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A superação à família monogâmica é pela coletividade! Parentalidades não-monogâmicas de pessoas sexo-gênero-diversas

Resumo

Pessoas sexo-gênero-diversas e que são não-monogâmicas tensionam a cisnormatividade e a mononormatividade. Em termos científicos, há uma nebulosidade quanto aos arranjos parenterais dessas pessoas. Assim, esta etnografia objetiva compreender a percepção de pessoas sexo-gênero-diversas não-monogâmicas sobre parentalidades. O referencial teórico utilizado partiu dos estudos não-monogâmicos, amor e sexualidade das Ciências Sociais e Humanas em Saúde da Saúde Coletiva, e o metodológico da etnografia digital. O trabalho de campo ocorreu entre 2021 e 2022, em um grupo on-line do WhatsApp. A observação participante foi empregada no grupo e foram realizadas entrevistas on-line semiestruturadas. Emergiram duas categorias: a) Os nós das parentalidades não-monogâmicas e b) As parentalidades coletivas. Na primeira, se explora a importância do vínculo nas redes afetivas e expõe as barreiras desses arranjos familiares. Já na segunda, se descreve a importância do viver em comunidade, bem como o resgate à ancestralidade indígena e negra. O resgate à ancestralidade e às formas de se viver em comunidade ganham relevo à medida que se compreende a importância que estes possuem na vivência das parentalidades de pessoas sexo-gênero-diversas e que são não-monogâmicas.

Palavras-chave:
Não-monogamia; Afetividades; Pessoas sexo-gênero-diversas; Parentalidades

Abstract

Sex-gender-diverse and non-monogamous strain cisnormativity and mononormativity. In scientific terms, the parenting arrangements of these people are uncertain. Thus, this ethnography aims to understand the perception of non-monogamous sex-gender-diverse people about parenting. The theoretical framework adopted is derived from non-monogamous studies, love and sexuality from the Social and Human Sciences in Public Health and the digital ethnography methodological framework. Fieldwork occurred from 2021 to 2022 through an online WhatsApp group. Participant observation was employed in the group, and semi-structured online interviews were held. Two categories emerged: a) The non-monogamous parenting nodes and b) Collective parenting. In the first, the importance of bonds in affective networks is explored, and the barriers to these family arrangements are exposed. The second describes the importance of living in a community, and Indigenous and Black ancestry is revived. The revived ancestry and ways of living in a community gain importance as we understand their relevance in the experience of parenting for sex-gender-diverse people who are non-monogamous.

Key words:
Non-monogamy; Affections; Sex-gender-diverse people; Parenting

Uma breve introdução ao objeto de estudo

A concepção de família passou por mudanças decorrentes da modernidade e do capitalismo. Ainda que as “novas” formulações de família tenham conquistados outros “tons” nas últimas décadas abarcando arranjos familiares de pessoas que tensionam a cis-heteronormatividade, quais famílias a sociedade concebe como “legítima”? Tal questionamento mais confirma do que põe em dúvida as parentalidades que são naturalizadas: monogâmicas, cisnormativas e heterossexuais.

É no centro dessa questão e em diálogo com a Saúde Coletiva que esse texto se situa, com a ousada pretensão de alargar a compreensão e a visibilidade de outros arranjos parenterais que determinados grupos sociais constroem para si. Grupos que são históricos e socialmente estigmatizados, invisibilizados, negados o direito à cidadania e que reivindicam o reconhecimento da construção de famílias fora da mononormatividade - onde o regime familiar, afetivo e sexual é monogâmico, centrado no casal heterossexual e no amor romântico11 Bornia-Junior DL. Amar é verbo, não pronome possessivo: etnografia das relações não-monogâmicas no Sul do Brasil [tese]. Rio Grande do Sul: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2018. - e da cis-heterossexualidade, notoriamente, as pessoas confrontativas22 Vassalo B. O desafio poliamoroso: por uma nova política dos afetos. São Paulo: Elefante; 2022.,33 Vassalo B. Pensamiento monógamo, terror poliamoroso. 1ª ed. México: Hacerse de Palabras; 2020. ou sexo-gênero-diversa.

Dessa forma, a Não-monogamia ganha dimensão e importância singular nesse contexto, visto que além de rejeitar as formulações naturalizadas de relacionamentos e de problematizar a monogamia, potencializa práticas de emancipação, autonomia, autoconhecimento, igualdade e fissura de estereótipos, se posicionando enquanto um projeto político que reconhece as estruturas que operam de forma insidiosa nas relações sociais44 Lima Jr NS, Miranda R. Não-Monogamia Política: por um projeto coletivo e emancipatório. In: Dermarch Villalón CE, Silva VF, Verlard M, organizadores. Em movimento: memórias, experiências e performances coletivas. São Paulo: Edições EACH; 2022.

5 Santana ADS. Bixa ex-monogâmica. Independente; 2021.
-66 Núñez G. O sistema de monoculturas da sexualidade, da fé e dos afetos: reflorestando imaginários. In: Ambra P, organizador. As subversões do erótico. São Paulo: Cult Editora; 2022. p. 87-97.. A estes sujeitos, a Não-monogamia política44 Lima Jr NS, Miranda R. Não-Monogamia Política: por um projeto coletivo e emancipatório. In: Dermarch Villalón CE, Silva VF, Verlard M, organizadores. Em movimento: memórias, experiências e performances coletivas. São Paulo: Edições EACH; 2022.,55 Santana ADS. Bixa ex-monogâmica. Independente; 2021. é instituída para designá-los, visto que há uma construção da identidade política pautada em um projeto contra-hegemônico de não-monogamia44 Lima Jr NS, Miranda R. Não-Monogamia Política: por um projeto coletivo e emancipatório. In: Dermarch Villalón CE, Silva VF, Verlard M, organizadores. Em movimento: memórias, experiências e performances coletivas. São Paulo: Edições EACH; 2022.,66 Núñez G. O sistema de monoculturas da sexualidade, da fé e dos afetos: reflorestando imaginários. In: Ambra P, organizador. As subversões do erótico. São Paulo: Cult Editora; 2022. p. 87-97..

