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A pandemia da COVID-19 e o trabalho docente: percepções de professores de uma universidade pública no estado de São Paulo, Brasil

Resumo

A pandemia da COVID-19 exigiu a reestruturação dos modelos educacionais nas universidades, incluindo a rápida transição para o ensino remoto. Realizamos uma pesquisa qualitativa com o objetivo de compreender a percepção de professores universitários sobre os efeitos da pandemia da COVID-19 para a rotina de trabalho e para a saúde dos docentes de uma universidade pública no estado de São Paulo. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 17 docentes de cursos de graduação das ciências humanas, biológicas e exatas, entre agosto e setembro de 2020. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. Da análise de conteúdo, quatro categorias temáticas emergiram: (1) mudanças na rotina de trabalho e seus impactos, incluindo a adaptação ao trabalho remoto e dificuldade em estabelecer limites entre trabalho e rotina pessoal; (2) alterações na dinâmica entre professor/alunos e possibilidade de repensar a prática docente; (3) relação dos docentes com a universidade, o processo de tomada de decisões, suporte para a transição ao ensino remoto e preocupações com a qualidade do ensino; e (4) angústias e medos relacionamos à pandemia que se somaram aos estressores do trabalho. Os resultados ressaltam a necessidade de ações direcionadas à gestão educacional, às dinâmicas comunicacionais e à saúde mental.

Palavras-chave:
COVID-19; Docentes; Aprendizagem; Educação à distância

Abstract

The COVID-19 pandemic required the restructuring of educational models, including the rapid transition from face-to-face to remote education. The aim of this qualitative research was to understand the effect of the COVID-19 pandemic on undergraduate professors’ work and health at a public university in the state of São Paulo. Semi-structured interviews were conducted with 17 undergraduate faculty of humanities, biological and exact sciences form August to September 2020. The interviews were recorded and transcribed. From the content analysis, four thematic categories emerged: (1) changes in the work routine and their impacts, including adjustment to remote work and the difficulties in establishing boundaries between work and their personal life; (2) changes in the dynamics between faculty and students and the possibility of rethinking teaching practice; (3) the relationship between faculty and the university with emphasis on the decision-making process, support for the transition to remote teaching, and concerns about the quality of teaching; and (4) anguish and fears related to the pandemic that added to the set of work-related stressors. Our findings showed that actions towards the communicational dynamics, as well as actions towards faculties’ mental health should be implemented.

Key words:
COVID-19; Faculty; Learning; Online learning

Introdução

A complexidade das atividades docentes incluem ações plurais de ensino, pesquisa e extensão universitária, cada uma delas, com seu universo singular de conhecimentos e habilidades, geram diversas demandas que podem gerar sobrecarga e estresse11 Ferigato SH, Teixeira RR, Frageli MCB. A universidade e a atividade docente: desafios em uma experiência pandêmica. Rev Doc Ensi Sup 2020; 10:1-17.. Previamente à pandemia da COVID-19, o estresse no trabalho docente e seus impactos já traziam grandes preocupações para gestores de instituições de ensino superior (IES)22 Leite AF, Nogueira JAD. Fatores condicionantes de saúde relacionados ao trabalho de professores universitários da área da saúde: uma revisão integrativa. Rev Bras Saude Ocup 2017; 42:e6.. Nesse sentido, diversos estudos mostraram o adoecimento físico e mental de professores universitários. No Brasil, estudo realizado em uma universidade pública, observou que 24,2% dos professores tinham manifestações clínicas físicas e/ou psicológicas relacionada ao estresse33 Oliveira MGM, Cardoso CL. Stress e trabalho docente na área de saúde. Estud Psicol 2011; 28(2):135-141.. Entre os fatores associados estavam a sobrecarga de trabalho, dificuldades nas relações interpessoais44 Campos TC, Véras RM, Araújo TM. Transtornos mentais comuns em docentes do ensino superior: evidências de aspectos sociodemográficos e do trabalho. Avaliação 2020; 25(3):745-768., trabalho repetitivo55 Servilha EAM, Arbach MP. Queixas de sau´de em professores universita´rios e sua relac¸a~o com fatores de risco presentes na organizac¸a~o do trabalho. Disturb Comum 2011; 23(2):181-191., más condições de trabalho e falta de reconhecimento66 Coutinho MC, Magro MLPD, Budde C. Entre o prazer e o sofrimento: um estudo sobre os sentidos do trabalho para professores universitários. Psicol Teor Prat 2011; 13(2):154-167..

Diante da emergência sanitária da COVID-19 e as consequentes modificações no trabalho, como a necessidade de cumprir as medidas de distanciamento físico, para mitigar a transmissão do vírus e reduzir o número de casos e de mortes, exigiram das IES a elaboração e implementação de modelos de ensino-aprendizagem não-presenciais77 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Avaliação do desenvolvimento da Internet no Brasil: usando os indicadores de universalidade da internet DAAM-X. Brasília: UNESCO; 2021. em curtíssimo intervalo de tempo, repercutindo em transformações significativas no cotidiano acadêmico e nas atividades docentes11 Ferigato SH, Teixeira RR, Frageli MCB. A universidade e a atividade docente: desafios em uma experiência pandêmica. Rev Doc Ensi Sup 2020; 10:1-17.,88 Quattrone F, Borghini A, Emdin M, Nuti S. Protecting higher education institutions from COVID-19: insights from an Italian experience. J Am Coll Health 2022; 70(5):1354-1355. gerando sobrecarga, estresse, sofrimento mental e maior insatisfação com o trabalho99 Metcalfe AS. Visualizing the COVID-19 pandemic response in Canadian higher education: an extended photo essay. Stud High Educ 2020; 46(1):5-18.,1010 Peloso RM, Cotrin P, Oliveira RCG, Oliveira RC, Camacho DP, Pelloso SM, Freitas KMS. Impact of COVID-19 on healthcare graduation courses: students and professors' perspective. Res Soc Dev 2020; 9(9):e893998099.. Tais transformações têm sido descritas em estudos realizados, principalmente, em países de alta renda. Entretanto, a literatura ainda carece de novos estudos que analisem os impactos da pandemia sobre o trabalho docente e as transformações do processo ensino-aprendizagem em países de baixa e média rendas, como o Brasil.

