos poetas de bancada são também declamadores, notabilizando-se pela interpretação de poemas seus ou alheios. Como veremos, alguns deles são também glosadores ocasionais. e literatura de cordel, entre outras. Essas poesias, mesmo as que envolvem a escrita, são marcadas pela proeminência da voz e entendidas localmente como formas expressivas especiais, diferenciadas da linguagem corriqueira, e por isso com significados e funções singulares nas interações entre poetas e ouvintes. A habilidade para a poesia, que em alguns casos envolve a capacidade do improviso, é considerada um dom divino, o que confere ao poeta uma distinção, uma identidade e uma função que são também constitutivas de sua subjetividade (Sautchuk, 2012Sautchuk, João Miguel. (2012). A poética do improviso: prática e habilidade no repente nordestino. Brasília: Editora UnB.: 120-124). Tal universo das poéticas nordestinas compõe nosso horizonte etnográfico, e é preciso compreender a glosa em contraste com outras práticas desse sistema - cantadas e/ou declamadas; improvisadas e/ou de cor; também escritas ou somente vocais. Vale ressaltar que não se trata de comparação entre coisas separadas, mas entre poesias que mantêm suas identidades compartilhando elementos formais e valores, bem como enredando-se em suas práticas e suas histórias.

Nossa principal referência de contraste será o repente, que é cantado. Nesse sentido, apresentamos algumas reflexões de cunho geral sobre as relações entre música, canto, declamação e linguagem. Mário de Andrade (1991Andrade, Mário de. (1991). Aspectos da música brasileira. São João del Rei: Vila Rica.) elaborou uma distinção entre canto e poesia afirmando que, nascidos de uma base comum (o ritmo), se diferenciam pela derivação de seus processos. No canto, os “do puro dinamismo fisiopsíquico e outro na poesia, dos processos de pensar por meio de palavras” (Andrade, 1991Andrade, Mário de. (1991). Aspectos da música brasileira. São João del Rei: Vila Rica.: 32). Por um lado, é importante questionar a ideia de que o canto estaria ligado somente à dimensão sensório-emotiva e a palavra poética (não cantada, supomos), à cognição. Por outro, há aí a instigante sugestão do ritmo como a base de tudo isso. Feld et al. (2004Feld, Steven et al. (2004). Vocal anthropology: from the music of language to the language of song. In: Duranti, Alessandro (ed.). A companion to Linguistic Anthropology. Hoboken: Blackwell, p. 321-345.), por sua vez, alertam-nos que, sob um ponto de vista semiótico, “a música parece muito mais redundante e superdeterminada sintaticamente quando comparada à linguagem” (Feld et al., 2004Feld, Steven et al. (2004). Vocal anthropology: from the music of language to the language of song. In: Duranti, Alessandro (ed.). A companion to Linguistic Anthropology. Hoboken: Blackwell, p. 321-345.: 322). Mas, ao mesmo tempo, “o significado da música é notavelmente mais complexo para caracterizar formalmente, quando comparado às estruturas semânticas da linguagem” (Feld et al., 2004Feld, Steven et al. (2004). Vocal anthropology: from the music of language to the language of song. In: Duranti, Alessandro (ed.). A companion to Linguistic Anthropology. Hoboken: Blackwell, p. 321-345.). Aqui, não vamos tomar tais reflexões como contrastes absolutos, mas como indicações de contrastes possíveis entre dimensões sobrepostas dos fenômenos vocais. Nesse rumo, nos inspiramos também em Anthony Seeger (2015Seeger, Anthony. (2015). Por que cantam os Kĩsêdjê: uma antropologia musical de um povo amazônico. São Paulo: Cosac & Naify.), com sua comparação entre diversos aspectos sonoros, cosmológicos e interacionais das formas vocais num mesmo contexto para chegar a definições e ao entendimento de cada uma delas.

Por isso, antes de discorrer mais sobre a glosa, cabe uma apresentação do repente, arte com a qual mantém estreita relação. O repente, também conhecido como cantoria, é o improviso poético cantado em duplas e com o acompanhamento de violas. As situações mais comuns de apresentação são as cantorias, em que uma dupla é convidada, ou se oferece, para animar uma festa familiar ou para ser a atração em um bar ou teatro. Os repentistas criam as estrofes no momento da cantoria, seguindo em cada sequência de estrofes (conhecida como baião) um assunto, uma estrutura poética específica e uma melodia para o canto (a toada). Os cantadores versam sobre assuntos de sua vontade e estratégia (e um cantador é obrigado a acompanhar o assunto que o outro inicia) e pedidos pelos ouvintes, que pagam em dinheiro aos cantadores ou ao organizador do evento (que então paga um cachê à dupla).

A glosa é o improviso de estrofes a partir de motes, sem canto ou acompanhamento musical. O mote é uma frase poética que indica o tema a ser glosado e impõe ao glosador rimas específicas. Alguém “dá o mote” a um ou mais poetas, que glosam (isto é, improvisam, criam de súbito) em resposta a esse ato. Pratica-se a glosa no Nordeste onde quer que haja repentistas, sendo, porém, mais cultuada e referendada na microrregião do vale do Rio Açu (Melo, 1971Melo, Veríssimo de. (1971). A glosa, veículo de comunicação popular. Revista Brasileira de Folclore, 11/30, p. 183-190.: 187-188), no oeste do Rio Grande do Norte2 2 Conforme o cordelista potiguar Crispiniano Neto em palestras e conversas pessoais com João Sautchuk entre 2015 e 2017. , no vale do Rio Pajeú, Agreste e Zona da Mata de Pernambuco, em quase todo o estado da Paraíba (Alves Sobrinho, 2003Alves Sobrinho, José. (2003). Cantadores, repentistas e poetas populares. Campina Grande: Bagagem.: 157-176), no Vale do Rio Jaguaribe e no Cariri cearense.

No que se refere aos aspectos mais estritamente formais, a glosa, assim como o repente, o cordel e a poesia de bancada, baseia-se rigorosamente em três fundamentos sempre evocados e explicitados pelos poetas: métrica, rima e oração. Trata-se de um conjunto de normas e ao mesmo tempo um conhecimento analítico-descritivo sobre a poesia. A rima é o mais trivial e preconiza, com algumas exceções, que só rimam entre si palavras com uma correspondência exata de sons e grafia da sílaba tônica ao final. Assim, “fé” rima com “cafuné”, mas não com “mulher”, que rima com “colher”; “mel”, com “cordel”, mas não com “troféu, que rima com “céu”; “cantador”, com “amor”, mas não com “chegou”, que rima com “fogo-pagou”; e “Ceará” rima com “paxá”, mas não com “cantar”, que rima com “mar” - e assim por diante.

A oração se refere a dois aspectos, sendo o mais evidente a coerência temática (a obrigação de seguir o assunto proposto, por exemplo), e o outro, a “grandeza” da estrofe (a excelência e a inspiração das imagens poéticas que eclodem de improviso).

