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A fome na reprodução do capital: uma análise do alimento-mercadoria

Hunger in capital reproduction: a food commodity analysis

Resumo

Esse texto tem como objetivo explicitar a lógica de funcionamento do complexo sistema agroindustrial na produção da mercadoria-alimento e sua relação com a fome no Capitalismo. No aspecto metodológico, trata-se de uma pesquisa bibliográfica. Ao longo do texto demonstramos como a apropriação do capital na alimentação ocorre desde a ocupação do solo, a propriedade da terra, que passa necessariamente pela expulsão das famílias camponesas do campo e reconstruímos a lógica da cadeia de produção do alimento-mercadoria com as ramificações do complexo sistema agroindustrial de alimentos. Buscamos demonstrar que essa forma de produção de alimentos, voltada para a valorização do capital ainda que produza alimentos gerará fome, pois tem como resultado uma agricultura com diversidade restringida pelo monocultivo, um alimento desprovido de nutrientes, sobrecarregado de produtos químicos que provocam câncer, dentre outros agravos à saúde e não cumprem a função de alimentar os seres humanos. Em síntese alimentam a fome.

Palavras-Chave:
Sistema-Agroindustrial; Fome; Produção de Alimentos; Alimento-mercadoria

Abstract

This text aims to explain the working logic of the complex agro-industrial system in the production of food commodities and how it relates with hunger in Capitalism. Methodologically, this is a bibliographical research. Throughout the text, we seek to demonstrate how capital appropriation in food takes place: since the occupation of soil to the ownership of lands, which necessarily involves the expulsion of peasant families from the countryside, we reconstruct the logic of this production chain with the branches of the complex agro-industrial food system. We seek to demonstrate that this form of food production, which values capital, may even produce food, but it will generate hunger, as it results in an agriculture with low diversity due to monocultures, in food devoid of nutrients, overloaded with chemicals that cause cancer and other illnesses and do not fulfill the function of feeding people. In short, a system which feeds on hunger.

Keywords:
Agro-industrial system; Hunger; Food production; Food commodity

Introdução

A fome é uma invenção dos que comem.

Maria Carolina de Jesus.

Este texto tem como objetivo explicitar a lógica de funcionamento do complexo sistema agroindustrial na produção da mercadoria-alimento e sua relação com a fome no Capitalismo. Ao analisar a fome, tomamos como objeto o fenômeno na particularidade brasileira por compreendermos que as determinações expressas no objeto — nessa relação particular-universal — detêm os elementos necessários para a compreensão de sua totalidade. A análise do capital leva em consideração a relação de capitalismo dependente na qual o Brasil se insere na relação com o movimento global do capital.

Dessa forma, o texto busca demonstrar que a fome está intimamente relacionada à dinâmica de reprodução do capital e, portanto, à produção e à circulação de mercadorias esfera na qual a mais-valia se realiza; porém, tem sua origem e explicação na lógica da produção e não apenas nas questões relacionadas à circulação de alimentos — como é comum se deduzir dado ser de amplo conhecimento público o fato de termos há muito tempo uma produção de alimentos maior que o quantitativo humano a ser alimentado.

Essa equação (entre excesso de alimentos de um lado e fome de outro) não é mero problema de logística de distribuição de alimentos: está intimamente relacionada à própria lógica de reprodução do capital como buscaremos demostrar neste texto.

Este artigo foi construído a partir da tese de doutorado desta autora e, posteriormente, do amadurecimento de alguns anos de inserção sistemática em ensino, extensão e pesquisa realizados em uma Universidade Pública Federal brasileira. É tributário, também, do vínculo orgânico com um movimento social camponês que debate desde seu nascimento o tema da fome contribuindo historicamente com a elaboração do debate sobre Soberania Alimentar.

No aspecto metodológico, trata-se de uma pesquisa bibliográfica e documental com utilização de dados secundários apoiada em estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e de agências de pesquisas nacionais e internacionais.

A produção de alimentos comandada pelo Capital

Para se resolver o problema da fome, é necessário produzir alimentos. Essa produção de alimentos possui, grosso modo, dois principais vetores no mundo atual que correspondem a duas lógicas de se organizar a produção: a capitalista e a camponesa. Neste texto vamos detalhar, especialmente, a lógica capitalista de produção de alimentos, chamada comumente de agronegócio1 1 No Brasil, o termo agronegócio, que é a autodenominação da agricultura capitalista, ganha muita evidência nos anos 2000, quando a agricultura de caráter capitalista “volta às prioridades da agenda da política macroeconômica externa e da política agrícola interna” se constituindo como uma associação do grande capital agroindustrial à grande propriedade fundiária. Essa associação realiza uma aliança estratégica com o capital financeiro, “perseguindo o lucro e a renda da terra, sob patrocínio de políticas de Estado”. (DELGADO, 2010, p. 93). , comandada pelo grande capital.

De pronto, destacamos que não é possível pela dimensão de um artigo esmiuçar profundamente todos os determinantes que estão contidos na produção de alimentos. Busca-se aqui, especialmente, apresentar um panorama da situação atual do tema e sua relação com a fome. A premissa é a de que, dialeticamente, a fome se relaciona com o alimento em um par dialético, portanto, pensar no tema da fome é também, pensar em seu par dialético, o alimento.