Aos estressores relacionados às transformações da dinâmica de trabalho, soma-se os estressores advindos do contexto da pandemia em si, que tendem a desencadear sentimentos de angústia e medo, com impacto importante na saúde mental1111 Silva AF, Estrela FM, Lima NS, Tibúrcio C, Abreu A. Saúde mental de docentes universitários em tempos de pandemia. Physis 2020; 30(2):e300216.,1212 Monteiro BMM, Souza JC. Mental health and university teaching working conditions in the COVID 19 pandemic. Res Soc Dev 2020; 9(9):e468997660.. No Brasil, apesar dos esforços de trabalhadores da saúde, pesquisadores e professores para que as ações de combate à pandemia seguissem as evidências científicas, as autoridades sanitárias do país perpetraram ações na contramão da ciência, além de ataques sistemáticos às universidades públicas e aos pesquisadores1313 Castro MC, Kim S, Barberia L, Ribeiro AF, Gurzenda S, Ribeiro KB, Abbott E, Blossom J, Rache B, Singer BH. Spatiotemporal pattern of COVID-19 spread in Brazil. Science 2021; 372(6544):821-826.,1414 Ferigato S, Fernandez M, Amorim M, Ambrogi I, Fernandes LMM, Pacheco R. The Brazilian Government's mistakes in responding to the COVID-19 pandemic. Lancet 2020; 396(10263):1636.. Foi nesse cenário que se deram as transformações sobre o cotidiano de trabalho dos docentes no Brasil.

Compreender os efeitos das transformações no trabalho no contexto da pandemia da COVID-19 é fundamental para a proposição de ações que possam mitigar as repercussões dessas mudanças para docentes, estudantes e IES, em especial, em países de baixa e média rendas, nos quais os impactos da pandemia são ainda maiores que nos países de alta renda. Nesse sentido, a perspectiva transacional do estresse proposta por Lazarus e Folkman1515 Lazarus RS, Folkman S. Stress, Appraisal and Coping. New York: Spinger; 1984.,1616 Lazarus R. Psychological stress in the workplace. In: Crandall R, Perrewé PL, organizadores. Occupational Stress: a handbook. Washington D.C.: Tayloe & Francis; 1995. p. 3-14., destacando o estresse como uma interação entre o indivíduo e seu meio ambiente, faz aproximação com o objeto em estudo, dada a complexidade do trabalho docente, o momento histórico referente aos primeiros meses da pandemia e as consequências sociais, sanitárias e pedagógicas vivenciadas por docentes do ensino superior.

Diante desse cenário, o objetivo da pesquisa é compreender as percepções de professores universitários sobre os efeitos das mudanças no contexto de trabalho, provocadas pela pandemia da COVID-19, sobre a rotina de trabalho e a saúde dos docentes de uma universidade pública no estado de São Paulo, um dos estados com o maior número de casos e mortes pela COVID-19 no Brasil. No momento em que foi realizada essa pesquisa, entre agosto e setembro de 2020, já havia sido registrados no Brasil 190.910 casos confirmados da COVID-19 e 4.451 mortes1717 World Health Organization (WHO). Coronavirus Disease (COVID-19). Dashboard With Vaccination Data [Internet]. [cited 2022 jul 26]. Available from: https://covid19.who.int/region/amro/country/br.
https://covid19.who.int/region/amro/coun...
. Os resultados do presente estudo podem contribuir para desvelar quais foram esses impactos e suscitar reflexões acerca da construção de ações institucionais, de políticas educacionais e de planejamentos para futuros eventos adversos.

Metodologia

O presente estudo faz parte do componente qualitativo do estudo ProMental1818 Matias AB. Características do trabalho e saúde mental de docentes de uma universidade pública: um estudo de métodos mistos [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2021., uma pesquisa de metodologia mista, do tipo sequencial explanatório, que investigou fatores associados à saúde mental de professores de uma universidade pública no estado São Paulo. A fase qualitativa foi realizada após a investigação quantitativa (corte transversal, n=316). A investigação qualitativa ocorreu com o propósito de ampliar a compreensão e aprofundar o entendimento de resultados encontrados na fase quantitativa1919 Creswell JW, Plano Clark VL. Designing and conducting mixed methods research. 3ª ed. Thousand Oaks: SAGE Publications, Inc.; 2017., que foi realizada em um cenário pré-pandemia (segundo semestre de 2019). Já a fase qualitativa foi realizada nos meses iniciais da pandemia e foram incluídas perguntas sobre as mudanças no trabalho decorrentes da pandemia e seus impactos sobre o cotidiano de trabalho e a saúde dos docentes.

