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Direito do trabalho na contramão: a precarização como regra

Labor law on the opposite direction: precariousness as a rule

Resumo:

Este artigo tem o objetivo de examinar a legislação trabalhista brasileira no contexto da pandemia do Covid-19. A intenção é demonstrar que as medidas emergenciais de redução de direitos do trabalhador na pandemia indicam não uma ruptura com o momento precedente, mas um fio de continuidade promovido pela ofensiva neoliberal no Brasil. Para tanto, será demonstrada a tênue fronteira entre exceção e normalidade e, por conseguinte, a precarização do trabalho como regra. Ao final, os resultados da pesquisa indagam sobre o futuro do direito do trabalho em meio às especificidades da sociedade capitalista e as práticas políticas autoritárias.

Palavras-chave:
Direito do Trabalho; Precarização; Covid-19

Abstract:

This article aims to examine Brazilian labor legislation in the context of the Covid-19 pandemic. The intention is to demonstrate that emergency measures to reduce workers' rights in the pandemic indicate not a break with the previous moment, but a continuity thread promoted by the neoliberal offensive in Brazil. Therefore, the fine line between exception and normality will be demonstrated and, consequently, the precariousness of work as a rule. In the end, the research indicates question about the future of labor law amid the specificities of capitalist society and authoritarian political practices.

Keywords:
Labor Law; Precariousness; Covid-19

Introdução

O artigo pretende examinar a Medida Provisória 936/20 editada, no Brasil, pelo Governo Federal que permite a suspensão de contratos detrabalho e a redução de salários durante a pandemia do Covid-19 (BRASIL, 2020BRASIL. Medida provisória nº 936, de 1º de abril de 2020. Institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas trabalhistas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv936.htm. Acesso em: 1 ago. 2020.
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). A hipótese principal sugere uma análise conjuntural do direito do trabalho para comprovar que não houve uma ruptura entre o período de normalidade (antes Covid-19) e o período de exceção (durante o Covid-19), mas continuidade. Nesse sentido, a normatividade do Estado brasileiro em matéria trabalhista consolida a precarização do trabalho como regra e não como exceção.

Para compreender o contexto atual do direito do trabalho é preciso indagar sobre o passado do direito do trabalho. O objetivo é entender as condições históricas que propiciaram a consolidação desse ramo jurídico e identificar seus descaminhos. Por que o direito do trabalho se tornou o direito do capital? Ou com outras palavras, por que ele passou a legitimar o capital? A classe trabalhadora, em cada momento histórico, percebeu a necessidade de se organizar e pleitear regulamentação, por exemplo, a redução da jornada de trabalho, o direito de greve, no entanto compreendia que a luta deveria ir além das demandas jurídicas. É o que se verifica nos relatos dos jornais operários do Brasil. Em 1917 há o seguinte registro: “nós não podemos concordar com esses velhos camaradas, que no inverno da vida, cansados das lutas operárias, ainda esperem dos governos algum benefício para os operários” (O COSMOPOLITA, 1917, p. 2).

O cenário político brasileiro é a amostra atual que não podemos confiar no Estado. Ao invés de promover políticas públicas em prol da vida durante a epidemia global do Covid-19, o Estado brasileiro implementou a política da morte. Evidenciada nas palavras de descaso do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido): “Alguns vão morrer, essa é vida” (LINDNER; TURTELLI, 2020LINDNER, J.; TURTELLI, C. ‘Infelizmente algumas mortes terão. Paciência.’ diz Bolsonaro ao pedir o fim do isolamento. Política Estadão, 27 mar. 2020. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,infelizmente-algumas-mortes-terao-paciencia-diz-bolsonaro-ao-pedir-o-fim-do-isolamento,70003250982. Acesso em: 1 ago. 2020.
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, p. 1). Embora essa prática tenha ficado mais explícita durante a pandemia, a “lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. Esse sistema sempre operou com a ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado” (MBEMBE, 2018MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Revista REDES, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 80, 2018., p. 48).