Um caminho profícuo de análise para se apreender a importância do alimento na constituição humana nos é dado pela obra de Karl Marx, na qual podemos encontrar uma teoria das necessidades humanas e uma teoria da produção e reprodução do capital. Aprendemos com o autor que é importante começar pela

constatação de um primeiro pressuposto de toda a existência humana, e, portanto, de toda a história, ou seja, o de que todos os seres humanos devem ter condições de viver, para poder “fazer a história”. Mas, para viver, é preciso antes de tudo beber, comer, morar, vestir-se e algumas outras coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material. (MARX; ENGELS, 2002MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã. 2. ed. Tradução de Luís Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 2002.. p. 21).

Os seres sociais são seres que possuem necessidades e essas necessidades, para a espécie humana, são atendidas por meio do trabalho. O trabalho é o meio pelo qual os seres humanos intermediam, intercambiam, se relacionam com a natureza, retirando dela o que precisam para satisfazer suas necessidades e, ao fazê-lo, transformam a natureza e se transformam a si mesmos afastando as barreiras naturais e criando outra forma de existência, cada vez mais complexa e mais social (MARX, 2003MARX, K. O Capital: Crítica da economia política. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v. 1.; LUKÁCS, 2007LUKÁCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. In: O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2007.; LUKÁCS, 2012LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo. 2012.).

Nesse processo, complexificam-se os meios de trabalho, os instrumentos de trabalho e as próprias necessidades. Algumas necessidades, ao serem satisfeitas, dão origem a outras mais complexas e algumas desaparecem; todavia, outras não são suprimidas na história das necessidades humanas, são inalienáveis — a necessidade de se alimentar é uma delas. (TEIXEIRA, 2015TEIXEIRA, L. S. C. O valor da fome no Brasil: entre as necessidades humanas e a reprodução do capital. 2015. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2015.). Em função dessa característica, Marx (2003)MARX, K. O Capital: Crítica da economia política. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v. 1. irá demostrar como o alimento possui um lugar especial na reprodução da força de trabalho humana, uma vez que os bens necessários à reprodução dos trabalhadores e trabalhadoras e suas famílias compõem o custo da força de trabalho e determinam o salário a ser pago por ela. Assim, ganham destaque, no interior do capitalismo, os itens que compõem a cesta básica necessária à reprodução da força de trabalho.

No Brasil, a cesta básica foi instituída pelo Decreto Lei nº 399, de 30 de abril de 1938, que, após estudos realizados por comissões a pedido do governo Getúlio Vargas, determinou os produtos da cesta básica que correspondiam ao necessário para alimentar um trabalhador por 30 dias. Os produtos foram divididos em três regiões e se chegou a uma média nacional2 2 Compõem essa cesta básica 13 itens: carne 6kg, leite 15l, feijão 4,5kg, arroz 3kg, farinha 1,5kg, batata 6kg, legumes (tomate) 9kg, pão francês 6kg, café em pó 600gr, frutas (banana) 90 unidades, açúcar 3kg, banha/óleo 1,5kg e manteiga 900g. Esses são valores nacionais. Existem os valores para os grupos regionais. . A cesta básica é um bom indicador para se pensar o significado do salário mínimo na composição da relação capital-trabalho em um país e o nível da exploração do trabalho. Serve também como parâmetro para avaliarmos a capacidade de aquisição de alimentos da população e a situação da fome.

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) realiza mensalmente, para 17 capitais brasileiras, uma pesquisa sobre itens da cesta básica, cujos dados são utilizados para estabelecer o índice do custo de vida (ICV) ao longo dos anos. Em janeiro de 2022, os dados coletados pelo Dieese apontavam para a cidade de São Paulo, a maior do País, a cesta mais cara (R$ 713,86). Com esse estudo, é possível ao Dieese estipular qual deveria ser o salário mínimo necessário, considerando o que está estabelecido na Constituição Federal que prevê que o salário mínimo deve ser capaz de garantir as despesas de trabalhadores, trabalhadoras e suas famílias com alimentação, moradia, saúde, educação, vestuário, higiene, transporte, lazer e previdência. Nesses parâmetros, o salário necessário em janeiro de 2022 para uma família de quatro pessoas deveria ser de R$ 5.997,14, ou seja, 4,95 vezes o mínimo de R$ 1.212,00. Além de São Paulo, o documento do Dieese informa que o preço da cesta básica aumentou em 16 capitais brasileiras (DIEESE, 2022DIEESE, 2022. Valor da cesta básica aumenta em 16 capitais em janeiro de 2022. São Paulo. 2022. Nota à Imprensa. Disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2022/202201cestabasica.pdf. Acesso em: 10 fev. 2022.
https://www.dieese.org.br/analisecestaba...
).

Voltemos ao alimento como um bem necessário à reprodução humana. Marx (2003)MARX, K. O Capital: Crítica da economia política. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v. 1., ao apresentar a tese sobre a produção e reprodução do capital, irá demonstrar como sob a égide do modo de produção capitalista todos os valores de uso se tornam valores de troca e, mais ainda, tornam-se valor. O alimento inserido na lógica de produção de mercadorias e transformado ele mesmo em uma mercadoria, em uma commodity, perde toda a função de servir como alimento, de cumprir com seu valor de alimentar seres humanos e passa a servir, assim como as demais mercadorias, à valorização do capital. Ademais, como ocorre nos demais ramos da economia, também se observa na agricultura um processo de ampliação de tecnologia, financeirização, divisão sociotécnica do trabalho, superexploração do trabalho, uso ideológico do papel do agronegócio, em um processo de acumulação que tem a violência como método (MARX, 2006MARX, K. O Capital: Crítica da economia política. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. v. 2.).

