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A implementação das cotas raciais nos concursos públicos para o magistério federal: um olhar a partir do Colégio Pedro II

The implementation of racial quotas in public offices for the federal teaching posts: a view from Colégio Pedro II

La implementación de cuotas raciales en concursos públicos para instituciones educativas: una mirada desde el Colégio Pedro II

Resumo

A partir da análise de editais dos concursos para cargos efetivos no magistério do Colégio Pedro II (CPII), no período entre 2014 e 2019, elucidamos os fatores que tornam pouco eficaz a implementação das cotas raciais nos concursos, conforme a Lei nº 12.990/2014, impedindo a presença de um maior quantitativo de pessoas negras no corpo docente da instituição. Com esta pesquisa, concluímos que a maneira como a reserva de vagas é implementada nos concursos do CPII e em outras instituições federais de ensino revela a face do racismo estrutural presente na sociedade brasileira. Para combater a implementação equivocada da Lei nº 12.990/2014, sugerimos que as instituições realizem uma avaliação crítica dos procedimentos adotados para a reserva de vagas às pessoas negras nos concursos para o magistério, de modo que sejam desenvolvidas estratégias para reparar esses desvios e, dessa forma, permitir o engajamento das instituições federais de ensino na luta antirracista.

Palavras-chave:
Lei nº 12.990/2014; Cotas raciais; Concursos públicos; Racismo institucional.

Abstract

Through the analysis public office notices for teaching positions in the Colégio Pedro II (CPII, Brazil) between 2014 and 2019, we elucidate the factors that render ineffective the implementation of racial quotas in public office contests, according to law nº 12,990/2014, thus inhibiting the presence of a greater number of black people among the institution’s faculty. We conclude that the way in which the reservation of vacancies is implemented in CPII contests, as well as in other federal educational institutions, reveals the face of structural racism present in Brazilian society. To tackle the mistaken implementation of Law nº 12,990/2014, we suggest that institutions carry out a critical evaluation of the procedures adopted for the reservation of vacancies for black people in the teaching contests in order to develop strategies to repair these deviations and enable the engagement of federal educational institutions in the anti-racist struggle.

Key words:
law nº 12,990/2014; racial quotas; public tenders; institutional racism

Resumen

A partir del análisis de las convocatorias de concursos para cargos en la carrera docente del Colegio Pedro II (CPII, Brasil), en el período entre 2014 y 2019, se dilucidan los factores que tornan ineficaz la implementación de cuotas raciales en los concursos, conforme a ley nº 12.990/2014, impidiendo la presencia de un mayor número de negros en el cuerpo docente de la institución. Con esta investigación, concluimos que la forma en que se implementa la reserva de vacantes en los concursos del CPII y en otras instituciones educativas federales revela el racismo estructural presente en la sociedad brasileña. Para combatir la implementación errónea de la Ley nº 12.990/2014, sugerimos que las instituciones realicen una evaluación crítica de los procedimientos adoptados para la reserva de vacantes a personas negras en los concursos de educación, de modo que se desarrollen estrategias para reparar estas desviaciones, permitiendo el compromiso de las instituciones con la lucha antirracista.

Palabra clave:
ley nº 12.990/2014; cuotas raciales; concursos públicos; racismo institucional

Aspectos introdutórios

Os marcos legais que dizem respeito às Políticas de Ações Afirmativas baseadas em critérios étnico-raciais na Educação avançaram, nas últimas décadas, rumo ao desenvolvimento de um projeto mais democrático e emancipatório, buscando produzir uma justa representatividade de pessoas negras e indígenas, tanto nos currículos da Educação Básica - através das Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, que incluem no currículo oficial das redes de ensino a obrigatoriedade das temáticas História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, respectivamente - quanto na alteração dos padrões sociodemográficos dos corpos discentes - por meio da Lei nº 12.711/2012, que preconiza cotas por critério socioeconômico e subcotas por critério étnico-racial no ensino médio técnico e no ensino superior. Essas legislações são resultado da atuação política dos movimentos sociais negros ao longo de muitas décadas e, apesar de apresentarem fragilidades, são fundamentais no avanço para a construção de um projeto político decolonial e contra-hegemônico de educação. Para que isso ocorra, uma das principais demandas que emergem é o enegrecimento dos corpos docentes das instituições de ensino.

Sueli Carneiro (2003CARNEIRO, Sueli. 2003. “Mulheres em movimento”. Estudos Avançados, 17(49):117-132.) utilizou a expressão enegrecendo o feminismo para designar a trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro, revelando a insuficiência teórica e prática da formulação clássica ocidental feminista em sociedades multirraciais e pluriculturais. De acordo com a autora, desde meados da década de 1980, no Brasil, são construídas instâncias nacionais organizativas das mulheres negras, a partir das quais os temas fundamentais da agenda feminista negra são discutidos, simultaneamente, à luz das desigualdades de gênero e intragênero, dos efeitos do racismo e da discriminação racial.

Desse modo, defender o enegrecimento do corpo docente de uma instituição significa, primeiramente, reconhecer que a sub-representação de negros, indígenas e quilombolas em espaços de docência acadêmica é expressão da racionalidade colonial e racista da modernidade e não resultado de “incapacidades” ou “inaptidões” desses grupos; e em segundo lugar, significa compreender como a presença massiva desses professores negros, indígenas e quilombolas tem o potencial de promover uma transformação epistemológica nos currículos e nas práticas pedagógicas em instituições ocidentalizadas - aquelas “que se orientam por padrões de conhecimento ocidentalizados ou eurocentrados, ignorando o rico conteúdo político-social-cognitivo que emerge em suas localizações geopolíticas (Bernardino-Costa & Borges 2021BERNARDINO-COSTA, Joaze & BORGES, Antonádia. 2021. “Um projeto decolonial antirracista: ações afirmativas na pós-graduação da Universidade de Brasília”. Educação & Sociedade, 42:1-18.).

No contexto das instituições federais de ensino que demandam investigações e discussões sobre a construção desse projeto político decolonial e contra-hegemônico, colocamos em tela o Colégio Pedro II (CPII). Localizada no estado do Rio de Janeiro, a instituição foi equiparada aos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) através da Lei nº 12.677/2012 (Brasil 2012bBRASIL. 2012b. Lei nº 12.677, de 25 de junho de 2012. Brasília, DF: Presidência da República . ) e se caracteriza como um caso ímpar na educação por diversos motivos. Primeiramente, por ser um dos mais antigos colégios de educação básica do país e por ter sido gestado no período imperial-escravocrata. Fundado em 1837, além de ter a finalidade de servir de modelo para o ensino secundário em todo o Império, “o Colégio da Corte, a menina dos olhos do Imperador” também assumiu papel significativo no projeto de formação e recrutamento da elite imperial brasileira, de expansão e reprodução dos dirigentes Saquaremas, grupo político que visava assegurar a integridade do Império do Brasil, o domínio da elite e seus princípios (Cunha Júnior 2008CUNHA JÚNIOR, Carlos Fernando. 2008. O Imperial Collegio de Pedro II e o ensino secundário da boa sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Apicuri.:24).

O segundo fator a se destacar é o fato de que o CPII é a única instituição de ensino citada explicitamente na Constituição: “O Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal” (Brasil 1988, art. 242, § 2ºBRASIL. 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal.). Ao longo dos seus quase 185 anos, o colégio passou por processos de expansão e democratização e hoje atende da educação infantil à pós-graduação (lato e stricto sensu). Devido às ideias de tradição que envolvem sua criação, sua longa existência e, principalmente, devido aos elevados índices alcançados em exames nacionais - como Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) -, construiu-se em torno da instituição um discurso que a coloca como uma escola de excelência no contexto educacional brasileiro. Hoje, a instituição possui 14campi, sendo 12 no município do Rio de Janeiro, um em Niterói e um em Duque de Caxias, além do Centro de Referência em Educação Infantil Realengo (CREIR), atendendo a mais de 13 mil alunos (Colégio Pedro II 2021aCOLÉGIO PEDRO II.2021a. CPII em números. Rio de Janeiro: Colégio Pedro II . Disponível em: Disponível em: http://www.cp2.g12.br/proreitoria/prodi/cpii_numeros . Acesso em 10/06/2021.
http://www.cp2.g12.br/proreitoria/prodi/...
).

É preciso destacar também que não há concurso específico para atuar como docente no ensino superior do CPII. Os professores do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT), que prestaram concursos para lecionar na educação básica, chegam à posição de magistério superior na instituição depois de passar por processo seletivo interno. Outro diferencial da instituição, em face de outras escolas de educação básica, é a titulação de seu corpo docente. De acordo com o Colégio Pedro II (2020COLÉGIO PEDRO II.2020. Titulação do corpo docente. Rio de Janeiro: Colégio Pedro II . Disponível em: Disponível em: http://www.cp2.g12.br/cpii_numeros/5839-titulacao-do-corpo-docente.html . Acesso em 10/02/2022.
http://www.cp2.g12.br/cpii_numeros/5839-...
), 21,29% dos professores da instituição são doutores, 53,30% são mestres, 16,64% são especialistas, 0,52% têm curso de aperfeiçoamento e 8,25% têm graduação.

O ativismo negro que capitaneia as discussões pela aplicação e a ampliação da política de cotas dentro das principais Universidades do país também se faz presente no CPII, especialmente através de seu Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI/CPII). Dentre suas múltiplas frentes de atuação estão as demandas de ordem político-institucional, marcada pela promoção do debate racial em instâncias decisórias, como reuniões de departamentos, conselhos superiores e reitoria, buscando mudanças administrativas que viabilizem a efetiva operacionalização das políticas de ações afirmativas (Coutinho 2021COUTINHO, Gabriela. 2021. Narrativas de intelectuais negras/os e letramento racial: a atuação do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas do Colégio Pedro II. Dissertação de Mestrado, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Rio de Janeiro. ).

