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QUANTIDADE x QUALIDADE NA FORMAÇÃO DE MÉDICOS NO BRASIL

O primeiro curso médico brasileiro foi criado na Bahia, por D. João VI, em fevereiro de 1808. Logo após, no mês de abril, foi criado, pelo mesmo monarca, na cidade do Rio de Janeiro, o Curso de Anatomia, início da Faculdade de Medicina hoje integrada à Universidade Federal. Somente noventa anos depois, em 1898, foi criada a terceira Faculdade de Medicina do País, agora em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Durante um longo período foram aparecendo, a intervalos de vários anos, novos cursos de Medicina, de modo que chegamos a 1958 com 27 cursos em funcionamento. A partir de 1960, entretanto, o ritmo de aumento no número de cursos modificou-se inteiramente, passando-se ao período de criação indiscriminada, sem qualquer planejamento, de grande número de faculdades. Se de 1808 a 1958 surgiram 27 faculdades, no pequeno período entre 1960 e 1971 foram criados 47 novos cursos médicos.

Esse fenômeno ocorreu estimulado pelo próprio governo que, impressionado e, ao mesmo tempo, pressionado pelo aumento rápido e acentuado da demanda de vagas, procurou não só facilitar a abertura de novos cursos, como também aumentar o número de vagas nas faculdades já existentes. Com isso procurava absorver os chamados excedentes do vestibular, isto é, aqueles que, tendo realizado exame de admissão, conseguiram nota suficiente para serem aprova­ dos, mas não conseguiram vaga nas faculdades.

Que influência terá tido esse fato sobre o nível do ensino médico no País? Encontramos no Documento n.o 1 da Comissão de Ensino Médico do Ministério da Educação e Cultura: - “As 37 (trinta e sete) faculdades criadas desde 1965 deveriam ter mobilizado mais de 3.000 professores. Neste curtíssimo espaço de tempo onde se poderia encontrar pessoal com a devida formação para desempenho de funções de tão alta responsabilidade? A construção e adaptação de edifícios assim como a aquisição de equipamentos, podem ocorrer em tempo muito inferior ao necessário à formação de professores. Muitas das novas escolas constituíram-se fora dos grandes centros urbanos, em cidades onde não existem ou são poucos os profissionais com títulos acadêmicos que justifiquem a sua indicação para funções docentes. Essas escolas se têm valido de professores que residem em outras cidades, muitos dos quais atendem, semanalmente, a compromissos em dois ou três locais diferentes, lecionando durante um ou dois dias da semana em cada faculdade. A responsabilidade pelo ensino de disciplinas que envolvam trabalhos de enfermaria ou de ambulatórios exige continuidade na orientação da assistência aos pacientes. De igual modo, o ensino de disciplinas básicas requer funcionamento contínuo de laboratórios, para montagem das experiências que são parte indispensável das aulas práticas. A Comissão pôde verificar, sobejamente, em suas visitas, que a fórmula do professor não-residente, aplicada aos cursos médicos, não vem dando resultados satisfatórios.”11. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Departamento de Assuntos Universitários. Comissão do Ensino Médico. Documento n.o 1: a expansão da rede escolar: 1972. In: _____. Documentos do ensino médico. Brasília, MEC/DAU, 1977. p. 14

Outro fato importante verificado pela Comissão e citado no referido relatório, foi a falta de hospitais e outras instituições de saúde que permitissem o treinamento do futuro médico, além da deficiência ou inexistência de bibliotecas.

E um fato, portanto, sem contestação, que o aumento rápido e não planejado do número de faculdades de medicina trouxe uma queda no nível médio dos médicos formados no País.

No Estado de São Paulo existem, atualmente, 18 cursos de Medicina. O primeiro foi criado em 1913, hoje incorporado à Universidade de São Paulo. Até 1963 tínhamos apenas 4 faculdades em funcionamento. Desse ano até 1971 foram criados 14 novos cursos. Cinco são oficiais, mantidos pelos governos estadual e federal, e 13 são particulares. Embora a lei 5.540/68 determine que o ensino superior “será ministrado em universidades e, excepcionalmente, em estabelecimentos isolados”,22. BRASIL. Leis. decretos. Ensino superior: legislação e Jurisprudência. São Paulo, Rev. dos Tribunais, 1975. v.1.p. 84 7 pertencem a universidade e 11 são ministrados em faculdades isoladas.

Além dos fatores que têm influenciado para baixar o nível do ensino médico já citado, relacionados ao rápido e indiscriminado aumento do número de vagas oferecidas, há outros que devem ser lembrados. Embora correndo o risco de desagradar a muitos, não podemos deixar de citar aqueles ligados à atitude dos estudantes e dos professores: as reivindicações freqüentes, nem sempre justas; a dificuldade de manter um bom relacionamento entre os dois grupos; as greves que interrompem os cursos e têm como únicos prejudicados os estudantes; uma certa acomodação dos professores que esquecem muitas vezes sua importante função de educadores. É possível que a reforma universitária tenha tido alguma influência neste último elemento: a criação de muitos colegiados diluiu a autoridade. Não queremos um professor autoritário, mas achamos que ele deve ter autoridade suficiente para bem desempenhar sua função, e precisa compenetrar-se disso.