A técnica de entrevista semiestruturada foi utilizada para produção dos dados, permitindo a modulação das perguntas em função das verbalizações e reações dos entrevistados, visando compreender a percepção relativa às experiências vividas, buscando a coletividade através do relato individual, inserida em um contexto histórico e social2020 Minayo MCS. Análise qualitativa: Teoria, passos e fidedignidade. Cien Saude Colet 2012; 17(3):621-626.. As questões norteadoras exploraram temas como as mudanças na rotina de trabalho imposta pela crise sanitária, apoio institucional para adaptações à nova realidade de trabalho e as relações dos professores com os alunos e com a instituição.

Para elaboração desse artigo foi utilizado o Standards for Reporting Qualitative Research (SRQR)2121 O'Brian BC, Harris IB, Beckman TJ, Reed DA, Cook DA. Standards for Reporting Qualitative Research: A Synthesis of Recommendations. Academic Med 2014; 89(9):1245-1251..

Participantes

Os participantes da fase qualitativa foram selecionados por conveniência, a partir do grupo de docentes que participaram da fase quantitativa do estudo ProMental1818 Matias AB. Características do trabalho e saúde mental de docentes de uma universidade pública: um estudo de métodos mistos [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2021., seguindo as recomendações de Creswell e Clark1919 Creswell JW, Plano Clark VL. Designing and conducting mixed methods research. 3ª ed. Thousand Oaks: SAGE Publications, Inc.; 2017.. O critério de inclusão adotado nessa fase do estudo incluiu ter participado da fase quantitativa e o de exclusão, estar afastado das atividades acadêmicas por quaisquer motivos. Os participantes foram, então, escolhidos a fim de se obter a maior diversificação entre os docentes de acordo com unidade acadêmica, sexo, faixa etária, orientação sexual, cor autodeclarada, tempo na universidade e área do curso ao qual era vinculado. O número inicial de participantes foi definido à priori considerando a necessidade de garantir os critérios de diversidade. Foram escolhidos e convidados quatro representantes de cada uma das oito unidades acadêmicas, alcançando um total de 32 docentes, já considerando as possíveis recusas ou não resposta. O critério de saturação foi utilizado a fim de atingir significados e representações suficientes para estabelecer interpretações a partir dos diálogos obtidos2222 Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas Saturation sampling in qualitative health research: theoretical contributions. Cad Saude Publica 2008; 24(1):17-27.. Assim, foram realizadas 17 entrevistas, tendo pelo menos um representante de cada unidade acadêmica da universidade.

Produção dos dados

Devido ao contexto de pandemia, as entrevistas foram realizadas virtualmente, de forma síncrona. A condução das entrevistas foi realizada pela mesma pesquisadora, sem vínculo prévio com os participantes, nos meses de agosto e setembro de 2020. Cada entrevista foi agendada antecipadamente através de contato via e-mail ou telefone com o participante. Foram conduzidas de forma individualizadas, seguiram roteiro semiestruturado e as câmeras ficaram sempre abertas. A duração média das entrevistas foi de 50 minutos.

Análise dos dados

O processo analítico-interpretativo seguiu referencial teórico da hermenêutica-dialética, baseando-se na observação dos fatos surgidos durante a investigação, das narrativas individuais, aspectos subjetivos, condutas, sentidos e significados atribuídos pelos participantes2323 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014.. Na análise de conteúdo temático foram seguidas quatro etapas: impregnação das narrativas; delimitação dos temas prioritários para análise, a partir das convergências e divergências dos relatos; síntese dos achados principais; articulação dos achados empíricos com a literatura2020 Minayo MCS. Análise qualitativa: Teoria, passos e fidedignidade. Cien Saude Colet 2012; 17(3):621-626..

Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, resguardando a confidencialidade das informações de identificação dos participantes e da instituição. O material transcrito foi lido e relido por duas pesquisadoras independentes com objetivo de identificar e agrupar unidades de significado e construir as categorias de análise, de acordo com a técnica de análise de conteúdo. Foram considerados os consensos e os dissensos das duas intérpretes. O software Atlas.ti® foi utilizado como recurso adicional para organização da análise do material, destacando e agrupando recortes das diversas entrevistas em cada categoria de análise. As gravações foram cuidadosamente revisadas na tentativa de identificar fragmentos que talvez não se encaixassem nas categorias desenvolvidas.

Procedimentos éticos

A pesquisa seguiu os princípios éticos contidos na Declaração de Helsinque da Associação Médica Mundial, e foi aprovada pelos comitês de ética em pesquisa da instituição proponente e da instituição onde a pesquisa foi realizada (2.967.891 e 2.882.359). Foi incluída emenda aos comitês de ética solicitando a ampliação da investigação sobre as experiências dos docentes durante a pandemia de COVID-19. Após leitura e compreensão dos objetivos da pesquisa e das garantias éticas à participação, os entrevistados assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Na identificação dos recortes das entrevistas, os nomes dos entrevistados foram substituídos pela letra “E” acompanhada de um número, para preservar suas identidades.

Resultados e discussão

Caracterização dos participantes

Dos 32 professores convidados para as entrevistas, três recusaram formalmente a participação e oito não responderam o convite. Foram realizadas 17 entrevistas individuais (nove homens e oito mulheres), considerando o critério de saturação e da inclusão de ao menos um representante de cada unidade acadêmica da universidade, não foram enviados convites a outros professores.

Entre os participantes, três eram vinculados a cursos da área de ciências exatas, seis a ciências humanas e a cursos de ciências biológicas. A maioria pertencia à categoria de professor adjunto, autodeclarou-se como branco e heterossexual. A média de idade foi 46,9 anos (DP=7,7 anos) e o tempo médio de trabalho na instituição foi de 8 anos (DP=5,8 anos) (Quadro 1).