O perfil sociodemográfico do corpo discente do CPII revela uma instituição embranquecida que precisa rearranjar suas dinâmicas internas de ingresso e permanência de estudantes. Coutinho, Arruda e Oliveira (2021COUTINHO, Gabriela dos Santos; ARRUDA, Dyego de Oliveira & OLIVEIRA, Talita. 2021. “A política de cotas nos segmentos da Educação Básica no Colégio Pedro II”. Educação e Sociedade, 42:1-19.), em pesquisa sobre a política de cotas nos segmentos da educação básica no CPII, constatam que, mesmo com o aumento do número de estudantes pretos e pardos no período compreendido entre 2014 e 2019, não houve acesso equitativo em todos os campi da instituição. O campus Humaitá II, localizado na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, é o que apresenta maior diferença entre estudantes negros (24,61%) e brancos (69,35%), seguido do campus Tijuca II, que apresenta percentual de 27,54% para negros e 63,03% para brancos. Estes dois campi destacam-se também por apresentarem os menores índices de alunos pretos: 5,80% no Humaitá II e 7,50% no Tijuca II.

Quanto ao perfil do corpo docente, não há informações sobre cor/raça publicizadas, principalmente, porque não há monitoramento sistemático e contínuo da aplicação da Lei nº 12.990/2014, e também porque o governo federal não contempla a variável raça/cor em seu Painel Estatístico de Pessoal (Mello & Resende 2019MELLO, Luiz & RESENDE, Ubiratan. 2019. “Concursos públicos para docentes de universidades federais na perspectiva da Lei 12.990/2014: desafios à reserva de vagas para candidatas/os negras/os”. Sociedade e Estado, 34 (1):161-184.). Entretanto, destacamos que a própria instituição, no uso de sua autonomia administrativa, poderia realizar um censo interno para análise dos resultados da implementação da lei e para identificar, dentre seus 21 departamentos pedagógicos, aqueles que são mais embranquecidos. O levantamento e a divulgação desses dados estatísticos revelariam um esforço do colégio para a efetiva implementação da Lei nº 12.990/2014 enquanto política antirracista.

Apesar de não haver números oficiais divulgados sobre o perfil racial dos professores do CPII, Palma (2021PALMA, Vanessa. 2021. “Fatores limitadores da efetividade da lei de cotas raciais em concursos públicos para o Magistério Superior Federal”. Boletim de Análise Político-Institucional, 31:107-113.:107) aponta que, de acordo com dados estatísticos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), o número de servidores públicos docentes pretos e pardos nas IES é desigual em relação aos docentes de cor branca: “Em 2016, havia 1.295 docentes de cor preta e 8.351 de cor parda, perfazendo um total de 9.646, enquanto os docentes de cor branca totalizavam 84.960”. Mesmo considerando que o CPII não é exclusivamente uma IES, e sim uma escola de educação básica que também oferece ensino superior, a composição racial de seu corpo docente se encaixa no cenário descrito por Palma devido ao caráter estrutural do racismo.

Em termos metodológicos, destacamos que uma das autoras deste artigo atua como docente no CPII e, como professora-pesquisadora do NEABI/CPII, faz parte do campo de observação e está diretamente envolvida com as discussões de cunho racial nesse espaço. O contato pessoal com o universo investigado ocorreu, primeiramente, com a observação da distribuição de vagas para ampla concorrência e para cotas étnico-raciais no certame para professor efetivo do CPII de 2018, do qual esta autora-professora-pesquisadora participou como candidata. Posteriormente, ao ser aprovada com pontuação superior à nota de corte da ampla concorrência e ter seu nome computado enquanto cotista negra, sem que outro(a) candidato(a) negro(a) ocupasse essa vaga na listagem de homologações para cota étnico-racial, houve percepção da necessidade de investigar a operacionalização do sistema de cotas no colégio. Assim, iniciou-se o questionamento e o exame sistemático desse ambiente através da leitura de documentos oficiais e da observação de espaços de decisão, como colegiados e conselhos.

Considerando superadas as tradicionais noções de neutralidade e imparcialidade nas Ciências Sociais, destacamos que esse contato pessoal e direto de uma das autoras com o universo investigado traz uma dimensão subjetiva ao artigo, na qual a “realidade sempre é filtrada por determinado ponto de vista do observador” (Velho 2008VELHO, Gilberto. 2008. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade complexa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.:129). Assim como Gilberto Velho, não proclamamos a falência do rigor científico no estudo da sociedade, mas a necessidade de percebê-lo “enquanto objetividade relativa, mais ou menos ideológica e sempre interpretativa” (Velho 2008:129).

É certo que as políticas de ações afirmativas no Brasil passaram a contar, a partir de 2014, com a institucionalização da Lei federal nº 12.990, uma importante medida que determinou às pessoas negras a reserva de 20% das vagas em concursos públicos federais, desde que o número de vagas previstas em edital seja maior ou igual a três (Brasil 2014BRASIL. 2014. Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. Brasília, DF: Presidência da República .). Isto significa, em termos práticos, que um concurso com apenas uma ou duas vagas originalmente previstas em edital - realidade que é muito comum nos concursos para o magistério federal - normalmente não passam pelo crivo da reserva de vagas a pessoas negras.

Mello e Resende (2019MELLO, Luiz & RESENDE, Ubiratan. 2019. “Concursos públicos para docentes de universidades federais na perspectiva da Lei 12.990/2014: desafios à reserva de vagas para candidatas/os negras/os”. Sociedade e Estado, 34 (1):161-184.), ao avaliarem a implementação das cotas raciais nos concursos públicos para docentes de 63 universidades federais brasileiras, detectaram que, de um universo de mais de 15 mil vagas abertas entre 2014 e 2018, menos de 5% destes postos laborais foram efetivamente reservados para pessoas negras - percentual notadamente muito inferior em relação aos 20% preconizados pela Lei nº 12.990/2014. Nesse sentido, percebe-se que o sistemático descumprimento do percentual mínimo definido na lei de cotas raciais em concursos públicos para o magistério federal implica a (re)produção do padrão embranquecido e eurocentrado das instituições federais de ensino brasileiras.

Assim, buscamos responder, no âmbito deste artigo, à seguinte pergunta de pesquisa: considerando a existência de lacunas na implementação da Lei nº 12.990/2014, quais caminhos podem ser tomados pelas instituições federais de ensino brasileiras (dentre as quais está o CPII) para que a reserva de vagas nos concursos públicos para professores(as) se constitua, de fato, como um projeto decolonial antirracista e contra-hegemônico?

O objetivo deste artigo é, portanto, analisar a implementação da política de cotas raciais nos concursos públicos para o magistério federal no CPII, elucidando estratégias a partir das quais a instituição pode colocar em efetivo movimento a política de cotas raciais em seus concursos públicos para a docência, enegrecendo o quadro de professores(as) do colégio.

Para que as reflexões deste estudo pudessem se materializar, tomamos um caso específico: a aplicação das cotas raciais nos concursos públicos para cargos de professor(a) efetivo(a), realizados pelo CPII no período compreendido entre 2014 - início da vigência da Lei nº 12.990 - e 2019, quando ocorreu o último concurso para docentes efetivos na instituição. As inferências e as proposições que constam neste artigo decorrem da análise dos editais, das homologações e dos respectivos quantitativos de pessoas convocadas (tanto na ampla concorrência quanto nas vagas reservadas pelo critério racial) nos concursos públicos regidos pelos editais nº 47/2014, 23/2016, 37/2016, 23/2018 e 23/2019 para a carreira do magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Quadro de Pessoal Permanente do CPII. Contudo, devemos ressaltar que o levantamento de vagas aqui apresentado não é exaustivo, haja vista que o CPII não disponibiliza dados sobre todas as convocações e posses em sua página eletrônica, nossa principal fonte de pesquisa. Para complementar os dados necessários para este estudo, utilizamos também os registros públicos disponibilizados no Diário Oficial da União.

Desse modo, buscamos sistematizar: 1. as caraterísticas dos editais; 2. o número de vagas disponibilizadas em editais no regime de ampla concorrência (AC) e o quantitativo de vagas reservadas para cota étnico-racial (CER); 3. homologações dos resultados finais para AC e para CER.

Este artigo traz significativas contribuições na medida em que avança nas discussões sobre a interpretação e a instrumentalização da Lei nº 12.990/2014, propondo estratégias para que um contingente maior de indivíduos negros efetivamente acesse as oportunidades laborais nas IES e, mais especificamente, no CPII. Esse debate é fundamental para que sejam criados mecanismos de monitoramento - que envolvam não só os movimentos sociais negros, que constantemente têm alertado sobre as fraudes na operacionalização da lei, como também o Judiciário e a sociedade civil organizada - para que os editais de concursos públicos para o magistério federal sejam fiscalizados, de modo a evitar eventuais burlas à legislação.

Para melhor compreensão das discussões aqui propostas, este artigo subdivide-se em cinco seções, sendo a primeira com apontamento de aspectos introdutórios e delineamentos metodológicos; a segunda, com um breve histórico das Ações Afirmativas no Brasil; a terceira, com uma breve revisão dos estudos recentes sobre as cotas raciais em concursos públicos para o magistério federal; a quarta, com as especificações do caso em estudo e decorrentes apresentação e análise de dados; a quinta e última seção, com as considerações finais que contemplam propostas para efetiva aplicabilidade da Lei nº 12.990/2014.

Breve histórico das ações afirmativas no Brasil

Desde meados do século XX, a Educação já era considerada prioridade de ação e de reivindicação dos movimentos sociais negros. Em seu primeiro número, publicado em 1948, o jornal Quilombo colocou propostas na coluna Nosso Programa, no seguinte teor: “Lutar para que, enquanto não for gratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos estudantes negros, como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos particulares e oficiais de ensino secundário e superior do país, inclusive nos estabelecimentos militares” (Carvalho 2003CARVALHO, José Jorge. 2003. “As ações afirmativas como resposta ao racismo acadêmico e seu impacto nas ciências sociais brasileiras”. Teoria e Pesquisa, 42-43:303-340.:316). No documento denominado Por uma Política de Combate ao Racismo e à Desigualdade Racial, entregue ao presidente da República por ocasião da histórica Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, realizada no dia 20 de novembro de 1995 em Brasília, o último item do Programa de Superação do Racismo na área de Educação demanda do Estado o desenvolvimento de ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta (Carvalho 2003). Esses exemplos evidenciam que intelectuais negros tentaram, ao longo de todo o século XX, denunciar a realidade de exclusão racial e encaminhar propostas de apoio estatal à população negra. Contudo, todas as vezes que o fizeram, seus discursos foram silenciados ou retirados do circuito hegemônico de comunicação do país (Carvalho 2003).

