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Perspectivas de (cis)gêneros nas audiências de custódia

(Cis)genders perspectives in custody hearings

Resumo

A partir de trabalho de campo realizado em Belo Horizonte (Minas Gerais), buscou-se compreender como o fluxo das Audiências de Custódia reitera a lógica penal de produção de precariedade, em relação à população trans, através de dois problemas: a) o uso do nome registro civil das pessoas trans, em detrimento do nome social; e b) o encaminhamento à rede de assistência psicossocial, por meio da determinação de um combo de medidas cautelares, que invisibiliza as demandas apresentadas por elas. Para exame dessas questões, foram utilizadas as observações anotadas no caderno de campo e as entrevistas semiestruturadas realizadas com três agentes responsáveis por serviços das audiências de custódia. Constatamos que há um enquadramento das experiências trans a partir da cisgeneridade; posicionamento que reforça a precariedade da visibilidade do público trans e de suas demandas.

Palavras-chave:
Audiência de custódia; Precariedade; Gênero; Travestis; Transexuais; Nome Social

Abstract

Based on fieldwork carried out in Belo Horizonte (Minas Gerais), we sought to comprehend how the flow of Custody Hearings reiterate the penal logic of precariousness in relation to the trans population, throughout two issues: a) the use of the civil name of transgender people in detriment of the “social name” (which is the chosen name); and b) the creation of a standard package of precautionary measures, which includes social assistance but makes their specific demands invisible. To address these two questions, we used the observations written in the field notebook and the semi-structured interviews carried out with agents responsible for the services in Custody Hearings. We found that, there is a framing of trans experiences from cisgenerity, which reinforces the precarious visibility of the trans people and their demands.

Keywords:
Custody Hearing; Precariousness; Gender; Transvestites; Transsexuals; “Social Name”

1) INTRODUÇÃO

Se os sociólogos realmente quisessem entender melhor a transexualidade, ao invés de se concentrarem, exclusivamente, nos comportamentos e na etiologia das pessoas transexuais, eles estudariam a animosidade irracional, o medo e o desrespeito que muitos cissexuais expressam em relação às pessoas trans (e em relação a outras pessoas com características sexuais e de gênero excepcionais) (SERANO, 2007SERANO, Julia. Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity. California: Seal Press, 2007., p. 211-212, tradução nossa).

Os estudos feministas buscam destacar os perigos e limites da cristalização do gênero em categorias universais e naturalizadas, como a binariedade de homens e mulheres, problematizando como o gênero é fruto de posicionamentos políticos, econômicos e raciais, que se definem a partir de contextos históricos (HARDING, 2019HARDING, Sandra. A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque (org). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019, p. 95-120., p. 97). Trata-se de um campo de estudos que busca desnaturalizar a fixidez das identidades de gênero e sexualidade, apontando para a dimensão relacional da constituição dos sentidos das experiências sociais dos indivíduos, que podem ou não ser decorrentes do que chamamos de sexo biológico (RAGO, 2019RAGO, Margareth. Epistemologia feministas, gênero e história. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque (org). Pensamento feminista: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019, p: 371-388., p. 375). Na contemporaneidade, os estudos de gênero enxergam e contestam os limites que foram imprimidos às compreensões dessa categoria, quando ela é entendida apenas através da representação entre mulheres e homens.

Gomes (2018GOMES, Camilla de Magalhães. Gênero como categoria de análise decolonial. Civitas-Revista de Ciências Sociais, v. 18, n. 1, p. 65-82, 2018.) entende que o gênero pode se consubstanciar em “uma categoria de análise capaz de desestabilizar o que é ser homem ou ser mulher apenas quando percebido não como uma categoria primária” (p. 65, grifo do autor). Nesta acepção, o “gênero desinveste a preocupação de fortalecimento da identidade da mulher, ao contrário do que se visava inicialmente com o projeto alternativo de uma ciência feminista" (RAGO, 2019RAGO, Margareth. Epistemologia feministas, gênero e história. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque (org). Pensamento feminista: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019, p: 371-388., p. 376). É uma categoria que ultrapassa a divisão binária de masculino e feminino. Para tanto, é preciso pensar o gênero criticamente, entendendo que a cisgeneridade1 1 Pessoas cisgêneras, ou “cis”, são aquelas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando ao nascimento (JESUS, 2012, p. 10), geralmente associado ao suposto sexo biológico definido por terceiros. não é a única experiência possível. De acordo com Serano (2007SERANO, Julia. Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity. California: Seal Press, 2007.), é comum definirmos o gênero de alguém por uma “suposição cissexual” (cissexual assumption), em que o sexo biológico (muitas vezes registrado na certidão de nascimento) dá ensejo a um gênero específico que transita entre o masculino e feminino, o que significa projetar a cissexualidade sobre as outras pessoas, transformando tal atributo (ou combinação) em uma espécie de verdade a priori.

Se os estudos acadêmicos e as políticas públicas levam à produção de um campo sociocultural, institucional e político que naturaliza e normativiza a cisgeneridade, denominado de cisnormatividade (VERGUEIRO, 2015VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade). Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015., p. 68), é preciso superar a binariedade, como pressupõe o pensamento transfeminista (GOMES, 2018GOMES, Camilla de Magalhães. Gênero como categoria de análise decolonial. Civitas-Revista de Ciências Sociais, v. 18, n. 1, p. 65-82, 2018.; JESUS, 2015JESUS, Jaqueline Gomes de et al. Interlocuções teóricas do pensamento transfeminista. In: Transfeminismo: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Metanoia, 2015.). Tal linha de pesquisa parte do princípio de que categorias como masculino e feminino são uma forma de opressão sobre corpos que estão em desacordo com o binarismo de gênero (homem/pênis e mulher/vagina). E, neste diapasão, de acordo com Gomes (2018GOMES, Camilla de Magalhães. Gênero como categoria de análise decolonial. Civitas-Revista de Ciências Sociais, v. 18, n. 1, p. 65-82, 2018.), as minúcias de diferenciação entre transexuais e travestis não se tornam visíveis aos interlocutores cisgêneros em processos de interação. Tais sujeitos tendem a lançar mão de estereótipos, como a ausência de vinculação entre sexo (macho/fêmea) e gênero (masculino/feminino), colocando tudo que não se enquadra neste binarismo dentro da categoria “trans” ou dentro da categoria “outros”.

Logo, entendemos que o gênero é uma categoria que pode ser compreendida como um intervalo de sentidos, a depender do tempo e espaço em que estão localizadas (FELTRAN, 2017FELTRAN, Gabriel. A Categoria como Intervalo: a diferença entre essência e desconstrução. Cadernos Pagu: Campinas, n. 51, 2017., p. 3-4). É a relação entre os sujeitos e as normas que configuram os sentidos dados às categorias sociais de “gênero”. A partir deste referencial, procuramos compreender como os operadores do direito cisgêneros, que participaram do campo de pesquisa, mobilizam, no âmbito das audiências de custódia, as categorias de gênero, a partir da reiteração da cisnormatividade. Não pretendemos definir o que significa ser uma pessoa trans, mas sim compreender quais são os sentidos acionados por esses operadores, no contexto da lógica penal. Optamos por utilizar o termo pessoas trans não com o objetivo de invisibilizar as diferenças e semelhanças entre as identidades de gênero de travestis e transexuais. Fizemos esta opção porque percebemos, através das entrevistas, a sua utilização pelos próprios operadores da custódia, enquanto um termo mais genérico para se referir às custodiadas travestis e transexuais.

As Audiências de Custódia foram regulamentadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através da resolução nº 213/20152 2 Tal documento objetivava alinhar as práticas processuais penais brasileiras à tratados e convenções de Direitos Humanos aos quais o Brasil é signatário, tais como Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. , que estabeleceu a obrigatoriedade de que toda pessoa presa em flagrante delito seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão (IDDD, 2017). Elas foram formalmente instituídas no Código de Processo Penal por meio da Lei n° 13.964 de 24 de Dezembro de 2019, que a incluiu como uma obrigatoriedade do processamento penal por meio do art. 310.3 3 Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. A regulamentação deste instituto tem como pretensão respeitar a excepcionalidade da decretação das prisões cautelares, diminuindo a incidência de pessoas presas durante o inquérito e a instrução criminal (IDDD, 2019). Além disso, as Audiências de Custódia visam prevenir a tortura de pessoas conduzidas por parte dos policiais (BANDEIRA, 2018BANDEIRA, Ana Luíza Villela de Viana. Audiências de custódia: percepções morais sobre violência policial e quem é vítima. 2018. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2018.), já que as marcas de violência seriam mais facilmente detectadas com a apresentação delas à juíza ou ao juiz de direito logo após a prisão (TOLEDO; JESUS, 2021TOLEDO, F. L.; JESUS, M. G. M. de. Olhos da Justiça: o contato entre juízes e custodiados nas audiências de custódia em São Paulo. São Paulo: Revista Direito GV, v. 17, n. 1, p. 1-28 2021.).