Pensar a Não-monogamia enquanto projeto político que se propõe a romper barreiras colonialistas de afetos, vem se mostrando como um potente eixo reorganizador da ação social dos sujeitos e dos seus modos de vida, ainda que o seu emprego como uma identidade política seja recente55 Santana ADS. Bixa ex-monogâmica. Independente; 2021.,77 Lima Jr NS. Os porquês da Não monogamia Política [Internet]. NM em Foco; 2023 [acessado 2023 jun 15]. Disponível em: https://naomonoemfoco.com.br/os-porques-da-nao-monogamia-politica/.
https://naomonoemfoco.com.br/os-porques-...
,88 Pilão AC. Normas em movimento: monogamia e poliamor no contexto jurídico brasileiro. UFJF 2021; 16(3):103-115.. Ganha relevo a intersecção entre marcadores- como a raça, gênero, orientação sexual e deficiência - e como estes influenciam mutualmente a forma como a não-monogamia é elaborada, praticada e defendida88 Pilão AC. Normas em movimento: monogamia e poliamor no contexto jurídico brasileiro. UFJF 2021; 16(3):103-115..

No campo da Saúde Coletiva, as ações, práticas, discursos de profissionais, serviços e políticas públicas de saúde que sustentam e reproduzem a mononormatividade99 Santana ADS. Família e Saúde para quem? breves reflexões de um profissional da saúde não-mono (político). In: Miranda N, Newton Jr, organizadores. Nas Trincheiras por Novos Mundos: Caminhos para a Não Monogamia Política. São Paulo: Grandir Lab; 2023., põem em foco as lacunas quanto à realidade de pessoas Não-monogâmicas políticas sobre seus arranjos parenterais e as múltiplas complexidades que esses arranjos precisam lidar, especialmente quanto ao acesso aos equipamentos de saúde, e às Políticas de Saúde. As próprias discussões dos arranjos parenterais não-monogâmicos de pessoas sexo-gênero-diversas são enigmáticas e nebulosas, quando não embrionárias nesse campo do conhecimento científico. Além da invisibilidade, há uma tendência em estigmatizá-las, não as reconhecendo como legítimas.

Considerando esse cenário, buscamos não essencializar ou homogeneizar as experiências das pessoas quanto às suas perspectivas e visões sobre os arranjos parenterais que tensionam a mononormatividade, mas destacar o quanto o contexto, e a produção de outras narrativas por sujeitos confrontativos22 Vassalo B. O desafio poliamoroso: por uma nova política dos afetos. São Paulo: Elefante; 2022.,33 Vassalo B. Pensamiento monógamo, terror poliamoroso. 1ª ed. México: Hacerse de Palabras; 2020. são potentes para alargar e fissurar perspectivas “dadas”, vislumbrando, enfim, outros caminhos para serem trilhados, em especial pela Saúde Coletiva. Portanto, é com esse pano de fundo que objetivamos compreender a percepção de pessoas sexo-gênero-diversas não-monogâmicas sobre parentalidades.

O texto está estruturado em três seções, além desta breve contextualização; a) as escolhas do percurso metodológico e o próprio trabalho de campo, onde são sinalizados as técnicas e os posicionamentos que realizamos no e durante o trabalho de campo; b) as duas categorias empíricas que emergiram do material analisado; e c) algumas considerações finais à imaginação radical das parentalidades de pessoas sexo-gênero-diversas não-monogâmicas.

Navegando no grupo: o percurso metodológico e o trabalho de campo

O referencial teórico-metodológico utilizado neste trabalho foi o da etnografia digital1010 Hine C. A internet 3E: uma internet incorporada, corporificada e cotidiana. Cad Campo 2020; 29(2):1-42.. Assim, considerando que o campo empírico ganha dimensão importante na Antropologia, visto que nele é considerado muito mais as relações estabelecidas entre os pesquisadores e interlocutores, do que a dimensão física ou material onde vai ser realizada a investigação, optamos por ter como lócus de produção dos dados um grupo on-line no WhatsApp. A escolha do grupo se deu pelo conhecimento dos pesquisadores do projeto “NM em Foco”, construído por pessoas negras, neurodivergentes e confrontativas. O NM em Foco gerencia, atualmente, três grupos no WhatsApp com fins de pautar a discussão sobre não-monogamia fundamentada em um pensamento político e interseccional. O principal fio condutor dos grupos se situa nas discussões sobre a estrutura de dominação monogâmica que modela a forma como as pessoas se relacionam na sociedade. A imaginação de alternativas para a construção de redes afetivas - amizades, parentalidades, entre outros - é o eixo essencial do grupo/projeto. Além disso, utilizamos a literatura sobre não-monogamias, gênero, sexualidade e amor elaboradas nos campos da Saúde Coletiva e Ciências Sociais e Humanas em Saúde, como referenciais teóricos.

A pesquisa de campo ocorreu entre os meses de setembro de 2021 a setembro de 2022 e foi conduzida em um dos grupos do NM em Foco, o “NM em foco - Debates NM 1”, que reúne pessoas neurodivergentes e neurotípicas, de várias regiões do país, de diversas idades, raça/cor, classe, orientações sexuais e identidades de gênero. Destacamos que participavam do grupo, naquele momento, 256 membros. Capacidade máxima permitida pelo aplicativo à época.