É no contexto dos processos de redemocratização do país, e da consequente reforma constitucional, que a demanda por direitos da população negra se dá de maneira organizada e pública. O surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU), na década de 1970, foi um dos responsáveis por colocar a problemática racial como objeto de reflexão sistemática (Santos 2011SANTOS, Sales. 2011. “A metamorfose de militante negros em negros intelectuais”. Revista Mosaico, 3 (5):102-125.). A partir dos anos 1990, observamos avanços importantes em relação às Ações Afirmativas no Brasil, nas suas mais diversas modalidades, especialmente em relação às políticas que atuam em favor de coletividades e indivíduos historicamente discriminados por seu pertencimento étnico-racial. Foi nesse período que as desigualdades raciais ganharam crescente visibilidade e houve a consolidação do debate público sobre a discriminação e o racismo no país, bem como a receptividade dessas agendas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e, em especial, pelos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) (Feres Júnior et al. 2018FERES JÚNIOR, 2018. Ação afirmativa: conceito, história e debates. Rio de Janeiro: Eduerj.).

Outro elemento decisivo para tais avanços foi o texto do Relatório do Comitê Nacional para a Preparação da Participação Brasileira na III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, convocada pelas Nações Unidas, ocorrida em Durban, África do Sul, em 2001. O relatório continha propostas de medidas reparatórias para a comunidade negra por meio de políticas públicas específicas para a superação da desigualdade racial. Uma grande conquista decorrente da Conferência de Durban foi o reconhecimento da urgência da implementação de políticas públicas para a eliminação das desvantagens sociais de que o grupo afrodescendente padece, recomendando aos Estados e organismos internacionais, entre outras medidas, a elaboração de programas e iniciativas de ação afirmativa ou positiva (Moehlecke 2002MOEHLECKE, Sabrina. 2002. “Ação afirmativa: história e debates no Brasil”. Cadernos de Pesquisa, 117:197-217.; Carneiro 2020CARNEIRO, Sueli. 2020. Escritos de uma vida. São Paulo: Jandaíra.).

Quase dez anos depois da Conferência de Durban, o Estado brasileiro reconheceu seu dever de propor estratégias que objetivem a igualdade de oportunidades para o conjunto da população negra através da Lei nº 12.288/2010, popularmente conhecida como Estatuto da Igualdade Racial (Brasil 2010BRASIL. 2010. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Brasília, DF: Presidência da República. ). Nessa legislação, o Estado reconheceu seu dever de se envolver no conjunto de ações afirmativas que impliquem a minimização das desigualdades provocadas pela cor/raça dos indivíduos (Bulhões & Arruda 2020BULHÕES, Lucas & ARRUDA, Dyego. 2020. “Cotas raciais em concursos públicos e a perspectiva do racismo institucional”. Nau Social, 11 (20):5-19.).

A adoção de políticas de ações afirmativas para os grupos historicamente excluídos dos espaços universitários públicos se deu, principalmente, por meio das lutas empreendidas pelos movimentos sociais negros no interior de instituições como a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e a Universidade do Estado da Bahia (UNEB). De acordo com Feres Júnior et al. (2018)FERES JÚNIOR, 2018. Ação afirmativa: conceito, história e debates. Rio de Janeiro: Eduerj., as ações afirmativas no ensino superior brasileiro nasceram de inciativas locais articuladas ou de leis que regulam as universidades estaduais. Em um segundo momento, as universidades federais também passaram a aderir a alguma modalidade de ação afirmativa, seguindo um ritmo acelerado, seja por incentivos do governo federal - como o Reuni1 1 Plano Reestruturação e Expansão das Universidade, instituído em 2007 pelo governo federal. - ou pela força da Lei nº 12.711/2012 (Brasil 2012BRASIL. 2012. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Brasília, DF: Presidência da República . ).

A promulgação dessa legislação, também conhecida como Lei de Cotas, impeliu as instituições federais de ensino superior que haviam resistido às cotas ou implementado políticas de inclusão bastante tímidas à adoção efetiva das ações afirmativas, nomeadamente no que se refere às estratégias de reserva de vagas para grupos historicamente alijados do ambiente universitário brasileiro. Além de tornar obrigatória a reserva de vagas para pretos, pardos, indígenas, alunos egressos de escola pública e de baixa renda nas universidades federais, a Lei nº 12.711/2012 contemplou também o ensino médio-técnico das instituições federais.

Apesar de representar um avanço significativo no enfrentamento do racismo estrutural (Almeida 2019ALMEIDA, Silvio. 2019. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen ), a Lei nº 12.711/2012 apresenta fragilidades, como, por exemplo, o fato de ter escamoteado a primazia do aspecto racial, diluindo-o no aspecto social, uma vez que o critério de cor/raça se encontra atrelado à exigência de que o estudante seja egresso de escola pública (Feres Júnior et al. 2018FERES JÚNIOR, 2018. Ação afirmativa: conceito, história e debates. Rio de Janeiro: Eduerj.). Outra questão já discutida em torno da Lei de Cotas é a sua dupla omissão: primeiro, quanto aos outros segmentos da educação básica, para além do ensino médio-técnico (Coutinho, Arruda & Oliveira 2021COUTINHO, Gabriela dos Santos; ARRUDA, Dyego de Oliveira & OLIVEIRA, Talita. 2021. “A política de cotas nos segmentos da Educação Básica no Colégio Pedro II”. Educação e Sociedade, 42:1-19.); e segundo, quanto aos cursos de pós-graduação (Bernardino-Costa & Borges 2021BERNARDINO-COSTA, Joaze & BORGES, Antonádia. 2021. “Um projeto decolonial antirracista: ações afirmativas na pós-graduação da Universidade de Brasília”. Educação & Sociedade, 42:1-18.; Carvalho 2003CARVALHO, José Jorge. 2003. “As ações afirmativas como resposta ao racismo acadêmico e seu impacto nas ciências sociais brasileiras”. Teoria e Pesquisa, 42-43:303-340.).

A despeito de suas fragilidades, é importante destacar que a Lei nº 12.711/2012 proporcionou a entrada coletiva de estudantes negros e indígenas nas universidades, constituindo, assim, a primeira onda de ações afirmativas no Brasil (Bernardino-Costa & Borges 2021BERNARDINO-COSTA, Joaze & BORGES, Antonádia. 2021. “Um projeto decolonial antirracista: ações afirmativas na pós-graduação da Universidade de Brasília”. Educação & Sociedade, 42:1-18.). Inicia-se, então, um importante processo de mudança política e epistemológica nas Instituições de Ensino Superior (IES), pois esses novos indivíduos que passaram a ocupar os bancos universitários trouxeram consigo indagações que desestabilizaram os padrões eurocêntricos do universo acadêmico brasileiro. De acordo com Carvalho (2020CARVALHO, José Jorge. 2020. “Encontro de Saberes e descolonização: para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras”. In: J. Bernardino-Costa et al. (org.), Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica.), tais questionamentos envolvem a compreensão de que não é suficiente implementar ações afirmativas para jovens negros e indígenas sem paralelamente modificar o currículo colonizado, racista e branqueado que vem se repetindo cronicamente nas IES do país. De acordo com Pinho e Figueiredo (2002PINHO, Osmundo & FIGUEIREDO, Ângela. 2002. “Ideias fora do lugar e o lugar do negro nas Ciências Sociais”. Estudos Afro-asiáticos, 24:189-210.), há um pressuposto universalizante interior ao discurso acadêmico brasileiro e essa universalização não passaria, na verdade, de uma imitação de pontos de vista e valores transplantados dos centros de dominação mundial, carregados dos desvios que sua origem representa, configurando-se como expressões do colonialismo, como conceitos elaborados para compreender e submeter o mundo e a realidade segundo os interesses e as perspectivas próprios dos contextos sociais em que foram forjados.

Segundo Pinho (2007PINHO, Osmundo. 2007. “Lutas culturais: relações raciais, antropologia e política no Brasil”. Sociedade e Cultura, v. 10. n. 1:81-94.), pessoas negras, por não serem representadas - a não ser como alegorias ou como arcabouços ideológicos para a subordinação - nesses currículos colonizados, racistas e branqueados, se constituem como sujeitos sociais subordinados politicamente e subalternizados na arena das disputas hegemônicas. A descolonização intelectual - e a consequente transformação dos currículos - como etapa da emancipação racial e da transformação da sociedade como um todo deverá, então, passar pela ação intelectual contra-hegemônica. Esse conhecimento científico subversivo, produzido por negros, indígenas e quilombolas exprime a práxis de suas respectivas coletividades e enriquece e aumenta a capacidade de luta (Nascimento 2019NASCIMENTO, Abdias. 2019. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. Rio de Janeiro: Ipeafro.).

As noções de decolonialidade e contra-hegemonia foram mobilizadas também pelos estudos latino-americanos e caribenhos da modernidade/colonialidade, apontando, principalmente, para a necessidade de uma revisão radical da narrativa de emancipação modernista e de busca por uma outra racionalidade histórica, em uma leitura divergente e alternativa da modernidade, escapando da ilusão do fim do colonialismo que permeia o sistema-mundo atual (Pinho & Figueiredo 2002PINHO, Osmundo & FIGUEIREDO, Ângela. 2002. “Ideias fora do lugar e o lugar do negro nas Ciências Sociais”. Estudos Afro-asiáticos, 24:189-210.; Quijano 2010QUIJANO, Aníbal. 2010. Colonialidade do poder e classificação social. In: Boaventura Sousa Santos & Maria Paula Meneses, Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez. pp. 84-130.).