O universo das Audiências de Custódia nos pareceu apropriado para a questão de pesquisa, por se tratar de um instituto novo no ordenamento jurídico brasileiro e que tem sido objeto de inúmeras pesquisas (IDDD, 2019; AMORIM & KANT DE LIMA, 2022AMORIM, Maria Stella; DE LIMA, Roberto Kant. Administração de conflitos e cidadania: problemas e perspectivas III. Editora Autografia, 2022.). As realizadas até o momento indicam que os presos em flagrante têm características muito semelhantes aos detentos do país como um todo: são em sua maioria homens, negros, jovens, com baixa escolaridade e detidos majoritariamente por delitos como roubos, furtos e tráfico de drogas, identificados principalmente pelo policiamento ostensivo (RIBEIRO et al, 2020RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes et al. Nem preso, nem livre: a audiência de custódia em Belo Horizonte como reposta ao encarceramento provisório em massa. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020.; JESUS & SILVESTRE, 2021JESUS, Maria Gorete Marques; SILVESTRE, Giane. Os limites das audiências de custódia: reflexões sobre encarceramento, política criminal e gestão política do judiciário. O Público e o Privado, v. 19, n. 39 mai/ago, 2021.).

No que se refere à perspectiva de gênero, apesar da discussão sobre a inclusão das experiências de travestis e transexuais nas pesquisas não ser nova no Brasil, observamos que os estudos sobre Audiência de Custódia operam, tão somente, a partir da divisão binária entre mulher e homem, fato que dificulta a compreensão de qual é a realidade das presas provisórias travestis ou transexuais (IDDD, 2019). A nossa hipótese é que os sentidos do gênero, que são tomados pelas pessoas cisgêneras (operadores do direito) em relação às pessoas trans (presas em flagrante), podem ser revelados nas interações que têm lugar nas Audiências de Custódia, bem como nas narrativas desses profissionais. Para comprová-la, foram utilizadas as anotações no diário de campo da pesquisa, que foram produzidas a partir da observação das audiências e leitura dos Registro de Eventos de Defesa Social (REDS) presentes nos autos dos processos, bem como as entrevistas com os operadores que atuaram nas audiências de custódia. As características das custodiadas travestis e transexuais conduzidas para as audiências de custódia no período dessa pesquisa apontam para a reificação da seletividade do sistema penal, posto que a maioria era negra, sendo que todas elas eram jovens, tinham entre 18 a 25 anos, sendo naturais de outras cidades e com residência fixa (ALVES, 2021ALVES, Izabella Riza. “ESSE POVO MATA MESMO”: biopolítica e cisnormatividade nas audiências de custódia. 2021. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pós-graduacao em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021., p. 87).

2) GÊNEROS: DEFINIÇÕES E REINTERPRETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Partimos da concepção de que sexo e gênero não são estritamente biológicos, mas sim construções que estão amarradas no contexto social e histórico. Ou seja, sexo e gênero não são propriamente naturais e a-históricos. Afinal, mesmo as compreensões sobre a biologia dos corpos perpassam por uma concepção de ciência que é construída socialmente. Anne Fausto-Sterling (2000) entende que o conhecimento científico produzido em relação à sexualidade humana é fruto de lutas políticas, morais e econômicas. Ele não é resultado de uma verdade a priori, mas de uma investigação guiada por uma moral sexual dominante.

Durante muitos anos, a ciência reforçou o entendimento de que dois sexos (homem e mulher) dariam ensejo a somente dois gêneros (masculino e feminino) e qualquer dissonância dessa combinação deveria ser tratada como um problema de saúde, para que fosse possível novamente a sua adequação (CARVALHO, 2018CARVALHO, Mário. “Travesti”, “mulher transexual”, “homem trans” e “não binário”: interseccionalidades de classe e geração na produção de identidades políticas. Cadernos Pagu, n. 52, 2018.). Isso significa dizer que a divisão binária entre os sexos, baseada na genitália e em elementos genéticos, diz mais sobre posições e escolhas sociais que guiam as investigações científicas, dividindo a espécie humana apenas entre homens e mulheres (FAUSTO-STERLING, 2000FAUSTO-STERLING, Anne. Sexing the Body. New York: Basic Books, 2000., p. 3-5). De acordo com essa matriz, sexo, gênero e desejo seriam considerados como uma decorrência direta da biologia natural dos corpos. Para que gênero e sexualidade fossem aceitáveis e inteligíveis, era necessária a coerência entre ambos, isto é, o gênero deveria decorrer do sexo biológico (fêmea ou macho) e o desejo sexual deveria se apresentar enquanto uma complementariedade entre os gêneros opostos, sendo, portanto, o heterossexual (BUTLER, 2016BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., p. 43-44).

Partindo de Judith Butler (2016BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.), entendemos que sexo, gênero e sexualidade são constituídos através de uma matriz heterossexual e binária que é responsável por definir quais experiências são consideradas como inteligíveis e quais são dissidentes. Essa matriz consiste em uma base discursiva e epistemológica, que associa a experiência do corpo humano às bases biológicas naturalistas, o que não corresponde à diversidade de sexos, gêneros e sexualidades existentes na vida cotidiana (BUTLER, 2016BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., p.258). Paul B. Preciado (2018PRECIADO, Paul B. Texto Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018.) considera que, na era farmacopornográfica, há uma nova forma de construção da feminilidade e masculinidade, dada pelos hormônios sintéticos capazes de interferir na materialidade dos corpos. Ou seja, se a feminilidade e a masculinidade sempre foram ficções construídas, através da corporeidade humana e por meio de performances e normas culturais; na era farmacopornográfica ambos são passíveis de serem construídos no seio de uma estratégia de administração hormonal.

Se Preciado (2018PRECIADO, Paul B. Texto Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018.) aponta para a plasticidade do gênero e da sexualidade, na medida em que os hormônios podem ser instrumentos de suas feituras, podemos afirmar que vivemos um caos epistemológico, no sentido de que o conhecimento científico produz informações contraditórias sobre o corpo humano, com o intuito de legitimar e concordar com uma ordem de gênero dominante com potencial intervenção tecnopolítica (PRECIADO, 2018PRECIADO, Paul B. Texto Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 241). Os “hormônios sexuais” seriam instrumentos utilizados pelas táticas (bio)políticas de performances de gêneros úteis para o capitalismo e colonialismo (PRECIADO, 2018, p. 205). Ao se posicionar dessa forma, Preciado (2018) confronta as afirmações científicas naturalistas, em relação aos hormônios humanos, assim como Anne Fausto-Sterling (2000) aponta para a moralidade da interpretação da genética humana, que seria complexa demais para simplesmente ser dividida em duas categorias (homem e mulher).

Todavia, na vida cotidiana, é comum, quando nos direcionamos a uma pessoa que não conhecemos, procurarmos nela características que se adéquem a critérios de feminilidade ou masculinidade (sexo), a fim de decidirmos se iremos nos referir a ela como “senhora” ou “senhor” (gênero). Por isso, Julia Serano (2007SERANO, Julia. Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity. California: Seal Press, 2007.) afirma que distinguir os sexos é um processo ativo, pois estamos constantemente e ativamente projetando nossos ideais sobre feminilidade e masculinidade em relação às outras pessoas. A autora nomina esse processo de generificação (gendering), com o objetivo de realçar o fato de que nós, ativamente e compulsivamente, atribuímos gênero a todas as pessoas, a partir de meras dicas visuais e auditivas que podemos captar no momento (SERANO, 2007SERANO, Julia. Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity. California: Seal Press, 2007., p. 259-260). Neste contexto, o processo de identificar o gênero de alguém, numa interação social qualquer, é uma mera especulação, apesar de as pessoas cissexuais acreditarem que isto é apenas uma observação (SERANO, 2007, p. 262).

Neste espectro, Julia Serano (2007SERANO, Julia. Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity. California: Seal Press, 2007.) indica que a vivência das pessoas trans encontra-se em um campo de normatividade de gênero em que as experiências e percepções sociais de pessoas cissexuais definem a forma como seu gênero será lido. A depender do espaço em que a pessoa trans está e, se seus interlocutores estão acostumados a conviver com identidades de gênero diversas, ela será lida enquanto uma “mulher” ou então como um “terceiro gênero”. No entanto, a suposta consonância entre sexo, gênero e desejo não existe em universalidade, sendo mais uma ação que pode se alongar para além do binarismo. Assim, é preciso entender que “o gênero não é um substantivo” (BUTLER, 2016BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., p. 56). Ele é performativo, constituído em determinado tempo e espaço, através de um fazer do sujeito em relação a esta matriz de gênero.

