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Da perda do objeto: o encontro sobre o abismo

De la perte de l’objet: le rencontre sur l’abîme

De la pérdida del objeto: el encuentro sobre el abismo

Resumo

Este artigo teoriza sobre a relação entre a perda do objeto de satisfação plena e as possíveis experiências de gozo. A fim de empreender essa discussão serão tomados como centrais os conceitos de das Ding em Freud e objeto a em Lacan, alicerçados nos conceitos de angústia, gozo e erotismo, este último encontrado nas elaborações do filósofo Georges Bataille. Ademais, será resgatada a noção de sublimação, via de satisfação pela qual o sujeito bordeja o furo deixado pela perda do objeto fazendo um laço social. O registro simbólico é, portanto, o responsável por fazer este laço, já que estaria nas palavras a possibilidade de um encontro sobre o abismo cavado pela divisão sexual. A linguagem teria, portanto, a função de preencher o buraco deixado pela perda do objeto, uma promessa apaziguadora, mas impossível de ser bem-sucedida, uma vez que sobre essa fenda nada se fala.

Palavras-chave:
objeto; sujeito; gozo; linguagem; das Ding

Résumé

L’article théorise sur la relation entre la perte de l’objet de satisfaction pleine et des possibles expériences de jouissance. Pour entreprendre cette discussion on prend, comme des concepts centraux, das Ding chez Freud et l’objet a chez Lacan, fondés sur les concepts de l’angoisse, de joie et d’érotisme, le dernier trouvé chez le philosophe Georges Bataille. Il sera également rachetée la notion de sublimation, par l’intermédiaire de la satisfaction par lequel le sujet borde le trou laissé par la perte de l’objet faisant lien social. Le registre symbolique est donc chargé de faire ce lien, car la possibilité d’une réunion sur la fosse creusée par la division sexuelle serait dans les mots. Le langage aurait donc la fonction à remplir le trou laissé par la perte de l’objet, une promesse apaisante mais impossible d’être couronnée de succès, puisque rien de cette fente est parlé.

Mots-clés:
objet; sujet; jouissance; langage; das Ding

Resumen

El artículo teoriza sobre la relación entre la pérdida del objeto de satisfacción plena y las posibles experiencias del gozo. A fin de emprender esa discusión serán tomados como centrales los conceptos de das Ding en Freud y objeto a en Lacan, basado en los conceptos de angustia, gozo y erotismo, éste encontrado en las elaboraciones del filósofo Georges Bataille. Será también rescatada la noción de sublimación, vía de satisfacción por la cual el sujeto aborda el vacío dejado por la pérdida del objeto haciendo lazo social. El registro simbólico es por lo tanto responsable por hacer este lazo, pues estaría en las palabras la posibilidad de un encuentro sobre el abismo producido por la división sexual. El lenguaje tendría, por lo tanto, la función de tapar el vacío dejado por la pérdida del objeto, una promesa apaciguadora, pero imposible de ser exitosa, ya que una vez tapado el vacío después nada se habla.

Palabras clave:
objeto; sujeto; gozo; lenguaje; das Ding

Abstract

This paper contains theories regarding the relationship between the loss of the object of full satisfaction and the possible experiences of jouissance. In order to undertake this discussion, central concepts will be used such as those from das Ding in Freud, and the object “a” in Lacan, based on the concepts of anguish, joy and eroticism, the latter being a concept found in Georges Bataille’s works. It will also recover the notion of sublimation, the path to satisfaction by which the subject borders the emptiness left by the loss of the object, making a social bond. The symbolic register is thus responsible for making this bond, because by using words the subject could possibly make an encounter over the abyss created by sexual detachment. Language would therefore have the function of filling the emptiness left by the loss of the object, a soothing promise, but impossible to be fulfilled, since nothing is said about this emptiness.

Keywords:
object; subject; jouissance; language; das Ding

Entre um ser e outro, há um abismo,

há uma descontinuidade.

Bataille

O sujeito, para a psicanálise, é fraturado por uma cisão entre sistemas regidos por princípios distintos, como o inconsciente, princípio de prazer, e o consciente, princípio de realidade. Esta secção na topologia psíquica é um corte que nos remete à origem da palavra sexo e carrega a noção de uma separação entre continentes. Um continente é reconhecido por sua borda, seu limite, uma marca, assim como para o psiquismo, que tem no corte da experiência com a realidade a inscrição do sexual na experiência humana. Esta divisão é a cicatriz que posteriormente, na tentativa de retomar um tempo anterior à borda, será vivida como trauma.