Quadro 1
Características dos professores universitários entrevistados.

Embora pertencentes a diferentes unidades acadêmicas e a campus localizados em diferentes cidades, os professores eram de uma mesma comunidade universitária e foram observadas semelhanças nas experiências e desafios vivenciados.

Da análise do material transcrito quatro categorias temáticas emergiram: (1) mudanças na rotina do trabalho docente e seus impactos; (2) relação professor-estudante e a necessidade de repensar o trabalho docente; (3) relação do docente com a universidade no contexto da pandemia; e (4) angústias e medos relacionamos à pandemia.

Mudanças na rotina de trabalho e seus impactos

O cancelamento abrupto das atividades presenciais no ambiente universitário, em março de 2020, configurou mudanças substanciais na rotina docente, exigindo transformações e adaptações das disciplinas para que fossem realizadas remotamente. Esse processo trouxe diversos impactos para os professores universitários. Os participantes destacaram quatro dimensões principais relacionadas às mudanças no trabalho: aumento da carga de trabalho; adaptação ao trabalho remoto; dificuldade em estabelecer limites entre o trabalho e a rotina pessoal; e dedicação a atividades de pesquisa.

Foi recorrente a noção de aumento excessivo da carga de trabalho na modalidade remota, quando comparado ao trabalho realizado presencialmente e em um contexto livre de pandemia:

A sensação que eu tenho é de um aumento absurdo do trabalho. Absurdo, fora do comum. Eu não esperava (E4 - ciências humanas).

Essa percepção foi ressaltada, principalmente, pelos docentes dos cursos de ciências humanas, que além das atividades de docência propriamente ditas, sentiram a necessidade de realizar acolhimento de ordem psicossocial aos estudantes:

Eu criei com os meus estudantes um grupo de WhatsApp, que era da disciplina, mas, era também de muito apoio emocional. [...] muitos [alunos] só tinha um computador para família inteira trabalhar em Home Office, outro só tinha dados móveis do celular para trabalhar, então, eu fui atuando... personalizei mesmo atendimento (E5 - ciências humanas).

A necessidade de transformação do ensino presencial para o ensino remoto exigiu dos professores mudanças estruturais no processo de trabalho. As atividades foram rapidamente deslocadas do presencial para o virtual, em plataformas virtuais até então pouco conhecidas por muitos professores, acarretando a necessidade de aprender a utilizar uma nova ferramenta de trabalho em um curto espaço de tempo, na adaptação das atividades rotineiras da profissão, tanto no que diz respeito a reestruturar as aulas para o modo virtual como na elaboração de processos de avaliação. Dificuldades relacionadas ao uso de tecnologias da informação e comunicação podem a gerar maior sobrecarga de trabalho e, consequentemente, estresse no trabalho1515 Lazarus RS, Folkman S. Stress, Appraisal and Coping. New York: Spinger; 1984.,1616 Lazarus R. Psychological stress in the workplace. In: Crandall R, Perrewé PL, organizadores. Occupational Stress: a handbook. Washington D.C.: Tayloe & Francis; 1995. p. 3-14.. A sobrecarga de atividades é descrita como um dos principais fatores de risco para o adoecimento docente2424 Neme GGS, Limongi JE. O trabalho docente e a saúde do professor universitário: uma revisão sistemática. Rev Bras Geograf Med Saude 2020; 16:1-10.. Situações imprevisíveis, como a pandemia e seus desdobramentos, podem ser percebidas como estressoras se exigem muito do indivíduo1515 Lazarus RS, Folkman S. Stress, Appraisal and Coping. New York: Spinger; 1984.. Essa sobrecarga de eventos estressores atua na homeostase corporal e na liberação/produção de hormônios que, em excesso, podem ser nocivos à resistência individual, tendo como consequência o adoecimento tanto físico como mental2525 Lipp MEN. O modelo quadrifásico do stress. In: Lipp MEN, organizador. Mecanismos neuropsicofisiológicos do stress: teorias e aplicações clínicas. Campinas: Casa do Psicólogo; 2010. p. 17-20.:

E esse acúmulo e esse excesso de demandas eles são estressantes e podem causar diversas doenças mentais e eu diria, também, físicas, burnout, depressão ou uma crise como a que eu tive (E11 - ciências humanas).

Olha, eu tenho... eu tenho feito terapia toda semana, voltei a fazer uso de remédio contra ansiedade, voltei porque eu sinto falta, mas o que eu sinto, é que o sistema, que a universidade não se preparou…mesmo com os alertas meses antes em outros países (E5 - ciências humanas).

Em momentos de transformações radicais no trabalho, como no contexto da pandemia, instituições tendem a evidenciar forças que contribuem para que a instituição se mantenha como é, denominadas forças instituídas, e as forças instituintes, aquelas capazes de desencadear processos que possibilitam a criação e a instauração do novo2626 Lourau R. A análise institucional. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 1996.. É possível que, no contexto das mudanças da atividade docentes na COVID-19, a explicitação dessas forças tenha tensionado ainda mais o cotidiano dessas atividades e da relação dos docentes com os alunos, seus pares e com a instituição, implicando no aumento da sobrecarga de trabalho e do estresse.

