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ESCOLA SEM PARTIDO E O PROCESSO DE DESDEMOCRATIZAÇÃO NO BRASIL

NONPARTISAN SCHOOL AND THE DE-DEMOCRATIZATION IN BRAZIL

Resumo

Este artigo analisa discursos pronunciados nas 31 reuniões e audiências públicas realizadas em 2017 e 2018, na Comissão Especial que apreciou o Projeto de Lei nº 7180, de 2014, conhecido como Projeto Escola Sem Partido. Nosso objetivo é verificar quais problemas são apresentados por seus defensores e como justificam as ações propostas. A análise de 265 manifestações individuais de parlamentares e convidados permitiu identificar a suposta ideia de doutrinação dos estudantes como o principal problema apontado. Nosso ponto de partida é o debate teórico sobre desdemocratização, com destaque para análises que discutem a privatização como forma de captura do público e do coletivo, assim como a expansão de formas de controle autoritário das condutas.Em diálogo com elas, analisamos as evidências empíricas, organizando os discursos em três frentes, que correspondem ao conjunto de ações apontadas pelos defensores do Escola Sem Partido (ESP) para barrar a “doutrinação”: (1) a expansão do privado em detrimento do público; (2) a censura de pautas e atores; e (3) a retração do compromisso estatal com agendas igualitárias. Concluímos que estes são elementos que constituem o processo de desdemocratização do ensino no país.

Palavras-chave:
desdemocratização; Escola sem Partido; Câmara dos Deputados; Público e privado; Família

Abstract

This article analyzes speeches given at the 31 meetings and public hearings held in 2017 and 2018 at the Special Commission that analyzed Bill 7180, of 2014, known as Nonpartisan School (ESP, in the Portuguese acronym) project. Our aim is to verify which issues their defenders present and how they justify the proposed actions. The analysis of 265 individual manifestations of parliamentarians and guests allowed to identify the supposed idea of indoctrination of the students as the main problem pointed out. We depart from the theoretical debate on de-democratization, specially the analysis that discuss the privatization as a way of capture of the public and the collective, as well as the expansion of the authoritarian control of conducts. Engaging with them, we analyze the empirical evidence organizing the discourses on three fronts, which correspond to the set of actions pointed out by ESP defenders to stop “indoctrination:” a) the expansion of the private to the detriment of the public; b) the censorship of agendas and actors; c) the retraction of the state’s commitment to egalitarian agendas. We conclude that these are the elements that constitute the de-democratization process of education in the country.

Keywords:
De-democratization; Nonpartisan School; Chamber of Deputies; Public and private; Family

Introdução

Nas primeiras décadas do século XX, a literatura sobre consolidação e qualidade das democracias deu lugar, paulatinamente, ao debate sobre a crise das democracias liberais. Compreensões distintas do que está em curso fazem parte de estudos que mobilizam, além da noção de crise, as ideias de erosão, desconsolidação e desdemocratização. Este artigo se insere nesse debate e procura colaborar para o fortalecimento de análises teóricas situadas dos processos de desdemocratização. O estudo criterioso de processos localizados pode ser importante para que o debate teórico incorpore dimensões que nem sempre são consideradas, como a das disputas morais e relacionadas ao gênero, e variações nacionais e regionais, que constituem os processos de consolidação e de desconstrução das democracias. Também pode colaborar para estudos comparados, ao identificar mecanismos que podem ser reconhecidos em outros contextos.

Aqui, procuramos fazê-lo por meio da análise do movimento Escola Sem Partido (ESP). Ele pode ser caracterizado como um “movimento conservador que busca mobilizar princípios religiosos, a defesa da família em moldes tradicionais e a oposição a partidos políticos de esquerda e de origem popular” (Macedo, 2017MACEDO, Elizabeth. 2017. As demandas conservadoras do Movimento Escola sem Partido e a Base Nacional Curricular Comum. Educação & Sociedade, v. 38, n. 139, pp. 507-524.). Criado em 2004, ganhou maior visibilidade política com o Projeto de Lei 7.180/2014, proposto pelo deputado evangélico da igreja Assembleia de Deus, Erivelton Santana, do Partido Social Cristão da Bahia (PSC/BA). O projeto busca alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/1990), com a inclusão do seguinte inciso no artigo que versa sobre os princípios que regem o ensino: “respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas” (Brasil, 2014BRASIL. 2014. Projeto de Lei nº 7180 de 24 de fevereiro de 2014. Inclui entre os princípios do ensino o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa. Adapta a legislação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, ratificada pelo Governo Brasileiro. Deputado Erivelton Santana. Brasília, DF: Câmara dos Deputados. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/40ToBdL . Acesso em: 30 out. 2023.
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).

Nossa investigação se volta, mais especificamente, para os discursos proferidos pelos parlamentares e seus convidados na Comissão Especial para análise do projeto Escola Sem Partido, entre o momento de sua criação, em outubro de 2016, e o final de 2018, quando a comissão encerrou suas atividades com o término da 55ª Legislatura, sem que o projeto tivesse sido aprovado.

Entendemos que o ESP encontrou oportunidades de difusão e institucionalização no processo recente de crise da democracia no Brasil. Uma das características dessa crise no caso brasileiro é que apelos morais, entre os quais se destacam os apelos à moralização da política (definida em oposição à corrupção) e das relações sociais cotidianas (definida em oposição às mudanças nas relações de gênero e nos padrões da vida familiar, afetiva e sexual), têm justificado a promoção do atropelo de garantias legais e a erosão de valores e instituições democráticas.

No quadro analítico deste estudo, é importante a compreensão de como os discursos na Comissão Especial do Escola Sem Partido apresentam problemas e apontam quais seriam as ações adequadas para sua solução. Nossa análise se ampara, principalmente, no debate teórico sobre desdemocratização, que será apresentado na primeira seção deste artigo. É, também, referenciada pelo conceito de enquadramento de Robert Entman (1993ENTMAN, Robert. 1993. Framing: Toward Clarification of a Fractured Paradigm. Journal of Communication, v. 43, n. 4.) e pelo conceito de problematização de Carol Bacchi (2012BACCHI, Carol. 2012. Why study problematizations? Making politics visible. Open Journal of Political Science, v. 2, n. 1, pp. 1-8., 2015BACCHI, Carol. 2015. The turn to problematization: political implications of contrasting interpretive and poststructural adaptations. Open Journal of Political Science , n. 5, pp. 1-12.). Essas duas referências nos orientam metodologicamente, permitindo acessar as problematizações, suas premissas e causas, assim como as ações que são apontadas para a resolução dos problemas. É importante ressaltar mais uma vez que, mais do que uma análise formal dos discursos e seus enquadramentos, pretendemos discutir os discursos no quadro teórico normativo do debate sobre desdemocratização.

Nossa hipótese é que a definição da “doutrinação” como problema, pelo ESP, com as premissas que mobiliza, justifica ações que constituem o processo de desdemocratização no país. Em conjunto, elas envolvem a “expansão da esfera pessoal protegida” (Brown, 2019BROWN, Wendy. 2019. In the ruins of neoliberalism: the rise of antidemocratic politics in the West. Nova York: Columbia University Press.) e a restrição da pluralidade. Podem, como se verá, justificar a censura àqueles de quem os defensores do ESP divergem.