Comecemos pelo tema da terra. A propriedade da terra é muito cara ao capital, desde a renda da terra, a produção de grãos e animais, passando pela extração de minérios, dentre eles o petróleo, o ferro, podemos destacar também a extração de madeiras em geral e da celulose, especificamente. Para termos um bom indicador da força da apropriação de capitais que vem diretamente da exploração da terra, tomemos o ranking dos principais produtos de exportação do Brasil em 2020. Segundo o Portal da Indústria, naquele ano os produtos foram: 1) soja; 2) óleos brutos de petróleo ou de minerais betuminosos; 3) minério de ferro; 4) óleos combustíveis de petróleo ou de minerais betuminosos; 5) carne bovina fresca, refrigerada ou congelada; 6) celulose; 7) carnes de aves e suas miudezas comestíveis, frescas, refrigeradas ou congeladas; 8) farelos de soja e outros alimentos para animais (extraídos cereais não moídos); farinhas de carnes e outros animais; 9) produtos para a indústria de transformação; e 10) açúcares e melaços (PORTAL DA INDÚSTRIA, 2021PORTAL DA INDÚSTRIA. 2021. Disponível em: https://www.portaldaindustria.com.br/industria-de-a-z/exportacao-e-comercio-exterior/. Acesso em: 10 nov. 2021.
https://www.portaldaindustria.com.br/ind...
).

Notem que sete desses itens são diretamente relacionados à terra e dois são relacionados ao petróleo; ainda que no Brasil tenhamos petróleo extraído em alto mar, também temos extração de petróleo diretamente do solo. Outro destaque é que o Brasil está entre os cinco maiores produtores agropecuários do mundo ao lado de China, Estados Unidos, Índia e Rússia.

Ainda sobre a terra, é importante destacar a incidência da bancada ruralista. Fundamental em todas as decisões que são tomadas no País, pois controlam o Congresso e o Senado Federal. Os ruralistas estão por trás do desmatamento da Amazônia legal para ampliar fazendas de criação de gado, madeireiras e mineradoras. Em um estudo feito a partir das declarações de terras entregues pelos políticos eleitos ao Tribunal Superior Eleitoral para o pleito de 2010, Alceu (2012) demonstra a concentração de terra nas mãos de prefeitos, deputados, governadores, senadores e presidentes da república, além da capilaridade que esses políticos representam na estrutura de poder — o que explica o quadro de impunidade da violência que existe no campo brasileiro e o não avanço da pauta da reforma agrária. Essa concentração de terra que formará o latifúndio ocorre por um processo de expulsão de camponeses e camponesas de suas terras, lento, persistente e violento, que em si contém também muitos elementos e que foi moldando o campesinato brasileiro a ferro, fogo e sangue. Não é objeto deste texto detalhar essa história, mas cabem duas notas breves.

Primeira, na história do Brasil, sumariamente, a concentração de terra se inicia com a escravização e eliminação dos povos originários (LEONARDI, 2016LEONARDI, V. Entre árvores e esquecimento: a modernidade e os povos indígenas no Brasil: história social dos sertões. 2. ed. Brasília: Editora da UnB; Paralelo 15, 2016.). A Colônia e o Império foram marcados por uma estrutura latifundiária com uma economia agrária voltada para a exportação de produtos primários. Prado Júnior (2006)PRADO JÙNIOR, C. Evolução política do Brasil: colônia e império. São Paulo: Brasiliense, 2006. caracteriza a organização produtiva da Colônia e do Império como fundada no latifúndio, no monocultivo e no trabalho escravizado. Esse trabalho escravizado é marcado por uma brutalidade impressionante, com tempo médio de vida de sete anos na lida rural. O Brasil foi o país com o maior quantitativo de pessoas negras escravizadas — o que teve o maior tempo de escravização e o último a abolir a escravidão, apesar de toda a luta e resistência do povo negro (MOURA, 2014aMOURA, C. Rebeliões da Senzala: Quilombos, Insurreições, Guerrilhas. 5. ed. São Paulo: Anita Garibaldi coedição com a Fundação Maurício Grabois, 2014a., 2014bMOURA, C. Dialética radical do povo negro. 2. ed. São Paulo: Fundação Maurício Grabois coedição com Anita Garibaldi, 2014b., 2020MOURA, C. Quilombos Resistência ao escravismo. São Paulo: Expressão Popular, 2020.), o processo de abolição foi feito a conta-gotas, e ao final nenhuma política social e nenhum centímetro de terra foi destinado a quem nela trabalhou por anos a fio (COSTA, 2010aCOSTA, E. V. da. A Abolição. 9. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2010a., 2010bCOSTA, E. V. da. Da Monarquia à República. 9. ed. São Paulo: Editora Unesp. 2010b.). Uma pequena parcela dessa população permaneceu nas antigas fazendas e a outra rumou para as cidades. Registra-se também na história agrupamentos familiares que viviam em pequenas propriedades se relacionando de forma conflituosa com o latifúndio, em disputas de terra sempre sangrentas.