O conceito de cissexismo é uma importante chave para entendermos os sentidos de gênero adotados pelos operadores da custódia, no nosso campo de pesquisa, cujos efeitos recaem sobre as experiências das presas trans. De acordo com Jaqueline Gomes de Jesus (2012JESUS, Jaqueline. Gomes de. Identidade de gênero e políticas de afirmação identitária. In: ABEH. Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de Gênero. Salvador, 2012.), o cissexismo consiste em uma ideologia resultante da lógica binária, em que há uma crença de que o gênero deve corresponder ao sexo biológico. Tal posição gera uma série de limites às possibilidades de expressão de gênero, a partir de mecanismos legais e culturais de subordinação das pessoas trans e cisgênero (JESUS, 2012JESUS, Jaqueline. Gomes de. Identidade de gênero e políticas de afirmação identitária. In: ABEH. Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de Gênero. Salvador, 2012.). Ou seja, a heterossexualidade compulsória e binaridade de gênero, de que só existem meninas e meninos, são suportes para a concepção de gênero “ideal”, conferindo inteligibilidade apenas àqueles sujeitos que exercem a diferença sexual desde o nascimento. Nesta lógica, o cissexismo apaga, invisibiliza, estigmatiza, deslegitima e marginaliza as experiências de pessoas trans, como, por exemplo, através da proibição de acesso à espaços públicos e privados e da negação do status jurídico, por meio da impossibilidade de mudança do registro civil em documentos oficiais (KAAS, 2016).

Logo, compreender que existe uma construção das categorias trans, que não é uma experiência a-histórica, revela como as normatividades de gênero se fundam a partir de uma diferença sexual hierarquizante (BENTO, 2008, p. 24) e causam efeitos materiais e subjetivos. Não à toa, a identidade de gênero das pessoas trans é uma categoria movimentada por discursos médicos (BENTO, 2012, p. 573), jurídicos, que, conforme Guilherme Ferreira (2018FERREIRA, Guilherme Gomes. Donas de rua, vidas lixadas: interseccionalidades e marcadores sociais nas experiências de travestis com o crime e o castigo. 2018. Tese (Doutorado em Serviço Social). Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/Lisboa, 2018.), compõem significações desviantes. Travestis, bichas, sapatões, bissexuais, transexuais, entre outras diversidades de gênero e sexualidade, sofrem processos de criminalização fundados em suas experiências de gênero, associados a suas raças e classes.

No Brasil, o histórico de violências causadas pelo sistema penal em relação às pessoas LGBTQIA+ demarca os usos das instituições na esteira das relações de gênero. James Green (2000, p. 191-208), ao analisar a experiências de homens gays na época do Estado Novo, denunciou as diversas políticas de “purificação” e “higienização” das cidades pela via da patologização de algumas experiências de gênero e sexualidades. Por exemplo, os sujeitos trans eram colocados em hospitais psiquiátricos e submetidos à procedimentos de “correção” de gênero. Nesta mesma direção, a “Operação Tarântula” ficou famosa por prender travestis e transexuais na cidade de São Paulo, no período pós-redemocratização. Ela objetivava realizar uma “higiene social”, capturando, através do sistema penal, os sujeitos considerados como “indesejados”. Assim, muitas travestis foram presas, sendo que as autoridades policiais acionavam os estigmas “prostituição-AIDS-crime” enquanto uma chave associativa entre a identidade de gênero travesti e uma certa criminalidade (BARBOSA et al, 2018BARBOSA, R. B.; BICALHO, P. P.; CAVALCANTI, C. Os tentáculos da Tarântula: abjeção e necropolítica em operações policiais a travestis no Brasil pós-redemocratização. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 38, n. 2, p. 175-191, 2018., p. 175-191).

Vidal (2019VIDAL, Júlia Silva. Com sedas matei e com ferros morri: sobre homicídios, inquéritos policiais e criminalização de travestis. Rio de Janeiro: Metanoia, 2019.;2020) destaca como o aparato punitivo-penal aciona diversos elementos da sociabilidade de pessoas travestis, nos processos de criminalização de suas experiências, tais como: a criminalização pela prostituição e pela migração; a criminalização pela hipersexualização e violência institucional; a criminalização pela patologização; a reincidência nos processos criminais e a criminalização pelas medidas alternativas ao cárcere. Gab Lamounier (2018, p. 62) chama atenção para as representações sociais em relação às pessoas travestis, papel que as coloca no lugar de criminosas em potencial pelos sujeitos cisgêneros encarregados pelas progressivas acusações que impactam negativamente em as trajetórias penais das pessoas trans.

Argumentamos que, uma vez enquadradas na categoria trans, essas pessoas se tornam alvo diferenciado das práticas jurídico-penais, as quais exercem uma gestão específica sobre esses sujeitos, como forma de integrar as normas que orientam a matriz de gênero. Afinal, paira sobre elas a suspeita de que seriam “pessoas tendentes ao crime”, “pessoas abjetas” que merecem cair nas garras da seletividade do sistema punitivo, sendo essa, inclusive, uma marca do contexto da América Latina, um continente que aumenta a cada dia o risco de morte de pessoas trans (FERREIRA, 2018FERREIRA, Guilherme Gomes. Donas de rua, vidas lixadas: interseccionalidades e marcadores sociais nas experiências de travestis com o crime e o castigo. 2018. Tese (Doutorado em Serviço Social). Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/Lisboa, 2018., p. 106).

3) METODOLOGIA

Os dados apresentados neste trabalho são resultado de uma pesquisa em profundidade realizada sobre as Audiências de Custódia, em Belo Horizonte, ao longo de dois anos (2020 e 2021). O recorte temporal se deu a partir da realização de pesquisa de mestrado de uma das autoras, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG). Antes da pandemia de Covid-19, foi possível acompanhar as audiências de custódia, realizadas no Fórum Lafayette de Belo Horizonte, observando como as pessoas trans eram recebidas e encaminhadas. As audiências eram selecionadas através de dois critérios: de acordo com a disponibilidade semanal da pesquisadora que realizou o acompanhamento presencial das audiências e de acordo com a demanda de acauteladas que se identificavam como travestis ou transexuais. Nesta etapa, procedemos a uma análise qualitativa do acompanhamento das audiências, a partir da escrita do diário de campo. Foram acompanhadas, efetivamente, cinco audiências de pessoas que eram travestis e transexuais e quatro que tinham pessoas cisgêneras conduzidas.

Além disso, recebemos cópias dos processos de todas as audiências de pessoas trans, que foram acompanhadas presencialmente, no início do ano de 2020, sendo que as cópias de dois processos foram enviadas pela secretaria da Central de Recepção de Flagrantes (CEFLAG). Recebemos, também, a cópia de um processo referente a uma audiência que envolvia uma pessoa trans, mas que não pôde ser acompanhada presencialmente, por questões de logística. As informações que foram extraídas das cópias dos processos eram referentes às narrativas policiais e de testemunhas sobre os fatos, bem como informações sobre as pessoas conduzidas, de modo que pudéssemos traçar o perfil e avaliar se houve o respeito ao nome social e às identificações de gênero e sexualidade no REDS. Devido às questões burocráticas em acessar todas as documentações referentes a todos os processos, não foram solicitados os documentos referentes às audiências de pessoas cisgêneras, sendo priorizadas os de pessoas trans. Essa ausência impacta a pesquisa no sentido de que não foi possível desenvolver uma análise comparativa das narrativas documentais dos operadores do direito sobre a forma como os sujeitos cis e trans representados em seus discursos.

Com a superveniência da pandemia de Covid-19, em março de 2020, houve a adoção do trabalho remoto por boa parte dos operadores que atuam na Audiência de Custódia, resultando na suspensão dessas (MINAS GERAIS, 2020). Com isso, o acompanhamento dos casos tornou-se inviável. A opção foi recorrer às entrevistas semiestruturadas com os operadores da custódia para entender como eles percebiam as audiências com pessoas cis e trans e se existia alguma diferença neste quesito. Para viabilizar essa coleta de informações, um juiz, um colaborador do tribunal, um defensor público e um promotor de justiça, bem como três agentes responsáveis pelo serviço de assistência fornecido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), denominado acompanhamento multidisciplinar4 4 Para melhor compreensão do que significa essa medida, ver IDDD (2019). , foram acionados para a cessão de depoimentos não presenciais, por meio da plataforma Google Meet. Por fim, foi realizada uma entrevista presencial com um agente da carceragem do Fórum, seguindo todos os protocolos de higiene e segurança.

Para a produção desses depoimentos, foi utilizado um guia de entrevista com as perguntas principais, onde informações foram anotadas para, dessa maneira, garantir uma maior quantidade de dados sobre as rotinas e moralidades desses sujeitos. Tais depoimentos foram gravados e, para uso deste material neste artigo, todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido5 5 Trabalho aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP). . Em seguida, os depoimentos orais foram transcritos para a análise de conteúdo. Para a fase de codificação das entrevistas, cada entrevistado recebeu um número, pelo qual será identificado neste texto, de forma a garantir o anonimato de nossos interlocutores. Além disso, optamos por nos referir aos entrevistados no pronome masculino, tendo em vista que as mulheres cisgêneras que trabalham nas Audiências de Custódia são minoria e, por isso, seriam facilmente identificáveis.