Não muito distante desta secção psicanalítica, Bataille pensa o ser em sua essência descontínua de que já na reprodução a descontinuidade estaria em jogo. Desde esse momento originário somos separados por um abismo, ou seja, a dissolução das formas contínuas provoca um abismo entre um ser e outro, e estes são apenas capazes de compartilhar a vertigem desse abismo.

Partindo da concepção da secção traumática e da descontinuidade do ser, chega-se a um núcleo comum da experiência que é a incompletude, marca traumatizante no sujeito que acredita na possibilidade de certo dia vivenciar o prazer máximo e, aliviado, poder dizer que tudo está completo. Contudo, no instante em que a satisfação não é devidamente alcançada - e nunca o será completamente devido à secção em sua origem - o sujeito vive a inconsistência do objeto eleito, e a falta apresentada o mantém ligado ao movimento que insiste no encontro com o contínuo da satisfação total. Esse objeto, no entanto, não vem e nunca virá, pois há um abismo intransponível entre eles - abismo esse agora pensado pela psicanálise entre o sujeito do desejo e o objeto desejado.

A inadequação permanente do objeto é fator de diferenciação do homem e do animal. Quanto aos animais pode-se dizer da completa satisfação das suas necessidades, ao passo que do homem fala-se de uma parcial satisfação do desejo. Ideia melhor desenvolvida por (Freud, 1930/1997Freud, S. (1997). O mal-estar na civilização. In Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)) em seu texto O mal-estar na civilização, o que ele denomina de recalque orgânico numa extensa nota de rodapé, diz de um esquecimento da espécie na passagem de um tempo mítico, anterior à inscrição da linguagem nos desdobramentos do humano. No texto freudiano, a aquisição da bipedia e o distanciamento do olfato dos órgãos sexuais teriam processualmente estabelecido o primado da visão e o deslocar do funcionamento instintual para o pulsional, como reelabora Marco Antonio Coutinho (Jorge, 2013Jorge, M. A. C. (2013). De Freud a Lacan: do objeto perdido ao objeto a. In M. A. C. Jorge & A. Quinet (Orgs.), As homossexualidades na psicanálise: na história de sua despatologização (pp. 141-151). São Paulo, SP: Segmento Farma.), psicanalista brasileiro que retoma essa passagem enfatizando a importância de seus efeitos na releitura freudiana:

Após a perda do olfato como elemento predominante, todos os orifícios corporais parecem ter sido acionados na produção da excitação sexual, e o corpo, regido outrora pelo sentido unívoco do olfato, parece ter passado a explorar a complexa pluralidade a ele inerente. (p. 145)

Nas especulações sobre essas diferenças, haveria para o animal um saber instintual que o dirigiria ao objeto adequado à satisfação de seus órgãos e, portanto, à reprodução, que não se apresenta como uma questão diante da sua existência, da sua continuidade, pois também sua finitude não está em questão. Ou seja, a dissolução das formas contínuas estaria posta para o homem, ser de linguagem, como esta que surge em suplência do que foi perdido na espécie, a saber, o objeto de satisfação do órgão. Resta ao homem certo acordo com a satisfação que a linguagem permite aceder ao corpo. Ou, por outro lado, um tanto a mais de satisfação, denominado não mais de prazer, mas de gozo, o qual insiste em dizer que a linguagem ocupa um lugar não totalmente representado por seu teor de suplência.

Ainda mais claramente do que o prazer, o gozo dá deliberadamente notícia da pulsão como essa energia que, não fosse a perda do objeto total, poderia ser nomeada instinto, mas que ao inscrever uma espécie animal no mundo da linguagem aponta para a impossibilidade do sujeito se ver alheio ao abismo que separa o homem do animal. Dessa forma, o sujeito pulsional faz-se sujeito duvidoso, já que, a partir de então, o não-saber sobre seu corpo e, muito menos, o que fazer com ele, desdobrar-se-á na sexualidade humana, e esta se fará palavra, a palavra de ordem.