A relação entre política e direito é tênue. Em 2018, a vitória no Brasil do candidato contrário à democracia, à ciência, às mulheres, aos homossexuais, aos negros, aos indígenas, aos subalternos indicava também uma correlação com o modelo de direito que deveria ser solapado. Basta lembrar o forte apoio do empresariado ao então candidato Jair Bolsonaro e as propostas da campanha de acabar com a justiça do trabalho, de extinguir o Ministério do trabalho e retirar direitos dos trabalhadores, o que sinalizava tempos difíceis por vir. O historiador do direito Ricardo Fonseca (2020)FONSECA, R. Il Brasile, la modernità e la pandemia: riflessioni di uno storico del diritto. Zammumultimedia, 10 jun. 2020. Disponível em: http://www.zammumultimedia.it/il-brasile-la-modernita-e-la-pandemia-riflessioni-di-uno-storico-del-diritto.htm. Acesso em: 20 de junho de 2020.
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identifica a contradição de o Brasil moderno ter escolhido um candidato pré-moderno para ocupar o cargo de Presidente da República. Isso nos leva a questionar: será que “o sonho iluminista de emancipação, liberdade e igualdade de direitos realmente se tornou realidade ou permanece uma frágil esperança, sujeita à imprevisibilidade da História, como evidenciado pelo crescente apreço por líderes políticos autoritários?” (FONSECA, 2020FONSECA, R. Il Brasile, la modernità e la pandemia: riflessioni di uno storico del diritto. Zammumultimedia, 10 jun. 2020. Disponível em: http://www.zammumultimedia.it/il-brasile-la-modernita-e-la-pandemia-riflessioni-di-uno-storico-del-diritto.htm. Acesso em: 20 de junho de 2020.
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, tradução nossa).

Após a legalização no Brasil do trabalho precário através da Lei n. 13.467/2017 (Contrarreforma trabalhista) e a Terceirização Irrestrita (Lei n. 13.429/2017), a ofensiva neoliberal se fortaleceu ainda mais pós-eleição 2018, como diria Walter Benjamim (1985, p. 13), “esse inimigo não tem cessado de vencer”. Os ataques à população não demoraram: antes do Covid-19 houve a aprovação da Nova Previdência Social e, no decorrer da pandemia, Portarias arbitrárias e Medidas Provisórias. A violência institucionalizada, inclusive, se transformou nos atos de fala dos agentes políticos, por exemplo, o ministro da economia Paulo Guedes sugeriu que os mais de 12 milhões de brasileiros desempregados passaram a ter vida boa e que o povo não iria querer trabalhar mais, em virtude do auxílio emergencial (LIRIO, 2020LIRIO, S. Não esqueçam Paulo Guedes. Carta Capital. 20 maio 2020. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/nao-esquecam-paulo-guedes/. Acesso em 25 maio 2020.
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). Nesse cenário de retrocesso social o que restou do direito do trabalho?

Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás

Pode o direito ser emancipatório? Esta pergunta motivou vários juristas a refletir sobre os fins sociais do direito. Embora as respostas na história nem sempre tenham sido satisfatórias, elas deixaram um rastro para reflexão. Havia a corrente marxista que respondia ser o direito um instrumento de dominação de classe1 1 Nessa perspectiva, ver: Stucka (1988). , logo impossível de potencializar a emancipação social. Outros juristas entendiam o direito como um instrumento inclusivo na luta pela aquisição de cidadania, em poucas palavras, mesmo que se tratasse de direitos burgueses era preciso estendê-los a todos.

Entre saídas reformistas e revolucionárias, existia ainda o meio termo que retirava a centralidade do direito e enfatizava a luta social; nesse sentido, a cidadania se consolidava pelo direito a ter direitos. Até porque “no fim e ao cabo, o direito não pode ser nem emancipatório, nem não-emancipatório são os movimentos, as organizações e os grupos cosmopolitas subalternos que recorrem à lei para levar as suas lutas por diante” (SANTOS, 2003SANTOS, B. de S. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 65, p. 3-76, maio 2003., p. 71). Nesse debate entre os juristas, o esclarecimento de Marx na Questão Judaica ainda tem muito a contribuir. O recado é simples: não podemos confundir emancipação humana com emancipação política, caracterizada pelas garantias e direitos formais tutelados pelo Estado. Afinal, a “emancipação humana não é um estado, um ponto de chegada, mas um determinado patamar, uma determinada forma de sociabilidade” (TONET, 2005TONET, I. Educar para a cidadania ou para a liberdade? Perspectiva, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 469-484, jan. 2005. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/9809. Acesso em: 3 ago. 2020.
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, p. 476).