Depois, para a análise de conteúdo dos depoimentos, foram identificadas algumas perguntas e categorias chaves, sendo que para cada uma delas foi aberta uma coluna no Excel. As falas dos entrevistados foram coladas nas linhas, de maneira a nos permitir entender como os discursos se contrapõem e se complementam em pontos que consideramos chaves, como a identificação da pessoa trans ao longo do fluxo de encaminhamento para a custódia e a partir da custódia, o significado do nome social para os operadores e os atendimentos que são feitos pela equipe multidisciplinar. Portanto, o que apresentamos nas próximas seções são as interpretações que fizemos desses materiais, a fim de entender como os operadores do direito manejam as categorias de gênero, como os enquadramentos em relação às pessoas trans acontecem e quais são os efeitos que eles possuem em termos de encaminhamentos e atendimentos por parte da rede de assistência.

4) O GÊNERO NA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

É longo o caminho percorrido por um sujeito, desde a sua prisão, até a decisão da Audiência de Custódia em Belo Horizonte. Na maioria das situações, a pessoa é presa em flagrante pelo policiamento ostensivo realizado pela Polícia Militar (RIBEIRO et al, 2017; 2020). Uma vez documentado o delito, no Registro de Evento de Defesa Social (REDS), cabe ao policial militar conduzir a pessoa presa para a Delegacia de Polícia Civil, onde será lavrado o Auto de Prisão em Flagrante Delito (APFD). Em seguida, o delegado fará o registro da pessoa no sistema de Informações Prisionais, dando-lhe um número (INFOPEN). Neste momento, entram em cena os policiais penais, que são vinculados à Secretaria Estadual de Administração Prisional (SEAP), a quem cabe fazer a transferência da pessoa presa da delegacia para um dos Centros de Remanejamento de Presos Provisórios (CERESP) existentes na capital e região metropolitana. Ao chegar a essas unidades, a pessoa presa em flagrante recebe uniforme do sistema prisional e aguarda pelo transporte, que deverá levá-la ao Fórum, onde será realizada a Audiência de Custódia.

Conforme relatado pelo Operador 8, as presas que se declaram travestis ou transexuais são encaminhadas ao Fórum em carros separados dos presos homens cisgêneros e, ao chegarem na carceragem, têm uma cela específica para elas. Esta cela, além de não contar com nenhuma ventilação, assim como as outras, é extremamente apertada e abriga várias pessoas, apesar de caber apenas uma. Como a cela não possui instalação de vaso sanitário, quando as presas trans precisam usar o banheiro, elas são levadas para a cela ao lado, que é reservada às mulheres cis. Este sistema de classificação na carceragem, antes mesmo da Audiência de Custódia, aponta para uma confusão e inconstância às quais as pessoas trans são submetidas no sistema penal. Elas são consideradas como um terceiro gênero em transição, que nem é masculino e nem é feminino, razão pela qual não podem ser presas com os demais, mas, ao mesmo tempo, ficam à mercê de contextos precários, em decorrência de seus gêneros. Resta entender se essa primeira classificação tem efeitos nos desdobramentos do fluxo de encaminhamento.

Uma vez determinado o horário da Audiência de Custódia, um segurança do Fórum e um agente prisional acompanham a pessoa presa até o espaço em que ela será atendida, primeiro, por seu advogado (público ou privado). De lá, ela seguirá para a audiência propriamente dita, onde o promotor e o juiz já estarão à sua espera. Na sala, as Audiências de Custódia seguem um roteiro padrão, determinado pela Resolução 213/2015 do CNJ e, posteriormente, referendado pelo art. 310 do Código de Processo Penal. A função da Audiência de Custódia é analisar a situação social da pessoa presa em flagrante, para determinar a melhor medida cautelar àquele caso, reservando a privação da liberdade somente aos casos extremos (IDDD, 2017). Em teoria, o magistrado deve iniciar a sessão explicando a finalidade da custódia. Após, deve fazer as perguntas referentes ao trabalho, renda e residência da pessoa presa (para verificar se há risco de o custodiado frustrar a aplicação da lei penal), deve ouvir os pedidos do promotor e do defensor e, então, determinar à medida que ele considera a mais apropriada, apresentando a decisão à custodiada (TOLEDO; JESUS, 2021TOLEDO, F. L.; JESUS, M. G. M. de. Olhos da Justiça: o contato entre juízes e custodiados nas audiências de custódia em São Paulo. São Paulo: Revista Direito GV, v. 17, n. 1, p. 1-28 2021.).

Em Belo Horizonte, todo esse procedimento dura, em média, 12 minutos (IDDD, 2019), sendo que, a partir da decisão da Audiência de Custódia, as pessoas seguem caminhos diferenciados. Aquelas que receberam a prisão preventiva irão retornar ao Sistema Prisional, geralmente no mesmo veículo que as trouxe para o Fórum. As que foram liberadas, sem condicionalidades, deverão aguardar para ter os seus pertences devolvidos e entregar o uniforme do sistema prisional. Já as que receberam medidas cautelares diversas do aprisionamento serão encaminhadas para as equipes multidisciplinares, que explicarão as condicionalidades recebidas e deverão realizar as pontes entre o poder judiciário e as outras políticas públicas, com especial destaque para aquelas típicas da Assistência Social.

Inicialmente, no fluxo criado para o funcionamento das Audiências de Custódia, não havia qualquer dispositivo relacionado à obrigatoriedade no uso do nome social ou de atendimento diferenciado para as pessoas trans, em quaisquer de suas etapas: prisão pela PM, lavratura do APFD pela Polícia Civil, passagem pelo sistema prisional, conversa com o defensor, audiência com juiz e promotor e acompanhamento posterior das medidas cautelares. Essa dimensão foi contemplada no Manual de Proteção Social na Audiência de Custódia, editado pelo CNJ em 2020, que estabelece expressamente a necessidade de que a identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais seja considerada no fluxo antes mesmo da conversa com o defensor.

Antes de apresentar as percepções dos operadores, cumpre destacar que todos os entrevistados eram cisgêneros, ou seja, percebiam que seus gêneros se adequavam à coerência socialmente esperadas deles. Ainda que nosso questionário não tivesse perguntas sobre a cisgeneridade desses sujeitos, eles terminaram por destacá-la ao longo do processo de entrevista. Ao se referirem às pessoas transexuais ou travestis, eles deixavam evidente que elas eram “outras”, que precisavam ser enquadradas dentro de certas categorias. Assim, quando perguntávamos especialmente sobre as pessoas trans, eles nos respondiam dizendo sobre “este público”, “aquelas pessoas”, mas jamais sujeitos como eles. Tal dimensão fica visível no discurso do Operador 3 que, ao falar sobre “essas pessoas”, proferiu as seguintes palavras: “elas são marginalizadas né, também né, elas são muito marginalizadas. Esse público alvo é muito marginalizado”. Se, como salienta Simmel (2010SIMMEL, Georg. Simmel: a estética e a cidade. Lisboa: editora portuguesa, p. 1-47, 2010., p. 48), é a aparência estética que guia as nossas interações dentro das grandes cidades, então, o fato de os operadores do direito enquadrarem certas pessoas como outros, aqueles cuja cisgeneridade não pode ser inferida, tem efeitos diretos na maneira como se dará a interação com esse público e no juízo de valor impresso pelos operadores do direito no manejo dos institutos jurídicos.

O CNJ (2020, p. 40) estabelece, por exemplo, que para a pessoa trans não ter a sua identidade de gênero violentada, é preciso garantir-lhe o direito ao uso do nome social durante a audiência, juntamente com o reconhecimento da identidade de gênero. Contudo, não é isso que se observa na prática, pois existe uma certa resistência, por parte dos operadores, em adotar o nome social como a principal forma de identificação da pessoa presa. Todos os entrevistados salientaram que o problema se inicia com a atuação policial que, ao registrar a prisão, utiliza o nome civil em detrimento do nome social. Como resumiu o Operador 2, “o flagrante, o alvará, quando chega para nós, ele não chega com o nome social. Para nós não chega dessa forma não”. Como o funcionamento do sistema de justiça criminal brasileiro tende a se guiar, muito mais, pelos documentos policiais, do que pelas narrativas das pessoas que são contadas no âmbito das audiências (JESUS, 2020JESUS, Maria Gorete Marques de. Verdade policial como verdade jurídica: narrativas do tráfico de drogas no sistema de justiça. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 102, p. 1-15, 2020.), o simples fato desses não contarem com qualquer menção à condição de pessoa trans, e à duplicidade de nomes (civil e social), já dificulta o reconhecimento do gênero desses sujeitos.