Segunda, o processo mais recente dos trabalhadores do campo também é brutal. Não é casual que o maior movimento social do mundo o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) seja um movimento de luta pela terra. Surgido em 1984, o MST registra em sua história vários massacres; citaremos apenas o de Eldorado dos Carajás no qual 21 trabalhadores sem-terra foram assinados pela mão armada do Estado, em 17 de abril de 1996, data que nomeia o dia mundial de luta pela reforma agrária. Desde a década de 1980 surgiram vários outros movimentos sociais camponeses no Brasil, dentre eles o Movimento de Atingidos por Barragens o MAB, em 1991, e o Movimento dos Pequenos Agricultores o MPA, em 1996. A própria necessidade de organização dos camponeses indica a gravidade da situação da luta pela permanência na terra no Brasil. A inviabilização da vida de famílias camponesas no campo é a lei em um País comandado por latifundiários.

Notas feitas, voltemos para a produção dos alimentos. Como o alimento faz parte da composição da cesta básica e, logo, dos bens da reprodução da vida do trabalhador, da trabalhadora, tende-se a buscar o barateamento desses produtos e isso se consegue extenuando-se toda a cadeia de produção desse setor que não seja os ganhos de capital, ou seja, a natureza e a força de trabalho. Temos diante de nós um ramo do capital extremamente destrutivo do ponto de vista ambiental e do ponto de vista das vidas humanas. Já demostramos que o salário mínimo no Brasil não é suficiente para cumprir com o pacto constitucional, mas o trabalho no campo ainda é o que mais é denunciado por trabalho análogo à escravidão. É importante frisar que a produção voltada para a exportação transfere ganhos de capital por meio da superexploração do trabalho e da destruição da natureza, em um processo que se intensifica pela inserção dependente do Brasil no capitalismo mundial (MARINI, 2005MARINI, R. M. Dialética da Dependência, 1973. In: TRASPADINI, R.; STEDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini Vida e Obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005., 2012MARINI, R. M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012.).

Seguiremos com a análise da forma de produção capitalista que é centrada na monocultura, transgenia, adubos químicos, agrotóxicos e patentes. A Soja é a campeã de exportações no Brasil, mas sua história está atrelada a outra commodity, ao milho e ao saldo da segunda guerra mundial. Todo o armamento químico que foi inventado durante a segunda guerra mundial necessitava de uma destinação — ademais das guerras que seguiram ocorrendo com a Guerra do Vietnã —, a solução encontrada pela indústria química foi incorporar todo esse saldo de guerra na agricultura, e a partir dos anos 1950 surge uma crença em todo o mundo de que não é possível produzir alimentos sem agrotóxicos. A revolução verde contribuirá para consolidar essa crença e sedimentará uma forma de fazer agricultura que é hegemônica atualmente.

Passando brevemente pelo milho, a planta que possui grande capacidade de transformar a energia do sol em calorias, tem uma plasticidade para a hibridização, uma disposição de plantio que facilita o uso de máquinas e dele se pode derivar uma grande quantidade de produtos que servem à indústria de alimentos. Pollan (2007)POLLAN, M. O dilema do onívoro. Trad. Cláudio Figueiredo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2007. afirma que, dos 45 mil tipos de produtos que podemos encontrar em um supermercado, um quarto tem milho em sua composição. A Soja aparece na história para recompor o nitrogênio que o milho retira do solo. E a partir daí quase toda a alimentação humana é reduzida a milho e soja, em um empobrecimento alimentar tal que colocou a saúde de praticamente toda a população humana em risco. Essa redução da agricultura a poucos produtos, com a utilização de grandes quantidades de agrotóxicos e adubos químicos, intensificou os índices de cânceres da população, além de agravos neurológicos, alergias e intolerâncias alimentares (CARNEIRO et al., 2015CARNEIRO, F. F. et al. Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015.).

A agricultura segue a mesma dinâmica de concentração e centralização própria da lei geral de acumulação capitalista (MARX, 2006MARX, K. O Capital: Crítica da economia política. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. v. 2.). Outro exemplo, para ficarmos na base da cultura alimentar brasileira, é o arroz. Petersen (2021)PETERSEN, P. Campesinato, soberania alimentar e abastecimento popular. In: LEAL, M. (org.). Crise Sistêmica: veredas estratégicas. São Paulo: Outras Expressões. 2021. cap. 5, p. 150-170. afirma que nos últimos 10 anos perdemos 40% da área produzida de arroz, e 70% do arroz produzido no Brasil está no Rio Grande do Sul; se agregarmos Santa Catarina, temos 80% de todo o arroz no Sul do país.

Essa centralização e redução da produção a poucos produtos, com perda da biodiversidade, ano a ano, extenua, compacta e destrói a saúde do solo3 3 Sobre saúde do solo consultar a obra de Ana Primavesi (1920-2020), engenheira agrônoma, austríaca, que passou a maior parte da sua vida no Brasil e se dedicou a demonstrar que o solo saudável permite que todos os demais seres também tenham saúde. Especialmente Primavesi (2016, 2017). , que para seguir produzindo, necessita de doses cada vez maiores de adubos e corretivos químicos, ou de adubos “mais eficientes”. Esses adubos conseguem ganhos imediatos de produção a curto prazo, mas a longo prazo provocam dados irreparáveis à natureza e ao ecossistema. O Brasil é campeão mundial de uso de agrotóxicos e adubos químicos, cifras que crescem ano a ano (CARNEIRO et al., 2015CARNEIRO, F. F. et al. Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015.; TEIXEIRA, 2015TEIXEIRA, L. S. C. O valor da fome no Brasil: entre as necessidades humanas e a reprodução do capital. 2015. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2015.).