Então, por não se ter um objeto correspondente às formas prévias de satisfação pautadas pela reprodução, qual objeto caberia às formas de satisfação? Não há, pois, direcionamento sobre a cópula e sobre qual objeto escolher para a satisfação dos órgãos. Há aqui um movimento paradoxal de liberdade e limitação, visto que, concomitante à perda do objeto e à consequente pluralidade de opções, o homem não mais gozará de sua escolha objetal como o animal o faz, logo “É nessa medida que se pode dizer que o homem é tão livre quanto determinado” (Mello, 2001Mello, D. M. (2001). A face oculta do amor: a tragédia à luz da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Imago., p. 116). Nessa direção, a ausência de um objeto específico caracteriza a experiência humana enquanto um caminhar esperançoso do reencontro com o objeto da máxima satisfação - mítica - um dia obtida. Caminhar esse trilhado por desencontros, mas, certamente, também prenhe de instantes de júbilo, como explicita (Lacan, 1994/1995Lacan, J. (1995). O seminário, livro 4: a relação de objeto (D. D. Estrada, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1994).):

É através da busca de uma satisfação passada e ultrapassada que o novo objeto é procurado, e que é encontrado e apreendido noutra parte que não no ponto onde se procura. Existe aí uma distância fundamental, introduzida pelo elemento essencialmente conflitual incluído em toda busca de objeto. (p. 13)

Se o objeto não está ali aonde se esperava encontrá-lo, mas em outro ponto ainda desconhecido, tão logo se conclui que é por nunca encontrá-lo que a pulsão se movimenta livremente, sendo assim, plástica. Assim, “... das Ding seria o referente, o fundamento de todas as relações de objeto, no sentido daquilo que é buscado e nunca encontrado” (França, 1997França, M. I. (1997). Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo, SP: Perspectiva., p. 86), ou seja, das Ding é a Coisa que antecede a aparição do objeto perdido da pulsão e, portanto, estaria na sua constituição como causa motriz do devaneio desejante. Segundo (Garcia-Roza, 2004Garcia-Roza, L. A. (2004). Introdução à metapsicologia freudiana (Vol. 3, 6a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.), os objetos se oferecem como pretendentes para ocupar o lugar da Coisa, perdida, já que nunca foi obtida.

Essa satisfação primeira, remetida inicialmente ao passado filogenético, se repete nos primeiros instantes da vida do sujeito. Diz de uma experiência excessiva de invasão do Outro em que os sentidos, ainda crus do bebê, são bombardeados por estímulos que vêm de todos os lados e com várias intensidades. Esse Outro investe o infante por meio da linguagem, marcando-lhe o corpo e cravando na carne o seu desejo por meio da palavra - nisso que ela guarda de condensação das experiências sensoriais: tátil, olfativa, gustativa, visual e auditiva. O corpo do bebê é então recortado pela inscrição dos significantes advindos daquele que primeiramente exerce a função de cuidador e, ao preço de sua sobrevivência, entrega-se aos caprichos do Outro.

Há, pois, uma condição de dependência absoluta e, portanto, de alienação ao desejo do Outro. Esse oferece para o infante o mundo da linguagem, via pela qual se faz possível a estruturação do sujeito. Logo, a palavra que inicialmente é como que emprestada irá posteriormente ser tomada para si como própria, efeito da alteridade do Outro. Assim, pode-se afirmar que o efeito radical da palavra é a assunção do sujeito, tal como diz (Garcia-Roza, 1990Garcia-Roza, L. A. (1990). O mal radical em Freud (4a ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.):

Ao ser através do qual a palavra fez sua emergência - e que foi por ela constituído - chamamos homem. A palavra não fez sua emergência no homem; o homem é um efeito dessa emergência. Tendo feito sua emergência, a palavra ressignificou ou simplesmente significou o próprio corpo com suas faltas, assim como os objetos do mundo. O efeito imediato foi a desnaturalização do corpo, das suas necessidades e dos objetos do mundo, assim como o surgimento de uma nova ordem: a ordem simbólica. (p. 16)

A ordem simbólica é, pois, entendida como o conjunto de significantes sempre endereçados ao terceiro da relação, a linguagem. O registro simbólico é responsável por fazer o laço social, ou seja, estaria nas palavras a possibilidade de um encontro sobre o abismo cavado pela divisão sexual. A linguagem teria, portanto, a função de preencher o buraco deixado pela perda do objeto, uma promessa apaziguadora, mas impossível de ser bem-sucedida, uma vez que sobre essa fenda nada se fala, ela é da ordem do não-senso, do real inabitado pela linguagem.