Os entrevistados sublinharam, ainda, que quando a pessoa é recebida no Fórum Lafayette para a Audiência de Custódia, eles procuram reverter, em parte, os problemas relacionados ao não reconhecimento da identidade trans. Como explicou o Operador 4, a preocupação é fazer com que a pessoa se sinta respeitada dentro da identidade de gênero que ela performa, razão pela qual cabe a ela decidir por qual nome quer ser tratada. Em suas palavras:

Primeira coisa, vem um alvará pra gente o nome de registro, o nome masculino, aí pergunto, no início eu identifico e falo “como você quer ser chamada?” Aí ela me fala o nome, todas, a maioria tem o nome social, aí elas preferem. Os documentos nós temos que colocar o nome da certidão, mas a gente coloca o nome social, aí aqui no atendimento converso, abre espaço pelo nome social (Operador 4).

O problema que se evidencia nesta fala é o fato de que o nome social não prepondera em relação ao nome de registro. Como destacam Miranda e Pita (2011MIRANDA, Ana Paula Mendes de; PITA, María Victoria. Rotinas burocráticas e linguagens do estado: políticas de registros estatísticos criminais sobre mortes violentas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40, p. 59-81, 2011.), a lógica cartorial permeia os procedimentos jurídico-burocráticos no Brasil, fazendo com que os operadores do direito tendam a rechaçar tudo o que não está devidamente registrado. Somente o registro civil, com a mudança de nome, poderia, finalmente, garantir o tratamento de acordo com o gênero com o qual as pessoas custodiadas se identificam. Ou seja, “o registro é algo que deve ser feito pelo Estado para o próprio Estado, com o objetivo de criar uma interpretação autorizada sobre os fatos” (MIRANDA; PITA, 2011MIRANDA, Ana Paula Mendes de; PITA, María Victoria. Rotinas burocráticas e linguagens do estado: políticas de registros estatísticos criminais sobre mortes violentas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40, p. 59-81, 2011., p. 64).

Uma fala que merece destaque, neste sentido, é a que reconhece que o nome social só pode ser incluído nos documentos gerados para e pela Audiência de Custódia quando ele também faz parte do registro civil. Entretanto, entendemos que isso decorre, muito mais, da própria moralidade dos operadores. Vejamos:

Só não coloca só o nome social, até para entender, por causa dessa questão de alvará de soltura, né? Aí quando não trocou nos documentos tem que pôr os dois porque senão acaba que o sistema não consegue nem soltar. Mas eu vejo assim, mas não acho que porque teve mudança de mentalidade do público masculino do Brasil não, que são outros também, né? Não acho não. Nem da polícia, nem de ninguém não. Eu acho que é porque como está indo ali em uma audiência, se tiver qualquer tipo... e hoje inclusive isso é crime, né? Foi equiparado e tal. Ali vai ser falado e aí a pessoa vai ter um problemão, né? Então, sinceramente, não acho que mudou a consciência e agora passaram a ter respeito, não, acho não (Operador 1).

Em que pese todos os entrevistados (que são cisgêneros) terem destacado a preocupação com o acolhimento das custodiadas tras, com o tratamento pelo gênero com o qual a pessoa se identifica, há ainda a ressalva de que os sistemas não estão preparados para tal mudança. Nessa lógica, o uso do nome social poderia trazer dificuldades para encaminhamento da pessoa dentro deste longo fluxo, desde a prisão em flagrante, pela polícia, até a medida cautelar. Afinal, o nome social não é um documento com “fé pública”, produzido em cartório, vinculando a burocracia judicial ao seu uso. O argumento técnico-jurídico, de que o nome de registro é a melhor forma para se reconhecer e registrar o sujeito, é constantemente mobilizado, enquanto uma justificativa para não se utilizar o nome social de maneira preponderante. Como nos detalhou uma pessoa entrevistada:

A pessoa, por exemplo, vamos por João Otávio, vamos supor, mas nome social Priscila. Vamos dizer que não tinha feito a alteração nos registros. Então, como não tem nada, em lugar nenhum de forma pública, se eu coloco Priscila, ainda que, com o sobrenome, mesmo com o nome dos pais, o próprio sistema não vai aceitar, porque, a princípio, a pessoa com esse nome, publicamente, não está registrada. Por isso que a gente tem que colocar os dois, porque dificulta inclusive a saída da pessoa, né? E isso poderia ser complicado, porque sem o registro poderia ser usado até para burlar alguma coisa também, né? Então, realmente, a pessoa tem que registrar para saber: fulano de tal é fulana agora (Operador 1).

Esconder-se atrás do sistema operacional ou das leis remete a uma espécie de discurso padrão que, na verdade, não apenas justifica as rotinas adotadas em repartições burocráticas, como também pode revelar as moralidades do jogo em cena nessas situações específicas. Para Castilho et al (2017CASTILHO, S. R.; LIMA, A. C. de; TEIXEIRA, C. Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2017.), essas “positividades”, posto que as regras a que os operadores se referem são inscritas em leis que deveriam ser obedecidas por todos, quando transformadas em documentos, falam, na verdade, do que pensam e sentem esses funcionários públicos. Falam de como os cisgêneros interpretam e classificam as experiências não binárias a que Serano (2007SERANO, Julia. Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity. California: Seal Press, 2007.) se refere. Esses operadores, ao optarem por valorizar no documento escrito, que conecta as distintas organizações envolvidas no fluxo de processamento, o nome civil, em detrimento do nome social, modelam e dão sentido à rejeição do reconhecimento de gêneros distintos daqueles com os quais os sexos, inscritos na identidade civil, deveriam se conectar.

As representações sobre a impossibilidade de uso do nome social quando não “registrado” nos mostra que estamos diante de moralidades, que são justificadas por meio de barreiras burocráticas (como o sistema, o registro, dentre outras). São regras morais, apoiadas em uma lógica de gênero que considera a cisgeneridade como a experiência mais legítima, ou a única dentre as possíveis (SERANO, 2007SERANO, Julia. Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity. California: Seal Press, 2007.; CARVALHO, 2018CARVALHO, Mário. “Travesti”, “mulher transexual”, “homem trans” e “não binário”: interseccionalidades de classe e geração na produção de identidades políticas. Cadernos Pagu, n. 52, 2018.). A frequente utilização do nome de registro está de acordo com essa lógica de forjamento do que é considerado como normal, do que o Estado aceita como padrão. Já o nome social é tratado através da lógica da diferença, como algo pouco recorrente, que deve ser no máximo respeitado ou tolerado, visto que, inclusive, no termo das decisões das Audiências de Custódia, o nome social é mencionado entre parênteses, logo após o nome de registro. Ou seja, os depoimentos apresentados até aqui são muito emblemáticos por mostrarem que a letra morta da lei se transforma em realidade por meio da moralidade de quem a opera (CASTILHO et. al, 2017CASTILHO, S. R.; LIMA, A. C. de; TEIXEIRA, C. Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2017.). Apesar dos novos manuais do CNJ (2020) sublinharem a necessidade de reconhecimento da diversidade de gênero e o uso do nome social das pessoas trans, na prática, o que observamos é o uso do nome do registro civil, porque é este que as rotinas burocráticas, operadas por meio de regras morais, reconhecem como legítimo.

Poderíamos aqui fazer um paralelo com a alcunha, bastante utilizada em diversos processos penais para a identificação de certos sujeitos, a tal ponto que, muitas vezes, o nome civil deixa de ser mencionado pela predileção do termo “vulgo”. Estaríamos, assim, diante do reconhecimento de um nome para além do registro civil, algo que não parece ser considerado pelos mesmos atores quando se trata da pessoa trans. Inclusive, o Operador 3 chega a fazer essa analogia explicitamente, revelando as questões que estão por trás da dificuldade da adoção do nome social, como forma de identificação da pessoa trans.

Se ele se identifica, se ele ou ela se identifica como uma pessoa, como homem ou mulher, por que não chamar pelo nome social? Ainda por cima que agora pode fazer a mudança pela identidade. Tem uma lei isso, que fala sobre isso. É um direito e as pessoas têm que respeitar. É igual teve a eleição agora [...] a Duda que foi a vereadora mais votada, né, é deputada ou vereadora? A vereadora mais votada aí teve um outro deputado que falou que ele [sic] é “homem eu vou chamar ele pelo nome”. Isso é ridículo, gente! Ridículo!! Independente dele [sic] ter mais uma característica mais masculina, ele [sic] não tem uma característica feminina, mas independente disso o respeito. Se tem uma lei que tem aí, por que não? Só precisa de lei pra afirmar isso. É triste isso, né!? É triste. Nós temos o apelido? As pessoas não chamam a gente pelo apelido? Eu acho importante. Eu acho sim. Vem aquela mulher, aparece toda de mulher; “ô Roberto…” Tanto é que nos prontuários você pode ter [...] você pode colocar o nome da pessoa aqui como nome social. Pode colocar nome social (Operador 3).