O artigo se divide em três seções, além desta introdução. Na primeira, situamos nosso problema de pesquisa teórica e analiticamente, mobilizando eventos do processo político brasileiro de crise da democracia e o debate teórico sobre desdemocratização. Fazemos isso evidenciando a dimensão das disputas morais e de gênero, o que nos leva, como se verá, a discutir brevemente a relação entre desdemocratização, privatização e “familismo”. A segunda seção apresenta a tramitação do projeto do Escola Sem Partido na Câmara dos Deputados, limitando-se inicialmente a uma análise descritiva dos projetos pensados e do trabalho da comissão especial, criada em 2016, para sua apreciação. Com isso, pretendemos contribuir também para estudos voltados especificamente para a compreensão de como essa proposta ganhou guarida naquela casa legislativa e quem são os atores envolvidos. Numa terceira seção, analisamos os discursos na comissão. É aqui que identificamos os problemas e suas premissas, assim como as ações apontadas como necessárias a partir deles. Isso é feito, como se verá, à luz do debate teórico sobre desdemocratização apresentado na próxima seção. Por fim, apresentamos uma breve conclusão, alertando para a importância de se investigar as disputas morais e relacionadas ao gênero como uma dimensão dos processos de desdemocratização.

Desdemocratização: menos política e mais família

Os protestos de junho de 2013, no Brasil, têm sido analisados como um evento “saturado de múltiplas significações, que marca um momento de ruptura, um reposicionamento dos atores e um deslocamento paulatino das agendas e das posições prévias” (Bringel, 2022BRINGEL, Breno. 2022. Campos de ação e conflito político no Brasil. In: TAVARES, Francisco; BALLESTRIN, Luciana; MENDONÇA, Ricardo. Junho de 2013: Sociedade, Política e Democracia no Brasil . Rio de Janeiro: EdUERJ ., p. 316-17). Em sua multiplicidade e indeterminação, acabou por explicitar o mal-estar na democracia (Avritzer, 2018AVRITZER, Leonardo. 2018. O pêndulo da democracia no Brasil: uma análise da crise 2013-2018. Novos Estudos Cebrap, v. 37, n. 2, pp. 273-289.) e chamar a atenção para “o lado indesejável da sociedade civil” (Ballestrin, 2022BALLESTRIN, Luciana. 2022. Junho de 2013 e a crise democrática no Brasil: notas finais. In: TAVARES, Francisco; BALLESTRIN, Luciana; MENDONÇA, Ricardo. Junho de 2013: Sociedade, Política e Democracia no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ.). Discursos antissistêmicos e anticorrupção fizeram parte da emergência de identidades políticas coletivas que estariam, posteriormente, associadas ao bolsonarismo e às novas expressões da extrema-direita (Pinto, 2022PINTO, Céli. 2022. Para uma leitura pós-estruturalista dos eventos de 2013. In: TAVARES, Francisco; BALLESTRIN, Luciana; MENDONÇA, Ricardo (org.). Junho de 2013: Sociedade, Política e Democracia no Brasil . Rio de Janeiro: EdUERJ .; Solano, 2018aSOLANO, Esther. 2018a. Crise da democracia e extremismos de direita. Friedrich Ebert Stiftung, n. 42, pp. 1-29., 2018bSOLANO, Esther (org.). 2018b. O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo .).

Foi no ano de 2014, no entanto, que dois eventos deram o arranque para a erosão da democracia no âmbito institucional. Em março, iniciou-se a Operação Lava-Jato, força-tarefa do Ministério Público e da Polícia Federal criada para investigar desvios de recursos por agentes públicos. O espaço concedido pelos principais veículos de mídia nacionais, associado ao modo de operar dos promotores e juízes envolvidos, fez dela um espetáculo de grandes proporções, em que mandados de busca e apreensão e prisões de políticos e empresários reforçaram visões negativas da política e dos políticos, abrindo espaço para novos movimentos de direita e extrema-direita identificados com a bandeira anticorrupção. Foi também em 2014 que a vitória de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais foi contestada pelo candidato derrotado, Aécio Neves, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), algo inédito no ciclo democrático que se iniciou nos anos 1980. Com isso, aspectos procedimentais da democracia foram atingidos: a candidatura vencedora foi contestada para, em seguida, por meio de um impeachment controverso, definido como golpe parlamentar por muitos analistas, retirar-se dela a possibilidade de implementar a agenda que venceu as eleições. Por mais paradoxal que fosse a aposta desenvolvimentista de Rousseff (Singer, 2019), esse evento abriria um processo acelerado de retração e desregulamentação, mas também de contestação aberta de agendas de direitos.

Aqui nos interessa particularmente um evento que também ganhou forma em 2014 e que faz parte de uma série de acontecimentos que, segundo argumentamos neste artigo, é parte do processo de erosão da democracia no país. Trata-se da proposição do movimento Escola Sem Partido como Projeto de Lei na Câmara dos Deputados, já mencionada acima e à qual voltaremos de maneira mais detalhada na próxima seção. O ESP foi criado em 2004, como dito anteriormente, mas é nesse momento que encontra as condições para tornar-se parte das disputas nos espaços institucionais da política brasileira. Entendemos que ele constitui um fenômeno mais amplo, que é o da privatização como forma de captura do público e do coletivo. Ela vem também acompanhada de novas formas de controle das condutas, nesse caso por meio de ações que buscam restringir perspectivas críticas às hierarquias sociais.

Nas análises do capitalismo neoliberal, algumas dimensões da privatização são apontadas com mais frequência, como a privatização de serviços públicos, a autonomização das decisões econômicas em relação às pressões políticas e a limitação ou desinvestimento nos direitos sociais, como o direito à educação e à saúde, de modo que indiretamente se oriente as necessidades da população para serviços de mercado. No Brasil, no contexto da crise da democracia, essas formas de privatização podem ser exemplificadas pela constitucionalização da agenda de ajustes fiscais, por meio da Emenda Constitucional 95. Aprovada dois meses depois da deposição de Dilma Rousseff, em dezembro de 2016, ela estabeleceu um teto de gastos por 20 anos, driblando assim o conflito e a alternância política democrática e implicando o desinvestimento em áreas fundamentais. Neste estudo, no entanto, ressaltamos outra dimensão da privatização, acompanhando Wendy Brown no entendimento de que corresponde à “expansão da esfera pessoal protegida”. Para ela, essas duas dimensões da privatização

atuam juntas conceitualmente e na prática: o desmantelamento dos serviços públicos é rotineiramente associado à expansão de normas da esfera privada para deslegitimar o conceito de provisão de bem-estar e o projeto de democratização dos poderes sociais de classe, raça, gênero e sexualidade. Na medida em que a vida cotidiana é, de um lado, mercantilizada e, de outro, “familializada” pela lógica neoliberal, esses processos gêmeos colocam em xeque princípios de igualdade, secularismo, pluralismo e inclusão, assim como a determinação democrática de um bem comum. (Brown, 2019BROWN, Wendy. 2019. In the ruins of neoliberalism: the rise of antidemocratic politics in the West. Nova York: Columbia University Press., p. 108)

Convergindo na ativação da família como alternativa e como valor, esses processos podem funcionar como gatilhos na produção do “cidadão não-democrático”, ao restringir o sentido do comum, identificar como inimigos atores que promovem novos direitos e agendas igualitárias e caracterizar como ameaça a pluralidade e a crítica às hierarquias. Esse cidadão pode, por sua vez, tornar-se um ativo político para lideranças e movimentos autoritários (Biroli, 2019) ou ter suas inseguranças e frustrações legítimas mobilizadas politicamente (FTS, 2019FTS - FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. 2019. O conservadorismo e a questão social. São Paulo: Fundação Tide Setubal.). É nesse sentido que se pode pensar na defesa de tradições morais como instrumental na disputa política (Lacerda, 2019LACERDA, Marina Basso. 2019. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Zouk.), o que não significa suspender o fato de que há moralidades em disputa ou afirmar que sejam secundárias em relação a conflitos de caráter econômico, por exemplo.