Após a construção do projeto, envio para o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco, e aprovação sob o parecer nº 5.246.355, nos termos da Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, os pesquisadores entraram em contato com os administradores do grupo solicitando a permissão para a condução da pesquisa naquele ambiente. Posteriormente à apresentação da pesquisa aos administradores, e obtermos suas respectivas aprovações para iniciar o estudo, nos apresentamos ao grupo.

A entrada no grupo se deu através da aproximação [dos pesquisadores] com as outras redes sociais do projeto NM em Foco - como o site e o perfil oficial no Instagram. Em outubro de 2021, fomos oficialmente apresentados como novos integrantes e pesquisadores. Naquele período, cerca de 100 participantes eram ativos diariamente. Ao serem apresentados à pesquisa, alguns membros demonstraram interesse em participar e fizeram comentários propositivos sobre a iniciativa. Houve um certo alívio por nossa parte neste primeiro momento pós apresentação, pois havia o receio de que alguns membros não se sentissem confortáveis por estarem inseridos num contexto de pesquisa tendo seus comentários e discussões observadas e analisadas. Optamos, inicialmente, por manter uma frequência de participação diária, intercalando os turnos - objetivando uma menor quantidade de material acumulado. Após três meses, decidimos por mudar a frequência para, pelo menos, três turnos na semana.

Deixamos sublinhado para os membros que a pesquisa seguia os preceitos éticos, com respectivas aprovações em Comitês de Ética. Aqueles que não se sentissem confortáveis ou não estivessem interessados na participação da pesquisa, que sinalizassem no nosso chat privado para adotarmos os devidos procedimentos de exclusão das informações da pessoa na investigação. Para garantir que todas as pessoas tivessem ciência da pesquisa em curso, fomos autorizados pelos administradores a colocar na descrição do grupo as informações da pesquisa e o contato dos pesquisadores para eventuais dúvidas.

É importante mencionar que a posição que tomamos no trabalho de campo para com os membros foi menos de detentores de saberes e mais de aprendizes, visto que objetivávamos assimetrizar as hierarquias naquele ambiente. Compreendemos e concordamos com o que Tim Ingold1111 Ingold T. Antropologia: para que serve? Petrópolis: Editora Vozes; 2019. descreveu sobre aprender com as experiências de vida das pessoas, visto que mais do que observar as discussões com os membros no grupo, escutávamos e participávamos do que eles diziam e falavam. Em grandes linhas, aprendemos “com eles, ao invés de fazer estudo sobre eles”1111 Ingold T. Antropologia: para que serve? Petrópolis: Editora Vozes; 2019.(p.12).

Os primeiros meses foram interessantes para adentrarmos na realidade dos interlocutores e nos relacionarmos com eles compreendendo a perspectiva da construção coletiva que a Não-monogamia Política acredita e defende. Assim, as relações construídas naquele ambiente foram valorizadas, tomando a imersão como necessidade no trabalho de campo1212 Strathern M. O efeito etnográfico. São Paulo: UBU editora; 2017.. Fomos aos poucos nos tornando familiares pelos participantes do e no grupo e tornou-se comum nos posicionarmos não só naquele ambiente, como em outros que envolviam as discussões sobre Não-monogamia política e que envolviam determinadas pessoas do grupo.

Igualmente, nos engajamos em debates que extrapolavam os limites do grupo, como as lives que o NM em Foco proporcionava no Instagram, bem como nas postagens que o projeto publicava semanalmente - as chamadas “Pílulas não-mono” em que abordavam temáticas que estavam em alta nas redes sociais e possuía alguma relação com a não-monogamia. Além disso, as relações que eram estabelecidas com os membros no grupo ultrapassaram aquele ambiente, tornando-se comum, depois de alguns meses, convites para participação em festas que aconteciam na cidade de São Paulo, como a Stereo. Essas festas eram realizadas e organizadas por membros do grupo e objetivavam celebrar as redes afetivas não-monogâmicas.

Durante o trabalho de campo, seguimos o que a Marilyn Strathern1212 Strathern M. O efeito etnográfico. São Paulo: UBU editora; 2017. discute sobre o efeito etnográfico e buscamos as pequenas revelações no campo. Identificamos particularidades nos debates e que nos convidavam à reflexão, especialmente porque havia pontos, ou melhor, conexões a serem tecidas entre os discursos e às práticas das pessoas. Para compreendê-las de forma amiúda, lançamos mão das entrevistas individuais. O objetivo das entrevistas foi de aprofundar as percepções sobre redes de afeto, parentalidades, e as próprias visões e perspectivas a respeito da Não-monogamia política dos interlocutores.

Durante o primeiro semestre do trabalho de campo ficamos atentos aos membros mais ativos que interagiam diariamente. Realizamos uma sistematização dos dados a partir do diário de campo - horários que os membros mais estavam ativos, quantidade de vezes que aquele membro participou das discussões nas últimas semanas, frequência de interação etc., para que pudéssemos eleger potenciais interlocutores para o momento da entrevista. Posteriormente, elencamos 10 membros e potenciais interlocutores para realizarmos convites e consequentemente as entrevistas individuais e em profundidade.