As entrevistas aqui dispostas revelam que o fluxo da Audiência de Custódia é concatenado e encaminhado pelas interpretações que os operadores fazem dos dispositivos legais (TOLEDO; JESUS, 2021TOLEDO, F. L.; JESUS, M. G. M. de. Olhos da Justiça: o contato entre juízes e custodiados nas audiências de custódia em São Paulo. São Paulo: Revista Direito GV, v. 17, n. 1, p. 1-28 2021.). Esse não é um problema específico do tratamento às pessoas trans, mas das burocracias públicas em geral, em que a “condição de sujeitos morais dá vida às instituições em que [essas pessoas] se inserem e é fundamental à sua compreensão” (CASTILHO et al, 2017CASTILHO, S. R.; LIMA, A. C. de; TEIXEIRA, C. Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2017., p. 22). Basta lembrar o exemplo da proibição ao uso de algemas durante as Audiências de Custódia: está nas regulamentações editadas pelo CNJ, está na Súmula Vinculante do STF, está em diversos relatórios de organizações de direitos humanos. Todavia, as algemas quase nunca são retiradas, em Belo Horizonte, sob o argumento de que elas são necessárias para a garantia da segurança de quem trabalha no Fórum (RIBEIRO et al, 2017; 2020). A moralidade dos operadores os faz acreditar que qualquer pessoa suspeita do cometimento de um delito deve ser “contida” por ser “perigosa”.

Nesta lógica, o uso do nome social, em detrimento daquele que consta no registro civil, visa dar ao primeiro um status de desviante, posto que está fora da conexão entre sexo e gênero, e da dualidade entre masculinidade e feminilidade (BENTO, 2012). Assim, o nome social deve ser não apenas rechaçado, mas se possível, criminalizado, posto que legitima algo que não deveria ser reconhecido socialmente. A essa interpretação se filia o argumento apresentado pelo Operador 6, para justificar a permanência do uso do nome de registro, que visa impedir que uma pessoa finja ser outra no momento da identificação policial, como se o nome social fosse uma espécie de facilitador para esse tipo de fraude:

Precisa ter certeza que aquela pessoa é ela, porque acontece muito por exemplo, eu fui presa, tá, aí eu chego lá e dou o nome da minha irmã, porque eu tenho péssimos antecedentes criminais, mas minha irmã não, então eu sei o nome do pai e da minha mãe, eu sei nome dos pais da minha irmã, que são os mesmos que o meu, e sei a data de nascimento da minha irmã, então quando eu jogo esses dados, já aparece o número de identidade dela, então existe uma preocupação muito grande na área criminal com relação a identidade daquela pessoa, pra saber se aquela pessoa que está sendo presa, ou solta, é realmente ela [...] (Operador 6).

Portanto, entendemos que a manutenção do nome de registro, em detrimento do nome social, representa uma operacionalização do cissexismo, no que concerne ao tratamento que é conferido pelos operadores do direito, em relação às pessoas trans. O discurso de que “o sistema” não permite o reconhecimento do nome social revela como as performances de gênero, ainda que sejam múltiplas na literatura sobre o tema, na vida cotidiana dos tribunais, são determinadas pelo sexo biológico inscrito no registro civil dos custodiados. Não à toa, em levantamentos quantitativos sobre o funcionamento das Audiências de Custódia ou as categorias da travestilidade e da transexualidade sequer são consideradas (AZEVEDO et al, 2017AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli et al. Direitos e garantias fundamentais: Audiência de Custódia, prisão provisória e medidas cautelares: obstáculos institucionais e ideológicos à efetivação da liberdade como regra. Sumário Executivo. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça, 2017. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wpcontent/uploads/2018/01/FBSP_Direitos_Garantias_Fundamentais_Audiencia_Custodia_2017_Sumario.pdf. Acesso em: 30 mar. 2021.
http://www.forumseguranca.org.br/wpconte...
), ou são apresentadas com uma ressalva, de que essa categoria somou menos de 1%, razão pela qual é impossível compreender as suas especificidades, por exemplo, no que se refere ao tipo de medida cautelar recebida por essa população (IDDD, 2017; 2019).

Um exemplo para pensar sobre a invisibilidade das especificidades vividas pelas pessoas trans nas pesquisas é a partir dos homicídios. Oficialmente, não há produção de dados sobre assassinatos de pessoas trans por parte das instituições governamentais brasileiras (FBSP, 2020). Essa atividade, geralmente, fica a cargo do movimento social, tais como o Observatório Trans, a ANTRA, a Rede Trans e, também, de algumas iniciativas das universidades. Mas, o empenho dessas organizações tem contribuído para demonstrar que o Brasil é, em números absolutos, o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Entre janeiro de 2008 e junho de 2016, o Observatório de Pessoas Trans Assassinadas (TMM) da Transgender Europe (TGEU) registrou 2190 casos de homicídios que tinham como vítimas pessoas trans. No mesmo período, o Brasil registrou 868 mortes, um número três vezes maior que seu sucessor, o México, com 259 (TGEU, 2016, p.14). Tal resultado é importante por acender o alerta de que são necessárias políticas específicas para as pessoas trans, quando o assunto é violência letal, sendo que dados mais qualificados sobre este público, no âmbito das Audiências de Custódia, poderiam contribuir também para políticas de acolhimento mais sensíveis.

Em resumo, é perceptível a invisibilidade que as pessoas travestis e transexuais enfrentam no Brasil. Esta invisibilidade ocorre através da não produção de dados sobre a violência sistemática contra pessoas trans; do desinteresse do poder público em oferecer serviços de assistência social, de saúde, de segurança e proteção. Ocorre, também, pelo fato de que as identidades de gênero trans não são reconhecidas pelas burocracias estatais, apesar de normativas dizendo o contrário (CARVALHO, 2018CARVALHO, Mário. “Travesti”, “mulher transexual”, “homem trans” e “não binário”: interseccionalidades de classe e geração na produção de identidades políticas. Cadernos Pagu, n. 52, 2018.), sendo que, muitas das vezes, essas estruturas sequer reconhecem que elas sofrem violências de gênero (JESUS, 2016JESUS, Jaqueline Gomes de. Operadores do direito no atendimento às pessoas trans. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 15, p. 537-556, 2016.). Nas Audiências de Custódia, especificamente, percebemos que o cissexismo atua a favor da invisibilidade trans, através do não reconhecimento da identidade de gênero; da não utilização exclusiva do nome social; da inexistência de serviços especializados e mais sensíveis às demandas apresentadas.

5) ABANDONO PARA A PRODUÇÃO DE PRECARIEDADE

O que nós, seres humanos, compartilhamos em comum? Qual é a condição de vida que todo ser compartilha? Seria a vida em si mesma? Ou seria possibilidade de que a nossa vida se inicie em algum momento, seja na concepção ou na formação do aparelho cerebral? Judith Butler (2015BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.) responde a essas perguntas ao dizer que toda vida é precária, isto é, que esta é a condição compartilhada por todas e todos. Para a autora, afirmar que a vida é precária consiste em compreender que ela necessita de condições sociais e políticas para a sua manutenção, posto que os impulsos internos naturais, que permitem a (sobre)vivência, são insuficientes para que uma vida possa ser possível. Estes impulsos necessitam de ser sustentados, apoiados em aparatos externos e artificiais, para que uma vida possa ser vivível (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015., p. 40). A vida não é considerada como algo simplesmente biológico, natural: ela necessita de condições de possibilidade, as quais existem a partir dos enquadramentos, que conferem margens ontologizantes. Isto é, vivemos um processo de produção de marcos, em que criamos categorias que enquadram a vida, demarcando aqueles sujeitos que podem viver, que merecem uma vida vivível, passível de luto, possível de ser enlutada, em relação àqueles que não experimentam essas possibilidades.

As normas sociais sustentam as formas pelas quais certos corpos serão enxergados e tratados, como sujeitos normais ou anormais, como vidas que estão dentro dos quadros de possibilidade de serem vividas. Embora dizer que uma vida precária é uma condição generalizada, esses enquadramentos são distribuído diferencialmente, fazendo com que algumas vidas vivam em precariedade, em uma condição de vulnerabilidade condicionada social e historicamente (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.). Além da precariedade ser politicamente induzida, ela pode ser aumentada pela violência estatal, que é, seletivamente, direcionada a algumas populações.

Através das entrevistas feitas com os operadores das Audiências de Custódia, podemos observar que as experiências trans são enquadradas nos marcos da cisgeneridade, situação que, conforme apresentado nas seções anteriores, é um efeito do cissexismo. Em uma fala já mencionada pelo Operador 3, percebemos que a identidade de gênero de travestis e transexuais é interpretada como uma transição entre dois polos (o masculino e o feminino): “Independente dele [sic] ter mais uma característica mais masculina, ele [sic] não tem uma característica feminina, mas independente disso o respeito. Se tem uma lei que tem aí, por que não?” (Operador 3).