Temos sugerido, inclusive no Conselho Federal de Educação, algumas medidas que julgamos capazes de influir no sentido de elevar o nível do ensino médico em nosso meio, que são:33. ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA, Considerações gerais sobre a necessidade de uma nova política de recursos humanos na área médica: CESU, 1.o grupo - par. n.o 603/82, aprovado em 1/12/82. Documenta, Brasília, (265): 198 dez. 1982.

  1. adequar o número de vagas oferecidas às reais possibilidades das faculdades;

  2. estimular o intercâmbio de professores, em nível de graduação e de pós-graduação sempre com o compromisso de retorno ao local de origem;

  3. combater a docência em várias faculdades pelo mesmo professor;

  4. controlar com maior rigor o internato;

  5. estimular e ajudar financeiramente os bons cursos de pós-graduação, inclusive os emergentes que tenham viabilidade, desestimulado e, mesmo, procurando desativar os de baixo nível;

  6. avaliar o desempenho das faculdades.”33. ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA, Considerações gerais sobre a necessidade de uma nova política de recursos humanos na área médica: CESU, 1.o grupo - par. n.o 603/82, aprovado em 1/12/82. Documenta, Brasília, (265): 198 dez. 1982.

Em relação ao item 4 propusemos no Conselho Federal de Educação, tendo sido aprovado e baixada resolução a respeito, um regulamento para o internato que, entre outras medidas, exige a supervisão docente do estudante e o exercício nas “quatro grandes áreas da Medicina: Clínica Médica, Cirurgia, Toco-Ginecologia e Pediatria,”44. BRASIL, Ministério da Educação e Cultura. Conselho Federal de Educação. Regulamento para estágio obrigatório, sob forma de Internato, no curso de Medicina: CESU, 1.o grupo. par. n.o 116/83, aprovado em 11/3/83. Documenta , Brasília, (267): 145-150, mar. 1983. não aceitando o internato realizado em especialidade.

Têm sido publicados vários trabalhos que procuram demonstrar que estamos produzindo número exagerado de médicos e acreditamos ser isso verdade. É preciso lembrar, entretanto, que, no Brasil, com as enormes diferenças regionais, a relação global entre o número de habitantes e o número de médicos em atividade tem valor muito relativo. O que existe, principalmente, é má distribuição dos profissionais. “Dos 84.000 médicos ativos em 1980, 51.000 (61%) estavam na Região Sudeste (um médico para 985 habitantes) e 13.850 (16%) no Nordeste (um para 2.550 habitantes).”5_____. Resolução n.o 9 de 24/05/83: regulamenta o Internato nos cursos de Medicina. Documenta, Brasília, (270): 150, jun. 1983.

Essa má distribuição tende, permanentemente, a agravar-se. Um dado simples comprova esse fato: em 1981 diplomaram-se nas faculdades do Estado de São Paulo 1.638 médicos; em 1982 inscreveram-se no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo 2.836 profissionais (dado fornecido pelo CREMESP).65. BRASIL. Secretaria de Planejamento. Avaliação e perspectivas: 1982. Brasília, SEPLAN/CNPq, 1983.p. 243. Houve um afluxo, portanto, de 1.198 médicos vindos de outros estados. Esse fenômeno é permanente. Há alguns anos fizemos levantamento semelhante, com os seguintes resultados: formados em 1971, 630 médicos e registrados em 1972, 1277; formados em 1972, 963 e registrados em 1973, 1770; formados em 1973, 1.162 e registrados em 1974, 1919; formados em 1974, 1448 e registrados em 1975, 2.553.

Chegamos, assim, para terminar, ao ponto que nos foi proposto para discussão: quantidade x qualidade. Não temos a menor dúvida em afirmar que a qualidade deve estar acima de tudo. Se para melhorá-la for necessário restringir a quantidade, muito bem. Jamais devemos permitir que volte a ocorrer o que aconteceu no passado: sacrifício da qualidade para conseguir maior quantidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Departamento de Assuntos Universitários. Comissão do Ensino Médico. Documento n.o 1: a expansão da rede escolar: 1972. In: _____. Documentos do ensino médico Brasília, MEC/DAU, 1977. p. 14
  • 2
    BRASIL. Leis. decretos. Ensino superior: legislação e Jurisprudência São Paulo, Rev. dos Tribunais, 1975. v.1.p. 84
  • 3
    ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA, Considerações gerais sobre a necessidade de uma nova política de recursos humanos na área médica: CESU, 1.o grupo - par. n.o 603/82, aprovado em 1/12/82. Documenta, Brasília, (265): 198 dez. 1982.
  • 4
    BRASIL, Ministério da Educação e Cultura. Conselho Federal de Educação. Regulamento para estágio obrigatório, sob forma de Internato, no curso de Medicina: CESU, 1.o grupo. par. n.o 116/83, aprovado em 11/3/83. Documenta , Brasília, (267): 145-150, mar. 1983.
  • _____. Resolução n.o 9 de 24/05/83: regulamenta o Internato nos cursos de Medicina. Documenta, Brasília, (270): 150, jun. 1983.
  • 5
    BRASIL. Secretaria de Planejamento. Avaliação e perspectivas: 1982. Brasília, SEPLAN/CNPq, 1983.p. 243.
  • 6
    ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA. Médicos formados em 1981 Rio de Janeiro, ABEM, 1982. p. 14
  • *Trabalho apresentado, com pequenas modificações, em reunião convocada pela Associação Paulista de Medicina e realizada na cidade de Marília, Estado de São Paulo, em abril de 1983. Publicado com autorização de seu atual presidente, prof. Osvaldo Giannotti Filho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1984
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