O convite para participar da pesquisa foi realizado no chat privado de cada interlocutor, e eram explicitados os motivos e interesses que norteavam o convite, bem como o porquê de termos escolhido aquele interlocutor, o que caracterizou por ser uma amostra não-probabilística e por conveniência. Ainda nesse sentido, elegemos critérios de inclusão que balizavam a participação dos interlocutores no estudo, notoriamente, pessoas sexo-gênero-diversa e membras do grupo em questão, além de serem não-monogâmicas, com idade superior a 18 anos e que aceitassem participar, de forma voluntária, da pesquisa mediante aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Duas pessoas negaram participar das entrevistas por não se sentirem confortáveis e preparadas para falar sobre um assunto tão complexo como a Não-monogamia. Quatro interlocutores tiverem indisponibilidade para participar do estudo devido a conflito de agenda. Os demais convites (quatro) foram aceitos e as entrevistas foram realizadas por meio de chamadas em vídeo a partir da plataforma do Google Meet, agendadas de acordo com a disponibilidade dos/as interlocutores/as. Utilizamos um questionário aberto que direcionava - e não limitava - as perguntas. Os principais temas explorados no questionário se concentravam na ideia de família, da Não-monogamia política, parentalidades não-monogâmicas e as dificuldades em vivenciá-la. Nesse sentido, participaram das entrevistas quatro pessoas. As entrevistas tiveram duração média de 90 minutos e foram gravadas (em áudio) para posterior transcrição e análise.

O conteúdo dos chats públicos presentes no grupo e as anotações realizadas no diário de campo foram considerados com material empírico. Quanto a esses materiais, acreditamos que tal escolha metodológica dialogue com aquilo que a Fravet-Saada1212 Strathern M. O efeito etnográfico. São Paulo: UBU editora; 2017. conjecture sobre conceder estatuto epistemológico às situações de comunicação involuntária e não intencional quando estamos realizando interlocução no trabalho de campo1313 Fravet-Saada J. "Ser afetado," de Jeanne Favret-Saada. Trad.: Paula Siqueira. Cad Campo 2005; 13:155-161.(p.160). Esse movimento nos deu, em termos analíticos, algumas pistas quanto ao fazer etnográfico. Ademais, para fins didáticos, optamos em utilizar o termo “interlocutores” para nos referirmos às pessoas que entrevistamos e realizamos engajamentos no grupo on-line; e “participantes” ou “membros” às pessoas que apenas realizamos engajamentos no grupo durante o trabalho de campo.

Quanto ao material empírico, este foi analisado a partir da análise temática de Flick1414 Flick U. Introdução à metodologia da pesquisa: um guia para iniciantes. Porto Alegre: Penso; 2013., onde os dados foram organizados, sistematizados e codificados em categorias, e interpretados a partir da literatura que constituiu o referencial teórico. A partir da triangulação dos dados empíricos emergiram duas categorias temáticas. A primeira, “Os nós das parentalidades não-monogâmicas”, destaca como a construção e o vínculo das redes afetivas perpassa por espaços de sociabilidade importantes, tendo como pano de fundo o resgate à ancestralidade. Já a segunda, “As parentalidades coletivas” caracteriza como as múltiplas redes de afetos, a coletividade e a parentalidade comunitária são formas genuínas para se refletir sobre os arranjos de pessoas sexo-gênero-diversas não-monogâmicas. Destacamos que os nomes utilizados neste texto foram modificados para não expor as identidades dos membros/interlocutores. Por fim, os termos estrangeiros e as categorias êmicas estão sinalizadas em itálico e as aspas duplas para sinalizar trechos retirados das entrevistas e/ou chats.

Os nós das parentalidades não-monogâmicas

Naquela quarta-feira de seis de outubro de 2021, após a nossa chegada e apresentação ao grupo, fomos recebidos imediatamente pelos membros com comentários acolhedores, onde muitos se colocavam à disposição para ajudar no que fosse necessário durante o percurso da pesquisa. Foi um momento interessante pois, enquanto explicávamos a investigação e os seus propósitos, Fernanda (mulher cisgênero, bissexual e negra) exclamou “agora sim, vamos ter uma pesquisa sobre a Não-monogamia política!” Complementado pela fala de João (homem cisgênero, gay e branco) “super necessária a pesquisa, gente!”.

Ao passo que agradecíamos a receptividade ali, as discussões, e as inúmeras conversas que ultrapassavam o objetivo central do grupo, foram ganhando espaço e nossa presença foi, pouco a pouco, borrada e esquecida por outros assuntos convenientes naquele ambiente. Ao longo do dia não fomos acionados, ou chamados no nosso chat privado para esclarecimento ou retirada de dúvidas quanto à pesquisa - ainda que tivéssemos deixado explícito os nossos contatos para dúvidas. Éramos mais duas pessoas que, apesar de estarem realizando uma investigação naquele ambiente, ainda assim, pareciam invisíveis à imensidão de mensagens e relevações pessoais dos membros. Nos valemos dessa situação para observamos não só os principais temas que os mobilizavam a se engajarem nas discussões, como também identificar as principais pessoas que interagiam ali.

Quinze de novembro de 2021, já passava das 23h e ainda havia uma certa movimentação de mensagens no grupo. O motivo foi uma postagem realizada por algumas pessoas que organizavam a festa Stereo e que faziam parte do grupo. Não familiarizados com o que seria a Stereo, questionamos como funcionava e qual era o propósito do evento. Joana (mulher negra, cisgênero e bissexual) prontamente contou que era uma festa para pessoas não-monogâmicas, em que era proporcionado um ambiente seguro para esse público vivenciar seus afetos e afetividades. Joana comentou que as edições passadas tinham sido fenomenais já que proporcionava com que as pessoas que se comunicavam e eram amigas pelas redes sociais há anos pudessem, enfim, se conhecer ou reencontrar pessoalmente. Devido à pandemia de COVID-19, a última edição que já estava com data marcada, teve que ser suspensa e, desde então, pairava no ar um desejo coletivo de retomada da festa. A Stereo, ao que nos parecia, proporcionava um reencontro para celebrar a autonomia, as redes de amizades e de afetos de pessoas não-monogâmicas. Era, enfim, “um ambiente de pertencimento e celebração” como disse Lily (mulher cisgênero, lésbica e branca) em resposta ao nosso questionamento.