O real como fenda não existe para o sujeito de forma direta e pode apenas ser sobrevisto por meio de seu entrelaçamento com o imaginário e o simbólico. Sua presença se dá pela ausência, como se pode ver na cadência sonora das palavras em que a fluidez dos sons é efeito do espaço cortante entre uma palavra e outra, espaço em que nada se apresenta senão o silêncio continente do ritmo e do sentido a ser criado. Dessa forma, para que a palavra ganhe significações, deve persistir um tanto irrepresentável, que resta alheio aos significantes. Esta que seria a “Hiância irredutível no simbólico, o que se comprova pelo fato de nenhuma linguagem permitir dizer toda a verdade, que só pode ser meio dita” (Miranda & Alberti, 2012Miranda, E. R. & Alberti, S. (2012). A função do feminino para a noção de estrutura em psicanálise. Tempo psicanalítico, 44(2), 371-387. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v44n2/v44n2a08.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v44n2...
, p. 378). Sobre o real e a linguagem tais psicanalistas completam:

O Real como indizível presentifica um ponto de falta determinante de todo o discurso. Mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente, a lógica do inconsciente referida à linguagem, ao ponto de falta em torno do qual ela se organiza, é o que permite encontrar uma orientação no discurso e, em suas tentativas de dar sentido, significar o que jamais terá um único significado. O Real é o que comanda toda a função de significância; por isso, não é possível que o significante diga tudo ou represente um sujeito. (p. 442)

O sujeito é repetidamente arrebatado por momentos de excesso pulsional em que nenhuma palavra consegue dar contorno significante. Assim, faz-se trauma num tempo depois, aquilo que no instante vivido não foi representado, o que deixará marcas e inscrições que darão notícias desse transbordamento pulsional. Se em diversas ocasiões o sujeito é acometido por momentos como estes, são eles reatualizações de um momento mítico que diz do irrepresentável desamparo inaugural, tempo de dependência absoluta do Outro.

Como efeito desse desamparo o recém-nascido é surpreendido pela angústia primordial, puro afeto que dá notícia do excesso de energia pulsante no corpo ainda despedaçado do bebê. Assim, é referente a esse tempo não representável, de um hiato entre a pura pulsão e o universo simbólico (França, 1997França, M. I. (1997). Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo, SP: Perspectiva.), que as posteriores experiências traumáticas também incitarão a angústia como defesa. Este afeto que sinaliza a aproximação ao real pode paralisar e emudecer o sujeito.

O que tanto a angústia sinal, um segundo tempo da angústia vivida no pós-calcar, como a angústia primordial dão a ver é a posição irremediável do sujeito como faltante. A falta do objeto que vá saciar o homem tal como a água aplaca a sede animal, é o que anuncia o sujeito enquanto incompleto em sua radicalidade. Dito de outra forma, a angústia testemunha o fracasso da pulsão em se satisfazer com o objeto escolhido, pois é a impressão da angústia como afeto indizível e indeterminado que carrega a verdade de uma estrutura ausente, e que ecoa, na estrutura e na rede significante, a dinâmica da finitude diante da insistência pulsional (França, 1997França, M. I. (1997). Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo, SP: Perspectiva.).

A palavra viria, assim, tentar dar borda à angústia e, pois, ato (Lacan, 1963/2005Lacan, J. (2005). Introdução aos Nomes-do-Pai. In Nomes-do-Pai (A. Telles, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1963)), faz efeito no Outro, efeito significante que funda o inconsciente e, portanto, o sujeito. Se num primeiro tempo há a alienação da criança a este Outro que lhe oferece/invade com nomeações, é na hiância entre um significante e outro que a criança passa a desconfiar que não será bem-sucedida no enigma do desejo do Outro e no próprio desejo. Logo, ante a castração no Outro, o sujeito, que até então permanecia à revelia dos seus direcionamentos, inaugura o trajeto de escrita sobre o próprio desejo e não tão somente o desejo do desejo do Outro. De acordo com (Mello, 2001Mello, D. M. (2001). A face oculta do amor: a tragédia à luz da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Imago.):

... é sobre esse mais além do Outro que se dirige a interrogação do sujeito. Sobre a mancha negra, o enigma, a obscuridade do desejo do Outro, do desejo que atravessa o Outro, que o desejo do sujeito se erige, buscando encontrar sua expressão através das demandas, das articulações significantes, que não são jamais capazes de apreender inteiramente. Assim, se configura a impossibilidade estrutural de ultrapassar a interrogação sobre o desejo do Outro. (p. 89)