Por fim, a métrica diz respeito ao ritmo poético. Os poetas costumam referir-se a ela nos termos de quantidade de versos por estrofe e de sílabas por verso e do encadeamento de rimas na estrofe. No cordel, há preferência pela sextilha (seis versos de sete sílabas, rimando entre si o segundo, o quarto e o sexto). No repente, a sextilha é também a modalidade mais executada e com a qual se começa qualquer apresentação, e somam-se a ela dezenas de modalidades de estrofe com toadas correspondentes. A glosa é geralmente em décimas de versos setessilábicos com as rimas na sequência ABBAACCDDC. Atualmente, na região do Pajeú, o mais comum é a glosa sobre mote de dois versos com o qual o improvisador conclui a estrofe - semelhante ao mote em sete sílabas da cantoria de viola3 3 Outras formas foram registradas: no século XIX, o mote em uma linha e o mote dado em quadras para o glosador desenvolver quatro décimas, cada uma concluída com uma linha do mote (Batista, 1997); mais recentemente, no Vale do Rio Açu (Rio Grande do Norte), o mote em duas linhas, das quais a primeira será o quarto verso da décima e a segunda linha conclui a estrofe (Amorim, 2002; Melo, 1971). José Ramos Tinhorão (2004: 149-154) mostra na cidade de Lisboa no crepúsculo do século XVIII uma prática bastante semelhante, apesar de mais solene, à glosa registrada no sertão nordestino a partir do século seguinte, inclusive com o improviso em décimas a partir de motes de uma e de quatro linhas. .

Para além dessas explicações verbalizadas, a métrica é de fato um fundamento técnico da composição poética, sobretudo do improviso. Ao contrário da rima e da oração, seu aprendizado não se dá pelo ensinamento direto, mas pela internalização proporcionada pela experiência constante de ouvir outros poetas cantando e declamando.

Nas poesias improvisadas e cantadas do Nordeste, as toadas são referências sensoriais das métricas poéticas, pois cada nota corresponde a uma sílaba da estrofe que vai se criar. Daí, mesmo poetas de bancada e do cordel, para naturalizar a métrica, dizem escrever cantarolando toadas e recordam que aprenderam os padrões das modalidades de estrofe ouvindo repentistas quando crianças (Iphan, 2021Iphan - Instituo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. (2021). Dossiê de Registro do Repente como patrimônio cultural imaterial do Brasil. Coordenação de João Miguel Sautchuk. Brasília, DF: Iphan.; Sautchuk, 2011Sautchuk, João Miguel. (2011). Poetic improvisation in the Brazilian Northeast. Vibrant, 8/1, p. 260-291., 2012Sautchuk, João Miguel. (2012). A poética do improviso: prática e habilidade no repente nordestino. Brasília: Editora UnB., 2014Sautchuk, João Miguel. (2014). A palavra, o verso e o canto: repente e cordel no Nordeste do Brasil. In: Matos, Cláudia Neiva de; Medeiros, Fernanda Teixeira de & Oliveira, Leonardo Davino de (orgs.). Palavra cantada: estudos transdisciplinares. Rio de Janeiro: EdUERJ, p. 161-174.). Feld (1982Feld, Steven. (1982). Sound and sentiment: birds, weeping, poetics and song in Kaluli Expression. Filadélfia: University of Pennsylvania Press.) mostrou algo semelhante em relação à poética e aos cantos dos Kaluli da Nova Guiné. Naquele contexto, eles entendem que as melodias existem fora da pessoa e o texto vem de dentro dela. Assim, a melodia é substância dada, enquanto o texto é substância composta. Feld percebe que para os Kaluli a melodia possui caráter de fórmula (de padrão rítmico-verbal) que serve à criatividade textual do cantor-compositor. Quanto a isso, os Kaluli descrevem a sensação gerada pelas palavras se encaixando na melodia pela metáfora de uma cachoeira desaguando em uma piscina natural (Feld, 1982Feld, Steven. (1982). Sound and sentiment: birds, weeping, poetics and song in Kaluli Expression. Filadélfia: University of Pennsylvania Press.: 166). Nas poéticas nordestinas em geral e na glosa especificamente, há uma compreensão análoga de que as métricas são coletivas, absorvidas da convivência e da experiência, enquanto o improviso é entendido como aflorar da criatividade individual e da inspiração divina. A elaboração textual improvisada flui conforme esse ritmo adquirido em padrões entoativos; no caso da glosa, mais variáveis que as toadas.

Portanto, a glosa guarda profunda similaridade com o repente na forma e nos fundamentos poéticos. É no plano das interações e dos papéis sociais (especificamente os de poeta e ouvinte) que a glosa se aproxima e se diferencia do repente dialeticamente. As interações da glosa costumam ser sensivelmente menos formalizadas, sendo mais corriqueiras, sem o tipo de compromisso engendrado pelo pagamento e sem hora nem lugar marcados para acontecer - pelo menos assim era até recentemente. Por isso, é também difícil de registrar, o que implica em boa parte do conhecimento sobre o tema aqui reunido vir das memórias dos próprios poetas - de estrofes suas e ou por testemunhar ou por ouvir relatos da memória coletiva4 4 Inspirados em autores como Halbwachs (2004) e Pollak (1989, 1992), entendemos a memória coletiva como processo complexo de seleção e enquadramento do passado numa ação do presente. As pessoas, eventos e estrofes selecionadas e idealizadas figuram nas narrativas de memória como afirmações atuais sobre o que é a poesia e o improviso num imaginário do lugar e do valor atual dos poetas. .

FORMALIDADE E INFORMALIDADE

Utiliza-se muito o par de conceitos formal/informal para denotar o grau de seriedade, oficialidade e rebuscamento na forma de ações e situações. No entanto, o uso analítico desses conceitos requer apurar seu significado, pois não é possível conceber ações (mesmo se consideradas no senso comum como “informais”) que não sejam orientadas por uma lógica de expressão e interação. Qualquer fala espontânea é governada por regras linguísticas, padrões rítmicos (Scollon, 1982Scollon, Ron. (1982). The rhythmic integration of ordinary talk. In: Tannen, Deborah (ed.). Analyzing discourse: text and talk. Washington, DC: Georgetown University Press, p. 335-349. (Georgetown University Round Table on Languages and Linguistics 1981).; Silverstein, 1997Silverstein, Michael. (1997). The improvisational performance of culture in realtime discursive practice. In: Sawyer, Keith (ed.). Creativity in performance. Nova York: Ablex, p. 265-312.) e turnos de fala (Bahktin, 2010Bakhtin, Mikhail. (2010). Os gêneros do discurso. In: Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, p. 261-306.; Goffman, 2002aGoffman, Erving. (2002a). A situação negligenciada. In: Ribeiro, Branca Telles & Garcez, Paulo M. (orgs.). Sociolinguística interacional. São Paulo: Loyola, p. 13-20.). Da mesma maneira, as interações cotidianas são estruturadas por enquadramentos, papéis sociais (mesmo que efêmeros) e alternâncias de códigos comunicativos (Goffman, 1986Goffman, Erving. (1986). Frame analysis: an essay on the organization of experience. Boston: Northeastern University Press., 2002bGoffman, Erving. (2002b). Footing. In: Ribeiro, Branca Telles & Garcez, Paulo M. (orgs.). Sociolinguística interacional . São Paulo: Loyola , p. 107-148.; Gumperz, 2002Gumperz, John. (2002). Convenções de contextualização. In: Ribeiro, Branca Telles & Garcez, Paulo M. (orgs.). Sociolinguística interacional . São Paulo: Loyola , p. 149-182.; Irvine, 2001Irvine, Judith. (2001). Formality and informality in communicative events. In: Duranti, Alessandro (ed.). Linguistic anthropology: a reader. Hoboken: Wiley, p. 189-207.: 191). Formalidade e informalidade são, portanto, parâmetros relativos que expressam um contraste de formalização.