Apesar das críticas à corrente do socialismo jurídico, expressão que incluía múltiplas visões e versões de socialismo e de direito, é significativo investigar as interligações deste movimento teórico com o surgimento do direito do trabalho. Os juristas italianos Enrico Cimbali, Giuseppe Salvioli e Cesare Vivante expuseram, no final do século XIX, o aspecto classista das categorias jurídicas (contrato, propriedade e família) e seus regramentos nos Códigos Civis. Esses teóricos identificaram os defeitos sociais dos códigos civis diante do proletariado e a necessidade de penetração do socialismo no direito (SALVIOLI, 1906SALVIOLI, G. I difetti sociali delle legge vigente di fronte al proletariato e al diritto nuovo. Roma: Palermo, 1906.).

De certa forma, reconheciam que “a ficção jurídica e operacional da igualdade e liberdade abstrata dos cidadãos, ocultava a realidade concreta das classes sociais profundamente diferenciadas e, não raro, antagônicas em seus interesses” (ALVES, 2002ALVES, A. C. Função Ideológica do Direito. In: Diretório Acadêmico João Mendes Junior (org.). Fronteiras do Direito Contemporâneo. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, 2002. p. 19-39., p. 26). Diante disso, era necessário reformular as categorias jurídicas ou criar dentro do direito um novo ramo, com regras próprias, para solucionar as disparidades das classes sociais. O sujeito do direito civil era o proprietário, o contratante, o chefe de família, o típico burguês, quem seria, então, o protagonista deste novo direito?

Engels escreveu sobre o movimento do socialismo jurídico de forma a desvelar suas limitações e ilusões, deixando claro que era preciso ir “para além do estado e da política” (ENGELS; KAUTSKY, 2012ENGELS, F.; KAUTSKY, K. O socialismo jurídico. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 12). A superação da sociabilidade do capital, fundada na exploração do trabalho alheio, fazia sobressaltar que “a situação da classe operária é a base real e o ponto de partida de todos os movimentos sociais de nosso tempo porque ela é, simultaneamente, a expressão máxima e a mais visível manifestação de nossa miséria social” (ENGELS, 2008ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 41). O direito do trabalho surge, portanto, como fruto dessa disparidade ontológica entre capital e trabalho. Um ramo que deveria incorporar essa desigualdade concreta e cristalizar nas categorias abstratas regramentos mínimos a lógica econômica do capitalismo.

É preciso enfatizar que o direito do trabalho não foi uma mera concessão do Estado ou invenção teórica dos juristas, ele é fruto da “mobilização da classe trabalhadora e de suas organizações. Nenhum direito foi concedido sem uma luta que o antecedesse (COUTINHO, 2009COUTINHO, G. F. O direito do trabalho flexibilizado por FHC e Lula. São Paulo: LTr, 2009., p. 32). No Brasil, enquanto as relações comerciais e civis estavam reguladas desde 1850 e 1916 nos respectivos, Código Comercial e Código Civil, as normatizações sobre salário, acidente de trabalho, hora-extra, duração de jornada e greve eram esparsas e, muitas vezes, de dimensão local.

O contrato de trabalho, instituto-chave que estipula regras mínimas entre o empregado (que vive para o trabalho) e o empregador (que vive do trabalho alheio), só foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro em 1943 com a CLT. Antes era regulado pelo instituto do direito civil denominado contrato de locação de serviço. Um resquício do período escravista no Brasil. As questões sobre o trabalho por um longo período foram tipificadas pelo direito civil. “A lei de locação de serviços de 1837 parece ter fornecido uma linguagem jurídica para os arranjos de trabalho que encontramos nos atos notariais a partir dos anos 1840” (LIMA, 2009LIMA, H. E. Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa Catarina no século XIX: arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade. Cadernos Arquivo Edgard Leuenroth, Campinas, v. 14, p. 133-175, 2009., p. 168). O instituto da locação de serviços coexiste durante o regime jurídico de escravidão e no período pós-abolição até a entrada em vigência da CLT.