Se não é possível obter respostas sobre o desejo do Outro, é possível rastreá-lo nas marcas significantes deixadas no corpo daquele que é eleito como objeto de desejo, aqui pensado nos primeiros momentos da vida do sujeito, o bebê. Quando a linguagem incide na carne ainda crua de representações faz inscrições mortíferas no corpo que é de pura intensidade: são rasgos de dor e prazer, de vida e de morte, de excessos que causam bordas. Um tanto, porém, resta e resiste à significação, um tanto do corpo escorre e não se aprisiona ao significante, é o que dá notícias de outro tempo em que se podia gozar em absoluto do objeto. Conforme (Lacan, 1975/2008Lacan, J. (2008). O seminário: livro 20: mais, ainda (M. D. Magno, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1975).) sobre a relação significante e gozo:

O significante é a causa do gozo. Sem o significante, como mesmo abordar aquela parte do corpo? Como, sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a causa material? Por mais desmanchado, por mais confuso que isto seja, é uma parte que, do corpo, é significada nesse depósito. (p. 30)

Mas, afinal, o que seria esse gozo? Ao invés de fechar tal noção em proposições diretas, ela será aberta e implodida pela concepção de Erotismo apresentada por (Bataille, 2013Bataille, G. (2013). O erotismo (Fernando Scheibe, trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica.). O autor, nomeado pela crítica como devasso tanto por seus hábitos quanto pelo uso de palavras chulas e a descrição de atos inescrupulosos, chocou os leitores de sua época e hoje salta aos olhos de outros que se interessam por sua literatura amoral. Em sua escrita ele deixa entrever o excesso das intensidades do corpo e as fissuras no interior da linguagem, o que impulsionaria sua produção, expectativa de via à subversão da própria língua, a empreender sucessivas transgressões de limites. Limites do corpo ou do pensamento, o que quer que seja, para ele há a exigência de que tudo fosse levado à constante superação, sem jamais alcançar um estado de repouso, estando o sujeito sempre em estado de abertura (Nunes, 2012Nunes, T. R. (2012). Bataille, Lacan e a tautologia do singular (Tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.).

O que o filósofo pontua sem pudores é que justamente os pudores, tabus e padrões moralizantes são contenções às possibilidades de o sujeito obter prazer e que devem ser questionadas e superadas. Assim, a lei existe para que ela possa ser testada em seus limites, avançando sempre mais um pouco além do que fora determinado. O que haveria do lado de lá da fronteira do permitido seria a experiência de prazer máximo, aquele que levaria o corpo ao êxtase pleno. Mas, se esse gozo é inalcançável, de quê serviriam tantas barreiras morais? Para Bataille a jurisdição viria disfarçar a impossibilidade deste gozo, ou seja, a sociedade cria leis para apaziguar o sujeito dizendo-lhe que a satisfação esperada ainda não fora alcançada porque foi proibida e não porque seja impossível, como em verdade o é.

A possibilidade de transgredir a lei, porém, está sempre lá, tal como disse (Bataille, 2013Bataille, G. (2013). O erotismo (Fernando Scheibe, trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica.), o sujeito conserva o interdito para dele gozar:

No momento de dar o passo, o desejo nos lança fora de nós, não podemos mais, o movimento que nos leva exigiria que nos quebrássemos. Mas o objeto do desejo que excede, diante de nós, nos religa à vida que o desejo excede. Como é doce permanecer longamente diante do objeto de desejo, mantermo-nos em vida no desejo, em vez de morrer indo até o fim, cedendo ao excesso de violência do desejo. Sabemos que a posse desse objeto que nos queima é impossível. (p. 166)

O pensamento bataillano é transgressivo não por se expressar com palavras “desrespeitosas”, mas primordialmente por guardar em si a ideia de que o sujeito deve permitir o transbordamento do excesso em seu corpo, pois “A carne é em nós esse excesso que se opõe à lei da decência” (Bataille, 2013Bataille, G. (2013). O erotismo (Fernando Scheibe, trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica., p. 116). A lei deve ser arranhada pelas experiências de êxtase com as quais o homem deve se propor a viver. Sua fala, assim, “... evoca constantemente a abertura para uma experiência com a vida a se realizar fora do campo das injunções morais, uma experiência voltada à convulsão e à vertigem” (Nunes, 2012Nunes, T. R. (2012). Bataille, Lacan e a tautologia do singular (Tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília., p. 95).