Além da adaptação à nova rotina de atividades docente, foram frequentes os relatos sobre a necessidade de gerenciá-la com os afazeres domésticos e com as restrições impostas pelo momento de isolamento físico, desencadeando novas dificuldades e desafios:

A gente [filho e companheiro] teve que dividir o mesmo espaço, então eu tive que ser o professor, que ser o pai, tive que ser cozinheiro, faxineiro, o professor do meu próprio filho, tudo ao mesmo tempo. Então, acumula as funções, tá trabalhando, tem que parar, fazer almoço, aí você volta, continua trabalhando, acompanha o filho, volta para trabalhar, faz janta, lava a louça, volta para acompanhar os alunos online e aí é manhã, tarde, noite, todos os dias. É enlouquecedor (E2 - ciências humanas).

Por outro lado, a possibilidade de aproveitar o tempo antes destinado ao deslocamento entre o domicílio e a universidade foi referida como uma condição que reduziu o desgaste e o estresse:

…por exemplo, as instâncias de decisão, apesar de produzir uma sobrecarga, facilita demais não ter que ir até lá [prédio central da Reitoria] (E4 - ciências humanas).

Nesse sentido, faz-se necessária a discussão por parte da instituição sobre a possibilidade de manutenção de atividades virtuais e/ou híbridas, especialmente aquelas de caráter mais administrativo, ou as que exigem grandes deslocamentos em centros urbanos. O que pode amenizar os efeitos desses estressores sobre os docentes.

Outro aspecto apontado pelos entrevistados relacionado à redução do estresse foi a maior disponibilidade de tempo para se dedicar à pesquisa científica:

Agora, com relação a pesquisa, eu senti que a gente teve mais tempo para desenvolver as pesquisas, principalmente, a parte de produção de projetos, escrever artigos. Então, teve um grande benefício, principalmente, para pesquisa (E13 - ciências biológicas).

Essa percepção diverge da encontrada em outros estudos que descreveram ou uma queda significativa nas publicações acadêmicas, especialmente, nas que tinham mulheres como responsáveis pelas pesquisas2727 King MM, Frederickson M. The Pandemic Penalty: The gendered effects of COVID-19 on scientific productivity. Socius 2021; 7:1-24., uma vez que as mulheres acumularam a sobrecarga do cuidado dos filhos e do domicílio, ou a manutenção da produção de publicações em temas não relacionados à COVID-19 em países que possuíam infraestrutura para pesquisa científica adequada2828 Müller SM, Mueller GF, Navarini AA, Brandt O. National Publication Productivity during the COVID-19 Pandemic: A Preliminary Exploratory Analysis of the 30 Countries Most Affected. Biology 2020; 9(9):271..

Essa percepção de aumento da produtividade nem sempre foi alinhada à de equilíbrio e bem-estar. O trabalho remoto se articulou à dificuldade em estabelecer e reconhecer limites entre o trabalho e atividades da rotina pessoal e ao desafio de definir claramente horários de descanso:

Antes você tinha um espaço fora, no momento que eu saía da universidade, 17 horas, e que eu entrava em casa eu desligava o botãozinho do outro e ia viver a coisa na minha casa, ver a janta, lavar a louça, agora esses espaços estão todos juntos (E5 - ciências humanas).

As pessoas acham que como você está em casa, trabalhando de casa, você pode trabalhar o tempo todo, a qualquer horário. É muito desagradável a pessoa não respeitar que a sua casa não é o laboratório, não é o departamento (E12 - ciências biológicas).

O excesso de demanda de trabalho e a dificuldade em estabelecer limites entre trabalho e lazer/descanso foram importantes aspectos destacados pelos professores. Gerenciar as atividades relacionadas ao trabalho docente com os afazeres domésticos se tornou uma considerável fonte de estresse2929 Gomes NP, Carvalho MRS, Silva AF, Moita CE, Santos JRL, Couto TM, Carvalho LC, Almeida LCG. Saúde mental de docentes universitários em tempos de covid-19. Saude Soc 2021; 30(2):e200605., com cotidiano de trabalho sendo realizado inteiramente no domicílio, ocupando o mesmo ambiente e misturando atividades que antes possuíam limitações mais claras. A necessidade de cumprir metas, o acúmulo de tarefas e o aumento de demandas podem ocasionar na diminuição dos espaços de descanso e lazer, uma vez que o professor se vê impelido a se manter conectado e responsivo, evitando a ideia de ócio3030 Losekann RGCB, Mourão HC. Desafios do teletrabalho na pandemia COVID-19: quando o home vira office. CAdm 2020; 28(0):71-75., que pode levar a sentimentos de angustia e culpabilização, contribuindo para o aumento do estresse.

Relação professor-estudante e necessidade de repensar o trabalho docente

Os participantes destacaram mudanças na relação professor-aluno, percebidas por diversas perspectivas. Foram relatadas dificuldades decorrentes da pouca interação via ensino remoto, especialmente pela presença virtual dos alunos com a câmera fechada, limitando a percepção de suas reações e dificultando a dinâmica de ensino-aprendizagem, essa percepção se deu majoritariamente entre os professores vinculados aos cursos de ciências biológicas. Nesse sentido, estudo realizado com professor-estudantes de medicina em uma universidade na Índia corrobora nossos achados e demonstra a relação de dupla via, na medida em que os professor-estudantes referiram sentir falta da interação, dificuldades dos professores em usar a tecnologia, dificuldade dos alunos em manter a concentração e prejuízo devido ausência de atividades em cenários de práticas, em especial, nas áreas de ciências da saúde3131 Verma A, Verma S, Garg P, Godara R. Online Teaching During COVID-19: Perception of Medical Undergraduate Students. Indian J Surg 2020; 82(3):299-300..