Avançando do solo para as sementes, esse modelo de produção é calcado nas sementes transgênicas. Sementes transgênicas são sementes geneticamente modificadas para corrigir determinadas características genéticas que permitem que elas sejam menos atacadas por determinados insetos, fungos ou doenças. Para tanto, são vendidas com seu agrotóxico correspondente e com seus adubos correlatos; são patenteadas e são a expressão mais notória da transformação do alimento em mercadoria, pois a referência deixa de ser o alimento para ser o código da patente4 4 As patentes de sementes, plantas e nutrientes são uma das mais devastadoras e impressionantes formulações do capitalismo. Já o seria por destruir a noção de alimento e comida e reduzi-la a uma mercadoria, mas também por retirar dos povos um bem comum. Uma vez patenteada, todo uso e comercialização de uma semente, planta ou nutriente deve render pagamento para a empresa que o patenteou. Contra a indústria de patentes se insurgem todos os movimentos sociais da Via Campesina. . Cada elo desse processo é a valorização do valor, a geração de mais capital. Ainda na fazenda industrial, em torno da agricultura, o capital já movimentou a renda da terra, o mercado de sementes, o mercado de adubos, o mercado de agrotóxicos5 5 Uma série de organizações sociais, dentre elas o Instituto Nacional do Câncer, a Fundação Oswaldo Cruz e os Movimentos Sociais Camponeses (MPA, MAB, MST) organizam uma campanha permanente contra o uso de agrotóxicos e pela vida. Mais informações sobre a campanha podem ser encontradas nesse link: https://contraosagrotoxicos.org/ .

Há também todo um mercado de máquinas e implementos agrícolas. O uso de maquinaria de grande porte na agricultura brasileira também está relacionado à transferência de tecnologia de segunda linha dos Estados Unidos para os países da América Latina, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. A utilização de tratores aumenta de 8.372 unidades em 1950, passando para 61.345 unidades em 1960, um aumento de sete vezes, e para 143.309 unidades em 1970, ou seja, mais que o dobro da década anterior (DELGADO, 2012aDELGADO, G. C. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: UFRGS, 2012a.).

Isso responde a uma transferência de tecnologia, já apontada por Marini (2005)MARINI, R. M. Dialética da Dependência, 1973. In: TRASPADINI, R.; STEDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini Vida e Obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005., na análise do capitalismo dependente. Segundo George (1978)GEORGE, S. O Mercado da fome: as verdadeiras razões da fome no mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978., no pós-guerra, muitas empresas Americanas começam a se especializar em produtos agrícolas, como fertilizantes, pesticidas e tratores. É o caso da Massey-Ferguson, que declara estar o Brasil dentre os países que mais geram lucros.

É sempre bom termos em mente que ainda estamos comendo as sobras da Segunda-Guerra Mundial (POLLAN, 2007POLLAN, M. O dilema do onívoro. Trad. Cláudio Figueiredo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2007.), e que essa guerra respondeu a uma necessidade do capital de recompor ganhos de perdas ocasionadas por suas crises cíclicas. Especialmente quando a crise atual, agravada pela pandemia de Covid-19, já é a maior crise da história do capital (BRUKMANN, 2020BRUKMANN, M. Geopolítica. In: LEAL, M. (org.) Crise Sistêmica: Veredas estratégicas. São Paulo: Outras Expressões. 2020.).

Antes de seguir o caminho que o alimento-mercadoria percorre até a mesa das pessoas, cabe uma nota sobre a vida dos trabalhadores e das trabalhadoras que estão inseridos e inseridas no processo produtivo nestas fazendas industriais. A intensificação do uso de agrotóxicos, seguida pela não utilização de equipamentos de segurança, tem provocado intensos agravos à saúde dos trabalhadores e trabalhadoras. Os dados de Delgado (2012b)DELGADO, G. C. Questão Agrária e Saúde. Rio de Janeiro: CEBES, 2012b. informam o crescimento das solicitações de auxílio-doença, auxílio-acidente e aposentaria por invalidez, destruindo a saúde e eliminando a vida desses trabalhadores e trabalhadoras. Esses mesmos dados são corroborados pelo dossiê da Abrasco sobre o uso de Agrotóxicos e das pesquisas Wanderlei Antônio Pignati (CARVALHO, 2015; NOVAES, 2013NOVAES, B. Nuvens de Veneno. Rio de Janeiro: Terra Firme, Vídeo Saúde Distribuidora MP2 Produções 23 min. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1FXOQcQm9Oc&t=13s. Acesso em: 11 ago. 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=1FXOQcQm...
).

Voltando para o caminho da produção, a de grãos, na agricultura, tem algumas destinações: parte pequena dela vai para a mesa das pessoas servir como alimentos, a maior parte é destinada à produção de ração para animais, especialmente a cadeia de soja e milho, e parte é destinada à indústria de alimentos ultraprocessados. Sigamos agora para a cadeia de produção de animais.