É importante assinalar que, na nossa compreensão, disputas relativas a “desigualdades duráveis” (Tilly, 1998TILLY, Charles. 1998. Durable Inequality. Berkeley: University of California Press.), como as de gênero, dizem respeito à construção e acesso (ou bloqueio do acesso) a direitos, a como recursos e posições socialmente valorizadas são distribuídos e aos padrões de mudança ou reprodução social de hierarquias que podem envolver violências normalizadas. Assim, se a defesa da família implica a recusa a agendas igualitárias e à pluralidade social, o problema vai além da disputa entre valores distintos e, parece-nos, não poderia ser definido como uma questão identitária.

Os autoproclamados defensores da família são conservadores religiosos, mas também seculares, para quem existem problemas, a “destruição da família” e a “ameaça à infância”, que precisam ser enfrentados. Eles os atribuem a “um declínio generalizado dos valores familiares, o qual, por sua vez, associam ao feminismo, à revolução sexual, à liberação gay, a políticas de bem-estar social excessivamente generosas e à escalada das demandas por direitos sociais” (Stacey, 1996STACEY, Judith. 1996. In the name of the Family: rethinking family values in the postmodern age. Boston: Beacon Press., p. 63). O termo neoconservadorismo tem sido utilizado, mais recentemente, para situar a oposição a agendas igualitárias e a transformações nos valores e configurações das relações conjugais, parentais, afetivas e sexuais. Recorremos a ele, acompanhando Biroli (2020BIROLI, Flávia. 2020. The backlash against gender equality in Latin America: Temporality, Religious Patterns, and the Erosion of Democracy. Lasa Forum, v. 51, n. 2, pp. 22-26.), para iluminar sua atuação em uma temporalidade específica, que se constitui a partir dos anos 1990. É quando atores antagônicos em suas posições morais e sua abordagem do gênero e dos direitos sexuais ganharam maior evidência na política nacional e internacional e nos debates públicos (movimentos feministas e evangélicos conservadores); emergiram alianças entre diferentes setores conservadores (que incluem novas alianças estratégicas entre católicos e evangélicos) e articulações transnacionais em reação à politização progressista das relações de gênero; e, ainda, a apologia à família se configurou em conjunto com a lógica e os efeitos do neoliberalismo (Biroli, Machado e Vaggione, 2020BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco. 2020. Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo.).

Os atores neoconservadores aderem em graus distintos às abordagens repressivas à diversidade, mas é possível caracterizá-los como antipluralistas, já que mobilizam uma moral unitária, frequentemente de caráter religioso, em oposição ao pluralismo ético que caracteriza os movimentos feministas e os movimentos por direitos humanos e justiça social, de maneira mais ampla. Seu posicionamento como atores de direita e sua conexão com a extrema-direita se estabelecem, no entanto, em conjunturas específicas. É importante também não tomá-los como um retrato de todo o campo conservador e religioso, evangélico ou católico, mas como uma emergência cujas implicações em situações concretas precisam ser investigadas (Burity, 2021BURITY, Joanildo. 2021. The Brazilian Conservative Wave, the Bolsonaro Administration, and Religious Actors. Brazilian Political Science Review, Forum, v. 15, n. 3.).

Ao mesmo tempo, vale observar que um setor importante na promoção do neoconservadorismo de tipo religioso no Brasil, os evangélicos, têm um rosto feminino (Machado, 2005MACHADO, Maria das Dores Campos. 2005. Representações e relações de gênero nos grupos pentecostais. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 2, pp. 387-396.). As mulheres que aderem ao pentecostalismo na América Latina são, em grande parte, mulheres de baixa renda afetadas pela precarização e pela restrição dos serviços públicos. Assim, as mesmas que enfrentam a precariedade e a insegurança podem ser também aquelas que, de uma perspectiva moral, reivindicam a relevância e responsabilidade da família (Lorey, 2015LOREY, Isabell. 2015. State of Insecurity: Government of the Precarious. Nova York: Verso.). Entre os evangélicos latino-americanos, a defesa da família não vem necessariamente acoplada à domesticidade das mulheres, mas a uma composição patriarcal das interações entre o doméstico e o público (Gago, 2019GAGO, Veronica. 2019. La potencia feminista - o el deseo de cambiarlo todo. Buenos Aires: Elefante.). A doutrina pentecostal incide sobre as subjetividades feminina e masculina, redefinindo-as de modo que aproximaria as mulheres à esfera pública e os homens ao domínio familiar (Machado, 2005). Pode haver uma tendência à reconfiguração das relações de gênero, mantendo a centralidade da família patriarcal e delimitando, assim, os padrões aceitáveis das relações em termos práticos (do trabalho e do cuidado) e morais (da afetividade e da sexualidade).

Diante dessa complexidade, a noção de “moralização das inseguranças” (Biroli, Machado e Vaggione, 2020BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco. 2020. Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo.) pode colaborar para se compreender que as ações neoconservadoras são, ao mesmo tempo, estratégicas no modo como definem problemas (moralizando-os) e referenciadas por problemas concretos, o quais são enfrentados pelas pessoas no seu cotidiano. Por exemplo, sustentar dependentes e manter seguras e sob os cuidados necessários às pessoas com quem se preocupam, em contextos de violência e precarização, é uma preocupação mobilizada pelas brasileiras e faz parte de sua compreensão do risco e da ordem desejada (FTS, 2019FTS - FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. 2019. O conservadorismo e a questão social. São Paulo: Fundação Tide Setubal.). Nesse sentido, a ativação de pânicos morais (Miskolci, 2007MISKOLCI, Richard. 2007. Pânicos morais e controle social - reflexões sobre o casamento gay. Cadernos Pagu, n. 28, pp. 101-128.) poderia ser compreendida não apenas como estratégia, mas referenciada por inseguranças reais e reações cotidianas às inseguranças, envolvendo, nesse caso, inseguranças relativas às transformações nas relações de gênero e nos padrões da sexualidade, nos avanços de moralidades alternativas e nas mudanças sociais que incidem sobre padrões da conjugalidade, da sexualidade e da parentalidade. Pode-se, ainda, relacioná-los a uma governabilidade baseada na insegurança (Lorey, 2015LOREY, Isabell. 2015. State of Insecurity: Government of the Precarious. Nova York: Verso.), o que nos leva a pensar nas lógicas contemporâneas de regulação dos conflitos.

A eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, explicitou a centralidade do recurso às disputas morais na construção ou reafirmação de identidades e clivagens políticas. Em julho de 2019, o fundador do movimento Escola Sem Partido, Miguel Nagib, anunciaria o fim de suas atividades, argumentando que Bolsonaro havia abandonado o ESP ao indicar para o Ministério da Educação aliados de Olavo de Carvalho (UOL, 2022UOL. 2022. Fundador do Escola sem Partido cita ‘abandono’ de Bolsonaro e culpa Olavo. UOL, São Paulo. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3MVVIbm . Acesso em: 30 out. 2023.
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). Pouco depois, bolsonaristas no Congresso articularam o desarquivamento do Projeto de Lei (PL) e a criação de uma nova Comissão que acabou não sendo constituída. Apesar de não terem ocorrido novas atividades relativas ao PL na Câmara dos Deputados1 1 Disponível em: https://bit.ly/3QTGDYL. Acesso em: 30 out. 2023. , um mapeamento de atores e políticas no Ministério da Educação (2019-2023) mostra que as ideias difundidas pelo movimento e mesmo alguns atores vinculados a ele estiveram presentes no governo de Bolsonaro Nesse período, o “familismo” foi assumido como diretriz2 2 O decreto presidencial 10.570, de 9 de dezembro de 2020, instituiu a Estratégia Nacional para o Fortalecimento da Família e o comitê interministerial responsável por sua implementação. Disponível em: https://bit.ly/3QTGMvh. Acesso em: 6 out. 2021. , em um reenquadramento das políticas públicas que posicionou a família como agrupamento funcional para a normalização das condutas (Biroli e Quintela, 2021BIROLI, Flávia; QUINTELA, Débora Françolin. 2021. Mulheres e direitos humanos sob a ideologia da ‘defesa da família’. In: AVRITZER, Leonardo et al. (org.). Governo Bolsonaro: Retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica. pp. 343-358. ).

O Escola Sem Partido na Câmara dos Deputados

Estudos anteriores trataram das disputas em torno do ESP na Câmara dos Deputados, mapeando atores e temas. Miguel e Oliveira (2021MIGUEL, Luis Felipe; OLIVEIRA, Michel. 2021. Pânico Moral e Ódio à Diferença: a estratégia discursiva do ‘Escola Sem Partido’. Revista Sul-Americana de Ciência Política, v. 6, n. 2, pp. 261-278.) observaram a discussão realizada nas audiências públicas que discutiram o PL 7.180/2014 em 2017 e 2018. Eles identificaram três grandes temas: os discursos da neutralidade da escola, da defesa da família com perspectiva moral religiosa e do anticomunismo. Os autores chamam a atenção para os riscos à limitação ao pensamento de esquerda - mesmo sem interdição legal. Faria e Resende (2021FARIA, C. F.; RESENDE, M. 2021. ‘Despublicização’ e resistência em múltiplas arenas: uma análise dos discursos e das práticas sociais contra o ESP. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 45., Belo Horizonte.) também observaram o debate nas audiências públicas, mas focando na resistência ao projeto, identificando uma articulação pragmática entre neoliberais e neoconservadores, e uma resistência que tem sido parcialmente bem-sucedida. Santos (2018) analisou discursos realizados no plenário sobre “ideologia de gênero” e o ESP, observando que enquanto a maioria dos discursos sobre ideologia de gênero (83%) eram contrários às próprias discussões de gênero, os discursos no plenário sobre o ESP eram em sua maioria contrários ao projeto (67%), indicando que poucos parlamentares defenderam diretamente o ESP no período analisado.

Trabalhos anteriores, como o de Salles e Silva (2018SALLES, Diogo da Costa; SILVA, Renata. (2018). O Escola Sem Partido na desdemocratização brasileira. In: PENNA, Fernando; QUEIROZ, Felipe; FRIGOTTO, Gaudência (org.). Educação democrática: antídoto ao Escola Sem Partido. Rio de Janeiro: EdUERJ .), propõem conectar o ESP a processos de desdemocratização, que definem como perda da substância democrática, ainda que os procedimentos se mantenham. Para eles, o ESP defende um projeto de educação que promova “valores tradicionais”, na contramão de uma “educação democrática”. Queiroz et al (2021QUEIROZ, Carlos Matheus Prado et al. 2021. Escola Sem Partido e o neoliberalismo nos projetos de educação pública. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PSICOLOGIA POLÍTICA, 11., Belo Horizonte. Anais […]. Belo Horizonte.) também dialogam com a literatura sobre desdemocratização, apontando para o que definem como subversão da educação pública. Nosso artigo se insere nesses esforços de pesquisa, situando a atuação do ESP e as abordagens que mobilizam no debate sobre desdemocratização. A novidade na nossa abordagem está no fato de que nos debruçamos sobre mecanismos que vão além dos processos educacionais, pensando suas implicações para a democracia. Nesse sentido, nossa análise se aproxima em alguma medida daquelas que foram feitas por Miguel e Oliveira (2021MIGUEL, Luis Felipe; OLIVEIRA, Michel. 2021. Pânico Moral e Ódio à Diferença: a estratégia discursiva do ‘Escola Sem Partido’. Revista Sul-Americana de Ciência Política, v. 6, n. 2, pp. 261-278.), que ressaltam os efeitos de “estreitamento do debate público”, e Cabral (2019CABRAL, Guilherme Perez. 2019. The Escola Sem Partido movement standpoints. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 35, pp. 431-453.), que a partir do debate jurídico sobre direitos humanos, dialogando com Carl Schmitt, coloca em questão as premissas de neutralidade do Estado, primazia do privado sobre o “público educacional” e negação da liberdade e do pluralismo. Neste artigo, o diálogo teórico com Wendy Brown, os trabalhos anteriores das autoras no campo da crítica feminista da democracia e as evidências coletadas pela pesquisa empírica levaram a destacar a expansão do privado e do controle sobre as condutas. Elas permitem perceber o ESP e os mecanismos que ativam como elementos dos processos de desdemocratização.

Iniciamos por uma breve contextualização da tramitação do ESP na Câmara dos Deputados. O PL 7.180/2014 tramitou inicialmente na Comissão de Educação, em 2014, sendo relatado pelo deputado Ariosto Holanda, do Partido Republicano da Ordem Social do Ceará (PROS/CE), que se pronunciou de forma contrária à aprovação. Em seu relatório, o deputado argumentou que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), assim como a Constituição Federal, estabelece a liberdade de aprender e o pluralismo de ideias, sem inibir convicções religiosas. Ele discordou que ela preveja a precedência de valores familiares sobre a educação escolar, um ponto importante para nossa discussão. O parecer não chegou a ser votado pela Comissão e o PL foi arquivado com o fim da 54ª Legislatura.

Em 2015, o PL foi desarquivado e enviado novamente à Comissão de Educação, tendo como relator, dessa vez, o deputado Diego Garcia, do Partido Humanista da Solidariedade do Paraná (PHS/PR). Cabe mencionar que, no mesmo ano, Diego Garcia também foi relator do PL 6.583/2013, que propunha o Estatuto da Família3 3 O Estatuto da Família (PL 6.583/2013) foi proposto pelo deputado Anderson Ferreira, do Partido da República de Pernambuco (PR/PE) e busca restringir a definição de família excluindo outros arranjos da definição. O projeto foi aprovado na comissão especial criada para discuti-lo em 2015. , na Comissão Especial criada para sua apreciação e se pronunciou a favor da aprovação. Engajado na promoção de agendas de “defesa da família”, este foi seu primeiro mandato como deputado federal. Em seu site, consta a informação de que sua candidatura nasceu, em 2014, de uma escolha dos coordenadores do Ministério de Fé e Política da Renovação Carismática Católica do Paraná. Ele se autoidentifica como um parlamentar que “pauta suas decisões nos valores cristãos: em defesa da família brasileira, da proteção ao direito à vida e também no combate à corrupção”4 4 Disponível em: https://bit.ly/3QOc9HT. Acesso em: 20 maio 2021. .