A formalidade deve então ser entendida como uma diferenciação relativa construída sobre a maior estruturação de alguns aspectos das interações sociais. A antropóloga linguista Judith Irvine propõe quatro aspetos de situações formais para comparação, que devem ser entendidos conjuntamente. Porém, alerta que eles não devem ser interpretados de modo linear, pois a maior formalização de cada um deles não se dá sempre da mesma maneira e no mesmo grau em diferentes situações. Tomaremos esses aspectos como guia.

O primeiro deles é a maior estruturação dos códigos comunicativos pela adição de regras de comportamento e expressão (Irvine, 2001Irvine, Judith. (2001). Formality and informality in communicative events. In: Duranti, Alessandro (ed.). Linguistic anthropology: a reader. Hoboken: Wiley, p. 189-207.: 192). Considerando as reflexões de Jakobson e Caton mencionadas anteriormente, a poesia se destaca dos outros gêneros da fala pelo foco no contraste entre sílabas marcadas e não marcadas - ou acentuadas e não acentuadas, na poesia nordestina. No repente, à métrica pensada isoladamente se acrescem outros rebuscamentos formais, como a melodia das toadas e o próprio ritmo da alternância dos repentistas no canto das estrofes, que geram uma sensação de coerência, continuidade e igualdade. Sendo o repente sempre uma disputa, os cantadores devem tentar romper essa igualdade com sua astúcia poética. Mais à frente, veremos que a glosa não é cantada, mas tem recursos e padrões entoativos próprios.

O segundo aspecto se refere à consistência ou aderência do comportamento a regras que vigoram numa situação específica (Irvine, 2001Irvine, Judith. (2001). Formality and informality in communicative events. In: Duranti, Alessandro (ed.). Linguistic anthropology: a reader. Hoboken: Wiley, p. 189-207.: 193). Por exemplo, em uma conversa entre amigos, diante de uma pergunta, provocação ou demanda qualquer, são possíveis respostas evasivas ou protelatórias: “não sei”, “vamos falar de outra coisa?” ou “depois te conto”. Entretanto, se um desses amigos é um poeta improvisador e o outro lhe (diz) um mote, a situação se transforma e impõe outra lógica ao diálogo: a resposta deve ser o improviso de uma décima. O mote é portanto uma espécie de dádiva ou desafio que exige retribuição5 5 Numa cantoria, tudo isso se torna mais dramático pela questão do pagamento, e os repentistas sentem a obrigação de atender a todos os pedidos feitos pelos ouvintes. . Não responder pode ser interpretado como uma falha do poeta. Por outro lado, um bom improviso pode vir a ser lembrado e declamado num elogio à sua inspiração.

A memória coletiva da poesia popular no Pajeú também celebra uma estrofe glosada pelo célebre repentista Lourival Batista (1915-1992), sobre mote de uma linha, apenas. O poeta de bancada Dedé Monteiro (de Tabira) nos contou que Lourival estava em São José do Egito

numa calçada, conversando com uns amigos, e deram a ele o mote: “A parte que iluminou”. É um mote numa linha só, num verso só: “A parte que iluminou”. Aí Lourival disse:

Entre o gosto e o desgosto O quadro é bem diferente: Ser moço é ser sol nascente Ser velho é ser um sol posto. Pelas rugas do meu rosto, O que fui e hoje não sou, Ontem estive, hoje não estou, Que o sol ao nascer fulgura, Mas ao se por deixa escura A parte que iluminou 6 6 Entrevista de Dedé Monteiro (José Rufino da Costa Neto) a João Miguel Sautchuk em Tabira-PE, em 19 de setembro de 2015. A estrofe foi também espontaneamente mencionada por Albino Pereira (depoimento em 2015) e Isabelly Moreira (poetiza de bancada egipiciense, nascida em 1993, em depoimento a Sautchuk, em 2018) e citada pelo repentista Jó Patriota em 1967 a Geraldo Sarno (2006: 156). (Dedé Monteiro, 2015).

Para além de vencer o desafio implícito que há no mote, há também o sentimento de obrigação de expressar em poesia os sentimentos seus e dos ouvintes. É o que mostra o relato, de Albino Pereira7 7 Em entrevista cedida a João Sautchuk em Tabira-PE, 2015. , glosador e poeta de bancada nascido em Tabira, em 1934:

Há pouco tempo, no velório de uma pessoa, parente de um poeta, chegando perto do cemitério, ele [o poeta] quase sem sentir, deu um mote: “Quando a doença é pesada / A vida fica sem graça”. Aí eu disse […]:

Pra que reclamar da sorte Um mal que nos intimida Temos que pensar na vida Mas também pensar na morte Pois ela é o passaporte Mostrando que tudo passa A vida é como a fumaça Que pelo vento é levada Quando a doença é pesada, A vida fica sem graça.

Há mais ou menos uns três anos, um professor em Tabira que é muito poeta me deu o mote: “Uma gota de saudade / machuca o peito da gente”. Porque uma gota de saudade machuca. E a saudade machuca não é só se for por amor, não. A saudade ataca a gente por tudo no mundo. A gente tem saudade de um amor, tem saudade de pai e mãe, dos amigos, da terra que nasceu. […]. Então ele me deu esse mote e eu fiz […]:

Dizem que em noite chuvosa É quando a saudade cresce. Qualquer vivente padece, Seja idoso ou seja idosa. É quando o poeta glosa Pra ver se mata o que sente. E, por mais que o poeta tente, Não mata nem a metade. Uma gota de saudade Machuca o peito da gente (Albino Pereira, 2015).