A produção de carnes industrializada segue a tendência da produção em confinamento. Grande parte da carne de gado6 6 O Brasil tem fazendas de gado em grandes pastagens, sobretudo a que avançou desmatando a Amazônia Legal; essa carne, de melhor qualidade, serve aos mercados de carne mais exigentes da Europa, EUA e China. , frango, porco e peixes é atualmente produzida em confinamento à base de ração, e essa por sua vez produzida a base de milho e soja. As condições de vida desses animais confinados também apresentam uma série de mutações que são corrigidas com usos de antibióticos e outras medicações; esse excesso de antibióticos chega até o consumo humano diretamente pelo consumo dessas carnes, mas também pela contaminação do solo e, especialmente, da água. A pesquisa divulgada no site da Fiocruz informa que se analisou a água de 72 rios de todo o mundo e que quase dois terços estavam contaminados com antibióticos (FIOCRUZ, 2019FIOCRUZ. Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH). Rios do mundo todo estão contaminados por antibióticos, revela estudo global inédito. CESTEH, 04 jun. 2019. Disponível em: http://www.cesteh.ensp.fiocruz.br/noticias/rios-do-mundo-inteiro-estao-contaminados-por-antibioticos-revela-estudo-global-inedito#:~:text=Em%20muitos%20pa%C3%ADses%20desenvolvidos%2C%20o,c%C3%B3rregos%20de%20forma%20mais%20direta. Acesso em: 10 nov. 2021.
http://www.cesteh.ensp.fiocruz.br/notici...
). Aqui começa a aparecer outra ramificação da acumulação de capital que é a indústria-farmacêutica.

Outra parte desses grãos que chegará à indústria de alimentos será processada e ultraprocessada. A indústria de ultraprocessado também é intimamente ligada à história da guerra. Os alimentos enlatados foram amplamente utilizados na alimentação dos soldados na Primeira e Segunda Guerras Mundiais e a partir daí ganharam a indústria alimentos. Eles possuem uma característica importante para a indústria que é a durabilidade, ainda que, com o passar do tempo e o aprimoramento da química, foram perdendo a característica de alimentos e ganhando cada vez mais o caráter de imitação de comida. Essas substâncias alimentares, que imitam comida, tendem a ser mais baratas que comida de verdade e são destinadas à alimentação da população empobrecida. Nos parâmetros utilizados por Josué de Castro (1961)CASTRO, J. Geopolítica da Fome. 6. ed. São Paulo: Brasiliense. 1961. v. 2., essa lógica alimentar corresponde à fome oculta, aquela pela qual se morre de fome, comendo um pouco por dia (CASTRO, 2011CASTRO, J. Fome como força social: fome e paz. In: FERNANDES, B. M.; GONÇALVES, C. W. P. (org.). Josué de Castro vida e obra. 2. ed. São Paulo: Expressão popular, 2011.). Esses alimentos ultraprocessados são caracterizados por terem em sua composição excesso de açucares e sais, e por essa razão causarem também diversos agravos à saúde.

Ainda sobre o complexo sistema agroindustrial é importante destacar que ele está fundamentado em importação-exportação, logo em longas distâncias percorridas pelo alimento, isso implica em uma indústria de transportes (carros, trens, caminhões, navios, aviões) que por sua vez implicam em asfalto, contêineres, portos, rodovias, aeroportos, cargueiros, peças de reposição. Aí existe toda uma linha de ganhos de capital movimentado a partir desse ato humano cotidiano de se alimentar.

Mas há outro elemento fundamental: petróleo. Todo alimento-mercadoria precisa de combustível para circular e muita, muita embalagem plástica, que por sua vez é um subproduto da indústria de petróleo. E ao chegar ao petróleo, chegamos à maior parte dos conflitos bélicos na última quadra histórica no Oriente Médio e também os conflitos na vizinha Venezuela. Então não é exagero dizer que a indústria de alimentos também está conectada com a indústria de armas. Pollan (2007POLLAN, M. O dilema do onívoro. Trad. Cláudio Figueiredo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2007., p. 94) afirma que “um quinto do petróleo consumido nos Estados Unidos vai para a produção e o transporte de comida” e por isso o autor denomina o sistema capitalista de alimentos como complexo sistema agroindustrial-militar.

Notem que a mercadoria alimento movimenta direta e indiretamente muito capital, mas ainda não chegamos à fome. Sabemos que existe muito alimento produzido no mundo e que, inclusive, produzimos alimentos para mais que o dobro da população mundial (ZIEGLER, 2013ZIEGLER, J. Destruição em massa: geopolítica da fome. Tradução de José Paulo Netto. São Paulo: Cortez, 2013.). Então, por que não conseguimos acabar com a fome? Voltemos ao começo.

A fome tem uma relação direta com as crises econômicas em uma sociedade salarial. Se a forma de acesso a bens e serviços é o salário e a renda, a ausência destes leva a população à situação de fome. No Brasil de 2020 conjugaram-se algumas dessas situações, pois partíamos de uma conjuntura de crise do capital que avançava dede 2008. Em março de 2020, a pesquisa de desemprego do IBGE demostrava que o Brasil alcançava 14,3 milhões de desempregados e desempregadas. A fome já voltava ao país, os dados da Pesquisa de Amostra de Domicílios POF (2017-2018) apontavam que a fome voltava a crescer no Brasil desde 2016.

Esse retorno da fome ocorre pela conjunção dos fatores da crise econômica: da perda da renda da população brasileira, mas, também, pelo esgotamento e pela supressão de políticas públicas articuladas no Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) que contava com políticas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com aquisição de 30% de alimentos das famílias camponesas; do Programa de Cisternas, dos restaurantes populares, das cozinhas comunitárias, dos bancos de alimentos e das medidas emergenciais de transferências de renda. Essas políticas, ainda que insuficientes, contribuíram para reduzir a fome. Outro fator fundamental de contenção da fome no âmbito do setor público são os estoques da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que foram paulatinamente esgotados, até desaparecerem por completo.