É inegável que o passado do direito do trabalho se constitui de memórias de lutas e conquistas da classe trabalhadora, porém não é possível desconsiderar as ambiguidades desta matéria. O que nos leva a indagar se “o Direito do Trabalho e seus fundamentos desencadearam realmente uma revolução, no campo do Direito Privado ou foi ele próprio indispensável para legitimar os modelos de Estado e de Sociedade?” (ANDRADE, 2012ANDRADE, E. G. L. de. O Direito do Trabalho na Filosofia e na Teoria Social Crítica. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Maranhão, v. 78, p. 37-63, 2012., p. 3). O objeto desse novo ramo científico elegeu o trabalho assalariado como epicentro, como modelo de trabalho a ser protegido. Mas isso, em si, não constitui uma contradição? Proteger aquilo que nos rouba a subjetividade, que retira a afirmação da vida, que nos adoece fisicamente e mentalmente. Por que proteger o trabalho morto? O trabalho objetivado “centrado no individualismo contratualista, na supremacia do trabalho vendido, comprado, separado da vida e no racionalismo instrumental a serviço da produção capitalista?” (ANDRADE, 2012ANDRADE, E. G. L. de. O Direito do Trabalho na Filosofia e na Teoria Social Crítica. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Maranhão, v. 78, p. 37-63, 2012., p. 3).

Se é possível criticar os fundamentos do direito do trabalho, “por outro lado, não se pode afirmar que o Direito do Trabalho seja contra a emancipação do proletariado. Em primeiro lugar, porque em qualquer movimento reivindicatório de trabalhadores haverá sempre uma pauta ligada às condições dignas de trabalho” (COUTINHO, 2009COUTINHO, G. F. O direito do trabalho flexibilizado por FHC e Lula. São Paulo: LTr, 2009., p. 28).

Vocês querem empregos ou direitos?

O direito do trabalho não é um acidente histórico. Ele é um ramo científico recente e datado. Surgiu com a sociedade burguesa e é fruto de suas contradições. Em comparação com o tempo histórico da humanidade ele é um fenômeno novo. No Brasil, por exemplo, a constitucionalização dos direitos trabalhistas só ocorreu em 1988, ou seja, nos últimos trinta anos. Enquanto a escravidão perdurou por mais de trezentos anos em território brasileiro e com apoio da legislação jurídica do país.

No documentário Indústria Americana, um trabalhador chinês cita um provérbio muito comum na República Popular da China: “não pode haver dois tigres na mesma montanha”. No filme, a fala do trabalhador serve de ilustração para demonstrar o choque cultural sobre a regulamentação do trabalho (AMERICAN..., 2019). O modelo capitalista norte-americano assentado na organização de trabalhadores em sindicatos e o modelo capitalista chinês que repugna a proteção legal sobre jornada de trabalho e acidente de trabalho.

A empresa chinesa Fuyao Glass America, localizada na antiga sede da General Motors, aparece como o protótipo de exploração mais cruel comparado à antiga fábrica norte-americana, segundo os relatos dos trabalhadores locais. Enquanto “na antiga fábrica da GM o salário hora era de U$29,00 para entrantes, além de todos os benefícios de plano de saúde e regras sindicais” (GALA, 2020GALA, P. A fábrica americana foi comprada por chineses. Carta Maior, Porto Alegre,20 jan. 2020. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cinema/A-fabrica-americana-foi-comprada-por-chineses/59/46295. Acesso em: 5 jun. 2020.
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, p. 1), na empresa chinesa o salário correspondia a U$12,00 hora e proibição quanto à sindicalização dos trabalhadores americanos. Com esse fato, não pretendemos apontar o privilégio do capitalismo estadunidense fundado na ideologia do american way of life sobre o modelo chinês. Acreditamos que este documentário é importante, pois revela as contradições do direito do trabalho mediante as narrativas orais dos sujeitos envolvidos: o patrão e os operários. Ademais, é possível visualizar uma linha de continuidade entre o passado e o presente do direito do trabalho.

O presidente e dono da empresa Cho Tak Wong demonstra total repugnância a legislação trabalhista. No decorrer do filme, é possível verificar perseguição aos trabalhadores que lutam pela sindicalização na fábrica e demissões daqueles que questionam as jornadas exaustivas de trabalho de 12 e 14 horas. Embora seja um retrato das relações trabalhistas atuais (o documentário é de 2019), em muito se assemelha com as tensões do século XIX nas fábricas inglesas e a luta dos trabalhadores por melhores condições de vida (AMERICAN..., 2019). Esse cenário do passado foi bem retratado no livro de Engels A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, publicado em 1845. Além de evidenciar as contradições do trabalho humano, que gera riqueza para poucos e pobreza para a maioria, a obra de Engels apresenta o retrato empírico da vida dos operários. Conforme anunciava no prefácio do livro, a ele já “não interessava um conhecimento apenas abstrato de meu tema – eu queria conhecer-vos em vossas casas, observar-vos em vossa vida cotidiana, debater convosco vossas condições de vida e tormentos; eu queria ser uma testemunha de vossas lutas [...]” (ENGELS, 2008ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 37).