Foi assim que, à medida que participávamos dessas experiências de reafirmação de espaços para a celebração da autonomia e das redes afetivas, identificamos que havia uma conexão importante que constituía as relações dos membros e que atuava como pano de fundo nos engajamentos das pessoas não-monogâmicas políticas: as múltiplas e complexas redes de afeto. A própria Stereo nos parecia que atuava como um importante espaço para a (re)construção e (re)conexão dessas redes afetivas. Extrapolando esses sentidos, compreendemos que a discussão sobre Não-monogamia política e parentalidades não-monogâmicas só poderiam fazer sentido quando situadas dentro da discussão sobre redes de afetos, expondo as densidades e complexidades no cotidiano daquelas pessoas.

A rede afetiva constituída a partir desses engajamentos era a base para o intercâmbio de experiências entre os interlocutores sobre os sabores, dissabores e agruras que se colocam às múltiplas vivências da Não-monogamia política. Nos dissabores, ganhava relevo as dificuldades, inseguranças e medos quanto a tomar uma perspectiva mais radical na gestão dos afetos e na forma como pensavam a praticidade da Não-monogamia política no dia a dia, em especial no acesso à jurisdição das relações e nos serviços de saúde. Quanto aos sabores, além dos pontos como preservação da autonomia, do autoconhecimento e a valorização da individualidade - no sentido de tomada de decisões, escolhas e agências múltiplas da vida - destacavam-se as expectativas e os desejos sobre as parentalidades.

Sete de janeiro de 2022. Eram 10h da manhã quando Lucas (homem cisgênero, gay e negro) perguntou se poderia compartilhar suas reflexões quanto às parentalidades não-monogâmicas. Luana e Felipe responderam que sim. Lucas, enfim, questionou “há parentalidades não-monogâmicas?” E continuou descrevendo que há algum tempo vinha percebendo a ausência de pais e mães nas discussões sobre Não-monogamia Política ali no grupo. Continuou falando que enquanto homem cisgênero e gay, deseja constituir família, mas não sabe exatamente como dentro de um contexto não-monogâmico e que gostaria de “sair da caixinha e não ter uma família nos moldes tradicionais do casamento”. Enquanto observávamos a exposição do seu ponto de vista, Caio, outro homem cisgênero, gay e negro, respondeu que sim, que existem pais e mães não-monogâmicos no grupo e que essas pessoas estão construindo uma outra forma de pensar a família, em um sentido mais amplo, muito mais próximo da ideia de coletividades e sem o estabelecimento de hierarquias sociais ou de gênero. Em seguida, começou a gravar um áudio, enquanto as demais pessoas seguiram curtindo o seu comentário.

Inúmeras conversas como a descrita acima incitavam reflexões sobre as parentalidades não-monogâmicas, e em especial, de pessoas sexo-gênero-diversas. É verdade que no grupo havia inúmeros membros de várias regiões do país, assim como também é factível afirmar que ali naquele espaço não havia apenas pessoas confrontativas. No entanto, à medida que as discussões se concentravam nas perspectivas a respeito dos arranjos familiares, era com esse público que os tensionamentos se mostravam mais sublinhados, justamente por rejeitarem não só a mononormatividade, mas também a própria cis-heterossexualidade.

Foram nesses momentos em que as discussões ficavam mais acirradas e que não só os membros, mas também os/a interlocutores/a, colocavam seus pontos de vista à prova dos integrantes do grupo, que enxergávamos as possibilidades e alternativas à rejeição da família nuclear, bem como a potência das redes afetivas. Parecia que o caminho e as alternativas à família monogâmica estavam sendo gestadas à medida que os membros estavam compartilhando - ou construindo - suas escolhas. Diferente da monogamia, a Não-monogamia política e os arranjos parenterais não eram dados, ou tidos como estáticos. Havia caminhos a serem pavimentados e que demandavam não só o diálogo, como também uma série de tentativas e erros. Uma verdadeira costura de fios que estavam sendo produzidas nas e pelas redes afetivas dos interlocutores.

Igualmente, convizinhava a perspectiva de que os interlocutores desafiavam a estrutura que privilegia a família nuclear e que coloca os corpos que contrariam a hegemonia de raça, gênero e sexualidade nas fronteiras, como demonstra Vassalo22 Vassalo B. O desafio poliamoroso: por uma nova política dos afetos. São Paulo: Elefante; 2022.. Não à toa, questões que articulavam a constituição desses arranjos familiares ganhava visibilidade quando a interseccionalidade emergia nas discussões, especialmente quando os contextos de pessoas sexo-gênero-diversas racializadas eram acionados; ou ainda, quando os contextos mobilizados se situavam dentro da saúde, e da institucionalização do cuidado à saúde desses arranjos familiares. Havia, de forma implícita e explícita, um receio de vivenciar violências quando tais arranjos parenterais se colocassem à vista na assistência à saúde, em especial, na Estratégia de Saúde da Família.

Meados de maio de 2022. Quase 20h da noite e novamente o grupo se movimenta a partir da discussão de parentalidades não-monogâmicas. Naquele dia, novos membros foram adicionados e foi preciso anunciar, mais uma vez, que havia uma pesquisa em curso naquele espaço. Enquanto os novos membros se apresentavam, Stefani, uma travesti negra e pansexual que já acompanhava há algum tempo as discussões sobre Não-monogamia Política pelas demais redes sociais do NM em Foco, colocou em evidência questões que acreditava ser importante quanto à discussão sobre amor e parentalidades e que estava acontecendo antes da entrada dos novos membros: as afetividades para pessoas trans.