Em seu parecer, ele cita o Programa Brasil sem Homofobia5 5 Em 2004, foi lançado o Programa Brasil sem Homofobia visando combater a violência contra a população LGBTI+. No âmbito desse programa, surgiu o projeto Escola sem Homofobia, estruturado em dois eixos. Um deles mais relacionado a uma estratégia de comunicação sobre homossexualidade em contextos educativos, e que incluía a produção do material que acabou sendo pejorativamente chamado de “kit gay” (Vital e Lopes, 2013). , que nomeia como “kit gay”, e critica a “ideologia de gênero”. Para ele, estaria em curso uma instrumentalização do ensino com objetivos políticos e ideológicos6 6 É algo que desenvolve ao mencionar o PL 867/2015, apensado ao PL 7180/2014 em março de 2015. Chamamos a atenção para o PL 867/2015 em meio a tantos outros apensados porque ele busca incluir o ‘Programa Escola sem Partido’ entre as diretrizes e bases da educação nacional. Proposto pelo deputado Izalci (PSDB/DF), consta no PL que se espelha no anteprojeto de lei elaborado pelo Programa Escola sem Partido. . Segundo o relator, “esse engajamento político dos professores não apenas existe, como converge de maneira absolutamente consistente para a mesma faixa do espectro ideológico, o que agrava consideravelmente o problema” (BRASIL, 2015BRASIL. 2015. Parecer 2 do relator do Projeto de Lei 7.180/2014 na Comissão de Educação. Deputado Diego Garcia (PHS/PR) em 22 de maio de 2015. Brasília, DF: Câmara dos Deputados. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3SQmRjL . Acesso em: 14 jan. 2022.
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, p. 14).

Em maio de 2016, quase um ano após a apresentação do parecer de Diego Garcia na Comissão de Educação, foi criada a Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei nº7180, de 2014, que seria constituído em outubro. A mesa foi composta pelo deputado Marcos Rogério, do Democratas de Rondônia, (DEM/RO), como presidente; pelos deputados Pastor Eurico (PHS/PE), Lincoln Portela, do Partido Republicano Brasileiro de Minas Gerais (PRB/MG) e Hildo Rocha, do Movimento Democrático Brasileiro do Maranhão (MDB/MA), como vice-presidentes; e pelo deputado Flavinho, do Partido Socialista Brasileiro de São Paulo (PSB/SP), como relator. Cabe mencionar que Flavinho é católico; Hildo Rocha não se identifica publicamente com nenhuma religião, mas já participou de eventos católicos; por sua vez, os demais são evangélicos.

A maior parte das audiências públicas realizadas no âmbito dessa comissão para discutir o projeto ocorreram em 2017, apenas três foram em 2018. Após a última audiência, em 17 de abril de 2018, o relator, deputado Flavinho (PSB/SP), apresentou parecer pela aprovação do PL 7.180/2014 e de vários apensados. Nele, argumenta que o projeto de lei objetiva acabar com a militância político-partidária nas escolas, e não com o pensamento crítico, afirmando que a “propaganda partidária, unilateral, dentro da escola, é o que constitui a principal ameaça ao desenvolvimento da faculdade crítica do aluno” (BRASIL, 2018aBRASIL. 2018a. Parecer 1 do Relator do Projeto de Lei nº 7.180/2014 na Comissão Especial. Deputado Flavinho (PSC/SP) em 8 de maio de 2018. Brasília, DF: Câmara dos Deputados . Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3QRQ8I3 . Acesso em: 14 jan. 2022.
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, p. 11). O parlamentar também trata do Pacto de São José da Costa Rica, ressaltando que o documento menciona que é direito dos pais que os filhos recebam educação moral e religiosa conforme suas convicções. Justifica essa posição com um argumento com pretensão jurídica, o de que no Brasil a religião está presente no ordenamento constitucional, o que aproximaria nosso modelo de laicidade do americano, distinguindo-o do francês.

Ao mesmo tempo, ao justificar a necessidade do projeto, emerge em sua fala a ideia de que há uma ameaça a ser combatida, a “ideologia de gênero”. Segundo ele, “não há qualquer precedente civilizatório na história humana que demonstre que uma sociedade sexualmente plural seja realmente sustentável a longo prazo” (BRASIL, 2018aBRASIL. 2018a. Parecer 1 do Relator do Projeto de Lei nº 7.180/2014 na Comissão Especial. Deputado Flavinho (PSC/SP) em 8 de maio de 2018. Brasília, DF: Câmara dos Deputados . Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3QRQ8I3 . Acesso em: 14 jan. 2022.
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, p. 18). A heterossexualidade seria, assim, central para o desenvolvimento da civilização, enquanto uma sociedade sexualmente plural estaria sendo promovida na contramão desta. Baseada no “desconstrucionismo filosófico e no relativismo moral”, a “ideologia de gênero” não teria, além disso, respaldo científico.

Como o parecer foi favorável ao PL e apensados, o substitutivo apresentado incorporou as proposições contidas nestes, estabelecendo que os professores deveriam seguir uma série de ações para respeitar o direito dos pais a que seus filhos recebam educação moral de acordo com seus valores; não se aproveitar da audiência cativa dos alunos ou prejudicá-los por suas posições; apresentar as principais versões sobre questões políticas, socioculturais e econômicas. Além disso, deveria ser afixado nas salas de aula um cartaz com o conteúdo da lei discutida. Do ponto de vista legal, o PL também propunha a alteração no Art. 5º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para que fosse incluído um inciso que definisse a precedência da ordem familiar sobre a educação escolar e um parágrafo único para proibir o desenvolvimento de políticas de ensino que apliquem a “ideologia de gênero” ou usem os termos “gênero” e “orientação sexual” (BRASIL, 2018aBRASIL. 2018a. Parecer 1 do Relator do Projeto de Lei nº 7.180/2014 na Comissão Especial. Deputado Flavinho (PSC/SP) em 8 de maio de 2018. Brasília, DF: Câmara dos Deputados . Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3QRQ8I3 . Acesso em: 14 jan. 2022.
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).

Foram apresentadas 30 emendas ao substitutivo, quase todas (27) por deputados favoráveis ao projeto, com a aprovação pelo relator de emendas que levaram à inclusão dos artigos abaixo:

Art. 2º O Poder Público não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero.

Art. 7º No âmbito da educação básica, as escolas particulares de orientação confessional e ideologia específicas poderão veicular e promover os conteúdos de cunho religioso, moral e ideológico autorizados contratualmente pelos pais ou responsáveis pelos estudantes.

Parágrafo único. Para os fins do disposto no caput deste artigo, as escolas deverão disponibilizar aos pais, ou responsáveis pelos estudantes, material informativo que possibilite o pleno conhecimento dos temas ministrados e dos enfoques adotados. (BRASIL, 2018bBRASIL. 2018b. Parecer do relator às emendas apresentadas ao Substitutivo 1 do Projeto de Lei nº 7.180/2014 na Comissão Especial. Deputado Flavinho (PSC/SP) em 30 de outubro de 2018. Brasília, DF: Câmara dos Deputados . Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/47Jxuc5 . Acesso em: 14 jan. 2022.
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, p. 12, 14)

Nos meses finais de 2018, a discussão se acirrou e a oposição conseguiu obstruir votações, o que levou ao arquivamento do projeto com o término da 55ª Legislatura. Na Legislatura que se iniciou em 2019, o PL foi desarquivado, como comentado anteriormente, mas sem nenhuma novidade na tramitação, já que a comissão não chegou a ser constituída. A única movimentação se refere a novos projetos que foram apensados, três em 2019, um em 2021 e um em 2023.