José Jorge de Carvalho (2003CARVALHO, José Jorge. 2003. “As ações afirmativas como resposta ao racismo acadêmico e seu impacto nas ciências sociais brasileiras”. Teoria e Pesquisa, 42-43:303-340.), ao discutir racismo epistêmico e branqueamento dos docentes universitários nas instituições brasileiras, ainda no início dos anos 2000, defendia a análise da pirâmide do mundo acadêmico pelo topo e não só pela base: “o foco da reprodução ou da mudança do sistema não está no perfil racial dos calouros, mas dos professores - somos nós, afinal de contas, que temos autonomia para gerir o sistema universitário brasileiro” (Carvalho 2003:305). Este autor destaca também a injustiça simbólica sofrida por alunos negros e pobres por carecerem “de figuras modelares de identificação que os ajudem a construir uma autoimagem positiva e suficientemente forte para resistir aos embates do meio acadêmico racista em que têm que se mover” (Carvalho 2003:305-306). Portanto, a importância da reserva de vagas a negros/as nos concursos para a docência está justamente no caráter transformador desse tipo de iniciativa, que tende a provocar uma “mudança no grupo que concentra o maior poder no interior da instituição: a classe docente” (Carvalho 2020:94).

Assim como as demandas por reserva de vagas nas graduações foram mobilizadas pelo ativismo negro dentro das universidades, as discussões em torno das cotas para os programas de pós-graduação também têm sido capitaneadas por profissionais da Educação e estudantes engajados com o desenvolvimento de um projeto político decolonial e contra-hegemônico nas IES, com vistas à produção de conhecimentos negro-centrados, indígena-centrados e quilombola-centrados (Bernardino-Costa & Borges 2021BERNARDINO-COSTA, Joaze & BORGES, Antonádia. 2021. “Um projeto decolonial antirracista: ações afirmativas na pós-graduação da Universidade de Brasília”. Educação & Sociedade, 42:1-18.; Carvalho 2003CARVALHO, José Jorge. 2003. “As ações afirmativas como resposta ao racismo acadêmico e seu impacto nas ciências sociais brasileiras”. Teoria e Pesquisa, 42-43:303-340.). O movimento pela reserva de vagas por critérios raciais nas pós-graduações - que, por não ter respaldo na legislação, ao menos por ora, depende exclusivamente de aprovação nos conselhos universitários colegiados - está em plena ebulição neste momento e representa a segunda onda das ações afirmativas no Brasil (Venturini 2019VENTURINI, Anna Carolina. 2019. Ação Afirmativa na pós-graduação: os desafios da expansão de uma política de inclusão. Tese de Doutorado, Centro de Ciências Sociais. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.).

Os avanços em relação à democratização do acesso à pós-graduação têm, como consequência, não somente a desestabilização das relações de poder estabelecidas nas universidades ocidentalizadas brasileiras, com mudanças epistemológicas profundas, mas também a formação gradativa de cada vez mais mestres e doutores negros e indígenas e sua maior participação nos concursos de seleção para a carreira docente em IES - que normalmente exigem o título de doutor(a). Essa transformação densa e radical, que deve culminar na contratação efetiva de grupos historicamente alijados dos espaços catedráticos, constitui a terceira onda das ações afirmativas (Bernardino-Costa & Borges 2021BERNARDINO-COSTA, Joaze & BORGES, Antonádia. 2021. “Um projeto decolonial antirracista: ações afirmativas na pós-graduação da Universidade de Brasília”. Educação & Sociedade, 42:1-18.).

As cotas raciais em concursos públicos para o magistério federal

Desde 2014 vigora a Lei nº 12.990, que reserva 20% das vagas nos concursos públicos conduzidos pelo governo federal para candidatos autodeclarados negros (Brasil 2014BRASIL. 2014. Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. Brasília, DF: Presidência da República .). A promulgação dessa legislação não foi fruto da benevolência dos legisladores, mas sim de pressões externas, da ação dos movimentos sociais negros e do aproveitamento da janela de oportunidade criada com a chegada do governo Lula (Santos et al. 2021SANTOS, Edmilson Santos dos; GOMES, Nilma Lino; SILVA, Givânia Maria da & BARROS, Ronaldo Crispim Sena. 2021. “Racismo institucional e contratação de docentes nas universidades federais brasileiras”. Educação & Sociedade, 42:1-21.). Cabe destacar também que esse dispositivo legal, ao mesmo tempo em que representa um avanço nas políticas de ações afirmativas por ser a única que utiliza exclusivamente o critério racial, sem escamoteá-lo em critérios sociais, também apresenta uma série de fragilidades.

Santos et al. (2021SANTOS, Edmilson Santos dos; GOMES, Nilma Lino; SILVA, Givânia Maria da & BARROS, Ronaldo Crispim Sena. 2021. “Racismo institucional e contratação de docentes nas universidades federais brasileiras”. Educação & Sociedade, 42:1-21.) apontam como problemas a serem observados na Lei nº 12.990/2014: 1. o peso do governo Lula na decisão da matéria - que se utilizou do pedido de urgência como instrumento regimental para a aprovação da norma, garantindo que os interesses do Executivo fossem priorizados - e o jogo político que se estabeleceu em torno das cotas raciais; 2. o tempo reduzido de implementação da norma, que é de apenas dez anos; 3. o percentual fixo nacional da norma, que não considera os percentuais de negros, indígenas e quilombolas das diferentes unidades da federação; 4. o fracionamento de vagas e editais, usado constantemente para burlar a legislação; 5. a dupla porta de entrada, na ampla concorrência e na reserva de vagas, e a indicação da área do conhecimento que deverá abrigar a vaga da cota, que geralmente é estabelecida via sorteio, retirando, assim, das áreas não selecionadas o direito estabelecido pela norma; e 6. a autodeclaração, que tem se mostrado um instrumento insuficiente para evitar fraudes, e a necessidade de procedimentos de heteroidentificação - não previstos na norma e disponibilizados quatro anos após a promulgação da lei.

Apesar de reconhecermos que todos esses pontos merecem ser extensamente discutidos para que a legislação cumpra efetivamente o seu papel de política de combate ao racismo, para os fins desta pesquisa, nos debruçaremos sobre os itens 4 e 5, analisando detalhes relativos à implementação da Lei nº 12.990/2014 no CPII.

Destacamos também o caráter constitucional da legislação em tela já definido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 41/2017.

Por fim, a administração pública deve atentar para os seguintes parâmetros: (i) os percentuais de reserva de vaga devem valer para todas as fases dos concursos; (ii) a reserva deve ser aplicada em todas as vagas oferecidas no concurso público (não apenas no edital de abertura); (iii) os concursos não podem fracionar as vagas de acordo com a especialização exigida para burlar a política de ação afirmativa, que só se aplica em concursos com mais de duas vagas; e (iv) a ordem classificatória obtida a partir da aplicação dos critérios de alternância e proporcionalidade na nomeação dos candidatos aprovados deve produzir efeitos durante toda a carreira funcional do beneficiário da reserva de vagas (Brasil 2017b:3BRASIL. 2017b. Ação Declaratória de Constitucionalidade 41. Brasília, DF: STF.).

Na mesma ADC, o ministro Luís Roberto Barroso ainda expressa em seu voto que, em concursos com baixo número de vagas, como o magistério superior - considerando a divisão do concurso por especialidade -, “deve-se aglutinar, sempre que possível, as vagas em concursos com baixo número de vagas” (Brasil 2017b:39BRASIL. 2017b. Ação Declaratória de Constitucionalidade 41. Brasília, DF: STF.).

Mesmo com todos os avanços legais em torno das ações afirmativas de cunho étnico-racial e com as manifestações explícitas do STF, os mecanismos desenvolvidos pelas instituições para burlar a legislação revelam as faces do racismo estrutural e do seu correlato, o racismo institucional. Segundo Almeida (2019ALMEIDA, Silvio. 2019. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen ), o racismo não se constitui como um desarranjo institucional, mas sim como uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares. Desse modo, a hegemonia de um determinado grupo racial em instituições públicas e privadas depende, em primeiro lugar, da existência de regras e padrões que direta ou indiretamente dificultem a ascensão do grupo racial minorizado - criando barreiras que tornam mais longo ou difícil o acesso a bens sociais, perpetuando formas hegemônicas de gestão administrativa -, e em segundo lugar, da inexistência de espaços em que se discuta a desigualdade racial (Almeida 2019; Moreira 2019MOREIRA, Adilson. 2019. Racismo recreativo.São Paulo: Pólen .).

Segundo Moreira (2019MOREIRA, Adilson. 2019. Racismo recreativo.São Paulo: Pólen .), o racismo institucional pode aparecer de quatro formas: 1. quando as pessoas não conseguem acessar os produtos e os serviços de uma determinada organização; 2. quando os bens distribuídos são oferecidos de forma seletiva ou discriminatória; 3. quando as pessoas não logram êxito em processos seletivos às organizações; e 4. quando sua ascensão profissional é barrada. Salientamos que os mecanismos desenvolvidos pelas instituições para fraudar a Lei nº 12.990/2014 estão diretamente relacionados aos itens 3 e 4.

A Lei nº 12.772/2012 (Brasil 2012aBRASIL. 2012a. Lei nº 12.772, de 28 de dezembro de 2012. Brasília, DF: Presidência da República . ), que trata do Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal, apresenta duas carreiras para docentes no setor público federal: professor do Magistério Superior e professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico. No entanto, é comum observar que as IES criam novos cargos fracionando o objeto da lei (Mello & Resende 2019MELLO, Luiz & RESENDE, Ubiratan. 2019. “Concursos públicos para docentes de universidades federais na perspectiva da Lei 12.990/2014: desafios à reserva de vagas para candidatas/os negras/os”. Sociedade e Estado, 34 (1):161-184.; Palma 2019PALMA, Vanessa. 2019. Educação, democracia e inclusão racial: análise da efetividade da Lei de Cotas para negros em concursos docentes de universidades federais. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Grande Dourados, Mato Grosso do Sul.). Esse fracionamento pode acontecer: 1. nos concursos por área de conhecimento/disciplina, que raramente apresentam mais de duas vagas por concurso; 2. nas vagas para as mesmas competências; ou 3. fracionando editais (Santos et al. 2021SANTOS, Edmilson Santos dos; GOMES, Nilma Lino; SILVA, Givânia Maria da & BARROS, Ronaldo Crispim Sena. 2021. “Racismo institucional e contratação de docentes nas universidades federais brasileiras”. Educação & Sociedade, 42:1-21.).