O ano de 2020 surpreendeu o mundo pela crise causada pela pandemia de Covid-19. Essa tragédia sanitária surgiu em dezembro de 2019 na China e rapidamente se espalhou para todo o mundo. Além de um contingente catastrófico de mortos7 7 Quando esse texto foi finalizado passávamos da marca de 649 mil mortes no Brasil e quase 6 milhões no mundo. , a pandemia marcou o retorno vigoroso do tema da fome aos noticiários brasileiros.

Confundidas entre essência e aparência do fenômeno, muitas pessoas foram levadas a acreditar que a pandemia havia causado a volta da fome, o que não é verdadeiro (como já dissemos), mas ocorre, sim, uma intensificação do quantitativo de pessoas em situação de fome no País em função da má gestão da crise sanitária por parte do governo federal: os dados do relatório da pesquisa da Rede Penssan (2021) informam 19 milhões de brasileiros e brasileiras em situação de fome.

Dentre os elementos da má gestão da crise sanitária, destaca-se a não existência de um plano para a crise, a ausência de uma resposta econômica aos efeitos da pandemia, especialmente na relação com os alimentos. Medidas como interromper a exportação de grãos para regular os estoques internos, poderiam ter sido tomadas, o que tenderia a regular a alta nos preços dos alimentos e não foram feitas. O governo titubeou com o auxílio emergencial, que não teria saído sem pressão do Congresso, e sofreu interrupções. Além da crise sanitária, o Brasil enfrentou uma crise energética provocada pela má gestão das barragens, o que provocou aumento exorbitante nas tarifas de energia elétrica. A seca no Rio Grande do Sul em 2022 já é a maior em 75 anos, o que afeta a produção de alimentos. Por outro lado, as chuvas em Minas, na Bahia e no Rio de Janeiro destroem cidades. Petrópolis registra sua pior tragédia em fevereiro de 2022 e a produção de alimentos em todos esses estados também foi afetada. Problemas de uma administração incompetente diante do resultado catastrófico da lógica de produção capitalista. A projeção da conjuntura é um cenário de continuidade da fome.

Mas, do ponto de vista histórico, existem outros elementos importantes para a compreensão da fome no capitalismo. A fome foi muitas vezes utilizada como arma de guerra. A Segunda Guerra Mundial registrou que esse recurso foi utilizado inúmeras vezes pelos nazistas, destacamos pela brevidade do tempo o cerco à cidade russa de Leningrado, atual São Petersburgo, que durou 900 dias, a tática foi utilizada também na Noruega e nos campos de concentração nazistas (CASTRO, 1961CASTRO, J. Geopolítica da Fome. 6. ed. São Paulo: Brasiliense. 1961. v. 2.). Há que se considerar que é mais fácil guerrear com pessoas famélicas e que, pessoas famélicas sem expectativa de vida, imersas na miséria, se deixam morrer e matar em um comércio de armas e drogas que eliminam vidas de pessoas jovens negras no Brasil e enriquecem os cofres de traficantes de armas, drogas e milicianos. A fome também movimenta muito capital!

A fome é, também, uma arma de chantagem econômica. Foi utilizada recentemente na história da América Latina em Cuba durante o embargo norte-americano para desestabilizar o governo revolucionário cubano, e foi utilizada na Venezuela, também com o objetivo de desestabilizar o governo Chavista, que intentava construir uma revolução bolivariana no país.

Há ainda um elemento da fome que precisamos tratar e diz respeito a uma faceta do mercado de alimentos. Ainda que a necessidade humana de se alimentar seja insuprimível e diária, existe um limite para ela, um limite corporal. A indústria de alimentos de ultraprocessados quebrou esse limite ao desenvolver uma substância alimentar que engana a fome (DEBORD, 2000DEBORD, G. Enganar a fome [abat-faim]. Trad. Helder Moura Pereira. Lisboa: Frenesi, 2000.), mas não alimenta; a indústria conseguiu que as pessoas comessem, mas permanecessem com fome, de modo que o corpo não estivesse nutrido suficientemente.

Isso permitiu que uma mesma pessoa passasse a ingerir porções cada vez maiores, de uma comida que nunca sacia a fome. Para isso, a indústria mobilizou a pesquisa científica e descobriu que as pessoas tinham dificuldades em repetir as porções, mas comiam mais se a porção servida fosse maior. Isso fez com que toda uma indústria de utensílios domésticos se movimentasse cada vez com pratos e copos maiores e mais largos.

Com o aumento dos recipientes nos quais nos alimentamos, dentre outros, processou-se uma transição nutricional que levou a população brasileira, da desnutrição ao sobrepeso e à obesidade8 8 Existe ampla literatura sobre a transição nutricional no Brasil; destacamos a respeito os estudos de Monteiro (1995, 2003) e Monteiro et al. (2009) e as Pesquisas de Orçamentos Familiares do IBGE – Análise do consumo alimentar no Brasil 2002-2003, 2008-2009, 2014-2015, 2017-2018, que apresentam uma série histórica sobre a evolução da desnutrição e da obesidade no Brasil. . Com esse padrão nutricional concorreram vários problemas provenientes de uma forma inadequada de se alimentar, movimenta-se uma indústria de medicamentos, academias de ginásticas, suplementos alimentares, cirurgias bariátricas e cirurgias plásticas. Em todo o processo o capital, segue seu eterno mecanismo de acumulação de valor.

Considerações finais

Ao longo deste texto buscamos demonstrar como a apropriação do capital na alimentação ocorre desde a ocupação do solo, a propriedade da terra, que passa necessariamente pela expulsão das famílias camponesas do campo e reconstruímos a lógica da cadeia de produção do alimento-mercadoria com as ramificações do complexo sistema industrial de alimentos.