Nesses termos, o gozo é para (Bataille, 2013Bataille, G. (2013). O erotismo (Fernando Scheibe, trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica.) essa experiência marcada pelo gasto inútil de energia, pela vida levada a uma intensidade máxima que, por assim se fazer, não se distanciaria da morte. A inutilidade do gozo é também proposta por (Lacan, 1975/2008Lacan, J. (2008). O seminário: livro 20: mais, ainda (M. D. Magno, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1975).) ao dizer, em seu seminário intitulado Mais, ainda, que ele não serve para nada, senão para o estremecimento da carne.

Não obstante, como já fora apresentado, esse gozo absoluto é interditado ao homem, sua promessa é mantida por trás da proibição, mas sua efetivação levaria à morte, “... o que quer dizer que, em seu ponto máximo de intensificação, a satisfação do desejo busca a cessação total da tensão, como se alcançasse a morte” (França, 1997França, M. I. (1997). Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo, SP: Perspectiva., p. 149). A exigência do encontro com o gozo absoluto é figurada por (Bataille, 2003Bataille, G. (2003). História do olho. São Paulo, SP: Cosac Naify.) em seu livro História do olho, no qual os personagens desafiam a cada ato sexual o limite entre a vida e a morte.

... Simone escapa à tentação. Morre como quem faz amor, porém na pureza (casta) e na imbecilidade da morte: a febre e a agonia a transfiguram. O carrasco a agride, ela permanece indiferente às pancadas, indiferente às palavras da devota, perdida no trabalho de agonia. Não se trata de forma alguma de um gozo erótico, é muito mais que isso. Mas sem saída. Também não se trata de masoquismo e, profundamente, essa exaltação é maior do que tudo o que a imaginação pode representar, ultrapassa tudo. Porém, ela se funda na solidão e na ausência de sentido. (p. 93)

O gozo erótico, como fora dito pelo escritor francês, foi extrapolado por Simone, ela foi mais além, até onde só havia a morte, instante agudo em que ela se cala e se faz indiferente à vida. Ali a pulsão de morte despregada de Eros determina o encontro da personagem com a continuidade perdida. É condição para manter-se em vida que a continuidade seja apenas um vislumbre interditado pela lei, assim, Bataille definiu o erotismo como “... a dança, propriamente humana, que se dá entre estes dois polos: o do interdito e o da transgressão” (2013Bataille, G. (2013). O erotismo (Fernando Scheibe, trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica., p. 16). O erotismo é para ele a afirmação da vida até na morte, ou seja, essa dança descompassada de existências descontínuas faz que os homens vivenciem experiências limites de ruptura com os padrões fixados, e é para essa passagem que a energia do corpo é investida. Pois, de acordo com (Bataille, 2013Bataille, G. (2013). O erotismo (Fernando Scheibe, trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica.):

Se vemos nos interditos essenciais a recusa que o ser opõe à natureza encarada como uma dissipação de energia viva e como orgia do aniquilamento, não podemos mais diferenciar a morte da sexualidade. A sexualidade e a morte são apenas os momentos agudos de uma festa que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres; uma e outra têm o sentido do desperdício ilimitado a que a natureza procede contrariando o desejo de durar, que é próprio a cada ser. (p. 63)

Não se deve pensar, porém, que tal escritor espera que o sujeito se destrua em experiências de violência mortal: ele propõe uma vida composta por momentos de corte com identidades fixas, prazeres estagnados e com tudo o que é morno. O sujeito deve superar e renovar incansavelmente seus encontros com o descontínuo e, como tal, levar o corpo às convulsões dos pequenos gozos. Logo, no erotismo, vida e morte estão tensionados, são heterogêneos, mas coexistentes. Dessa forma, só há morte na vida e vida na morte, e ambos movimentam o desejo.