As diferentes estratégias de fracionamento desenvolvidas pelas organizações, fundamentadas em sua discricionariedade, revelam a existência de uma engrenagem perfeita de exclusão da população negra ao acesso às prerrogativas do Estado Democrático de Direito. Se reconhecemos que a discricionariedade não está associada à liberdade da instituição para fazer o que quiser, mas sim ao que é aceitável num dado contexto de regras formais e informais, e se reconhecemos, sobretudo, que os reitores comandam burocracias especializadas, com regramentos claros, cujas decisões estão submetidas ao escrutínio de uma instância máxima colegiada e à assessoria da Advocacia Geral da União (AGU), que faz o controle da legalidade dos atos, é possível que se defenda uma “legalidade” em face das burlas cometidas pelas mais diversas IES. Assim, para compreender a operacionalização do desvio de finalidade da norma, é preciso compreender, primeiro, que a discricionariedade opera a partir da lógica do racismo institucional, realizando o alinhamento entre diversos atores, de modo que o problema da implementação não seja percebido como um desvio. Nesse sentido, Santos et al. (2021SANTOS, Edmilson Santos dos; GOMES, Nilma Lino; SILVA, Givânia Maria da & BARROS, Ronaldo Crispim Sena. 2021. “Racismo institucional e contratação de docentes nas universidades federais brasileiras”. Educação & Sociedade, 42:1-21.) defendem que

Não há reparação na aplicação da Lei nº 12.990/2014. Há uma tímida proposta para manutenção da branquitude. As engrenagens do sistema, ao garantirem vantagem num sistema que mantém desigualdades do ponto de vista da representação, são mais eficientes que as políticas de apartheid, sem carregar os custos morais e políticos deste (Santos et al. 2021SANTOS, Edmilson Santos dos; GOMES, Nilma Lino; SILVA, Givânia Maria da & BARROS, Ronaldo Crispim Sena. 2021. “Racismo institucional e contratação de docentes nas universidades federais brasileiras”. Educação & Sociedade, 42:1-21.:7).

Para além das necessidades de ajustes na legislação - em especial no que tange aos concursos para docência -, as instituições educacionais precisam, urgentemente, promover avaliações críticas que evidenciem onde repousa o racismo institucional que orienta a operacionalização da Lei nº 12.990/2014 para que então ocorra um efetivo engajamento no campo da luta antirracista e no âmbito do projeto decolonial de produção de conhecimento.

Bernardino-Costa e Borges (2021)BERNARDINO-COSTA, Joaze & BORGES, Antonádia. 2021. “Um projeto decolonial antirracista: ações afirmativas na pós-graduação da Universidade de Brasília”. Educação & Sociedade, 42:1-18., ao discutirem a contribuição das ações afirmativas na pós-graduação, destacam a necessidade do desenvolvimento de uma política radical da diversidade, que traga em seu bojo o potencial de um projeto decolonial e contra-hegemônico na produção do conhecimento. Nesse sentido, a inclusão radical da diversidade se opõe à inclusão cosmética da diversidade. Os autores pontuam que “sempre que a retórica da diversidade se torna superficial e vazia, não se propondo a uma desestabilização das relações de poder hegemônicas, termina por validar desigualdades e injustiças” (Bernardino-Costa & Borges 2021:9BERNARDINO-COSTA, Joaze & BORGES, Antonádia. 2021. “Um projeto decolonial antirracista: ações afirmativas na pós-graduação da Universidade de Brasília”. Educação & Sociedade, 42:1-18.).

A política radical da diversidade deve ser utilizada, portanto, como estratégia para contribuir com a educação de novos líderes, com a superação de estereótipos a partir da criação de exemplos e com a construção de ambientes mais plurais que permitam trocas entre múltiplas experiências e inteligências. É nesse sentido que a justiça social e a justiça cognitiva são efetivadas simultaneamente e em conjunto com o enfrentamento do racismo institucional e estrutural (Bernardino-Costa & Borges 2021BERNARDINO-COSTA, Joaze & BORGES, Antonádia. 2021. “Um projeto decolonial antirracista: ações afirmativas na pós-graduação da Universidade de Brasília”. Educação & Sociedade, 42:1-18.).

As cotas raciais nos concursos para o magistério no Colégio Pedro II

A despeito da falta de informações oficiais sobre o perfil racial do corpo docente do CPII, a presença diminuta de professores(as) negros(as) é um fato constatado por quem transita pela escola. Em entrevista conduzida a respeito da atuação do NEABI/CPII, Joel,2 2 Nome fictício. Ressaltamos que todos os nomes indicados no corpo do texto são fictícios, de modo a preservar a identidade das pessoas com as quais interagimos nos diálogos que estabelecemos no CPII. um dos membros fundadores do Núcleo, menciona a entrada da primeira professora negra em um dos departamentos da escola.

Sandra é a primeira professora negra do Departamento de História do Colégio Pedro II em 180 anos de Colégio. Não é a primeira professora negra do Colégio. É a primeira professora negra do Departamento de História (Entrevista com Joel 2021).

A professora mencionada por Joel ingressou na instituição em 2015, através da reserva de vagas para negros, realizada no concurso regido sob o edital nº 47/2014 - primeiro certame após a promulgação da Lei federal nº 12.990/2014. Solano, que também é membro do NEABI/CPII, faz uma importante reflexão sobre o perfil racial dos professores da instituição:

[...] eu não tive nenhum professor preto na universidade. Eu tive lá no ensino fundamental, no médio muito pouco. Na História da educação no Brasil houve um sumiço de professores pretos. [...] E a gente olha para os cursos de licenciatura, que é a última fase das graduações, geralmente, e a gente também vê esses professores pretos se rarefazendo. Mas aí você vai lá no estado [rede estadual de ensino], você vê os professores pretos em maioria. Mas você chega num colégio que tem um concurso muito mais complexo como o Pedro II, eles não são maioria. É um impacto muito grande. Ninguém sabe o duro que eu dei, como diria Simonal. Eu acho que o impacto é oriundo de esforços individuais em conexão com as políticas públicas, principalmente dos anos 2000, do governo do PT, políticas de cotas, de ação afirmativa (Entrevista com Solano 2021).

As colocações do Joel e Solano - ambos professores negros da instituição, com participação ativa no NEABI/CPII - permitem uma primeira interpretação de como a instituição é refratária às políticas que possam trazer ao seu corpo docente uma diversidade radical em termos raciais. A complexidade do concurso, mencionada por Solano, também é fator que merece destaque. Veremos nos dados apresentados a seguir que, em determinados certames da instituição, o número de candidatos aprovados fica aquém do número total de vagas. Para além da frágil operacionalização da Lei nº 12.990/2014, é possível que haja também um processo de autoeliminação, dado o caráter elitizado e embranquecido da instituição. Assim como a maior parte da juventude negra sequer colocava a educação superior no seu horizonte como possibilidade de estudo e de formação antes do desenvolvimento das políticas de ações afirmativas (Gomes et al. 2021GOMES, Nilma Lino; SILVA, Paulo Vinícius & BRITO, José Eustáquio. 2021. “Ações afirmativas de promoção da igualdade racial na educação: lutas, conquistas e desafios”. Educação e Sociedade, 42:1-14.), é possível que professores negros não vejam o CPII como um espaço que pode/deve ser alcançado por eles. Esta é mais uma face do racismo estrutural que somente pode ser combatido através da implementação de práticas antirracistas efetivas nos diversos espaços institucionais.

Para compreender as dinâmicas atuais do CPII é preciso um olhar retrospectivo para a história da instituição. Os primeiros docentes do Imperial Collegio de Pedro II foram indicados pelo ministro Bernardo Pereira de Vasconcellos - deputado mineiro, titular das pastas do Império e Justiça no período regencial - e aprovados pelo imperador. Anos depois, foram instituídos os concursos para ingresso de docentes, avaliados por uma comissão formada por professores da instituição. A própria página virtual do Colégio anuncia, em certo tom de orgulho que, “em geral, os professores eram escolhidos entre profissionais que se destacavam na sociedade letrada da época: advogados, médicos e escritores, ou seja, uma elite intelectual educada na Europa, como os escritores Joaquim Manuel de Macedo e Gonçalves Dias” (Colégio Pedro II 2021: s/pCOLÉGIO PEDRO II.2021. Período Imperial. Rio de Janeiro: Colégio Pedro II . Disponível em: Disponível em: http://cp2.g12.br/servidor/83-cpii/1631-per%C3%ADodo-imperial.html . Acesso em 10/02/2022.
http://cp2.g12.br/servidor/83-cpii/1631-...
). Trata-se, portanto, de uma instituição nascida para privilegiar projetos imperiais/coloniais/patriarcais. Mesmo tendo avançado em diversos aspectos - como a expansão para áreas periféricas, a ampliação do atendimento aos estudantes seguindo as políticas de universalização da educação etc. -, as estruturas fundacionais do conhecimento no CPII, assim como nas Universidades ocidentalizadas, são epistemicamente racistas. Privilegiam-se, com base no discurso da universalidade, teorias Norte-cêntricas em detrimento do conhecimento produzido por epistemologias, cosmologias e visões de mundo “outras” (Grosfoguel 2016GROSFOGUEL, Ramón. 2016. “A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI”. Sociedade e Estado, 31 (1):25-49. ).