As questões da obrigação e do prestígio nos levam ao terceiro aspecto proposto por Irvine (2001Irvine, Judith. (2001). Formality and informality in communicative events. In: Duranti, Alessandro (ed.). Linguistic anthropology: a reader. Hoboken: Wiley, p. 189-207.). Ocasiões formais evocam identidades e posições públicas, enfatizando distâncias e o respeito a uma ordem de papéis sociais (Irvine, 2001Irvine, Judith. (2001). Formality and informality in communicative events. In: Duranti, Alessandro (ed.). Linguistic anthropology: a reader. Hoboken: Wiley, p. 189-207.: 194). Pelo seu caráter casual e relativamente menos formal que o do repente, a glosa permite maior fluidez na alternância dos papéis de poeta e ouvinte8 8 Adotamos a categoria ouvinte com base em seu uso local. No universo dessas poesias, a/o ouvinte é, evidentemente, quem assiste (e portanto ouve) a poesia, mas também participa dela, reagindo, estimulando e, mais diretamente, elaborando e dando o mote sobre o qual é construída a estrofe. Atentamo-nos aos argumentos de Goffman (2002b), em sua crítica ao uso irrefletido da dicotomia falante/ouvinte nas análises da conversação, pois entendemos que nas interações verbais os momentos de fala se desdobram por movimentos conjuntos entre os agentes. . Uma vez que os repentistas são glorificados como gênios que levam a um patamar elevado o dom do improviso poético, a casualidade da glosa permite a muitos poetas que não são repentistas uma pequena glória: improvisar junto aos maiores.

O mesmo Albino nos indicou isso. Ele era filho de agricultores, ofício que ainda jovem começou a seguir. E era também um apologista (um apreciador) do repente, do cordel e de outras poesias. Conta ele que sentia o dom da poesia e

Quando chegava a cantoria, a cantoria de viola, os cantadores começavam às oito horas da noite, quando era meia noite, terminava. Aí, eu incentivava pra haver aquela glosa depois da cantoria pra eu participar. Eu não ia cantar de viola. Nunca dei um som num instrumento pra saber dedilhar um instrumento.

Eu [era] rapazinho, com 17 ou 18 anos, quando meus pais souberam que eu tava glosando mais os cantadores […]. Meu pai chegou: “Crie vergonha nessa cara! Você com a cara cheia de cachaça! Você já viu? Você tem lá poesia? Deixe poesia pra quem nasceu poeta. Isso é cachaça!” E não era cachaça. A cachaça dava a influência pra perder a timidez, mas a poesia eu já tinha, que nasci com ela (Albino Pereira, 2015)9 9 Depoimento de Albino Pereira a João Miguel Sautchuk em Tabira-PE, 2015. .

O poeta de bancada e declamador Chico Pedrosa, nascido em Guarabira-PB, em 1936, dá o mesmo sentido à sua vivência com a glosa na década de 1970:

Juntavam-se os poetas, dia de sábado na Feira […]. À tarde, a gente ia beber alguma coisa. E oito, dez cantadores, oito, dez poetas juntavam-se ali e saía um mote pra fazer uma glosa. Cada um fazia uma glosa. Eu fazia uma, tu fazia outra, um outro fazia… e fechava. Bebendo. Isso eu fiz muito em Campina Grande. Isso eu fiz muito em Caruaru. E fiz muito em Patos das Espinharas [Patos-PB] (Chico Pedrosa, 2017)10 10 Entrevista de Chico Pedrosa (Francisco Pedrosa Galvão) a João Miguel Sautchuk em Olinda-PE, em 1 de novembro de 2017. .

O derradeiro aspecto indicado por Irvine foi abordado nos exemplos e depoimentos acima. Consiste na emergência e reconhecimento mútuo de um foco de atenção dominante em torno do qual as pessoas se engajam. As classificações, interpretações e enquadramentos das próprias pessoas sobre as formas e situações de interação são constitutivos desse foco de atenção e engajamento, e tal foco é regulado, adensado, estimulado e delimitado por meio de formas estruturais especiais - limitação do direito à fala e atuação na sequência principal e limitação de tema, continuidade e relevância (Irvine, 2001Irvine, Judith. (2001). Formality and informality in communicative events. In: Duranti, Alessandro (ed.). Linguistic anthropology: a reader. Hoboken: Wiley, p. 189-207.: 195).

FORMA E MOVIMENTO

Enquanto a cantoria possui toadas reconhecidas e avaliadas entre repentistas e seu público por suas diferenças e qualidades (Travassos, 1989aTravassos, Elisabeth. (1989a). Melodias para a improvisação poética no Nordeste: toadas de sextilhas segundo a apreciação dos cantadores. Revista Brasileira de Música, 18, p. 115-129., 1989bTravassos, Elisabeth. (1989b). Toadas de cantoria. In: Reis, Sandra Loureiro de Freitas (org.). III Encontro Nacional de Pesquisa em Música. Belo Horizonte: Imprensa Universitária, p. 219-228.), a enunciação declamada nas glosas obedece a padrões, que são improvisados junto ao fluir dos versos. Diferentemente do que acontece com as toadas, porém, estes padrões de entoação das glosas não são explicitados pelos próprios poetas, embora sejam por eles realizados e caracterizem nuances expressivas notadas pelos ouvintes. Tais padrões dão forma à eloquência sonora dos glosadores, já que a ênfase e a ativação dos registros da voz podem fazer tanto efeito quanto a qualidade poética dos versos. Sendo assim, se não podemos esboçar normas de entoação ou categorias consolidadas de estilo vocal de enunciação das glosas, podemos identificar traços compartilhados pelos poetas, que delineiam a glosa em sua musicalidade.

Tomaremos como exemplo a Mesa de Glosas da semana da Missa do Poeta de 2015. Naquele ano, a Mesa foi realizada em duas sessões consecutivas, com dez poetas cada uma. Entre eles, havia repentistas e poetas de bancada.

Para captar dimensões importantes da glosa como forma expressiva, exercitamos a transcrição em partitura de algumas estrofes improvisadas. Nesse sentido, vale recapitular as críticas de Charles Seeger (1958Seeger, Charles. (1958). Prescriptive and descriptive music-writing. The Musical Quarterly, 44/2, p. 184-195.) ao uso do pentagrama na análise etnomusicológica, por impor sorrateiramente concepções visuais e da linguagem escrita na compreensão das realizações sonoras. Segundo ele, as representações visuais das realizações sonoras (a partitura em especial) conduzem a uma compreensão de uma melodia ora como uma sucessão de notas separadas (uma entidade hipersegmentada nota a nota), ora como um fluxo contínuo completamente linear. Nenhum desses vieses daria conta da complexidade dos conhecimentos e experiências nativas sobre qualquer realização sonora.