Análise das reuniões e audiências públicas: problemas, soluções e premissas

Nesta seção, analisamos a discussão realizada na Comissão Especial instalada no dia 5 de outubro de 2016. No site da Câmara dos Deputados, estão disponíveis notas taquigráficas de 31 reuniões ou audiências públicas realizadas em 2017 e 20187 7 Foram 15 audiências no primeiro semestre de 2017; duas audiências, uma reunião pública com convidados e uma reunião ordinária com convidados no 2º semestre de 2017; três audiências, duas reuniões ordinárias (uma delas para apresentação do parecer) e seis reuniões deliberativas em 2018. . No total, 109 pessoas (84 homens e 25 mulheres) se pronunciaram, o que correspondeu, nesta pesquisa, a 265 fichas de manifestações individuais, que permitiram a análise detalhada dos discursos proferidos na Comissão Especial entre 7 de fevereiro de 2017 e 11 de dezembro de 20188 8 Para cada parlamentar ou participante de reunião ou audiência pública que se pronunciou foi gerada uma ficha. Mesmo que a pessoa tenha se pronunciado mais de uma vez na mesma reunião, foi feita apenas uma ficha; por outro lado, se a mesma pessoa se pronunciou em reuniões diferentes, foi gerada uma ficha em seu nome para cada reunião, por isso o número total de fichas ultrapassa o de participantes. .

Foram lidas e fichadas as notas taquigráficas de 20 audiências públicas, duas reuniões com convidados e nove reuniões com apenas deputados/as. Do total de fichas, 78% se referem a manifestações de parlamentares. Sobre a posição defendida, em 64,5% dos discursos, o projeto foi defendido; em 33,2% foi criticado; e nos 2,3% restantes não houve posição explícita. Nota-se uma atuação proeminente de homens na comissão, já que 83% dos discursos foram pronunciados por eles.

Nas audiências, as manifestações de parlamentares geraram 111 fichas (65,7%) e as de convidados 58 (34,3%), com 79,3% das manifestações favoráveis ao projeto. Isso se deve à baixa participação de parlamentares contrários ao ESP, que compareceram apenas nas reuniões deliberativas, enquanto deputados favoráveis ao ESP dominaram a Comissão Especial. Olhando apenas para os/as convidados/as, a aprovação cai para 69%, mas continua alta, indicando que a maioria dos/as convidados/as tinham uma posição favorável. Dos/as 58 convidados/as, 43% eram professores/as; 6,8% estudantes e vereadores/as; 5,4% jornalistas, havendo também representantes, presidentes ou coordenadores de organizações da sociedade civil e movimentos sociais. Os homens dominaram os debates, pronunciando 87,6% do total de discursos.

A atuação dos/as parlamentares em todas as reuniões (audiências, reuniões ordinárias e deliberativas) correspondeu a 207 fichas de manifestações individuais, nas quais se mantém a prevalência de posições favoráveis ao ESP (63,3%).

Os deputados que mais se pronunciaram de forma favorável ao projeto se identificam publicamente como evangélicos ou católicos. Lincoln Portela (PR/MG), Sóstenes Cavalcante (PSD/RJ), Eduardo Bolsonaro (PSC/SP), Pastor Eurico (PHS/SP), Flavinho (PSB, PSC/SP), Alan Rick (PRB/AC) e Marco Feliciano (PSC/SP) fizeram nove ou mais discursos. Um único deputado entrou na lista daqueles que fizeram mais de nove pronunciamentos, mas posicionando-se contra o ESP. Trata-se do deputado Bacelar (Podemos/BA), que também apresentou requerimentos para convidar especialistas que tinham visões críticas ao ESP. Entre os que mais se pronunciaram, é também o único que não se identifica publicamente como religioso e explicita posições em favor da diversidade nos conteúdos educacionais.

As temáticas de gênero e/ou sexualidade foram criticadas em 30,9% dos pronunciamentos; enquanto 13,6% dos discursos defenderam a importância desses temas serem debatidos. Isso significa que questões de gênero foram centrais não só nos documentos (projetos apensados, emendas apresentadas, pareceres), mas também no debate - estando presentes em 43,5% das fichas. Pode-se, assim, afirmar que o gênero esteve no centro das contendas travadas nas reuniões e audiências do ESP. O marxismo foi mencionado em 27,9% dos discursos, tendo sido criticado em 20,4% e defendido em 7,5%.

Nossa ficha de análise dos discursos ia além da identificação dos temas, colocando questões relativas às fronteiras entre o Estado e a família na definição dos processos e conteúdos educacionais, já que essa é uma dimensão central do ESP, como dito anteriormente. Analisamos cada pronunciamento procurando identificar como se posiciona em relação à “interferência estatal”9 9 Utilizamos a expressão “interferência estatal” entre aspas por entender que ela carrega um julgamento de que a atuação do Estado em relação às famílias seria equivocada e indevida. na vida das pessoas/da família? e como se posiciona em relação à autoridade dos pais sobre as crianças?. Verificamos que 15,5% dos discursos explicitam posição contrária à atuação estatal e 18,1% defendem a autoridade familiar como algo que deve prevalecer sobre o âmbito estatal e escolar. Cabe mencionar que essas posições são muito próximas e são articuladas conjuntamente em muitos discursos, mas também podem ser defendidas separadamente. Além disso, elas só foram contabilizadas quando parlamentares fizeram menções diretas sobre o assunto. Na maior parte dos discursos, não houve defesa ou ataque expresso à atuação do Estado ou autoridade dos pais.

Com base no debate teórico apresentado anteriormente e tendo como referência para a sistematização da análise o conceito de enquadramento de Robert Entman (1993ENTMAN, Robert. 1993. Framing: Toward Clarification of a Fractured Paradigm. Journal of Communication, v. 43, n. 4.) e a análise das problematizações de Carol Bacchi (2012BACCHI, Carol. 2012. Why study problematizations? Making politics visible. Open Journal of Political Science, v. 2, n. 1, pp. 1-8., 2015BACCHI, Carol. 2015. The turn to problematization: political implications of contrasting interpretive and poststructural adaptations. Open Journal of Political Science , n. 5, pp. 1-12.), dividimos os discursos em três frentes. Elas correspondem à orientação para a ação que se estabelece e se justifica na medida em que o problema - a doutrinação dos estudantes - é salientado.

Para Entman (1993ENTMAN, Robert. 1993. Framing: Toward Clarification of a Fractured Paradigm. Journal of Communication, v. 43, n. 4.), os enquadramentos envolvem a definição de problemas e o diagnóstico de suas causas, podendo implicar julgamentos morais e, principalmente, indicar soluções. Definir problemas seria, assim, determinar o que um agente causal está fazendo, com quais consequências e benefícios, medidos geralmente de acordo com valores culturais compartilhados. De modo complementar, Bacchi (2012BACCHI, Carol. 2012. Why study problematizations? Making politics visible. Open Journal of Political Science, v. 2, n. 1, pp. 1-8.) vê a representação de problemas como algo central nas disputas políticas.

Na discussão sobre o ESP na Comissão Especial, o problema que tem saliência é a doutrinação de estudantes - crianças e adolescentes. As consequências dessa doutrinação seriam a má qualidade de ensino, a perda da autoridade familiar, a transmissão de um pensamento único (que seria de esquerda). Seriam custos causados pela ação de partidos de esquerda, governos identificados como de esquerda (governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), na sua percepção), movimentos feministas e LGBTQIAP+ e professoras e professores a eles alinhados.