O direito do trabalho surgiu para mediar esses dois tigres da sociedade moderna o capital e o trabalho. Contudo as contradições persistem. O capital precisa dos trabalhadores, mas os trabalhadores não precisam do capitalismo. É bem verdade que “o capitalismo, como um regime em permanente contradição, ao mesmo tempo em que produz a exploração, por outro lado, cria condições objetivas para ser colocado em xeque pelos trabalhadores” (COUTINHO, 2009COUTINHO, G. F. O direito do trabalho flexibilizado por FHC e Lula. São Paulo: LTr, 2009., p. 28).

O desfecho do documentário Indústria Americana demonstra que o capitalismo chinês e o norte-americano são diferentes na aparência, mas têm a mesma essência, isto é, se fundamenta sob a expropriação do trabalho humano. Em uma das cenas, o gerente chinês sugere colocar símbolos da cultura chinesa na filial norte-americana em Ohio, ao que dono da empresa responde: “quando em Roma, faça como os romanos. Não os irrite” (AMERICAN..., 2019). Nos escritos sobre história, Walter Benjamin elucida “nunca houve monumento de cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (BENJAMIN, 1985BENJAMIN, W. Sobre o conceito de História. In: BENJAMIN, W. Obras Escolhidas. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985., p.13). Na modernidade, a cultura do capital é a própria barbárie. Aos que vivem na periferia do sistema capitalista sentem de forma ainda mais perversa a exclusão social e política.

Coronavírus e Bolsonarismo são doenças que desafiam o Brasil

Flávio Dino (2020 apud SAKAMOTO, 2020SAKAMOTO, L. Coronavírus e bolsonarismo são doenças que desafiam o país, diz Flávio Dino. UOL Notícias, 30 mar. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/03/30/coronavirus-e-bolsonarismo-sao-doencas-que-desafiam-o-pais-diz-flavio-dino.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola. Acesso em: 5 jun. 2020.
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, p. 1), governador do Maranhão, em entrevista realizada em 27 de março de 2020 afirmou: “meu diagnóstico é que o Brasil se defronta com duas patologias, duas doenças. Uma, no sentido estrito da palavra, que são as síndromes derivadas do coronavírus. A outra doença é uma patologia política que atende pelo nome de bolsonarismo ou Bolsonaro”. De fato, o contexto atual brasileiro é noticiado nos jornais internacionais sob tom de tragédia. Além de a população ter que enfrentar a pandemia do Covid-19, ainda tem que enfrentar o autoritarismo do Presidente da República. Com ameaças diárias às pessoas e aos próprios poderes instituídos, basta lembrar que o chefe do Executivo participou de vários atos em defesa da intervenção militar, com pedido do fechamento do Congresso e do STF (GARCIA; FALCÃO, 2020GARCIA, G.; FALCÃO, M. Ato pró-Bolsonaro em Brasília reúne manifestantes em defesa de medidas inconstitucionais. G1 Notícias, Brasília, 31 maio 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/31/manifestantes-fazem-ato-em-brasilia-em-apoio-a-bolsonaro-e-em-defesa-de-medidas-inconstitucionais.ghtml. Acesso em: 5 jun. 2020.
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).

Mesmo com altos índices do coronavírus no País (até a data de elaboração do artigo, o Brasil ocupa o 2º lugar do mundo com mais mortes). Não houve, por parte do Governo Federal, a consolidação de políticas públicas efetivas, mas a tentativa de maquiar dados do Covid-19 e de confrontar as medidas de isolamento determinadas pelos Governadores e Prefeitos (CÚPULA..., 2020). Isso coloca em questionamento a estrutura federativa do Brasil enraizada na história constitucional do país e no texto constitucional de 1988.