Cientes desses perigos, recorremos à transcrição em partitura para explorar elementos contraintuitivos no que se refere à musicalidade da declamação e assim evidenciar a relação entre estrutura e movimento justamente por meio de uma análise musical de algo que não é, explicitamente, “música”. Nesse sentido, a notação musical em partitura pode ter, para nossas pesquisas, um sentido muito mais “icônico” - como fala Treitler (1989Treitler, Leo. (1989). The beginnings of music-writing in the West: historical and semiotic aspects. Language & Communication, 9/2-3, p. 193-211.) -, com objetivos práticos, do que “simbólico” (ou mais especulativo). A ideia é trazer para esta pesquisa um registro que pode favorecer o olhar comparativo entre os diversos movimentos rítmicos e melódicos registrados, trazendo um diálogo mais amplo com áreas de estudo da musicologia e etnomusicologia11 11 A análise musical da voz declamada na glosa teve início nas pesquisas para fundamentação do processo de registro do repente como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Iphan, no qual a glosa foi considerada como um bem cultural associado (Iphan, 2021). Desde aquela pesquisa, investigamos a musicalidade das declamações em mesas de glosa. Inicialmente, foi utilizado um gráfico de alturas, que, no entanto, não dava conta das sutilezas da voz declamada. Decidiu-se utilizar então uma partitura comum, inserindo o sinal “x” sobre as notas para reforçar a ideia de alturas aproximadas. Em paralelo, as durações rítmicas também são aproximadas, como a pesquisa possibilitou registrar pela audição das gravações. .

Na construção entoativa, “melódica”, os versos da décima são estruturados em dois grupos de quatro, depois dos quais se adiciona os dois versos do mote. Nas glosas analisadas, o verso 1 começa na região média, enquanto no segundo e no terceiro há certa flutuação para o agudo, caindo para o médio novamente no quarto. Os versos 5 e 6 apresentam o momento de maior tensão entoativa e poética: há uma subida maior para a região aguda e média, para nos versos 7 e 8 a tensão ser resolvida no médio-grave. Os versos 9 e 10 - que correspondem ao mote - são declamados numa região médio-grave, e, em muitos casos, sem muita ênfase, afinal, a parte principal do poeta já foi feita. O apogeu tem lugar naqueles versos de maior tensão (o quinto e o sexto), que geralmente obtêm mais efeito. Quando naquele ponto os versos são excelentes, belos ou engraçados, quando empolgam o público, o momento do mote é até interrompido.

Para pensar a questão dos recursos melódicos na enunciação das glosas, recorremos às ideias de Luiz Tatit (2002Tatit, Luiz. (2002). O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp.) sobre a relação entre “melodia” e “letra” em canções populares. O autor diferencia canções “passionais” de canções “temáticas”, sendo que em cada caso características específicas do conteúdo poético e do contorno melódico se associam. Nas canções “passionais”, predominam as vogais alongadas e a expansão dos intervalos melódicos. Estas características, segundo Tatit, associam-se a conteúdos poéticos relacionados com paixão, saudade, e, em todo caso, com o que chama de “disjunção” entre o sujeito lírico e o objeto de seu desejo. Nas canções “temáticas”, predomina o contrário, a ideia de conjunção com o objeto, e ali os conteúdos verbais tendem a ser mais concretos e prosaicos.

De maneira parecida com os compositores de canções analisados por Tatit, os glosadores, ao declamar, podem também se valer de conexões entre tipos de conteúdo verbal e opções melo-rítmicas, mesmo no âmbito mais limitado de uma “declamação”, se comparada a uma “canção”. Podem assim, partindo do mesmo mote, “passionalizar” ou “tematizar” o texto improvisado e declamado. Para observar esse processo, comparemos duas glosas sobre o mote “Aquele amasso escondido / Aqueceu nossa paixão”. A partir de visões poéticas distintas, os poetas também declamam suas glosas de maneiras diferentes.

A primeira delas (Figura 1), de autoria de Wellington Rocha, é rica em palavras e sensações líricas: “olhar”, “cheiro de flor”, “a vagar”, “segurar a mão”. A paixão romântica do poeta é embalada por uma declamação mais lenta que a dos demais, com um ritmo quase de valsa e vários momentos de passionalização - alongando vogais, como que a “trazer o ouvinte para o estado em que se encontra” (Tatit, 2002Tatit, Luiz. (2002). O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp.: 10).

Figura 1
Glosa de Wellington Rocha

Do lado oposto, o improviso de Genildo Pitú explora uma paixão mais carnal e irreverente, arrancando gargalhadas da plateia. O poeta usa uma declamação rápida, quase sem oscilações melódicas, dando ênfase às consoantes. Faz referência aos lugares do “amasso escondido” - a janela, o portão e o colchão -, e usa a expressão coloquial “Aí foi grande o moído”, com sentido de bagunça, farra, diversão, festa. Sua declamação eufórica e direta lida com elementos de melodia e ritmo de modo oposto ao da glosa anterior (ver Figura 2).

Figura 2
Glosa de Genildo Pitú

A participação de Elenilda Amaral arranca aplausos efusivos da plateia, quase impedindo que ela termine a declamação do mote. Sua apresentação valoriza um ritmo nem tão pausado e romântico quanto o de Wellington, nem tão pulsante e humorístico quanto o de Genildo. A melódica de Elenilda valoriza sons rebatidos, com pequenos movimentos para o grave e o agudo nos quatro primeiros versos, para depois emendar o fluxo enunciativo dos conjuntos 5-6 e 7-8 (ver Figura 3).

Figura 3
Glosa de Elenilda Amaral

Esse ritmo pausado dos primeiros quatro versos e a ausência de pausas entre os quatro versos antes do mote acompanha o conteúdo do texto poético. O poema começa de forma um tanto inocente e desinteressada, falando de relações familiares e de um relacionamento socialmente convencional, com o pretendente formalizando a procura pelos pais de sua namorada. O verso “Botar fogo em minha brasa” já anuncia o que virá a seguir, no próximo quarteto, em que Elenilda se vale de um humor que exagera as proporções do sentimento, intensificando o ritmo: “Como a paixão não se atrasa / Você foi de caminhão”. Finalizando, o amor inocente do começo da glosa se transforma em um “moído”, como diria Genildo Pitú, e Elenilda não consegue nem terminar a declamação do mote - o público reage com aplausos efusivos ao humor de sua estrofe.

Já se observou diversas vezes que a cantoria de viola compartilha de um mesmo universo poético com a literatura de cordel (Travassos, 2000Travassos, Elisabeth. (2000). Ethics in the sung duels of north-eastern Brazil: collective memory and contemporary practice. British Journal of Ethnomusicology, 9/1, p. 61-94.), inclusive no que se refere aos padrões vocais (Sautchuk, 2014Sautchuk, João Miguel. (2014). A palavra, o verso e o canto: repente e cordel no Nordeste do Brasil. In: Matos, Cláudia Neiva de; Medeiros, Fernanda Teixeira de & Oliveira, Leonardo Davino de (orgs.). Palavra cantada: estudos transdisciplinares. Rio de Janeiro: EdUERJ, p. 161-174.). A observação vale também para a prática das rodas de glosa, e possivelmente também para a declamação da poesia de bancada. A diferença entre cantado e declamado é uma questão de grau.