Nessa dinâmica educacional, estudantes que não dominam os códigos de uma escola branca são rotulados de despreparados e atrasados, culminando, muitas vezes, em evasão. Carvalho (2020CARVALHO, José Jorge. 2020. “Encontro de Saberes e descolonização: para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras”. In: J. Bernardino-Costa et al. (org.), Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica.) alerta que as cotas restritas somente ao corpo discente podem passar a ardilosa ideia de que jovens negros e indígenas devem aprender o único saber que importa, o eurocêntrico. Segundo este autor, docentes - em especial, docentes brancos(as) -, recebem o mandato institucional para reproduzir a violência epistêmica fundadora. Há que se realizar, então, um movimento de desvinculação desse pacto colonial para que se destrave a grade fechada que impede a entrada de saberes não ocidentais no âmbito das práticas de ensino-aprendizagem na instituição. Tal movimento se dá, dentre outras maneiras, pela constituição de um corpo docente radicalmente diverso (Bernardino-Costa & Borges 2021BERNARDINO-COSTA, Joaze & BORGES, Antonádia. 2021. “Um projeto decolonial antirracista: ações afirmativas na pós-graduação da Universidade de Brasília”. Educação & Sociedade, 42:1-18.; Carvalho, 2020). Portanto, a dupla inclusão de jovens negros e indígenas na condição de alunos e de mestres negros e indígenas como professores constitui uma plataforma político-científica chamada por José Jorge de Carvalho (2020) de cotas epistêmicas. A seguir buscaremos evidenciar se é este o caminho que o CPII tem traçado em suas políticas de reserva de vagas para a docência.

O CPII publicou, entre os anos de 2014 e 2019, cinco editais de concursos públicos para a carreira do Magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico, a saber: editais nº 47/2014, 23/2016, 37/2016, 23/2018 e 23/2019. Considerando apenas o caput de cada edital, somam-se 136 vagas. Entretanto, se considerarmos as vagas disponibilizadas contabilizando a categoria “fila de espera”, o total de candidatos que poderiam ser convocados em todos esses certames é de 368.

É preciso destacar que os candidatos que ficam em fila de espera - ou em cadastro de reserva - não têm garantia líquida e certa de conseguir acessar o cargo público ao longo da validade do concurso. As vagas excedentes surgem a partir da vacância do cargo (por conta de aposentadoria, exoneração, falecimento ou redistribuição do/a titular), de modo que essas vagas - previstas nos editais nº 23/2016, 27/2016, 23/2018 e 23/2019 - são normalmente providas com base em critérios de conveniência da administração pública. Desse modo, os candidatos classificados na fila de espera têm apenas a expectativa de, em caso de vacância de algum cargo, serem nomeados dentro do prazo de validade do concurso. Entretanto, no caso do CPII, é possível dizer que há significativa previsibilidade das vagas pelo histórico de convocações de cada área do conhecimento/disciplina e pela demanda de contratação de professores que é característica de escolas de educação básica. Com exceção de Dança e Teatro (que apareceram somente no edital nº 23/2019), todas as outras 22 disciplinas contempladas nos editais analisados convocaram candidatos para além das vagas iniciais, “acionando”, portanto, a fila de espera.

A seguir apresentamos o quadro 1, com a disposição das vagas nos certames analisados. Constam no quadro o total de vagas oferecidas em cada edital, o total de vagas na categoria fila de espera e o total de vagas reservadas para cota étnico-racial (CER) em cada concurso. Em seguida, apresentaremos o total de candidatos convocados - números que incluem as chamadas pela ampla concorrência e pela CER - e, separadamente, o total de candidatos convocados pela CER. Em destaque, apresentaremos o cálculo de quantas vagas deveriam ser reservadas por concurso e o percentual real de convocações de candidatos pela CER.

Quadro 1:
Total de vagas e convocações nos editais para o magistério no CPII

Fonte: Elaboração dos autores (2022)

Primeiramente, chamamos a atenção para o fato de que o quadro 1 apresenta o total de vagas que deveriam ser reservadas para CER, cálculo realizado sobre o quantitativo de vagas iniciais. Entretanto, se analisarmos cada edital aglutinando as vagas iniciais à fila de espera - considerando que, devido ao histórico de contratações da instituição, há previsibilidade de convocação de todos os aprovados - o número de candidatos negros que deveriam ser convocados cresce consideravelmente. No edital 47/2014 seriam 14; no edital 23/2016, 8; no edital 37/2016, 14; no edital 23/2018, 30; e no edital 23/2019, 8.3 3 De acordo com a Lei nº 12.990/2014, “na hipótese de quantitativo fracionado para o número de vagas reservadas a candidatos negros, esse será aumentado para o primeiro número inteiro subsequente, em caso de fração igual ou maior que 0,5 (cinco décimos), ou diminuído para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5 (cinco décimos)” (Brasil 2014). Tal cálculo nos parece pertinente, pois, segundo a deliberação do STF, a reserva de vagas deve obrigatoriamente ocorrer durante toda a validade do concurso, potencialmente incidindo também sobre a fila de espera, dado que o CPII possui histórico de convocações que extrapolam - e muito - o quantitativo de vagas iniciais do edital, conforme pode ser observado no próprio quadro 1.

Outra estratégia utilizada pelas instituições para burlar a legislação, já sinalizada por Palma (2019PALMA, Vanessa. 2019. Educação, democracia e inclusão racial: análise da efetividade da Lei de Cotas para negros em concursos docentes de universidades federais. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Grande Dourados, Mato Grosso do Sul.), Santos et al. (2021SANTOS, Edmilson Santos dos; GOMES, Nilma Lino; SILVA, Givânia Maria da & BARROS, Ronaldo Crispim Sena. 2021. “Racismo institucional e contratação de docentes nas universidades federais brasileiras”. Educação & Sociedade, 42:1-21.), além de Mello e Resende (2019MELLO, Luiz & RESENDE, Ubiratan. 2019. “Concursos públicos para docentes de universidades federais na perspectiva da Lei 12.990/2014: desafios à reserva de vagas para candidatas/os negras/os”. Sociedade e Estado, 34 (1):161-184.), é o fracionamento de editais. No ano de 2016, o CPII publicou dois editais em um intervalo de menos de dois meses - 10 de julho e 31 de agosto. Se os editais fossem aglutinados, para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, por exemplo, haveria quatro vagas iniciais, fato que acionaria a reserva de vagas.

Destacamos também que o certame ocorrido em 2014 foi o único que preconizou, em edital, a reserva de vagas próximas ao número que atinge o percentual mínimo definido pela Lei nº 12.990/2014, considerando o total de vagas iniciais oferecidas. Nesse concurso houve oferta de vagas para 20 disciplinas, sendo reservadas CER para aquelas disciplinas que tinham mais de três vagas - Artes Visuais, Biologia, Educação Física, Geografia, História, Matemática, Português, Química, Sociologia, Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Embora alguns departamentos pedagógicos não tenham sido contemplados, quase 20% das vagas inicialmente oferecidas no certame foram reservadas por critérios étnico-raciais.

Entretanto, constata-se desvio da norma se observarmos o quantitativo de convocações realizadas durante o período de validade do concurso em questão (edital nº 47/2014). Como exemplo, citamos a disciplina Filosofia que, por apresentar apenas duas vagas iniciais no edital, não teve o dispositivo de CER acionado, mas teve nove candidatos convocados até abril de 2016. Neste caso, ao menos duas pessoas deveriam ter sido convocadas pela CER. Outro desvio constatado nesse edital diz respeito às vagas para Artes Visuais. O edital de abertura apresenta tabela com três vagas, sendo uma reservada para negros, porém, na homologação do concurso há uma listagem com oito aprovados pela AC e nenhuma lista fazendo menção aos aprovados por CER para esta disciplina (Brasil 2015BRASIL. 2015. DOU nº 144, de 30 de julho de 2015. Retificação da homologação do resultado final do concurso público para provimento de cargos de Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico - Edital nº 47/2014. Diário Oficial da União, Brasília, DF.).

Já nos editais nº 23/2016 e 37/2016 percebemos que o CPII se valeu do expediente da fila de espera para não cumprir plenamente o disposto na Lei nº 12.990/2014. Para as sete disciplinas que compõem o edital nº 23/2016 e para as 13 que integram o edital nº 37/2016, a distribuição de vagas é a mesma: uma vaga inicial somada a quatro vagas de fila de espera. A exceção ocorre apenas para a área Anos Iniciais do Ensino Fundamental, que aparece com duas vagas somadas a nove de fila de espera em ambos os editais. Portanto, os certames realizados no ano de 2016 não utilizaram o expediente da reserva de vagas. Nos dois editais consta a seguinte justificativa: “não haverá reserva de vagas para cota racial ou pessoas com deficiência em virtude do quantitativo oferecido” (Colégio Pedro II 2016:2COLÉGIO PEDRO II. 2016. Edital nº 23, de 10 de julho de 2016. Concurso público para provimento de cargo de Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico. Rio de Janeiro: Colégio Pedro II.). Este argumento é utilizado pelo fato de que nenhuma das áreas do conhecimento apresenta três ou mais vagas, como preconiza a lei, para que se acione a reserva de vagas. Porém, tomando como exemplo os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, logo na primeira chamada de ambos os concursos (ocorridas em 06/02/2017 e 03/05/2017, respectivamente), houve convocação de todos os aprovados para as vagas iniciais e também para a fila de espera, totalizando nove convocações referentes ao edital nº 23/2016 e outras nove referentes ao edital nº 37/2016. Nos casos em tela, ao menos quatro pessoas negras deveriam ter sido convocadas. Mesmo que não houvesse previsão de que haveria chamada de todos os aprovados, a justificativa da instituição não tem fundamento legal, pois o edital nº 23/2016 oferece oito vagas imediatas e o edital nº 37/2016 oferece 14 vagas imediatas, somando todas as disciplinas para cada concurso. Nota-se, portanto, que a instituição utiliza o fracionamento de vagas e da fila de espera como mecanismos que resultam no não cumprimento pleno da legislação que determinou as cotas raciais em concursos públicos.

