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Passagem ao ato na paranoia: a inimputabilidade no encontro da psicanálise com o direito penal

Dercirier, Freire. Paranoia e crime: do Direito à psicanálise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. 165

Paranoia e crime: do Direito à Psicanálise surge como uma obra que propõe uma nova abordagem dos crimes cometidos por paranoicos. O Direito Penal trata os psicóticos que cometem crimes como inimputáveis, mas para a psicanálise todo agir quer dizer algo e, por isso, todo sujeito, independente de sua estrutura clínica, é responsável por seus atos. Por isso, ainda que o paranoico não entenda o caráter ilícito do seu ato, ele tem alguma coisa a dizer frente ao seu ato criminoso. A análise psicanalítica do delírio paranoico, que desemboca em um ato criminoso almeja trazer à cena a pergunta: o que esse ato representa para o paranoico?

Dercirier, psicanalista e advogada criminalista, elabora essa obra a partir de sua prática como consultora de laudos psiquiátricos forenses, trabalho este atravessado por muitos casos de crimes em decorrência dos delírios cometidos por paranoicos. Na interseção entre Psicanálise e Direito, esse livro questiona a denominação “doentes mentais” que rotula como inimputáveis todos os psicóticos que cometem crimes.

No campo da saúde mental, a categoria paranoia provém da psiquiatria como sinônimo de loucura, mas ao longo dos tempos esse quadro nosológico se diferenciou. Entretanto, no Direito Penal o autor de conduta delituosa é considerado inimputável por ser incapaz de entender o caráter ilícito na ocasião do seu ato. A psicanálise considera todo sujeito responsável por aquilo que faz, logo não há justificativa para que um sujeito paranoico seja excluído dos seus direitos e deveres civis, quando uma medida de segurança o direciona para um manicômio judiciário.

A Lei Penal brasileira não define o que é imputabilidade, mas nomeia as suas exceções, ou seja, apenas os inimputáveis estão descritos no código penal. No referido livro, a autora convoca alguns conceitos psicanalíticos: o delírio como tentativa de cura, a psicose como estrutura clínica, a foraclusão do Nome-do-Pai no campo do Outro e a passagem ao ato na psicose, no intuito de defender a ideia de que o autor do delito seja julgado pelo seu ato. Esses conceitos são convocados para afirmar que a inimputabilidade é uma atribuição e não um estado do sujeito.

No primeiro capítulo, a autora produz uma explanação de diversas teorias da ação, que relacionam culpabilidade, tipificação e antijuricidade. Além desses três, em algumas teorias da ação aparecem questões como reprovabilidade e risco. Tudo isso reflete a diversidade que as práticas jurídicas e as decisões judiciais apontam. O Código Penal Brasileiro vigente — datado de 1940 e revisado em 1984 — é influenciado pela lógica positivista e adota a teoria finalista da ação para a qual o crime é uma conduta típica, antijurídica e culpável. Há uma multiplicidade teórica que sustenta as divergências doutrinárias do Direito. No entanto, essa diversidade é suspensa, quando o resultado de uma avaliação pericial psiquiátrica atribui ao autor da conduta delituosa o rótulo de “doente mental”, incorrendo, quase automaticamente, na aplicação de medida de segurança em decorrência da inimputabilidade.

No segundo capítulo, a autora percorre as teorias de Freud e Lacan para explicar a psicose como estrutura clínica. Da Verwerfung freudiana à foraclusão lacaniana do Nome-do-Pai, o capítulo tematiza as possíveis saídas edípicas no processo de formação do sujeito, evidenciando o que é e como se constitui a psicose para a psicanálise.

O terceiro capítulo trata especificamente da paranoia como tipo clínico da psicose. Após um breve histórico da apropriação psicanalítica do termo, é apresentada a causalidade psíquica como fator etiológico da paranoia e suas principais características: a sistematização do delírio, a fixação narcísica e a preservação intelectual. No texto freudiano conhecido como caso Schreber, são apresentadas três formas de delírio: erotômano, ciúmes e de perseguição. O fator comum que se sobressai é a posição ocupada pelo paranoico que, submetido ao gozo do Outro, ocupa o lugar de objeto do perseguidor, da traição, do amor do Outro. Como podemos notar, o delírio paranoico localiza no outro, a figura do Outro invasor.

O quarto capítulo vem mostrar que essa posição de objeto leva o paranoico a uma passagem ao ato. A passagem ao ato na psicose aparece no lugar da ausência do limite fálico e visa regular o gozo do Outro. Esta tentativa de cura almeja estabelecer uma barra no gozo do agente perseguidor do paranoico e pode coincidir com um ato delituoso. O caso Aimée, estudado por Lacan, é um exemplo de transbordamento da ação num ato violento, em que a passagem ao ato decorre do delírio paranoico.

O livro explica em uma linguagem concisa e direta cada conceito introduzido, sendo acessível a juristas, psicanalistas, psiquiatras, psicólogos e outros que se interessem por essas áreas. A potência desse livro está na desconstrução do vínculo necessário entre periculosidade e psicose, um discurso voltado ao estudo da lógica da loucura e suas motivações sobre as ações desses sujeitos. A interrogação dos processos jurídicos, que desembocam na inimputabilidade, também nos remete a outras discussões contemporâneas como o lugar do sujeito adolescente na discussão sobre a redução da maioridade penal.

Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2016
  • Aceito
    4 Nov 2016
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