Em seu caso, Stefani ressaltou que vinha passando por processos difíceis quanto aos relacionamentos, e que essas experiências eram precárias, não sendo possível para si pressagiar os arranjos familiares que, em muitos momentos, estavam presentes nessas discussões. Finalizou ressaltando o quão importante e necessárias são as redes de afetividades em sua vida, em especial trans, mas que não poderia deixar de ser crítica a esse ponto de vista que acabará de explanar. Completou apontando questões que problematizavam a própria noção de parentalidades e afetividades, que de forma geral, está centrada em perspectivas cisgêneras e, por vezes, brancas. A produção de saúde foi mencionada, realçando duas esferas em seu contexto: a) a saúde mental que muitas pessoas trans precisam lidar quando rompem com a monogamia; b) a já conhecida negação de direitos e acesso à saúde que pessoas transexuais vivenciam cotidianamente. Dali, outras pessoas corroboraram com o ponto de vista da Stefani, em especial pessoas não-binárias e ressaltaram a importância de todos ali estarem atentos aos discursos que invisibilizam e ignoram a realidade de pessoas trans não só na produção de afetividades, quanto de cuidado e de parentalidades.

As parentalidades coletivas

Embora o conceito de família nuclear fosse rejeitado tanto pelos membros quanto pelos interlocutores, observamos que ainda não havia um consenso sobre qual perspectiva de família pessoas não-monogâmicas políticas conceberiam para si. Esse foi um dos pontos que ganhou densidade enquanto avançávamos nos engajamentos que realizávamos no grupo. Foi interessante observar o quanto os interlocutores reforçavam não saber como substituir o modelo hegemônico de relacionamentos no dia a dia, como informou o Emanuel (pessoa não-binária, 26 anos, branca e bissexual) enquanto conversávamos sobre uma live promovida pelo NM em Foco em que tinha como temática afetividades e parentalidades de pessoas não-monogâmicas “não sei exatamente como seria [o modelo familiar], mas acredito que o atual modelo que está aí não seja o melhor para a gente que segue e acredita na Não-monogamia política”.

Quinze de agosto de 2022. Já era mais de 17h da tarde quando Marcos (27 anos, homem cisgênero, não-heterossexual e negro) compartilhou uma postagem sobre parentalidades não-monogâmicas. A postagem fazia parte do “Pílulas não-mono” que tinha como objetivo trazer pequenas problematizações do dia a dia sobre a não-monogamia política. O post questionava o quanto as parentalidades não-monogâmicas ainda precisam de visibilidade, a necessidade de discussão sobre os papeis de gênero e sociais que mães e pais não-monogâmicos enfrentam cotidianamente e a sua influência na violência doméstica. A postagem finalizava aventando que há outros caminhos para serem trilhados e que precisam ser nomeados a partir das experiências dessas pessoas, afirmando que a saída para superação da família monogâmica passa, necessariamente, pelo resgate da ancestralidade indígena e negra.

Foi a partir de postagens como essa que percebemos que as problematizações e reflexões sobre as parentalidades não-monogâmicas colocavam a coletividade, o resgate da ancestralidade, as práticas dos povos originários e as redes múltiplas de afetos como possibilidades e pontos fundamentais nos arranjos familiares norteados a partir da Não-monogâmia política. Em outra ocasião, questionamos como Marcos visualizava esse assunto no seu dia a dia. “Acredito na construção da coletividade e na criação de redes de apoio como possibilidades para a família não-monogâmica. Eu acredito que pensar parentalidades é sobre conseguir trazer para mais próximo aquelas pessoas que a gente já tem no nosso convívio. A tia que ajuda, o primo que às vezes toma conta da criança, a vizinha que auxilia com alguma urgência, a igreja que te dá um suporte emocional e até mesmo acolhimento. É trazer toda essa rede para mais perto a ponto de essas pessoas se sentirem participantes e responsáveis pela criança de filhos. Então, eu acho que a saída, a superação à família monogâmica é pela coletividade, sabe? Por essas redes de afetos, resgatando a ancestralidade”.

Ao nos depararmos com essa afirmação, compreendemos que para Marcos as redes, os laços afetivos e a troca baseada em afinidades mútuas - sem, necessariamente, ter algum grau de parentesco biológico -, estão muito mais próximas dos arranjos que devem ser alcançados para se viver quando se reflete parentalidades. Esse pensamento vai de encontro com o que bell hooks1515 hooks b. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante; 2021. descreveu sobre as potencialidades das comunidades, defendendo-as enquanto movedoras e alimentadoras de mundos1515 hooks b. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante; 2021.. Pensar em comunidades para a constituição desses arranjos familiares, indica a necessidade de tensionar e desnaturalizar o ideal de maternidade e os papeis de gênero na criação dos/as filho/as, da lógica do cuidado e do trabalho doméstico. Esta é uma perspectiva que desafia a criação dos filhos em uma lógica nuclearizada e baseada no modelo de parentesco ocidental judaico-cristão1616 Fernandes R. Negritude e não-monogamia: as micropolíticas do amor. Rio de Janeiro: AFRICAS/FAPERJ; 2022..

As próprias formulações dos membros e dos interlocutores destacavam a importância de as crianças crescerem em um ambiente que fosse livre dos papeis sociais e de gênero. Na visão de Marcos, Emanoel e Fernanda, a experiência das crianças na criação mais tradicional seria limitada, visto que não só o cuidado, mas também os afetos, são restringidos pela hierarquia instituída à cédula monogâmica. No pensamento de um arranjo familiar pautado pela Não-monogamia política, o contexto de vivência na coletividade seria o ideal para romper com essa realidade - o que nos relembra a forma como os povos originários vivem. A artesania dos afetos1717 Núñez G, Oliveira JM, Lago MCS. Monogamia e (anti)colonialidades: uma artesania narrativa indígena. UFJF 2021; 16(3):76-88. é interessante para (re)pensar o contexto da coletividade e comunidades na produção dos arranjos familiares e, também, no reflorestamento afetivo. O próprio cuidado ganha outras dimensões que extrapolam a noção de um cuidar compartimentado, individualizado e centrado numa perspectiva unicamente biológica. A rede afetiva ou comunitária desempenharia papel singular e importante nos processos de restauração da saúde. Aspecto que deve ser valorizado dentro de uma perspectiva que ultrapasse a lógica biomedicalizante na atenção à saúde.