Conforme se verifica, na periferia do capital não há apenas a crise sanitária decorrente do Covid-19, mas também a crise política. O historiador do direito Ricardo Fonseca elucida que mesmo aqueles que fazem “crítica da modernidade e da retórica do Iluminismo devem parar e chegar à seguinte conclusão: nós, modernos, nunca devemos nos sentar e pensar que direitos e liberdades são adquiridos de uma vez por todas. A liberdade requer vigilância permanente e constante” (FONSECA, 2020FONSECA, R. Il Brasile, la modernità e la pandemia: riflessioni di uno storico del diritto. Zammumultimedia, 10 jun. 2020. Disponível em: http://www.zammumultimedia.it/il-brasile-la-modernita-e-la-pandemia-riflessioni-di-uno-storico-del-diritto.htm. Acesso em: 20 de junho de 2020.
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, p. 1).

O direito dogmaticamente organizado sendo um dos pilares da modernidade também deve promover uma autocrítica sobre as promessas não cumpridas. Aos juristas seria interessante questionar se o direito é capaz de regenerar a política. O exemplo do Brasil contemporâneo demonstra que não. Existe plena sintonia entre a desregulamentação do direito do trabalho e as políticas conservadoras e antissociais. Nesse sentido, parece não haver saída quando o direito e a política estão capturados pelo Estado.

Assim como os patrões do século XIX, os empregadores brasileiros repugnam as mínimas proteções trabalhistas e patrocinam a difusão de uma cultura do empreendedorismo que se tornou dominante e pulverizou, em certo sentido, a classe trabalhadora. Logo, se verifica que a política classista emanada pelo Estado tem reflexo nas relações de trabalho. Os discursos em defesa da intitulada Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/2017) foi patrocinada pela mídia, pelos patrões e pelo Governo Federal sob o argumento que era preciso uma modernização do direito do trabalho. Afirmavam que os sindicatos representavam um símbolo do passado. Mas por que o Estado, a mando do capital, quis destruir o sindicato, se era algo do passado, que não tinha força? O direito do trabalho surgiu para mediar esses dois tigres da modernidade, o capital e o trabalho, mas é incapaz de deter a ofensiva neoliberal.

No Brasil, ocorreu um verdadeiro desmonte em matéria trabalhista. Jorge Souto Maior, juiz do trabalho e professor, chegou a enumerar 201 ataques da reforma aos trabalhadores (MAIOR, 2017MAIOR, J. L. S. Os 201 ataques da “reforma” aos trabalhadores. Esquerda Diário, 17 jul. 2017. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Os-201-ataques-da-reforma-aos-trabalhadores. Acesso em: 5 jun. 2020.
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). É nesse cenário preliminar que deve ser inserida as medidas provisórias que se propuseram a tratar, de modo emergencial, das relações de trabalho durante a pandemia do Covid-19. Houve, mais uma vez, o incentivo do negociado sobre o legislado. A Medida Provisória nº 936/20 autoriza acordos de redução de jornada e salário e suspensão temporária do contrato de trabalho. Inclusive, nos casos de empregadas gestantes e empregados aposentados (BRASIL, 2020BRASIL. Medida provisória nº 936, de 1º de abril de 2020. Institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas trabalhistas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv936.htm. Acesso em: 1 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Os acordos individuais podem ser celebrados por qualquer meio físico ou eletrônico. A MP n° 936/20 reaproveitou dispositivos da Medida Provisória nº 905/19 revogada em abril de 2020, que alterava os critérios para correção monetária do crédito trabalhista e foi bastante criticada pelo conteúdo precarizante legislado em face dos trabalhadores (BRASIL, 2019BRASIL. Medida provisória nº 905, de 11 de novembro de 2019. Institui o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, altera a legislação trabalhista, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Mpv/mpv905.htm. Acesso em: 5 jun. 2020.
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).

A MP nº 936/20 contraria a Constituição de 1988, pois possibilita a realização de acordos individuais sobre demandas em que há clara necessidade de negociação coletiva, isto é, a participação do sindicato. O STF (guardião da Constituição) reforça a precarização do trabalho no Brasil, uma vez que “vem praticando um ativismo judicial da destruição, que ataca diretamente um dos núcleos da Constituição – os direitos sociais. Com decisões dotadas de efeito vinculante e eficácia para todos, o tribunal tem sido um agente da desconstitucionalização” (PAIXÃO;LOURENÇO FILHO, 2020, p. 1). O exemplo mais recente é a decisão monocrática proferida em 27 de junho de 2020, que suspende todos os processos na Justiça do Trabalho que envolvam discussões sobre correção monetária das dívidas trabalhistas, atualizadas pelo IPCA ou TR.