Nesse quadro, tipificamos a orientação para a ação nos discursos em três frentes: (1) a expansão do privado (controle familiar) em detrimento do público (conteúdos educacionais comuns estabelecidos por meio de políticas públicas e instrumentos legais); (2) a censura de pautas e atores (a restrição do que pode ser discutido, a definição de temas proibidos e a limitação da pluralidade de ideias e críticas); e (3) a retração do compromisso estatal com agendas igualitárias (a exclusão de conteúdos críticos às desigualdades socioeconômicas, de gênero, de raça e étnicas, rompendo com a adesão a compromissos anteriores no âmbito do sistema internacional de direitos humanos e suspendendo orientações públicas que se consolidaram ao longo da Nova República).

Nas três frentes, observamos transversalmente a relativização de valores e normas democrático-liberais e a restrição da pluralidade. Elas são justificadas em termos morais, como recurso necessário para a proteção da família e garantia de que suas convicções prevalecerão na educação das crianças e adolescentes. A essa justificativa, atrelou-se, em alguns casos, como se verá, a afirmação da racionalidade neoliberal como autoevidente e realista, em oposição a críticas esquerdistas, que seriam fundadas em ideologias. Nos dois casos, o recurso à censura viria como uma espécie de corretivo em nome de dois imperativos privados: as convicções familiares e a lógica de mercado.

Passamos, agora, às três frentes de orientação para a ação. Trata-se, assim, da identificação das soluções a partir do problema salientado, a doutrinação de estudantes nos discursos realizados por deputados/as e convidados/as na Comissão Especial que discutiu o PL 7.180/2014 e seus apensados, em 2017 e 2018:

a. A expansão do privado em detrimento do público/coletivo

Nos discursos realizados na comissão especial que discutiu o ESP, a preservação da família foi a principal justificação para medidas de retrocesso na regulação coletiva, que ampliariam a esfera pessoal protegida. Como dito anteriormente, a “doutrinação” foi salientada pelos defensores do projeto como problema. Sua consequência seria a perda de autoridade dos pais ou das famílias; sua causa a atuação de professoras/es e escolas, alinhados aos movimentos feministas e LGBTQIAP+ e partidos de esquerda, incluindo nos processos educacionais discussões que ameaçariam a família e suas convicções10 10 Os grifos nos trechos de discursos, em toda a análise neste artigo, são das autoras. :

Essa relação da busca do conhecimento não pode se dar, nessa fase da criança e do adolescente, apenas entre professor e aluno. Para se completar, ela tem que ter um elemento fundamental que se chama família. […] O projeto busca restaurar, resgatar isso que, além de ser científico, é da própria natureza. (Deputado João Campos - PSDB/GO, 15 fev. 2017).

Eu sou daqueles que acham que, na educação, a obrigação principal é da família. A escola complementa. Então, ela não pode contrapor o que a família acha. (Deputado Joaquim Passarinho - PSD/PA, 7 fev. 2017).

Não está em questão aqui a orientação sexual, não está! A questão é o direito dos pais sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos. […] Meus filhos, minhas regras! (Convidado, Miguel Nagib, 14 fev. 2017).

Acredito, Deputado Flavinho, que toda a educação infantil e o ensino fundamental, no que concerne aos professores, devam ser restritos somente ao básico: português e matemática. Toda questão que envolve cidadania deve ficar a cargo apenas dos pais. (Convidado, estudante Douglas Garcia, 14 mar. 2017).

A escola tem que ser meramente didática. Questões morais, religiosas são questões que a família deve tratar com as crianças. Elas são sim vulneráveis e não têm a devida proteção dentro da sala de aula. Para isso existe o Escola sem Partido. Mas eu creio que essa questão de cidadania, a questão da religião e a questão da moral devem pertencer à família. (Convidada, jornalista e estudante Fernanda Salles, 14 mar. 2017).

Nós aprendemos a respeitar pai e mãe, a ter […] uma concepção em relação à sociedade que nos foi legada pelos nossos ancestrais e que tem milênios. E agora há uma imposição na sociedade de que nós aceitemos uma nova forma de ver o mundo, uma nova forma de ver a família, uma nova forma de ver a cultura, uma nova forma de educar as crianças, retirando-as do pátrio poder e entregando-as a uma espécie de ser indivisível, que, no caso, é o Estado - o Estado brasileiro ou qualquer outro Estado -, que tem um poder muito maior do que o poder da família. (Deputado Rogério Marinho - PSDB/RN, 13 jun. 2017).

Outro ponto importante do projeto é que seja respeitada a orientação sexual que a família confere ao aluno, ao estudante, à criança. A família está em primeiro lugar na orientação. Isso deve ser respeitado. A criança não é propriedade da escola, muito menos do Estado. A criança tem como referencial natural a família. (Convidado, vereador Alexandre Aleluia, 9 maio 2017).

Como visto nos trechos de discursos acima, a defesa e idealização da família se estabelece em contraposição às políticas públicas e ao próprio Estado. A divisão entre as esferas pública e privada é reforçada, e o privado, para ser mais específico, a família, indicada como o espaço adequado e único para se ensinar sobre moral e até sobre cidadania. Nesse sentido, a proposição de Brown (2019BROWN, Wendy. 2019. In the ruins of neoliberalism: the rise of antidemocratic politics in the West. Nova York: Columbia University Press.) de que o neoliberalismo corresponde ao desmantelamento do social corresponde a argumentos que detectamos no debate sobre o ESP. A ideia de que a cidadania corresponderia à família, e não a indivíduos ou grupos, defendida por uma convidada, se adequa perfeitamente à erosão do social e da sociedade.

A privatização no sentido econômico também fez parte dos debates, ainda que tenha sido menos tematizada do que as contendas em torno do gênero, nas quais a dimensão moral é evidente. O jornalista Leandro Narloch, que foi convidado para uma das audiências públicas do ESP, defendeu que instituições de educação privadas poderiam ter a liberdade de se orientar por certas visões de mundo se houvesse um contrato assinado com professores/as e pais e mães, enquanto as escolas públicas deveriam seguir a neutralidade política do Estado. Contratos privados são exaltados em detrimento de regulações coletivas orientadas por agendas de interesse público. Por outro lado, a neutralidade que deveria orientar as interações nas escolas públicas significa, na prática, a normalização da sociedade atualmente existente, com suas desigualdades de raça, gênero e classe.

Como discutido por Brown (2019BROWN, Wendy. 2019. In the ruins of neoliberalism: the rise of antidemocratic politics in the West. Nova York: Columbia University Press.), o neoliberalismo atua a partir da privatização econômica e na regulação da moralidade, aspectos que podem ser identificados nas participações de Leandro Narloch na comissão. Em sua fala, ele lança mão de ironias para contestar abordagens redistributivas do Estado. Ele afirma, por exemplo, que “[u]m terço da desigualdade no Brasil vem de depósitos das transferências do Estado” e diz que o “que mais aumenta a desigualdade no Brasil é a aposentadoria integral de funcionário público” (Brown, 2019, acréscimo nosso). Ao mesmo tempo, lança mão de ironia para contestar lutas emancipatórias, esvaziando seu sentido transformador ao argumentar que movimentos feministas e LGBTI+ “têm essa ideia de que a educação vai resolver tudo; de que, se nós falarmos algumas coisinhas para as crianças, elas vão ser santas, não vão estuprar, não vão olhar para as mulheres” (28 mar. 2017).

Perspectivas semelhantes estiveram presentes no discurso do deputado Eduardo Bolsonaro (PSC/SP), em diferentes reuniões da Comissão Especial do ESP, ao tematizar o homeschooling e os interesses de mercado:

Eu tenho certeza de que as senhoras devem ser contrárias a esse tipo de projeto, assim como devem ser contrárias ao homeschooling ou ao projeto que prevê vouchers para que as pessoas mais carentes possam matricular os seus filhos onde elas bem entenderem. Isso, sim, é liberdade! Isso é dar liberdade àquele pai, que, se não quiser matricular o filho em determinada escola batista, ele matricula na escola onde há maior propagação do ateísmo. Esse é um problema dos pais; eles criam os filhos como bem entenderem! (Palmas.)