Por outro lado, especialmente os docentes vinculados aos cursos de ciências humanas, perceberam maior aproximação com os alunos, através da criação de espaço protegidos para que pudessem expressar as dificuldades vivenciadas no contexto da pandemia, tanto durante as atividades coletivas como na interação individual entre professor e estudante. Notou-se que as percepções dessas relações foram pautadas na forma como os professores estavam pessoalmente lidando com o momento de pandemia:

Com os estudantes eu me aproximei. Por quê? Porque eu entendi que se as minhas dificuldades como uma mulher adulta, de 50 anos, que já viveu outros momentos de dificuldades diversos, estava difícil [...] imagina para alguém que está em vias de formação, sem as mesmas condições, até sociais, econômicas, e de representatividade, de autogestão como eu tenho (E5 - ciências humanas).

A percepção sobre a relação professor-estudante também variou de acordo com o aspecto que o professor identificou como prioritário. Enquanto alguns se preocupavam mais com a qualidade da informação e do ensino, para outros, a maior preocupação foi em relação aos aspectos emocionais de seus estudantes. Estudos destacaram que, no contexto da atual crise sanitária, diversos professores priorizaram o acolhimento das necessidades emocionais em detrimento das questões acadêmicas3232 Ramos-Huenteo V, García-Vásquez H, Olea-González C, Lobos-Peña K, Sáez-Delgado F. Percepción docente respecto al trabajo pedagógico durante la COVID-19. CienciAmérica 2020; 9(2):334-353.. Além das questões de aprendizado, a relação professor-estudante perpassa o cenário da afetividade e da socialização, e com a vivência das implicações de um grave momento pandêmico, alguns professores se viram impelidos a acolher as demandas emocionais de seus estudantes. Porém, estudos ressaltam que sem o preparo adequado esse acolhimento pode gerar sobrecarga emocional e de trabalho, angústia e ansiedade3333 Dantas ESO. Saúde mental dos profissionais de saúde no Brasil no contexto da pandemia por Covid-19. Interface (Botucatu) 2021; 25(Supl. 1):1-9..

Alguns participantes também vislumbraram, nesse momento, a possibilidade e necessidade de repensar o trabalho docente e as formas de avaliação por eles adotadas:

Então eu acho que é uma chance de repensar como avaliar, de como fazer esse estudante ir construindo o conhecimento, começando bem do basicão, como a gente foi fazendo agora e ele vai pegando. Então, isso me fez repensar, talvez isso seja o positivo (E6 - ciências exatas).

Essa oportunidade de repensar a prática docente e as formas avaliativas foram descritas por outros estudos, destacando a relevância do professor em refletir sobre a sua prática e direcioná-la de acordo com a realidade em que se encontra3434 Belotti SHA, Faria MA. Relação Professor/Aluno. Rev Eletr Saberes Educ 2010; 1(1):1-12.. As transformações desencadeadas pela COVID-19 tornam essa demanda ainda mais clara e urgente, especialmente sobre as formas de avaliação alternativas. Nesse sentido, é imprescindível que os educadores garantam que a implementação de educação remota não seja opressora, promovendo o acesso de qualidade, relevante e inclusivo, apesar da pandemia3535 Sali AHA. Rethinking Distance Education In Covid-19 Pandemic: Perspectives On Education Equity In The 'New Normal'. In: Dewi KAP, organizador. New Normal: Idealism and Implemantation in Indonesia and the Philippines. Jayapangus Press Books; 2020. p. 33-55.,3636 Antunes Neto JMF. Sobre ensino, aprendizagem e a sociedade da tecnologia: por que se refletir em tempo de pandemia? Prospectus 2020; 2(1):28-38..

Relação do docente com a universidade durante a pandemia

Nessa categoria de análise, destacaram-se o processo de tomada de decisões; o preparo e suporte para a transição ao ensino remoto; e a preocupação com o prejuízo pedagógico decorrente dessa modalidade de ensino.

Apesar de a maioria dos entrevistados valorizarem a possibilidade de participar dos processos decisórios da universidade com relação às medidas e atitudes a serem adotadas em virtude da pandemia, da necessidade de suspensão das aulas presenciais e possibilidade de retorno das atividades acadêmicas em ambiente virtual, destaca-se a percepção do excesso de discussão e demora na deliberação de ações concretas e resolutivas:

Eu entendo que o processo não foi muito bem conduzido, acho que a gestão demorou demais para tomar uma decisão. Por mim, em abril já teria entrado online, para continuar com os estudantes. Mas, não podia, porque eles mandaram a gente parar tudo e somente com ordem deles que a gente podia voltar. E aí começaram um processo de discussão, de visualização e tal, que demorou demais, na minha opinião (E15 - ciências humanas).

Alguns estudos têm destacado que os países de média e baixa rendas têm enfrentado maiores dificuldades para ofertar um ensino de qualidade durante a situação de pandemia devido, dentre outros fatores, ao subfinanciamento da educação e a dificuldade no acesso à Internet no ambiente domiciliar, especialmente por parte do corpo discente. Essa realidade foi diferente em países desenvolvidos, que puderam tomar decisões e desenvolver ações mais rápidas em relação à adoção das atividades não presenciais3737 Silva FT. Currículo de transição: uma saída para a educação pós-pandemia. Educamazônia 2020; 13(1):70-77.. Além disso, durante a pandemia da COVID-19, agudizaram-se no Brasil as disputas referentes à educação à distância. De um lado, grupos de docentes e de gestores que defendem esse tipo de estratégia de educação e, do outro, os que são contrários à ela11 Ferigato SH, Teixeira RR, Frageli MCB. A universidade e a atividade docente: desafios em uma experiência pandêmica. Rev Doc Ensi Sup 2020; 10:1-17..