Buscamos demonstrar que essa forma de produção de alimentos, voltada para a valorização do capital, ainda que produza alimentos, gerará fome, pois tem como resultado um alimento desprovido de nutrientes, reduzido a poucos grãos pela dinâmica do monocultivo, sobrecarregado de produtos químicos que provocam câncer, dentre outros agravos à saúde e não cumprem a função de alimentar, em síntese alimentam a fome.

Nesse processo, a fome aparece como um mecanismo de acumulação de capital, seja na dominação de territórios econômicos, seja na destruição da saúde das pessoas. Duas sínteses são possíveis à guisa de considerações finais.

A fome é importante como arma de dominação e destruição em massa provocada pelo capital. Dessa forma, a política de governo pode amenizá-la e reduzi-la temporariamente, mas não a conter definitivamente. A fome só será superada definitivamente com a construção de uma sociedade comunista e, para isso, é necessário que as forças populares se organizem e conquistem poder popular projetando uma sociedade de produtores e produtoras livres, livremente associados e associadas.

Agradecimentos

Às professoras Elaine Martins Moreira e Maristela Dal Moro e a todes es estudantes do Laboratório de Ensino Pesquisa e Extensão “Qade” com es quais venho partilhando e construíndo as reflexões desse texto nos últimos anos.

  • 1
    No Brasil, o termo agronegócio, que é a autodenominação da agricultura capitalista, ganha muita evidência nos anos 2000, quando a agricultura de caráter capitalista “volta às prioridades da agenda da política macroeconômica externa e da política agrícola interna” se constituindo como uma associação do grande capital agroindustrial à grande propriedade fundiária. Essa associação realiza uma aliança estratégica com o capital financeiro, “perseguindo o lucro e a renda da terra, sob patrocínio de políticas de Estado”. (DELGADO, 2010DELGADO, G. C. A questão agrária e o agronegócio no Brasil. In: CARTER, M. (org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e reforma agrária no Brasil. São Paulo: Unesp, 2010., p. 93).
  • 2
    Compõem essa cesta básica 13 itens: carne 6kg, leite 15l, feijão 4,5kg, arroz 3kg, farinha 1,5kg, batata 6kg, legumes (tomate) 9kg, pão francês 6kg, café em pó 600gr, frutas (banana) 90 unidades, açúcar 3kg, banha/óleo 1,5kg e manteiga 900g. Esses são valores nacionais. Existem os valores para os grupos regionais.
  • 3
    Sobre saúde do solo consultar a obra de Ana Primavesi (1920-2020), engenheira agrônoma, austríaca, que passou a maior parte da sua vida no Brasil e se dedicou a demonstrar que o solo saudável permite que todos os demais seres também tenham saúde. Especialmente Primavesi (2016PRIMAVESI, A. Manual do solo vivo: solo sadio, planta sadia, ser humano sadio. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2016., 2017PRIMAVESI, A. Algumas plantas indicadoras: como reconhecer os problemas de um solo. São Paulo: Expressão Popular, 2017.).
  • 4
    As patentes de sementes, plantas e nutrientes são uma das mais devastadoras e impressionantes formulações do capitalismo. Já o seria por destruir a noção de alimento e comida e reduzi-la a uma mercadoria, mas também por retirar dos povos um bem comum. Uma vez patenteada, todo uso e comercialização de uma semente, planta ou nutriente deve render pagamento para a empresa que o patenteou. Contra a indústria de patentes se insurgem todos os movimentos sociais da Via Campesina.
  • 5
    Uma série de organizações sociais, dentre elas o Instituto Nacional do Câncer, a Fundação Oswaldo Cruz e os Movimentos Sociais Camponeses (MPA, MAB, MST) organizam uma campanha permanente contra o uso de agrotóxicos e pela vida. Mais informações sobre a campanha podem ser encontradas nesse link: https://contraosagrotoxicos.org/
  • 6
    O Brasil tem fazendas de gado em grandes pastagens, sobretudo a que avançou desmatando a Amazônia Legal; essa carne, de melhor qualidade, serve aos mercados de carne mais exigentes da Europa, EUA e China.
  • 7
    Quando esse texto foi finalizado passávamos da marca de 649 mil mortes no Brasil e quase 6 milhões no mundo.
  • 8
    Existe ampla literatura sobre a transição nutricional no Brasil; destacamos a respeito os estudos de Monteiro (1995MONTEIRO, C. A. A dimensão da pobreza, da fome e da desnutrição no Brasil. Estudos avançados, n. 9, v. 24, p.195-207, 1995., 2003MONTEIRO, C. A. Fome, desnutrição e pobreza: além da semântica. Saúde e Sociedade, v. 12, n. 1, p.7-11, jan./jun. 2003.) e Monteiro et al. (2009MONTEIRO, C. A. et al. Causas do declínio da desnutrição infantil no Brasil, 1996-2007. Revista Saúde Pública, n. 43, v. 1, p.35-43, 2009.) e as Pesquisas de Orçamentos Familiares do IBGE – Análise do consumo alimentar no Brasil 2002-2003, 2008-2009, 2014-2015, 2017-2018, que apresentam uma série histórica sobre a evolução da desnutrição e da obesidade no Brasil.
  • Agência financiadoraNão se aplica.
  • Aprovação por Comitê de ÉticaNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoConsentimento da autora.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    20 Maio 2022
  • Revisado
    24 Jun 2022
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