É fato que as diferentes titulações exigidas para cada disciplina dificultam a aglutinação de vagas, como orientou o STF quando do julgamento da ADC nº 41/2017 (Brasil 2017bBRASIL. 2017b. Ação Declaratória de Constitucionalidade 41. Brasília, DF: STF.). A solução encontrada por muitas IES é a realização de sorteios para que se decida quais áreas incluirão a reserva de vagas por CER. Outra solução, que nos parece mais justa e produtiva, especialmente por se alinhar com os objetivos da lei, é a realização de um censo interno sobre o perfil étnico-racial dos docentes com vistas à especificação de quais são os departamentos mais embranquecidos da instituição e que necessitam, com mais urgência, do dispositivo das cotas raciais.

Outra questão que pode ser elucidada a partir dos concursos realizados em 2016 é o fato de que em alguns certames o número de candidatos aprovados não alcança o número de vagas. No edital nº 23/2016, para a área Anos Iniciais do Ensino Fundamental, havia a delimitação de duas vagas iniciais somadas a nove da fila de espera, totalizando 11 vagas. Entretanto, na homologação do resultado final do concurso constam apenas nove candidatos aprovados (Brasil 2016BRASIL. 2016. DOU nº 237, de 12 de dezembro de 2016. Homologação do resultado final do concurso público para provimento de cargos de Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico - Edital nº 23/2016. Diário Oficial da União, Brasília, DF.). No edital nº 37/2016, para esta mesma disciplina, também havia duas vagas iniciais somadas a nove da fila de espera, de modo que na homologação também constam apenas nove candidatos aprovados (Brasil 2017aBRASIL. 2017a. DOU nº 74, de 18 de abril de 2017. Homologação do resultado final do concurso público para provimento de cargos de Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico - Edital nº 37/2016. Diário Oficial da União, Brasília, DF.). Tal fato se repetiu no certame realizado em 2018, que apresentava para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental 50 vagas, sendo 16 iniciais e 34 para fila de espera. Entretanto, na homologação deste último concurso constam apenas 26 aprovados para essa área (Brasil 2018BRASIL. 2018. DOU nº 248, de 27 de dezembro de 2018. Homologação do resultado final do concurso público para provimento de cargos de Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico - Edital nº 23/2018. Diário Oficial da União, Brasília, DF.).

O edital nº 23/2018 informa em seu inciso 1.4. que “haverá reserva de vagas para cota racial ou pessoa com deficiência” e acrescenta ainda, no item 1.4.1, que “onde não houver vagas imediatas para reserva, estas serão preenchidas caso haja durante a validade do concurso ampliação de vagas” (Colégio Pedro II 2018:2COLÉGIO PEDRO II.2018. Edital nº 23, de 13 de julho de 2018. Concurso público para provimento de cargo de Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico. Rio de Janeiro: Colégio Pedro II .). Essas deliberações no edital de abertura revelariam uma tentativa da instituição de se adequar à Lei nº 12.990/2014, porém as reservas por CER somente eram realizadas para as disciplinas que apresentavam três ou mais vagas iniciais, não contemplando aquelas que apresentavam uma ou duas vagas iniciais, mesmo havendo convocações de candidatos aprovados em lista de espera durante a validade do concurso. Em suma, esse certame ofertou vagas para 12 disciplinas, reservando CER para áreas do conhecimento como, por exemplo, Matemática e Português, que tinham, cada uma, quatro vagas iniciais. Foram então disponibilizadas três vagas para ampla concorrência e uma vaga para CER nessas áreas. Mesmo usando o expediente da fila de espera, a aplicação da lei se aproxima de um índice satisfatório de reserva de vagas para essas disciplinas que já apresentam, em edital, alguma reserva de vaga, aumentando proporcionalmente de acordo com as convocações. Como exemplo, citamos Português, que tinha em edital quatro vagas, sendo três para AC e uma para CER, além de 14 vagas para fila de espera. No prazo de validade do concurso, 18 professores de Português foram convocados e, desses, cinco estavam sob a égide das cotas raciais nos concursos públicos (número que supera o percentual mínimo definido pela Lei nº 12.990/2014).

Entretanto, o mesmo não acontece com as áreas que apresentavam menos de duas vagas iniciais. Para o cargo de professor da Educação Infantil, por exemplo, havia apenas duas vagas iniciais e sete de fila de espera. Durante a validade do concurso, nove candidatos foram convocados e nenhum deles estava sob o amparo da reserva de vagas para negros(as). Na homologação do certame, apenas as disciplinas Anos Iniciais do Ensino Fundamental, Educação Física, Matemática e Português tiveram a lista de CER divulgadas, por já apresentarem no edital de abertura a previsão de reserva de vagas (DOU 2018). Não são apresentadas para as outras oito áreas que constam no edital - dentre elas, Educação Infantil - a listagem de aprovados por CER, para que seja acionada em caso de convocação dos candidatos da lista de espera.

No edital nº 23/2019, embora haja indicação de que “haverá reserva de vagas para cota racial ou pessoa com deficiência” (Colégio Pedro II 2019:3COLÉGIO PEDRO II.2019. Edital nº 23, de 29 de maio de 2019. Concurso público para provimento de cargo de Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico. Rio de Janeiro: Colégio Pedro II .), a tabela de vagas não apresenta o quantitativo reservado por CER. Das seis disciplinas que constam no edital, Atendimento Especial é a única que apresenta três vagas iniciais - e 11 para fila de espera -, quantitativo que deveria acionar as CER. Contudo, não há determinação das vagas para negros nesse edital, fato que representa descumprimento explícito da legislação. Três retificações do edital foram postadas no sítio eletrônico da instituição entre maio e agosto de 2019, mas nenhuma apresentou mudança na tabela de vagas.

Para além desse caso flagrante, o dispositivo da fila de espera é acionado nas outras cinco áreas de conhecimento do edital nº 23/2019, que apresentam, cada uma, apenas uma vaga inicial e quatro para fila de espera. Na homologação do certame, foram divulgadas as listas de aprovados por CER apenas para as disciplinas Ciência da Computação, Espanhol e Inglês, e não houve, por parte da instituição, uma justificativa sobre os critérios utilizados para reserva somente nessas disciplinas (Brasil 2021BRASIL. 2021. DOU nº 82, de 4 de maio de 2021. Homologação do resultado final do concurso público para provimento de cargos de Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico - Edital nº 23/2019. Diário Oficial da União, Brasília, DF.). Atendimento Especial e Educação Musical, que apresentaram 14 e cinco candidatos aprovados, respectivamente, tiveram apenas a listagem de AC divulgada. Informática Educativa, que consta com dois aprovados apenas, seria a única disciplina que não estaria obrigada pela legislação a realizar a reserva de vagas para CER. Embora esse certame ainda esteja dentro do prazo de validade (até o momento da finalização deste artigo), a convocação de candidatos negros está inviabilizada para as disciplinas que não tiveram as listagens de CER homologadas.

Outro fator que precisa ser cuidadosamente analisado é a concomitância de candidatos negros aprovados para AC e para as CER. Nesse sentido, a Lei nº 12.990/2014 é explícita:

Art. 3º Os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso.

§1º Os candidatos negros aprovados dentro do número de vagas oferecido para ampla concorrência não serão computados para efeito do preenchimento das vagas reservadas (Brasil 2014: s/p).

Entretanto, nos certames do CPII para o magistério, os candidatos que se inscrevem para concorrer às vagas reservadas por CER e são aprovados dentro do recorte para AC são convocados e computados como se houvesse atendimento pleno à Lei nº 12.990/2014. No edital nº 47/2014, todos os candidatos que constam na lista específica das CER aparecem também na listagem da AC; nos editais nº 23/2016 e 37/2016 não houve reserva de vagas; no edital nº 23/2018 houve reserva para apenas quatro disciplinas - dessas, apenas duas apresentam candidatos fora da listagem de AC (Matemática e Português); no edital nº 23/2019, apesar de não haver reserva prevista na tabela de vagas do dispositivo de abertura do certame, das três disciplinas que reservaram vagas para CER, apenas duas apresentam candidatos fora das vagas para AC (Inglês e Espanhol). Constatamos que essa dinâmica acontece devido à nota de corte para AC, pois a maioria dos candidatos convocados pela CER apresentaram nota final igual ou superior aos últimos colocados das listagens homologadas de AC.

Para elucidar a discussão sobre a concomitância de candidatos nas listagens de AC e CER, desenvolvemos o quadro 2 com base nos cinco editais analisados nesta pesquisa e nas suas respectivas homologações. O quadro apresenta quatro variáveis relacionadas às diversas disciplinas contempladas nos concursos públicos para o magistério no CPII: a) quantidade de editais que contemplam cada área do conhecimento; b) quantidade total de vagas, somando convocação imediata à fila de espera; c) quantidade de vagas reservadas por CER nos editais de abertura; d) quantidade de candidatos aprovados dentro da nota de corte da AC e contabilizados erroneamente como CER; e e) quantidade de candidatos aprovados exclusivamente pelas CER, ou seja, que não foram aprovados dentro das vagas para AC.

Quadro 2:
Vagas reservadas e convocações nos concursos para magistério no CPII, por área/disciplina (2014-2019)

Ao observarmos o total de candidatos negros aprovados com pontuação final igual ou superior à nota de corte da AC e que foram contabilizados nas homologações de CER, percebe-se que 30 pessoas negras deveriam ter ocupado exclusivamente a listagem de AC, “liberando” as respectivas oportunidades para outras pessoas negras nas vagas reservadas. Para ilustrar, tomemos como exemplo a distribuição de vagas para Anos Iniciais do Ensino Fundamental, realizada no certame regido pelo Edital 23/2018: das 50 vagas oferecidas (16 para AC e 34 para fila de espera), quatro vagas foram reservadas para CER no edital de abertura; na homologação do resultado final do concurso, consta uma listagem com 26 aprovados por AC e cinco por CER. A burla à legislação está no fato de que essas cinco pessoas negras que compõem a listagem de homologações por CER estão também na listagem de homologações por AC, classificadas entre a segunda e a vigésima posição.