AS MESAS DE GLOSAS: FORMALIDADE, INFORMALIDADE E CULTURA OFICIAL

As estrofes analisadas anteriormente foram improvisadas numa mesa de glosas em Tabira, no Vale do Pajeú, sertão de Pernambuco, em 2015, e mostram uma transformação na prática da glosa, mas não na sua forma verbal e sonora. No Pajeú e na região circunvizinha do Cariri Paraibano, a poesia popular ganhou centralidade na construção de uma cultura oficial local. Tal construção reivindica uma posição de origem histórica, pois são dessa região as referências mais antigas de que se tem conhecimento sobre a poesia popular no sertão nordestino. Trata-se da obra do poeta e editor paraibano Francisco das Chagas Batista (1997Batista, Francisco das Chagas. (1997). Cantadores e poetas populares. 2. ed. João Pessoa: Editora UFPB.), publicada originalmente em 1929. Com base em acervos manuscritos e em relatos orais de poetas paraibanos e pernambucanos, Batista (sendo ele mesmo descendente de alguns desses antecessores) sistematizou um singular registro do repente, da glosa e da poesia escrita para a declamação (a poesia de bancada e posteriormente a literatura de cordel), a partir da virada do século XIX. Com o tempo, essas referências foram elaboradas como narrativa de origem da poesia popular no Nordeste.

Os nomes dos grandes repentistas que outrora viveram ali são constantemente lembrados e homenageados. É comum a participação de poetas populares em solenidades municipais e em celebrações religiosas12 12 Ali, como em outros lugares do país, comemorações católicas são muitas vezes festas municipais. . Além disso, o prestígio alcançado por alguns poetas, suas alianças com diversos setores da sociedade local (em especial clérigos, empresários, fazendeiros e políticos) e sua projeção midiática, sobretudo por meio do rádio, favoreceram sua entrada na política eleitoral ou sua atuação à frente de órgãos públicos da gestão municipal13 13 Por exemplo, entre 2013 e 2020, Tabira teve como prefeito o repentista Sebastião Dias - referência da cantoria desde a década de 1970 -, que contou com o repentista José Carlos do Pajeú como Secretário da Juventude e Meio Ambiente entre 2013 e 2016. Além deles, a poetisa de bancada Isabelly Moreira assumiu a Secretaria de Cultura de São José do Egito-PE, em 2020. .

Em São José do Egito-PE, a prefeitura “revitaliza” áreas da cidade com a pintura de painéis que contêm estrofes de repentistas e poetas de bancada que nasceram ou viveram ali. Alguns descendentes do célebre cantador Lourival Batista integram como artistas e professores uma elite cultural local. Valeram-se desse capital para elaborar um projeto de ensino da poesia popular como disciplina nas escolas da rede municipal de ensino, que se tornou obrigatória com a promulgação da lei municipal nº 596, em 2015. Em Tabira, o repentista José Carlos do Pajeú implementou nas escolas o projeto de ensino voluntário de poesia Infância Rimada, com o intuito de incentivar entre as crianças a escrita, declamação e apreciação das diversas formas da poesia popular local. Tais projetos enfatizam a leitura, memorização, declamação e escrita de poesia, seguindo os fundamentos da métrica, da rima e da oração, e visam primeiro ampliar e consolidar plateias para a poesia, para que daí possam surgir novos poetas.

Percebe-se então o projeto de transbordamento da prática da poesia para novos círculos sociais por meio de estratégias de oficialização: aulas com horários de início e término, uso de material didático, compilação de antologias de estrofes e poemas paradigmáticos e a separação institucional dos papéis de mestre (professor) e novatos (alunos). Tais procedimentos remetem aos aspectos de maior formalização apontados por Irvine (2001Irvine, Judith. (2001). Formality and informality in communicative events. In: Duranti, Alessandro (ed.). Linguistic anthropology: a reader. Hoboken: Wiley, p. 189-207.) e têm sido, desde meados do século XX, comuns nas estratégias dos poetas populares para conquistar novos campos de atuação.

Ainda em Tabira, como parte dessa tendência de oficialização da poesia, a glosa ganhou contornos de maior formalidade. Poetas de lá estabeleceram as “Mesas de Glosas”, eventos públicos, com data, hora e local marcados e divulgação prévia, uma comissão organizadora, um apresentador e um elenco de glosadores convidados. Esse formato começou a ser praticado em 1996 como parte das festividades nas vésperas da Missa do Poeta, que integra o calendário festivo da cidade. A Missa é celebrada anualmente na praça da cidade, com a participação de repentistas, cantores e declamadores na homilia, e é uma homenagem a José Marcolino, poeta popular e compositor paraibano14 14 A Missa do Poeta é promovida anualmente pela Associação dos Poetas e Prosadores de Tabira. Natural de Sumé-PB, José Marcolino Alves nunca residiu em Tabira, mas circulava pelo Vale do Pajeú. Vivendo entre repentistas, chamava a todos de “poeta”. Quando faleceu, morava em Serra Talhada-PE. Era amigo do Padre Assis, que lá vivia e trabalhava, e quem teve a iniciativa de realizar essa missa em memória do compositor, agregando também a apresentação de repentistas e declamadores da região. O padre mudou-se para Tabira, levando com ele a realização da Missa. Quando, por fim, Assis retornou para Sobral-CE, sua cidade natal, repentistas de Tabira associaram-se ao novo pároco e deram continuidade a essa celebração. . Na véspera, realiza-se no auditório de um colégio da cidade uma “Mesa de Glosas”, com a participação de repentistas, cordelistas e glosadores da região. Frequentemente, realizam-se também cantorias nas datas próximas à Missa.

Anualmente, a Mesa de Glosas preenche o auditório (com capacidade para mais de 200 espectadores). Os glosadores convidados são poetas de bancada, declamadores e repentistas, em sua maioria vindos de municípios do Pajeú e do Cariri Paraibano. Os dez poetas sentam-se de frente para a plateia ao longo de uma mesa disposta sobre o palco. Uma comissão organizadora elabora os motes, que são grafados em cartolinas ou na tela de algum dispositivo eletrônico. Quando o apresentador da mesa anuncia um mote, este permanece visível (na cartolina ou tela) em frente aos glosadores, para evitar o risco do esquecimento. Enquanto algum poeta que não participa da mesa declama algum poema, os glosadores têm poucos minutos para elaborar suas estrofes. Em seguida, os glosadores declamam em sequência suas estrofes. As mesas não são competitivas, mas se preza muito pela igualdade de condições. São dez motes, possibilitando que cada poeta seja o primeiro a glosar em um deles.

As mesas reelaboram para o contexto da glosa certos padrões consagrados pelos festivais de repentistas realizados desde a década de 1940: participação de um elenco de poetas convidados; o anúncio do tema por um apresentador (o que dramatiza diante do público a tensão do improviso); a igualdade de condições dadas aos improvisadores; e a diferenciação entre estes, a plateia, os organizadores, o apresentador e os declamadores que se apresentam nos intervalos do improviso.