Além disso, a perspectiva das comunidades e coletividades, nos remeteu às discussões das redes de afetos que descentralizam a importância e a responsabilidade dada às relações afetivas-sexuais, expandindo e retirando a hierarquia embutida na célula casal1818 Tebexreni MB. Afetos políticos: um estudo sobre o debate político da não-monogamia no Brasil [monografia]. São Paulo: Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2022.. Pensar a constituição de uma rede de afetividades enquanto coletividades afetivas pode nos levar a refletir o lugar que as amizades, vizinhos, o cuidado e até mesmo os conhecidos ocupam nas relações - relegadas, na grande maioria das vezes, a um espaço secundário como a própria hooks1515 hooks b. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante; 2021. e a Brigitte Vassalo22 Vassalo B. O desafio poliamoroso: por uma nova política dos afetos. São Paulo: Elefante; 2022.,33 Vassalo B. Pensamiento monógamo, terror poliamoroso. 1ª ed. México: Hacerse de Palabras; 2020. descrevem. A coletividade proporcionaria uma ruptura com essa forma de ser e estar na sociedade tão compartimentada e hierarquizada, resultando em uma rede afetiva que não se guiaria pelas hierarquias das relações. Nos parece que essa perspectiva tenderia a pulverizar as próprias noções de responsabilidade, cuidado e acolhimento, tão arraigada e centralizada no papel da mãe, e por vezes, pai e mãe.

O acolhimento ganharia um lugar de destaque, realçando como as relações de afeto baseadas na vivência em e de comunidade poderiam contribuir para lidar com diferentes tipos de violência que minam a subjetividade das pessoas, especialmente de pessoas confrontativas e negras. O sentido dado às redes de afetividades caminha pela descentralização do foco da unidade casal, para aquelas pessoas que se interrelacionam no seu convívio diário. Conjecturar esses vínculos não como secundários como o próprio sistema monogâmico institui e impõe22 Vassalo B. O desafio poliamoroso: por uma nova política dos afetos. São Paulo: Elefante; 2022.,33 Vassalo B. Pensamiento monógamo, terror poliamoroso. 1ª ed. México: Hacerse de Palabras; 2020., é uma das formas de subverter à noção nuclear da família, onde o foco é redirecionado, redistribuído e co-responsabilizado por todos aqueles que compõem a rede afetiva da pessoa. Os papeis de gênero que atribuem o cuidado essencialmente às mulheres seriam pulverizados, por exemplo.

Emanuel muitas vezes opinava sobre sua visão a respeito do parentesco não-monogâmico e criação de crianças, ainda que deixasse explícito que não pretendia ter filhos. Apesar disso, conseguia dialogar com o que Marcos comentou anteriormente, reforçando o papel das comunidades e das redes afetivas. Quando o questionamos sobre o que pensava a respeito das parentalidades não-monogâmicas políticas, afirmou “acredito que o futuro esteja pelos lados de que a parentalidade seja destituída e que todo mundo possa interferir e se responsabilizar não só pela educação da criança, mas também pela própria formação dele/dela enquanto cidadão/cidadã. Então, ter autonomia e falar assim, ‘não, isso tá errado, você não pode fazer isso’, sabe? Ou seja, todo mundo tem ali uma influência sobre a criação”.

Retomando Brigitte Vassalo22 Vassalo B. O desafio poliamoroso: por uma nova política dos afetos. São Paulo: Elefante; 2022.,33 Vassalo B. Pensamiento monógamo, terror poliamoroso. 1ª ed. México: Hacerse de Palabras; 2020., observamos que a autora defende o argumento de coletivização dos afetos, afirmando que tal estratégia passa, necessariamente, por reconhecer o poder extraordinário que a família nuclear possui em marcar nossas vidas. Acreditamos que essas outras possibilidades mencionadas pela autora dialoguem com as visões de mundo de Marcos e Emanoel quando afirmam sobre as redes de afetividades, coletividades e comunidades no parentesco não-monogâmico. Ganha relevo a disposição desses dois membros em explicar as marcas que diferentes opressões exercem sobre a vida de pessoas confrontativas22 Vassalo B. O desafio poliamoroso: por uma nova política dos afetos. São Paulo: Elefante; 2022.,33 Vassalo B. Pensamiento monógamo, terror poliamoroso. 1ª ed. México: Hacerse de Palabras; 2020., em especial aquelas dissidentes sexuais e de gênero na constituição de seus arranjos familiares não-monogâmicos.

No contexto do João (homem cisgênero, negro e pansexual), há o destaque do quão difícil é lidar com situações cotidianas quando o assunto são filhos no contexto de parentalidades não-monogâmicas. Evidencia que “é complicado lidar com questões mais amplas e que não são grandes questões para famílias monogâmicas, como o ambiente escolar - em que há a preocupação em como sua filha vai representar a família e como as professoras e os amigos vão lidar com esse cenário; no contexto de atendimento à saúde - quando há uma demanda que precise da representação legal dos responsáveis - ou ainda nos atendimentos médicos ou de enfermagem”. João reflete sobre a atuação das instituições de saúde na oferta à assistência à saúde desses arranjos e a construção de políticas públicas que considerem esses arranjos, além da própria formação dos profissionais de saúde para lidar com as demandas de um público que, cada vez mais, está reivindicando espaço e visibilidade99 Santana ADS. Família e Saúde para quem? breves reflexões de um profissional da saúde não-mono (político). In: Miranda N, Newton Jr, organizadores. Nas Trincheiras por Novos Mundos: Caminhos para a Não Monogamia Política. São Paulo: Grandir Lab; 2023.. São questões que, à médio e longo prazo, desafiam a própria forma como a sociedade brasileira e seus equipamentos sociais se estruturam.