Para que as instituições não incorram nesta modalidade de fraude à lei, é necessário que se divulgue uma lista geral de notas e classificações de todos os candidatos e uma lista paralela, específica das vagas reservadas para pessoas negras, contemplando candidatos que não seriam convocados considerando a nota de corte da AC. Desse modo, ainda que o indivíduo concorra às vagas para CER, se obtém média suficiente para ser convocado pela AC, ele deverá ser convocado por essa categoria, deixando as vagas da CER para aqueles que estão fora da nota de corte da AC.

Percebemos, portanto, que os 20% definidos pela lei têm sido interpretados enquanto teto e o propósito fundamental da lei é que essa porcentagem seja um piso, isto é, o mínimo. Assim, ingressarão nas instituições federais candidatos negros aprovados na AC e também aqueles aprovados pela CER que não obtiveram nota suficiente para acessar as vagas da AC. É preciso reconhecer que legislações, enquanto mecanismos de ação afirmativa que preconizam a reserva de vagas para grupos socialmente minoritários, não conseguem romper com a lógica da meritocracia. Se são apenas as pessoas com maiores notas que irão acessar os espaços historicamente elitizados, devemos nos questionar se a legislação está servindo, de fato, como mecanismo eficaz de combate ao racismo e de promoção da justiça social.

É certo que as políticas de reserva de vagas voltadas à população negra são mecanismos potentes e promissores de combate ao racismo estrutural e institucional. É crucial que esse expediente da reserva de vagas a negros(as) seja plenamente respeitado - situação que, nos concursos para o magistério no CPII, não ocorre de forma integral até a finalização deste artigo -, de modo que, para além do acesso, sejam oportunizados mecanismos outros que permitam com que novas epistemes críticas e perspectivas contra-hegemônicas possam ser difundidas e naturalizadas, em um arranjo de coisas que faça com que a ideia de diversidade seja radicalmente adotada e implementada, tanto nas instituições de ensino quanto nas demais esferas da vida social.

Considerações finais

Até o ano de 2024 é certo que os aspectos em torno da Lei nº 12.990/2014 entrarão na pauta do debate público em função das avaliações para sua potencial renovação. Nesse cenário político, pesquisas que apontam para o caráter sistêmico e estrutural do racismo nos municiam para o enfrentamento que se fará necessário para a defesa da manutenção e do aprimoramento da referida legislação.

As ações afirmativas têm como objetivo aumentar a representatividade de minorias raciais e alterar a lógica discriminatória dos processos institucionais (Almeida 2019ALMEIDA, Silvio. 2019. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen ). Entretanto, ao observamos a operacionalização da reserva de vagas para negros em concursos para o magistério federal, fica explícito que as instituições federais de ensino acabam primando por segmentos raciais que já têm um histórico de privilégios em nosso país, reproduzindo, assim, a elitização social e racial da ciência e do conhecimento (Gomes et al. 2021GOMES, Nilma Lino; SILVA, Paulo Vinícius & BRITO, José Eustáquio. 2021. “Ações afirmativas de promoção da igualdade racial na educação: lutas, conquistas e desafios”. Educação e Sociedade, 42:1-14.).

As ações afirmativas na modalidade cotas raciais e a consequente chegada de sujeitos negros às universidades (preconizada pela Lei nº 12.711/2012), nas pós-graduações (movimento em plena ebulição) e no magistério federal (batalha que estamos empreendendo recentemente, a partir de discussões como a que foi feita neste artigo), com suas vivências comunitárias, políticas, sociais, culturais, artísticas, desvelam cada vez mais a existência da colonialidade do saber e tensionam a produção epistemológica, transformando a ciência, a educação e a sociedade (Gomes et al. 2021GOMES, Nilma Lino; SILVA, Paulo Vinícius & BRITO, José Eustáquio. 2021. “Ações afirmativas de promoção da igualdade racial na educação: lutas, conquistas e desafios”. Educação e Sociedade, 42:1-14.). Portanto, tendo em vista todas as lacunas na implementação de Lei nº 12.990/2014, especialmente no que diz respeito ao magistério federal, é fundamental que tracemos caminhos para a superação das interpretações equivocadas ou maliciosas da norma e para uma implementação que esteja vinculada à perspectiva decolonial e contra-hegemônica de produção de conhecimento nas instituições de ensino.

Dados de concursos realizados na vigência da Lei nº 12.990/2014 apontam para sua inefetividade como ação afirmativa hábil para promover o combate ao racismo no setor público. Mesmo com posicionamentos do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da lei de cotas para concursos públicos, as instituições federais continuam utilizando a criatividade para burlar a legislação. Segundo Santos et al. (2021SANTOS, Edmilson Santos dos; GOMES, Nilma Lino; SILVA, Givânia Maria da & BARROS, Ronaldo Crispim Sena. 2021. “Racismo institucional e contratação de docentes nas universidades federais brasileiras”. Educação & Sociedade, 42:1-21.), a não aplicação da norma é uma atitude deliberada das instituições, principalmente porque envolve posições de prestígio, poder e de alta remuneração.

No caso do CPII, foi possível perceber quatro problemáticas: 1. o fracionamento de vagas entre os diversos departamentos pedagógicos; 2. o fracionamento de editais publicados no mesmo ano; 3. a utilização do expediente da fila de espera, que faz com que as vagas iniciais não sejam suficientes para acionar a lei de cotas, mesmo quando pode haver potencial previsibilidade de convocação de todos os candidatos classificados, dentro do período de validade do concurso e; 4. chamada de candidatos negros aprovados dentro do número de vagas oferecido para ampla concorrência sendo computados para efeito do preenchimento das vagas reservadas.

Essas estratégias para não aplicação da norma foram desmembradas neste artigo para fins didáticos, entretanto, destacamos que elas estão profundamente imbricadas. O fracionamento de editais e vagas visto, por exemplo, nos editais nº 23/2016 e 37/2016 do CPII é utilizado em conjunto com o expediente da fila de espera para não acionar a reserva de vagas e potencializar a exclusão dos candidatos negros. Nos editais 23/2018 e 23/2019, nos quais a reserva é realizada, além do fracionamento de vagas e do uso do expediente da fila de espera, a maior parte dos candidatos convocados como cotistas está também na listagem de ampla concorrência e, portanto, seriam nomeados independentemente da CER.

Diante do exposto, propomos algumas soluções que se aplicam, inicialmente ao CPII, mas que podem servir como parâmetro para aumento da eficácia da Lei nº 12.990/2014 em outras Instituições de Ensino Superior (IES) federais. Considerando que seja verídica a alegação das IES de que o fracionamento de vagas é inevitável, dadas as diferentes titulações exigidas para cada área do conhecimento a ser lecionada pelo futuro professor, propomos que seja realizado internamente um censo que aponte quais departamentos são mais embranquecidos, de modo que se crie uma ordem de prioridade na distribuição das cotas raciais.

Sobre a lacuna gerada pelo uso da fila de espera nos certames, podemos dizer que o Supremo Tribunal Federal já foi explícito quando orientou que a reserva de vagas deve incidir sobre todas as nomeações feitas no decorrer do prazo de validade do concurso. Para que se cumpram a legislação e as orientações do STF, é preciso que se divulgue e homologue a lista de aprovados e classificados pelas CER. Para que não ocorra a convocação de candidatos classificados dentro das vagas para AC como cotistas, é preciso que haja homologação de listagens de CER contemplando candidatos que obtiveram médias inferiores à nota de corte da AC. Essa dinâmica só será possível a partir do momento em que as instituições compreenderem a reserva de 20% das vagas como piso e não como teto, ou seja, a regra é de que o candidato com nota suficiente para ser aprovado sem utilizar as vagas reservadas deve ser nomeado pela AC.

Apontamos, a partir deste artigo, um horizonte de pesquisas que podem ser realizadas para a ampliação da política de cotas raciais aplicadas ao universo do CPII, a saber: levantamento e análise do perfil étnico-racial do corpo docente, de modo a contabilizar quantos professores negros tomaram posse e entraram em efetivo exercício em cada um dos diversos departamentos pedagógicos do CPII; investigação a respeito da implementação da política de cotas raciais para os demais cargos do colégio, como, por exemplo, para Técnico Administrativo em Educação (TAE); levantamento e problematização sobre a quantidade de servidores negros ocupando cargos em comissão; e discussão sobre a não implementação de uma política de cotas raciais nos processos seletivos para professor substituto da instituição.

O desenvolvimento efetivo de políticas antirracistas e o compromisso com a superação do racismo institucional precisam ser pauta constante nas reuniões colegiadas do CPII e de outras instituições de ensino. O conjunto de políticas de ações afirmativas que se desenvolveu nas últimas duas décadas no país constitui um arsenal antirracista que é capaz de abrir brechas ou fendas nas estruturas colonizadas das escolas de educação básica e Universidades (Walsh 2016WALSH, Catherine. 2016. “Notas pedagógicas a partir das brechas decoloniais”. In: Vera Candau (org.), Interculturalizar, descolonizar, democratizar: uma educação outra? Rio de Janeiro: 7Letras.). O racismo estrutural, que age cotidianamente na tentativa de fechar essas brechas, encontra os movimentos negros organizados nas instituições, movimentos estes que atuam incessantemente para que essas brechas decoloniais se tornem fissuras cada vez maiores, até que se estabeleça, no interior das organizações públicas, uma efetiva porta de entrada capaz de viabilizar uma justa representatividade de pessoas negras na produção do conhecimento.

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  • 1
    Plano Reestruturação e Expansão das Universidade, instituído em 2007 pelo governo federal.
  • 2
    Nome fictício. Ressaltamos que todos os nomes indicados no corpo do texto são fictícios, de modo a preservar a identidade das pessoas com as quais interagimos nos diálogos que estabelecemos no CPII.
  • 3
    De acordo com a Lei nº 12.990/2014, “na hipótese de quantitativo fracionado para o número de vagas reservadas a candidatos negros, esse será aumentado para o primeiro número inteiro subsequente, em caso de fração igual ou maior que 0,5 (cinco décimos), ou diminuído para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5 (cinco décimos)” (Brasil 2014).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2022
  • Aceito
    05 Out 2022
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