Os festivais foram um modo de apresentação utilizado pelos cantadores para acessar públicos que não eram ouvintes usuais das cantorias: nas décadas de 1940 e 1950, as elites de capitais como Fortaleza, Recife e Rio de Janeiro; nos anos 1970, por exemplo, estudantes universitários e outros segmentos urbanos. As mesas de glosas servem a uma estratégia semelhante: diante do movimento de oficialização da poesia popular que observamos, essas mesas atraem os ouvintes de cantoria, mas também pessoas que não costumam ir às cantorias ou que não vivenciam a poesia tão de perto em seu cotidiano e em suas celebrações, diversificando o gosto, o interesse e a demanda local pela poesia15 15 Entrevista de Sebastião Dias Filho a João Miguel Sautchuk em Tabira-PE, 19 de setembro de 2015. . Além disso, o modelo das mesas de glosa passou a ser adotado em diversas cidades do Nordeste por promotores de eventos de poesia. Entre os anos de 2020 e 2022, no contexto de isolamento social quando da pandemia do covid-19, também nas lives se estabeleceram mesas de glosas online, com transmissão ao vivo por plataformas digitais como o Youtube.

Apesar de enfatizar a diferenciação relativa entre glosadores e ouvintes, o modelo das mesas mantém das antigas rodas de glosas (como os encontros narrados por Albino Pereira e Chico Pedrosa) as oportunidades de diversos poetas improvisarem junto aos repentistas (os improvisadores por excelência), de poetas que não atuam como repentistas poderem mostrar também seu talento para o improviso e, ainda, de amadores se apresentarem junto a profissionais.

Essa lógica democrática da glosa, que pulsa mesmo na formalização das mesas, acabou por tocar mais recentemente uma oposição crítica no universo da poesia popular (como em tantas artes) até então pouco mencionada: aquela entre homens e mulheres. As antologias escritas (Alves Sobrinho, 2003Alves Sobrinho, José. (2003). Cantadores, repentistas e poetas populares. Campina Grande: Bagagem.; Melo, 1971Melo, Veríssimo de. (1971). A glosa, veículo de comunicação popular. Revista Brasileira de Folclore, 11/30, p. 183-190.; Silveira, 1979Silveira, Celso da (org.). (1979). Glosa glosarum: coletânea de glosas fesceninas. Natal: Clima.) e os relatos orais não mencionam mulheres na glosa. Sobre essa lacuna, afirma Isabelly Moreira (2019Moreira, Isabelly. (2019). A mulher na poesia do Pajeú. Observatório Itaú Cultural, 25, p. 103-107. Disponível em <Disponível em https://issuu.com/itaucultural/docs/obs25_issuu__1_ >. Acesso em 20 out. 2022.
https://issuu.com/itaucultural/docs/obs2...
: 105) que, sendo os bares e o ambiente boêmio espaço privilegiado para a glosa, ocorria que

os poetas se encontrassem nos bares e protagonizassem glosas por horas a fio. E as poetisas continuavam de fora, pois, se hoje ainda se encontra quem implique com mulher bebendo rodeada de amigos, imagine no tempo de nossos avós. Talvez também por isso não se tenha registros de glosadoras que frequentavam as rodas. Talvez.

Quase duas décadas decorridas da realização da primeira Mesa de Glosa em Tabira, foi em 2015 que ocorreu a primeira participação feminina no evento, o que se tornou regra a partir de então naquela e em outras mesas. Isso tem se tornado um exemplo positivo para a diluição de separações entre homens e mulheres no campo da poesia, e contribuiu para projetar notáveis jovens poetisas de bancada e declamadoras, como Dayane Rocha (de Tabira), Elenilda Amaral e Erivoneide Amaral (ambas de Afogados da Ingazeira-PE) e Francisca Araújo (de Iguaraci-PE).

As estratégias de formalização da glosa aqui abordadas, na medida em que desenvolvem a separação dos papéis de poeta e ouvinte, supõem também figuras de mediação, como a associação que organiza o evento, um poeta ou comissão que elabora os motes e um apresentador que exerce a função de guia, regulando tempo, orientando os poetas e interpelando a plateia. Ao passo que tais estratégias se consolidaram historicamente, ao invés de forçar um sentido único e irrevogável, acabam gerando uma diversificação das práticas e relações. Ou seja, as mesas de glosa não suplantaram nem parecem inibir as realizações menos formalizadas da prática. Além disso, o modelo das mesas trouxe uma inovação nas dinâmicas interativas e relacionais da glosa, ao mesmo tempo que preserva seus padrões expressivos (ou seja, as formas poéticas num sentido mais restrito) e seus caminhos técnicos e processos criativos. Acreditamos ser esse um dos motivos para que essa inovação, ao trazer novos ouvintes para a glosa, imprima a ela um sentido renovado para seus amantes e praticantes mais antigos.

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  • Seeger, Charles. (1958). Prescriptive and descriptive music-writing. The Musical Quarterly, 44/2, p. 184-195.
  • Seeger, Anthony. (2015). Por que cantam os Kĩsêdjê: uma antropologia musical de um povo amazônico. São Paulo: Cosac & Naify.
  • Silveira, Celso da (org.). (1979). Glosa glosarum: coletânea de glosas fesceninas. Natal: Clima.
  • Silverstein, Michael. (1997). The improvisational performance of culture in realtime discursive practice. In: Sawyer, Keith (ed.). Creativity in performance. Nova York: Ablex, p. 265-312.
  • Tambiah, Stanley Jeyaraja. (1985). Culture, thought, and social action: an anthropological perspective. Cambridge: Harvard University Press.
  • Tatit, Luiz. (2002). O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp.
  • Tinhorão, José Ramos. (2004). Domingos Caldas Barbosa: o poeta da viola, da modinha e do lundu. São Paulo: Editora 34.
  • Travassos, Elisabeth. (1989a). Melodias para a improvisação poética no Nordeste: toadas de sextilhas segundo a apreciação dos cantadores. Revista Brasileira de Música, 18, p. 115-129.
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  • Treitler, Leo. (1989). The beginnings of music-writing in the West: historical and semiotic aspects. Language & Communication, 9/2-3, p. 193-211.