Nos parece que o caráter coletivo que os membros e interlocutores discorreram passa por um movimento de resgate à ancestralidade negra e indígena. Resgate, pois pensar a coletividade nesses termos, nos lembra do que a psicóloga, ativista indígena guarani e pesquisadora Geni Núñez66 Núñez G. O sistema de monoculturas da sexualidade, da fé e dos afetos: reflorestando imaginários. In: Ambra P, organizador. As subversões do erótico. São Paulo: Cult Editora; 2022. p. 87-97. demonstrou em seu texto sobre as cartas jesuítas, quando destacou como a imposição da monogamia foi importante no processo de implementação do projeto colonial. No texto, a autora destaca a resistência por parte dos povos originários na imposição da monocultura55 Santana ADS. Bixa ex-monogâmica. Independente; 2021.. Além disso, consideramos ser um resgate pois o sentido da vida sempre foi coletivo e comunitário e é dele que podemos imaginar possibilidades44 Lima Jr NS, Miranda R. Não-Monogamia Política: por um projeto coletivo e emancipatório. In: Dermarch Villalón CE, Silva VF, Verlard M, organizadores. Em movimento: memórias, experiências e performances coletivas. São Paulo: Edições EACH; 2022., reflexões e talvez outros mundos capazes de constituir espaços de vida cooperativos e não confrontativos.

Romper com a lógica nuclear familiar e “pautar as relações de forma coletiva é reforçar o pensamento de que o sentido da vida é coletivo”44 Lima Jr NS, Miranda R. Não-Monogamia Política: por um projeto coletivo e emancipatório. In: Dermarch Villalón CE, Silva VF, Verlard M, organizadores. Em movimento: memórias, experiências e performances coletivas. São Paulo: Edições EACH; 2022.(p.249) e é uma proposta de reordenamento das relações que visa romper com as problemáticas do trabalho doméstico, tido enquanto obrigações para figuras femininas. É nesse sentido que repensar as parentalidades e as responsabilidades com a criação das crianças são retomadas a partir de um interesse e responsabilidade do coletivo, destacando a necessidade de subverter os papéis sociais e pavimentar discussões dentro do campo da saúde que, ao que nos parece, ainda são embrionárias.

Comentários finais à imaginação radical

Ao relativizarmos as realidades dos interlocutores, acreditamos que há um ativismo afetivo em curso. Esse ativismo perpassa pela construção do que são as parentalidades para os interlocutores: a perspectiva que resgata a ancestralidade, o viver em coletividade e as redes afetivas. O resgate à ancestralidade indígena e negra e às formas de se viver em comunidades ganham relevo nesse trabalho à medida que se compreende a importância que estes possuem na vivência dos interlocutores.

As parentalidades para nossos interlocutores demandam uma ruptura com paradigmas que colocam à família nuclear no âmbito privado, com fissuras aos discursos que institucionalizam e consolidam a família monogâmica como legítima. Ganha destaque a dimensão que fortalece outros arranjos familiares, que muitas vezes não estão associados àquelas de sangue, mas sim daquelas que reconhecem no outro a trajetória de vida, a potência das amizades e a construção dos afetos coletivos.

Imaginar-se radicalmente nos parece uma saída possível para compreender as múltiplas realidades que nossos interlocutores vivenciam. Ainda que estejam em diferentes momentos de suas vidas, cada qual produzindo uma Não-monogamia política para sua realidade, todos produzem, de certa forma, fissuras no sistema monogâmico. O acesso à saúde e às políticas públicas, ainda que não tenham sido o foco desse texto, ganham um aspecto singular para o adensamento de discussões macropolíticas, demarcando a necessidade de reconhecimento institucional desses arranjos familiares e de investigações que tensionem a discursividade sobre “famílias” na área da saúde, e em especial, da Saúde Coletiva. Afinal, como pensar a constituição de políticas públicas dentro desse contexto? Como pensar o atendimento de profissionais de saúde considerando esses arranjos que não estão dados, mas que existem e estão produzindo fissuras na estrutura monogâmica e cis-heterossexual? Estes são questionamentos em aberto que, como apresentamos ao longo do texto, advém desses arranjos parenterais que fazem parte da realidade brasileira.

Destacamos, por fim, a necessidade de pesquisas da área da Saúde Coletiva e suas articulações com as Ciências Sociais e Humanas em Saúde que consideram marcadores de raça, gênero, sexualidade, classe e deficiência, no contexto das relações não-monogâmicas de pessoas sexo-gênero-diversas. Acreditamos, inclusive, que utilizar o termo “novo” para designar os arranjos familiares que tensionam à mononormatividade e cisnormatividade não seja apropriado, visto que em diferentes momentos da história houve arranjos familiares que fissuravam e alargavam as concepções que estavam “dadas”.

Agradecimentos

À comunidade do NM em Foco; ao Newton Jr pela disponibilidade em contribuir com a pesquisa; a Jefferson Wildes e Thaís Raquel Pires pela leitura crítica não-violenta.

Referências

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Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Abr 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2023
  • Aceito
    20 Dez 2023
  • Publicado
    20 Dez 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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