Neste âmbito, a identidade de gênero trans é interpretada como se fosse um processo que o sujeito trans devesse atravessar para alcançar o seu gênero “verdadeiro”. Nas palavras do Operador 1, podemos observar esse raciocínio explicitamente:

Mas acho que, principalmente, essas pessoas que já estão ali no final, mesmo, daquele processo, é quase de aquela coisa de ter que frequentar o banheiro masculino e a pessoa já é... eu sou uma Priscila, completa, e aí [chama de] João! Eu acredito que deve ferir um pouco a pessoa, porque ela não se identifica com João de jeito nenhum, né? (Operador 1, grifo nosso).

Longe de ver a pessoa trans como alguém que não conecta o sexo com o gênero, os operadores tendem a enquadrá-la como desviante, como alguém que está num processo de mudança, encaminhando para a fixidez que a binariedade demanda (CARVALHO, 2018CARVALHO, Mário. “Travesti”, “mulher transexual”, “homem trans” e “não binário”: interseccionalidades de classe e geração na produção de identidades políticas. Cadernos Pagu, n. 52, 2018.). Esse processo, do feminino para o masculino (ou vice-versa), sustenta-se muito na ideia de dimorfismo de gênero. Isto é, de que uma pessoa trans é uma alma presa em um corpo errado (um gênero preso no sexo errado), um “terceiro” que não merece ser considerado porque, futuramente, irá se reenquadrar novamente. Essa condição desviante do gênero parece contaminar também o caráter, razão pela qual existiria uma maior tendência à criminalização de travestis e transexuais que trabalham nas ruas, perto dos olhos do policiamento ostensivo (FERREIRA, 2018FERREIRA, Guilherme Gomes. Donas de rua, vidas lixadas: interseccionalidades e marcadores sociais nas experiências de travestis com o crime e o castigo. 2018. Tese (Doutorado em Serviço Social). Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/Lisboa, 2018.). Essa contaminação fica bastante evidente no seguinte trecho de entrevista:

O que importa é o caráter da pessoa, a índole, não a sua opção sexual. Igual eu falo assim, é homem ou mulher, mas não vale nada! Só por causa da figura uma mulher com corpo de homem, um homem com corpo de uma mulher ela não tem uma personalidade ou caráter, quê isso, mas é [...] infelizmente a ignorância preserva ainda, né, falta de informação e cultura, né (Operador 3, grifo nosso).

Jaqueline de Jesus (2016JESUS, Jaqueline Gomes de. Operadores do direito no atendimento às pessoas trans. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 15, p. 537-556, 2016.) argumenta que o conceito de discriminação não dá conta da experiência de preconceito vivenciada cotidianamente pelas pessoas trans. Para ela, “é melhor falar de transfobia, que é o preconceito e/ou a discriminação em função da identidade de gênero das pessoas trans” (JESUS, 2016JESUS, Jaqueline Gomes de. Operadores do direito no atendimento às pessoas trans. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 15, p. 537-556, 2016., p. 541). Não é por outro motivo que, como já foi mencionado, o Brasil é um dos países que mais mata travestis e transexuais. Elas, além de enfrentar o preconceito e violência da população civil, também encaram as mazelas estatais, pela violência da polícia na rua, pela violência do judiciário brasileiro, pela falta de assistência social, etc (FERREIRA, 2018FERREIRA, Guilherme Gomes. Donas de rua, vidas lixadas: interseccionalidades e marcadores sociais nas experiências de travestis com o crime e o castigo. 2018. Tese (Doutorado em Serviço Social). Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/Lisboa, 2018.). Judith Butler (2015BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015., p. 46) afirma que essas populações mais vulnerabilizadas, ao mesmo tempo em que sofrem com a violência do Estado, têm apenas o próprio Estado para garantir a sua proteção. Esse paradoxo é uma representação do altíssimo grau de vulnerabilidade conferido, politicamente, a alguns grupos sociais, que encontram nas alianças e resistências coletivas uma forma de sobreviver. Contudo, para ter acesso a essa proteção do Estado, é preciso que a burocracia estatal reconheça as pessoas trans enquanto tais. Entretanto, as moralidades dos operadores não colaboram com essa política e, para encobrirem a moralidade estereotipada que possuem em relação ao público trans, tendem a responsabilizar o outro por sua ação.

Na seção anterior, vimos que o não reconhecimento do nome social se dava em função da ausência de registro público dessa especificidade, somada aos sistemas de informação e aos documentos policiais, que não incluem esta categoria. Adiciona-se a essas duas estratégias uma terceira, qual seja, o público não gostaria de ser reconhecido por sua diferença, porque não a autodeclara. Nesse sentido, a fala à seguir nesta direção:

Se a pessoa não falar, como é que a gente faz? Tem a questão, igualzinho eu te falei, o travesti [sic] a gente vê, não tem como você não identificar esse corpo, né? Aí sim, quando a gente identifica a gente consegue fazer alguma coisa (Operador 2).

Um dos efeitos desses enquadramentos dúbios é a ausência de sensibilidade e escuta em relação às demandas apresentadas pelo público trans. Por outro lado, isso não significa dizer que, na lógica do sistema penal, há total invisibilidade desses sujeitos, uma vez que a visibilidade é acionada enquanto um fator de estranhamento e diferenciação do corpo trans em relação ao corpo cis. Ao falar sobre a dificuldade que muitos operadores têm em saber a identidade de gênero da pessoa presa, por causa da ocultação do nome social nos APFD, o relato do Operador 6 ressalta esta questão:

Tem aquelas duas salinhas, eles, os agentes colocam a pessoa ali sentada, e o defensor vai lá conversar, e a gente percebe, porque eles têm os traços, eles são diferentes sabe? São diferentes (Operador 6).

Uma vez constatada a especificidade trans, seja pela declaração do gênero distinto do sexo do registro civil, seja pela morfologia do corpo diversa da expectativa do nome na carteira da identidade, conforme relatado pelo Operador 6, é muito comum que, na custódia, a pessoa presa receba uma espécie de “combo” de medidas cautelares. Isto cria uma série de expectativas irreais, que seriam satisfeitas pela equipe multidisciplinar. A maior delas é a esperança de que o próximo atendimento, na linha do fluxo de processamento, dê conta das especificidades trans, como nos contou um dos entrevistados:

Então, o que acho, o que eu vejo é que eu leio um auto de prisão em flagrante e o juiz coloca ali a equipe multidisciplinar e eu não sei porquê. Porque não existe fundamentação, a pessoa indicou o endereço, falou que trabalha informalmente, mas ela trabalha, tem família. Então eu não sei de onde surgiu a convicção de que ela precisaria ter um acompanhamento (Operador 6).

A equipe multidisciplinar do TJMG, conforme foi relatado pelos Operadores 2, 3 e 4, não possui serviços e programas direcionados para as demandas específicas que são apresentadas pela população trans. Na realidade, muitos desses operadores entendem que a população trans não apresenta necessidades próprias, conforme a fala do Operador 2:

Assim, o que os meus analistas relatam para mim é, majoritariamente, eles [sic] falam que não tem demanda, alguma demanda... Eles [sic] não relatam isso. Eu não sei te dizer se é porque eles [sic] estão profissionalmente já estabilizados... Eu vejo também... Eu só sei da demanda quando eles [sic] são presos, que já está sendo acompanhado aqui (Operador 2).

No geral, a equipe multidisciplinar pode encaminhar as pessoas trans para a rede de assistência. Se a pessoa precisar retirar um documento, por exemplo, ela será encaminhada para o órgão específico. Entretanto, quando questionados sobre os serviços que a equipe oferece às demandas apresentadas pela população trans, os entrevistados se limitaram a dizer que as encaminham para outros projetos da cidade, como, por exemplo, alguns executados por universidades ou pela Prefeitura de Belo Horizonte.

Porém, não conseguimos encontrar registros de que esses encaminhamentos sejam efetivados. Pelo contrário, de acordo com o Operador 7, há uma certeza de que estes encaminhamentos, feitos pela equipe multidisciplinar, não têm sucesso. Um dos principais problemas apontados é uma defasagem na própria rede de assistência:

A única alternativa que eu acho que é importante para o público trans é esse acompanhamento pela equipe especializada no acolhimento delas. Acho que nenhuma outra, sabe!? É justamente esse. Não adianta, igual eu te falei, a equipe multidisciplinar: “vá pra lá”. Não. Eu preciso da equipe qualificada pra mostrar pra ela ali naquele momento que ela tem que voltar, por que tem que voltar. Tem que ser no ato, na hora da audiência. Acabou a audiência já vai conversar, atende presencial e já faz esse trabalho ali com ela. Esse é o trabalho, se a gente perde o time a gente perde, elas não voltam mais (Operador 7).