Especificamente na realidade do ensino superior público no Brasil, um estudo analisou que as publicações de documentos oficiais do Ministério da Educação, para nortear as redes educacionais de ensino universitário, apresentavam termos genéricos e com poucas recomendações aos dirigentes e ao trabalho pedagógico3838 Lima BGT, Schneider EM, Tomazini Neto BC, Castro LPV. Educação Superior em tempos de Pandemia Versus a (Des) orientação dos Documentos Oficiais. Res Soc Dev 2020; 9(8):e100985193., o que pode também ter favorecido a necessidade de longas discussões e demora para a tomada de decisões. Longas reuniões, percepção do excesso de discussão e pouca resolutividade foram associadas ao desinteresse, desmotivação e cansaço, acarretando a sensação de não ser genuinamente ouvido. Excesso de burocracia e a participação em longas e excessivas reuniões tem sido destacados como importantes estressores do trabalho docente3939 Lipp MEN. O Stress do Professor de Pós-graduação. In: Lipp MEN, organizador. Stress do Professor. 5ª ed. São Paulo: Papirus; 2002. p. 55-62..

Após a decisão pelo retorno das atividades acadêmicas na modalidade não presencial, um novo desafio foi colocado. Alguns professores, além das dificuldades individuais relacionadas às habilidades necessárias para o ensino remoto, perceberam falta de preparo e/ou suporte da instituição nessa transição:

[A universidade] nunca olhou para isso [ensino remoto] e agora, desde março, ela resolveu olhar e resolveu olhar numa velocidade que não acompanha a curva de aprendizado de alguns de nós (E17 - ciências biológicas).

Em sintonia com nossos achados, outros estudos apontaram dificuldades quanto às condições para a efetivação do ensino remoto. Entre eles, um estudo realizado na Colômbia identificou o desenvolvimento e a confiança na segurança do conteúdo digital como as principais dificuldades dos professores, poucos conseguiram atingir níveis satisfatórios nessas competências4040 Martínez-Garcés J, Garcés-Fuenmayor J. Competencias digitales docentes y el reto de la educación virtual derivado de la covid-19. Rev Educ Humani 2020; 22(39):1-16.. Estudos realizados na Alemanha e no Chile também destacaram dificuldades na implantação de ferramentas digitais sem treinamentos adequados4141 König J, Jäger-Biela DJ, Glutsch N. Adapting to online teaching during COVID-19 school closure: teacher education and teacher competence effects among early career teachers in Germany. Eur J Teach Educ 2020; 43(4):608-622.,4242 Nogales-Delgado S, Román Suero S, Martín JME. COVID-19 Outbreak: Insights about Teaching Tasks in a Chemical Engineering Laboratory. Educ Sci 2020; 10(9):226..

A falta de preparo e suporte para essa transição e efetivação, em especial a morosidade no planejamento das ações pelos gestores da instituição, tiveram relevante impacto na saúde mental dos professores. Estudos realizados no Chile e no Uruguai também apontaram morosidade institucional3232 Ramos-Huenteo V, García-Vásquez H, Olea-González C, Lobos-Peña K, Sáez-Delgado F. Percepción docente respecto al trabajo pedagógico durante la COVID-19. CienciAmérica 2020; 9(2):334-353.,4343 Failache E, Katzkowicz N, Machado A. La Educación en Tiempos de Pandemia y el Día Después: El Caso de Uruguay. Rev Int Educ Justicia Soc 2020; 9(3):1-9.. Quanto mais imprevisível e incontrolável for a situação vivenciada, maior será a probabilidade de ser percebido como estressante1515 Lazarus RS, Folkman S. Stress, Appraisal and Coping. New York: Spinger; 1984.. O processo preparatório para vivenciar o evento pode favorecer a redução de seus efeitos nocivos. As experiências vivenciadas nesse cenário podem ser facilitadoras de transições futuras.

Além da preocupação com a capacidade de ministrar aulas e usar os recursos digitais, os participantes também destacaram preocupação com danos pedagógicos decorrentes da transição para o ensino não presencial, independente da área em que o curso era inserido. Essa inquietação também foi identificada entre os professores vinculados a disciplinas exclusivamente teóricas, com a manifestação de receios quanto ao impacto no processo ensino-aprendizagem advindas das limitações de interação, a capacidade de aprendizagem dos estudantes e a maior necessidade de o professor identificar as necessidades de cada estudante:

Há um prejuízo enorme do ponto de vista pedagógico, ou seja, a corporalidade, a presença é uma coisa muito importante num processo pedagógico, os sinais que as pessoas te emitem quando você está ao vivo, um fato que é muito difícil por estar em ambiente virtual (E3 - ciências humanas).

Um estudo conduzido na Índia também apontou essa apreensão4444 Mishra L, Gupta T, Shree A. Online Teaching-Learning in Higher Education during Lockdown Period of COVID-19 Pandemic. Int J Educ Res Open 2020; 1:100012., foi identificado que a motivação dos professores para o ensino remoto esteve relacionada ao quão convencidos estavam sobre os benefícios dessa modalidade de ensino.