Considerações finais

Os dados oficiais no Brasil são preocupantes. Segundo o Novo CAGED, até maio de 2020, mais de 1,144 milhão de pessoas perderam emprego de carteira assinada no Brasil (BATISTA, 2020BATISTA, V. Mais de 1,144 milhão de pessoas perderam emprego de carteira assinada no Brasil. Correio Braziliense, 29 jun. 2020. Disponivel em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/06/29/internas_economia,867848/mais-de-1-144-milhao-de-pessoas-perderam-emprego-com-carteira-assinada.shtml. Acesso em: 29 jun. 2020.
https://www.correiobraziliense.com.br/ap...
). Embora a pandemia do Covid-19 tenha desencadeado uma série de medidas emergenciais em vários campos do direito, no que diz respeito ao direito do trabalho houve apenas continuidade do que já estava sendo implementado no país. Isto é, a legalização do trabalho precário, informal e terceirizado, conjuntura que foi ratificada em decisões do Supremo Tribunal Federal no decorrer de 2016-2020.

A Medida Provisória n° 936/20 que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispôs sobre medidas trabalhistas complementares para enfrentar a pandemia do Covid-19 contraria o texto constitucional. Um dia após ser publicada (2/4/2020), a MP foi alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo Partido Rede (ADI n° 6363). Em síntese, a MP n° 936/20 viola expressamente os artigos 7°, incisos VI, XIII, XXVI, e 8°, incisos III e VI da Constituição Federal que assegura a participação do sindicato quando se trata de redução de salário e jornada. Além do mais, afronta a Convenção n. 98 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que o Brasil é signatário. A decisão do Supremo Tribunal, por maioria (7 votos contra 3), julgou improcedente a medida cautelar da ADI 6363 e, por conseguinte, a MP n° 936/20 foi convertida em Lei. Isto é, foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro. Nota-se, portanto, mais um caso, em que a exceção tornou-se a regra.

Os altos índices de contaminação no Brasil indicam que o vírus não escolhe classe social, em contrapartida “os desempregados, favelados, moradores de rua, comunidades quilombolas, tribos indígenas e trabalhadores informais quando não morrem pela doença, eles encontram as maiores dificuldades na assistência médica e nas políticas de enfretamento da crise sanitária” (LARA, 2020LARA, R. Pandemia e capital: as repercussões da Covid-19 na reprodução social. Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 53-69, jan./jun. 2020. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/libertas/article/view/30657. Acesso em: 5 jun. 2020
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, p. 57). Ao olhar para o passado do direito do trabalho, constata-se que este ramo jurídico floresceu em meio às lutas operárias e em busca de melhores condições laborais e de vida digna. A história testemunha que onde há dominação, há resistência.

Na atualidade, os entregadores de plataformas digitais da Uber, iFood, Rappi, Lalamove e Loggi são trabalhadores na linha de frente do Covid-19. Transformaram-se em protagonistas diários e essenciais na manutenção da vida social. No entanto, no capitalismo a expropriação do trabalho não cessa nem na pandemia, para esses trabalhadores houve redução salarial, aumento de horas trabalhadas e falta de proteção jurídica e sanitária. No dia 1º de julho de 2020, no Brasil, haverá uma greve dos entregadores de aplicativo com adesão internacional da Argentina, Austrália, China, México e Inglaterra. A paralisação é uma centelha de esperança, “num país em que a violência contra os pobres e despossuídos parece forjar a única linha visível de continuidade histórica, é bom sempre descobrir laços de críticas e resistência” (HARDMAN, 1996HARDMAN, F. F. Prefácio “Morte e progresso: a história do Brasil como apagamento de rastros”. In: LEONARDI, V. Entre Árvores e Esquecimentos: história social nos sertões do Brasil. Brasília: Paralelo 15, 1996., p. 8).

Agradecimentos

A Miroslav Milovic, in memoriam.

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    Nessa perspectiva, ver: Stucka (1988)STUCKA, P. I. Direito e luta de classes. São Paulo: Acadêmica, 1988..
  • Agência financiadora Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.
  • Consentimento para publicação Consentimento da autora.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2020
  • Aceito
    01 Ago 2020
  • Revisado
    25 Ago 2020
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