O final deste trecho de entrevista nos parece revelador, dentro da teoria pensada por Butler (2015BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.), dado o fato de a identidade de gênero trans é transformada em uma “condição” de alternância desviante, em um mundo de categorias fixas de masculinidade e feminilidade. Enquadradas nessa categoria, as pessoas trans são administradas segundo rotinas burocráticas repletas de dimensões morais, o que reforça a necessidade de submetê-las ao “combo” das medidas restritivas de direito, incluindo o atendimento pela equipe multidisciplinar. Ainda que prometa reconhecimento, esse serviço oferece um acolhimento inicial, que tem como função manter as trans no fluxo de processamento jurídico-penal, por meio de mecanismos que garantam o retorno delas aos atendimentos e às audiências. Caso elas não voltem, o que parece ser algo comum entre as pessoas trans atendidas pelo Operador 7, não há nada a fazer, já que a precariedade não garante atenção maior do que as rotinas já engendradas com os seus casos.

Segundo Butler (2016BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., p. 53), um dos efeitos dessa condição compartilhada da precariedade é a exploração de populações que são enquadradas como destrutíveis, não passíveis de luto. Por serem consideradas como populações perdíveis, que podem ser sacrificadas, elas são exploradas cotidianamente, através do mercado, dos aparelhos do Estado, dentro das próprias famílias, nas relações interpessoais. Isto é, há uma infinitude de formas de expropriação e exploração daquele corpo considerado como abjeto (FERREIRA, 2018FERREIRA, Guilherme Gomes. Donas de rua, vidas lixadas: interseccionalidades e marcadores sociais nas experiências de travestis com o crime e o castigo. 2018. Tese (Doutorado em Serviço Social). Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/Lisboa, 2018.). Ter a sua condição de gênero invisibilizada e tratada como um indício de criminalidade, talvez seja a maior precariedade que o sistema de justiça criminal tem a oferecer para essas pessoas trans.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta deste texto foi compreender como as Audiências de Custódia reconhecem o gênero quando se veem diante de conduzidas travestis e transexuais. A partir de trabalho de campo realizado em Belo Horizonte (Minas Gerais), foi possível reconstituir o fluxo das Audiências de Custódia, o qual reitera a lógica penal de produção de precariedade da população trans.

Por um lado, há uma visibilidade seletiva dentro dos documentos e do sistema penal em geral, voltados para criminalizar a sociabilidade trans (FERREIRA, 2018FERREIRA, Guilherme Gomes. Donas de rua, vidas lixadas: interseccionalidades e marcadores sociais nas experiências de travestis com o crime e o castigo. 2018. Tese (Doutorado em Serviço Social). Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/Lisboa, 2018.), como, por exemplo, a famosa Operação Tarântula (BARBOSA et al, 2018BARBOSA, R. B.; BICALHO, P. P.; CAVALCANTI, C. Os tentáculos da Tarântula: abjeção e necropolítica em operações policiais a travestis no Brasil pós-redemocratização. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 38, n. 2, p. 175-191, 2018.). Cotidianamente, as pessoas trans são perseguidas, principalmente através da violência policial, sendo que, nas ruas e nos tribunais, são transformadas em “vadias”, “prostitutas” ou “pessoas afeitas ao crime” (SERRA, 2018SERRA, Vitor. “Pessoa afeita ao crime”: criminalização de travestis e o discurso judicial criminal paulista. 2018. Dissertação ( Mestrado em Direito). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista (Unesp), Franca, 2018.). Outro exemplo, que ajuda a perceber como a visibilidade de gênero ocorre com o objetivo de criminalizar as pessoas trans, diz respeito à quando elas são consideradas como autoras de algum crime. Quando vítimas, geralmente a identidade de gênero delas é omitida dos REDS, entretanto, quando autoras, o gênero é mencionado (NUH, 2019). Isso nos faz desconfiar que a visibilidade da identidade de gênero trans pode ser uma tática de criminalização, pois aciona as moralidades dos operadores do direito, reiterando estigmas sobre as experiências trans (JESUS, 2016JESUS, Jaqueline Gomes de. Operadores do direito no atendimento às pessoas trans. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 15, p. 537-556, 2016.).

Na chegada no Fórum Lafayette, as pessoas trans são separadas por cela, informando quem é considerado como um “terceiro gênero em transição”, ou seja, não é nem homem e nem mulher. Quando a Audiência de Custódia começa, há a reiteração da ideia de um terceiro gênero, por meio de uma tentativa de enquadramento formal dentro do sexo do registro civil, apesar de o gênero da pessoa, muitas vezes, ser visivelmente outro (de acordo com as palavras dos entrevistados). Constatamos aqui que, apesar dos avanços em relação ao debate de gênero, nas falas dos operadores entrevistados, as moralidades reveladas acionam marcos de cisgeneridade, enquadrando as pessoas trans nas categorias binárias de masculino e feminino. Essa dualidade ocasiona uma dinâmica, ora de invisibilidade da identidade de gênero, ora de visibilidade, na medida em que o corpo trans é marcado e visto como um corpo anormal. Ao mesmo tempo, não é um corpo em si mesmo, é um corpo que tem sua identidade extraída do registro civil para ser interpretada conforme os signos cisgêneros. É nessa dualidade que se insere o discurso de aceitação do nome social, mas a prática de rejeição deste, porque “o sistema não aceita”, porque “pode trazer problemas com o alvará de soltura”, ou até porque “a pessoa pode se fazer passar por outrem para escapar das malhas da justiça”.

No entanto, ser uma pessoa trans consiste em uma condição que recebe visibilidade na decisão da Audiência de Custódia, que lhes oferece um “combo” de medidas cautelares diversas da prisão, incluindo o atendimento pelo serviço psicossocial. Contudo, este “combo” pouco se conecta com o caso específico, uma vez que as moralidades estatais, que são transformadas em rotinas operacionais, tendem a reproduzir ad infinitum o binarismo de gênero. Diante da equipe multidisciplinar, as pessoas trans são encaminhadas para os serviços que estão disponíveis para o público em geral, como a emissão da carteira de identidade, o atendimento assistencial ou psicológico e, especialmente, a garantia da permanência da pessoa no fluxo de processamento da justiça criminal. Entretanto, devemos ter certa cautela e entender as ambiguidades e dilemas que se apresentam nesse diagnóstico, pois entendemos que, caso a equipe de assistência proporcionasse “serviços especializados”, estes ainda poderiam recair na reprodução de normas de gênero, conforme alerta Prado (2018PRADO, Marco Aurélio Máximo. Ambulare. Belo Horizonte: PPGCOM UFMG, 2018., p. 53-77).

A obrigatoriedade do atendimento pelo serviço psicossocial, bem como a punição por descumprimento caso a pessoa não compareça à equipe periodicamente, apontam para as dificuldades que as pessoas trans vivenciam, reiterando uma lógica penal de punição, através das cautelares diversas da prisão. Entendemos que essa articulação do par visibilidade/invisibilidade, por meio dos enquadramentos de gênero, proporciona o aumento da precariedade e da vulnerabilidade dos sujeitos trans, dentro das Audiências de Custódia e, depois, fora delas, com os encaminhamentos feitos pela equipe multidisciplinar. Essa dinâmica ocasiona certo abandono, pois o Estado não fornece serviços mais sensíveis às realidades de pessoas trans, tornando suas demandas invisíveis.

Por fim, não podemos afirmar que a visibilidade, em si, é um objetivo interessante para pessoas trans, dentro do aparato do sistema penal. Primeiro, porque isso pode reverberar em maior criminalização desses coletivos, considerando a reprodução oculta de opressões que estão insertas nos sistemas penais latino-americanos (FOUCAULT, 2014FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.; ZAFFARONI, 1991ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Revan: Rio de Janeiro, 1991.). Segundo, porque este trabalho não consegue dizer quais são as soluções e interesses coletivos das pessoas travestis e transexuais, sendo necessário ouvi-las para chegar nestas conclusões. Entretanto, é importante percebermos como a dimensão da invisibilidade é articulada no cotidiano do fluxo do sistema de justiça criminal, para, assim, realizarmos uma crítica interna às práticas jurídicas, entendendo como elas contribuem para a manutenção das opressões de gênero.

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  • 1
    Pessoas cisgêneras, ou “cis”, são aquelas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando ao nascimento (JESUS, 2012JESUS, Jaqueline. Gomes de. Identidade de gênero e políticas de afirmação identitária. In: ABEH. Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de Gênero. Salvador, 2012., p. 10), geralmente associado ao suposto sexo biológico definido por terceiros.
  • 2
    Tal documento objetivava alinhar as práticas processuais penais brasileiras à tratados e convenções de Direitos Humanos aos quais o Brasil é signatário, tais como Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
  • 3
    Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
  • 4
    Para melhor compreensão do que significa essa medida, ver IDDD (2019).
  • 5
    Trabalho aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2021
  • Aceito
    02 Fev 2022
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