NOTAS

  • 1
    A poesia de bancada é escrita para ser declamada e pode ser tanto lírica quanto narrativa. Muitos poetas de bancada são também declamadores, notabilizando-se pela interpretação de poemas seus ou alheios. Como veremos, alguns deles são também glosadores ocasionais.
  • 2
    Conforme o cordelista potiguar Crispiniano Neto em palestras e conversas pessoais com João Sautchuk entre 2015 e 2017.
  • 3
    Outras formas foram registradas: no século XIX, o mote em uma linha e o mote dado em quadras para o glosador desenvolver quatro décimas, cada uma concluída com uma linha do mote (Batista, 1997Batista, Francisco das Chagas. (1997). Cantadores e poetas populares. 2. ed. João Pessoa: Editora UFPB.); mais recentemente, no Vale do Rio Açu (Rio Grande do Norte), o mote em duas linhas, das quais a primeira será o quarto verso da décima e a segunda linha conclui a estrofe (Amorim, 2002Amorim, Francisco. (2002). Eu conheci Sesyom. Ed. fac-sim. Natal: Sebo Vermelho. Fac-similar da 3ª edição, publicada em Açu/RN, 1991.; Melo, 1971Melo, Veríssimo de. (1971). A glosa, veículo de comunicação popular. Revista Brasileira de Folclore, 11/30, p. 183-190.). José Ramos Tinhorão (2004Tinhorão, José Ramos. (2004). Domingos Caldas Barbosa: o poeta da viola, da modinha e do lundu. São Paulo: Editora 34.: 149-154) mostra na cidade de Lisboa no crepúsculo do século XVIII uma prática bastante semelhante, apesar de mais solene, à glosa registrada no sertão nordestino a partir do século seguinte, inclusive com o improviso em décimas a partir de motes de uma e de quatro linhas.
  • 4
    Inspirados em autores como Halbwachs (2004)Halbwachs, Maurice. (2004). A memória coletiva. São Paulo: Vértice. e Pollak (1989Pollak, Michael. (1989). Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, 2/3, p. 3-15., 1992Pollak, Michael. (1992). Memória e identidade social. Estudos Históricos , 5/10, p. 200-212.), entendemos a memória coletiva como processo complexo de seleção e enquadramento do passado numa ação do presente. As pessoas, eventos e estrofes selecionadas e idealizadas figuram nas narrativas de memória como afirmações atuais sobre o que é a poesia e o improviso num imaginário do lugar e do valor atual dos poetas.
  • 5
    Numa cantoria, tudo isso se torna mais dramático pela questão do pagamento, e os repentistas sentem a obrigação de atender a todos os pedidos feitos pelos ouvintes.
  • 6
    Entrevista de Dedé Monteiro (José Rufino da Costa Neto) a João Miguel Sautchuk em Tabira-PE, em 19 de setembro de 2015. A estrofe foi também espontaneamente mencionada por Albino Pereira (depoimento em 2015) e Isabelly Moreira (poetiza de bancada egipiciense, nascida em 1993, em depoimento a Sautchuk, em 2018) e citada pelo repentista Jó Patriota em 1967 a Geraldo Sarno (2006Sarno, Geraldo. (2006). Cadernos do Sertão. Salvador: Núcleo de Cinema e Audiovisual (NAU).: 156).
  • 7
    Em entrevista cedida a João Sautchuk em Tabira-PE, 2015.
  • 8
    Adotamos a categoria ouvinte com base em seu uso local. No universo dessas poesias, a/o ouvinte é, evidentemente, quem assiste (e portanto ouve) a poesia, mas também participa dela, reagindo, estimulando e, mais diretamente, elaborando e dando o mote sobre o qual é construída a estrofe. Atentamo-nos aos argumentos de Goffman (2002b), em sua crítica ao uso irrefletido da dicotomia falante/ouvinte nas análises da conversação, pois entendemos que nas interações verbais os momentos de fala se desdobram por movimentos conjuntos entre os agentes.
  • 9
    Depoimento de Albino Pereira a João Miguel Sautchuk em Tabira-PE, 2015.
  • 10
    Entrevista de Chico Pedrosa (Francisco Pedrosa Galvão) a João Miguel Sautchuk em Olinda-PE, em 1 de novembro de 2017.
  • 11
    A análise musical da voz declamada na glosa teve início nas pesquisas para fundamentação do processo de registro do repente como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Iphan, no qual a glosa foi considerada como um bem cultural associado (Iphan, 2021Iphan - Instituo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. (2021). Dossiê de Registro do Repente como patrimônio cultural imaterial do Brasil. Coordenação de João Miguel Sautchuk. Brasília, DF: Iphan.). Desde aquela pesquisa, investigamos a musicalidade das declamações em mesas de glosa. Inicialmente, foi utilizado um gráfico de alturas, que, no entanto, não dava conta das sutilezas da voz declamada. Decidiu-se utilizar então uma partitura comum, inserindo o sinal “x” sobre as notas para reforçar a ideia de alturas aproximadas. Em paralelo, as durações rítmicas também são aproximadas, como a pesquisa possibilitou registrar pela audição das gravações.
  • 12
    Ali, como em outros lugares do país, comemorações católicas são muitas vezes festas municipais.
  • 13
    Por exemplo, entre 2013 e 2020, Tabira teve como prefeito o repentista Sebastião Dias - referência da cantoria desde a década de 1970 -, que contou com o repentista José Carlos do Pajeú como Secretário da Juventude e Meio Ambiente entre 2013 e 2016. Além deles, a poetisa de bancada Isabelly Moreira assumiu a Secretaria de Cultura de São José do Egito-PE, em 2020.
  • 14
    A Missa do Poeta é promovida anualmente pela Associação dos Poetas e Prosadores de Tabira. Natural de Sumé-PB, José Marcolino Alves nunca residiu em Tabira, mas circulava pelo Vale do Pajeú. Vivendo entre repentistas, chamava a todos de “poeta”. Quando faleceu, morava em Serra Talhada-PE. Era amigo do Padre Assis, que lá vivia e trabalhava, e quem teve a iniciativa de realizar essa missa em memória do compositor, agregando também a apresentação de repentistas e declamadores da região. O padre mudou-se para Tabira, levando com ele a realização da Missa. Quando, por fim, Assis retornou para Sobral-CE, sua cidade natal, repentistas de Tabira associaram-se ao novo pároco e deram continuidade a essa celebração.
  • 15
    Entrevista de Sebastião Dias Filho a João Miguel Sautchuk em Tabira-PE, 19 de setembro de 2015.
  • *
    Os dados etnográficos e registros audiovisuais citados no artigo foram produzidos por João Miguel Sautchuk em 2015, 2017 e 2018, durante a pesquisa para o registro do repente como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, contando com recursos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan (Projeto 914BRZ4012/2015 e TED 001/2017) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) (Projeto 914BRZ4012/2015). Lucas Oliveira de Moura Arruda contribuiu com análises musicológicas e etnográficas sobre a glosa, realizando as transcrições em partitura incluídas neste artigo. O Dossiê resultante (Iphan, 2021Iphan - Instituo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. (2021). Dossiê de Registro do Repente como patrimônio cultural imaterial do Brasil. Coordenação de João Miguel Sautchuk. Brasília, DF: Iphan.) deve ser publicado em breve pelo Iphan. Agradecemos ao Iphan, em especial ao Departamento de Patrimônio Imaterial/Iphan, ao Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Iphan e à Superintendência do Iphan em Pernambuco. Agradecemos também a Carlos Sandroni (UFPE), pela elaboração de parâmetros para as análises musicológicas do Dossiê de Registro do Repente que foram seguidos aqui.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2022
  • Revisado
    17 Ago 2022
  • Aceito
    14 Out 2022
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