A promessa de satisfação desse desejo é o que impulsiona o sujeito no movimento até das Ding. A pulsão contorna o vazio permanente da ausência de objeto. Através de criações fantasmáticas o sujeito elege objetos que são, na verdade, pequenos e insignificantes objetos dispostos sempre a uma mesma distância intransponível de das Ding. São essas representações do objeto a, fundamentalmente um não-objeto, um lugar vacante, porém disponível a constantes reposições. Assim, “o objeto perdido da história de cada sujeito - objeto a - pode ser reencontrado nos sucessivos substitutos que o sujeito organiza para si em seus deslocamentos simbólicos e investimentos libidinais imaginários” (Jorge, 2000Jorge, M. A. C. (2000). Fundamentos de psicanálise de Freud a Lacan (Vol. 1, 6a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 142).

Essa infinita possibilidade de objetos, no entanto, é sentida pelo sujeito como o que escancara a finitude do seu ser. Assim, a queda do objeto fantasiado como pleno faz advir o real da falta-a-ser, da fissura constituinte. Ver-se como descontínuo em tais instantes é causa que acomete o sujeito ao, enfrentando com o real e seu excesso inominável, o afeto de angústia vem em seu “socorro”, sinalizando-o do perigo eminente. O sujeito, por fim, tem diante de si possibilidades de escolhas de como reagir a esses momentos de puro conflito - a produção artística está entre elas -, efeito de movimento e borda simbólica ao real.

O face-a-face com o real é insuportável e, logo o sujeito se utiliza de algumas ferramentas que estão ao seu alcance, singulares ao seu percurso desejante e particulares ao seu contexto, é “na fracassada tentativa de atingir das Ding, (que) o sujeito encontra o vazio, encontro com o real traumático do qual nascem as respostas simbólicas diferenciadas no processo de repetição, eterno retorno de uma ausência”, como exemplificou Maria Inês França em Psicanálise, estética e ética do desejo (1997França, M. I. (1997). Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo, SP: Perspectiva., p. 150). Além das respostas simbólicas referenciadas pela autora, há também a escolha pelo esquecimento, pela paralisação num estado melancólico, dentre outras.

A sublimação pode ser uma das vias escolhidas pelo sujeito para não estagnar diante da apresentação do real nos instantes horríveis de assunção da falta, escolha esta que não é contínua na vida do sujeito, mas que pode se repetir, como na história de alguns artistas. Assim, ao se entregar ao corte criativo da pulsão de morte, que vem desfazer as unidades imaginárias, o sujeito se vê livre para a assunção do seu desejo em incontáveis possibilidades criativas.

Eros faz corte no silêncio da pulsão de morte, estabelecendo outros enlaces e criações significativas, demarcando “... a intimidade da destruição com a criação, pois na introdução da desordem um imperativo erótico se coloca, associando a dialética pulsional de Eros e Thanatos a um outro imperativo simbólico” (França, 1997França, M. I. (1997). Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo, SP: Perspectiva., p. 192).

Na insolúvel, porém necessária, tensão entre vida e morte, o excesso se apresenta tanto no movimento para a criação, quanto no horror que provocaria a paralisação do sujeito diante do abismo entre os significantes. Nesse abismo dá-se o entrever do real, disso que não cessa de não se inscrever no simbólico, ou seja, não se inscreve não por não existir, mas por exceder a possibilidade de inscrição. Esse não se inscrever totalmente mantém o desejo em movimento, é o entrever da rachadura causada pela secção do sujeito. Secção que provoca significações ao corpo por meio daquilo que é possível ser vivido como seu efeito, a saber, a sexualidade, que muito se distanciou do ato da cópula.

Dessa forma, é pela rachadura que o excesso provoca o sujeito a criar, mas por outro lado pode paralisá-lo. Fundamentalmente, de uma forma ou de outra, o sujeito se depara com a fumaça, com um sinal de angústia que pode se instalar, ou pode fazê-lo, por meio de uma pequena queda, se reerguer tomando outra posição em seu desejo. Na queda de sua posição ao abismo compartilhado, pode-se concluir que o processo criativo é ato erótico, alternativa disponível ao homem para que ele se despregue de uma verdade mortificadora e única. Mais além do imediato, a arte leva o sujeito a se reorientar, tendo como centro o excesso inacessível contido por uma trama ficcional, que recobre o suposto vazio como a rede de proteção do trapezista.

Referências

  • Bataille, G. (2003). História do olho. São Paulo, SP: Cosac Naify.
  • Bataille, G. (2013). O erotismo (Fernando Scheibe, trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica.
  • França, M. I. (1997). Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo, SP: Perspectiva.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2016
  • Aceito
    08 Mar 2016
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