Além disso, a preocupação com o prejuízo pedagógico desencadeou sentimentos negativos em relação a si e ao trabalho desenvolvido, podendo, se perdurado por longos períodos, acarretar em baixa realização pessoal e despersonalização do trabalho4545 García Padilla AA, Escorcia Bonivento CV, Perez Suarez BS. Burnout Syndrome and Self-Efficacy Beliefs in Professors. Propositos Representaciones 2017; 5(2):65-126.:

Eu me coloco uma pressão interna, rola um sentimento de culpa, entendeu? De não tá conseguindo fazer, escrever tudo que deveria, de entregar menos para os alunos [...] baixa aquele sentimento de culpa, de sentir o tempo perdido, que você não foi suficientemente competente para dar conta (E9 - ciências biológicas).

Angústias e medos relacionados à pandemia

No momento em que as entrevistas foram realizadas, nenhum docente relatou infecção pelo vírus, nem mesmo em familiares, amigos próximos ou alunos. Não ter se infectado pode ter relação com a possibilidade de realizar o trabalho remoto e cumprir o isolamento físico desde o momento em que tais medidas foram decretadas. Entretanto, medos e angústias relacionados à pandemia, articulam-se aos novos estressores se somando àqueles já vivenciados pelos docentes88 Quattrone F, Borghini A, Emdin M, Nuti S. Protecting higher education institutions from COVID-19: insights from an Italian experience. J Am Coll Health 2022; 70(5):1354-1355.

9 Metcalfe AS. Visualizing the COVID-19 pandemic response in Canadian higher education: an extended photo essay. Stud High Educ 2020; 46(1):5-18.
-1010 Peloso RM, Cotrin P, Oliveira RCG, Oliveira RC, Camacho DP, Pelloso SM, Freitas KMS. Impact of COVID-19 on healthcare graduation courses: students and professors' perspective. Res Soc Dev 2020; 9(9):e893998099.. A necessidade de isolamento físico, as condições nem sempre favoráveis para o trabalho em casa, a falta de treinamento e de orientação para realizar o ensino remoto, dificuldade em estabelecer ciclos de trabalho e atividades da rotina pessoal, além da própria imprevisibilidade da pandemia, foram situações vivenciadas como estressores por estes professores, e trouxe repercussões físicas e mentais, como estresse e ansiedade1515 Lazarus RS, Folkman S. Stress, Appraisal and Coping. New York: Spinger; 1984.:

Eu fiquei totalmente paranoico, morro de medo de morrer de covid, tenho muito medo de pegar, medo de morrer, medo da minha filha pegar e ficar com alguma sequela, da minha esposa pegar, meus pais. Então isso me dá medo, eu tenho medo, tenho medo da covid (E6 - ciências exatas).

Eu fiz exames e tive vários testes alterados, por ficar em casa, não caminhar, medo de contato com o vírus (E11 - ciências exatas).

O advento da COVID-19, uma nova doença, altamente transmissível e responsável por elevado número de mortes, representa, por si só, um evento gerador de estresse para toda a sociedade. Para os docentes do ensino superior, diversos novos estressores foram adicionados a esse cenário, sendo urgente a identificação dos fatores estressores e de seus impactos para elaboração e implementação de ações direcionadas a esses fatores, reduzindo, assim, as consequências para os docentes, estudantes universitários e IES. A identificação desses estressores favorece o desenvolvimento de estratégias para momentos futuros de mudanças repentinas na rotina de trabalho docente.

Forças e limitações do estudo

Os docentes entrevistados possuíam vínculo de trabalho estável por serem funcionários públicos. Assim, o possível estresse vinculado à ameaça de redução de carga horária ou o medo de demissão no contexto da pandemia, que aconteceram em IES do setor privado, não apareceram nas entrevistas como fatores estressores, o que limita nossos achados para IES do setor público. Ainda que não se conhecessem previamente, ser da mesma instituição, pode ter afetado algumas respostas, no sentido de os entrevistados fornecerem respostas socialmente mais aceitas. Ressalta-se que essa é uma das poucas pesquisas, que investigaram as transformações do trabalho docente e seus impactos durante a pandemia da COVID-19 em países de baixa e média rendas. Além disso, a pesquisa incluiu docentes de curso de diversas áreas (humanas, biológicas e exatas), de cursos localizados em vários municípios, com realidades socioeconômicas distintas, o que permitiu incluir as perspectivas de professores universitários em contextos diversos, e evitou limitar a investigação à percepção de docentes de apenas uma área específica.

Considerações finais

As percepções dos docentes entrevistados sobre as modificações da rotina de trabalho impostas pela pandemia da COVID-19, incluíram sobrecarga de trabalho, carga elevada de estresse vinculada à aquisição de novas habilidades para o processo de ensino-aprendizagem em ambiente virtual, às relações dos docentes com alunos, seus pares e com a instituição, à dificuldade de limitar horas de trabalho e de descanso, e aos medos e angústias relacionados à própria pandemia.

Dessa forma, nossos resultados trazem implicações para docentes e IES, como a necessidade de elaborar ações específicas para: (1) aprimoramento das dinâmicas comunicacionais; (2) para a saúde mental da comunidade universitária, que favoreçam a busca de cuidado, reduzam o estigma e sejam espaços para reflexão sobre como mitigar o estresse no ambiente universitário; e (3) inclusão no planejamento institucional ferramentas para analisar os impactos e a sustentabilidade dessas ações.

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Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Fev 2023

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 2022
  • Aceito
    29 Ago 2022
  • Publicado
    31 Ago 2022
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