Mas não podemos colocar na conta do Estado a educação dos nossos filhos. Não podemos sair por aí fazendo filhos achando que a educação e todos os seus direitos têm que ficar a cargo do Estado. Eu gostaria muito de dar salários de 1 milhão de reais para todo mundo. Mas, será que isso é possível? Com certeza, não. Então, eu prefiro privilegiar a meritocracia.11 11 Deputado Eduardo Bolsonaro (PSC/SP), 28 mar. 2017, Comissão Especial, Escola sem Partido.

A fala do deputado traz a ideia de que o Estado não tem que se responsabilizar pelos filhos, já que eles seriam uma responsabilidade das famílias. Brown (2015BROWN, Wendy. 2015. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books.) discute como a governança neoliberal reforça o isolamento e empreendedorismo dos indivíduos ao transferir para eles e para outras instituições que não o Estado a autoridade, a tomada de decisões e a implementação de políticas. Nesse sentido, os indivíduos, as famílias e outras unidades seriam os únicos responsáveis por si mesmos. A associação entre a implementação de vouchers e liberdade presente no discurso do deputado Eduardo Bolsonaro é um exemplo dessa dinâmica.

As falas de outros convidados também reforçariam essa posição neoliberal. Miguel Nagib, o idealizador do Projeto Escola Sem Partido, defendeu que sua inspiração foi o Código de Defesa do Consumidor, argumentando que os/as estudantes são meros consumidores que teriam “direito de conhecer os próprios direitos” (14 fev. 2017). É em seu pronunciamento que surge, também, a disputa em relação ao próprio sentido de democracia, algo que Biroli evidenciou em sua análise dos protestos contra a agenda de gênero em diferentes partes da América Latina (Biroli, Machado e Vaggione, 2020BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco. 2020. Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo., cap 3). Para ele, o que enfraqueceria a democracia é “o aparelhamento político-partidário”, já que ele “desequilibra o jogo político em favor de um dos competidores”. O suposto aparelhamento significaria, ainda, uma manipulação indevida das moralidades. “Quem diz o que é moral e o que é imoral é o padre, é o pastor, é o pai e a mãe, não é o funcionário público. O funcionário público só faz aquilo que a lei determina. E a legislação brasileira não possui um decálogo, não possui um código moral. Quem possui código moral são as religiões” (14 fev. 2017). Fica, assim, indicado o entendimento de que a politização dos debates atentaria contra a democracia, enquanto a promoção de códigos morais com perspectiva religiosa não o faria. Essa é, possivelmente, uma das faces da antipolítica: a despolitização promovida conjuntamente com moralidades conservadoras.

A censura de pautas e atores

Uma das principais controvérsias em torno do ESP se relaciona com a censura de temas e atores. Os alvos do ESP nem sempre foram os mesmos. Miguel (2016MIGUEL, Luis Felipe. 2016. Da ‘doutrinação marxista’ à ‘ideologia de gênero’: o ‘Escola Sem Partido’ e as leis da mordaça no parlamento brasileiro. Direito e Práxis, v. 7, n. 3, pp. 590-621.) relata que, no início, o movimento estava mais focado em combater a “doutrinação marxista”, algo que seria um resquício da ditadura militar, mas que o movimento ganharia força ao tratar mais diretamente da “ideologia de gênero”, em aliança com setores religiosos conservadores. Nos debates na Câmara, como dissemos anteriormente, gênero e marxismo são temas recorrentes. Os atores que promoveriam essas “ideologias” são, portanto, os alvos de potencial censura.

Os trechos de discursos a seguir ilustram como parlamentares e convidados construíram o problema da “doutrinação” nas escolas, identificando as discussões sobre sexismo, homofobia, desigualdades de classe etc. por professoras/es como as causas desse problema, de que seria consequência a má qualidade do ensino:

Segundo o sexismo, a família é um lugar de opressão do macho sobre a fêmea, do pai sobre o filho. Segundo a ideologia racista, os brancos oprimem os outros povos coloridos. E as ideologias religiosas são a invenção de um Deus poderoso para garantir a hegemonia política de uma classe. Ela está dizendo aqui que a escola é um lugar estratégico de emancipação política dessas coisas, isto é, da família, do racismo e das religiões (Convidado, professor UFPA, Victor Sales Pinheiro, 18 abr. 2017).

Senhores, eu estou falando aquilo que vivi, porque, dentro da sala de aula, existe uma relação direta de causa e efeito, doutrinação e ditadura. Quando o professor descarrega discursos políticos sobre os alunos, aquele que pensa de forma divergente, logicamente vai ficar com medo de se expor. E, quando ele se expõe, tem a sua integridade física e moral colocada em risco. Foi isso que eu presenciei durante todo o meu ensino fundamental; foi isso que presenciei durante todo o meu ensino médio. (Convidado, técnico de informática e estudante, Douglas Garcia, 14 mar. 2017).

Omitir os males do comunismo é o que se espera de um professor. Contar que Che e Fidel foram grandes líderes é o que se espera de um professor. Ser a favor das cotas e lembrar temas como dívida histórica com negros e índios é o que se espera de um professor. Falar de feminismo é também o que se espera de um professor. Ensinar e promover práticas sobre questões de gênero que favoreçam uma confusão na cabeça das crianças é o que se espera de um professor. Criticar evangélicos e católicos e dizer que devemos defender o islamismo porque é uma questão de tolerância é o que se espera de um professor. (Convidada, professora, Silvana Monteiro, em Campinas, 10 abr. 2018).

A oposição ao debate sobre gênero, abordado como “ideologia de gênero”, conduz aos movimentos feministas e LGBTQIAP+, assim como a pesquisadoras e docentes feministas, atacados em diferentes falas. A oposição ao debate crítico socioeconômico, abordado como “doutrinação marxista”, por sua vez, conduz a partidos de esquerda e movimentos sociais que promovem pautas igualitárias e de direitos humanos.

A noção de neutralidade é importante também aqui. Há, ainda, o recurso ao entendimento de que se trata de garantir o equilíbrio entre dois lados, ainda que um deles corresponda à posições fora do espectro dos direitos humanos e dos limites do aceitável em democracias liberais. O discurso abaixo é um exemplo dessa posição:

Por exemplo, professor, o senhor citou o caso de um professor que foi questionado pelo pai porque não falou dos benefícios do nazismo. Eu acho que o professor poderia ter dito há quem diga que teve benefícios assim, assim e assim. Eu não concordo, mas há quem diga.

Eu dou aula de Direito Penal. Quando trato da questão do estupro, digo aos meus alunos: Marido não pode estuprar a mulher, porque isso não é exercício regular do Direito, mas há doutrinador que diz o contrário. Eu sou contra, mas há doutrinador que diz. (Convidado, professor na UFG, Pedro Sérgio dos Santos, 7 mar. 2017).

Há, em perspectiva distinta, deputados/as e convidados/as que defendem a censura abertamente, isto é, a proibição de que determinados temas sejam discutidos, já que estudantes estariam na escola para aprender disciplinas como português e matemática, e não para ouvir e discutir questões relativas às desigualdades e às opressões. Essa posição pode ser exemplificada pelo discurso abaixo:

Professor é professor, tem direito de falar e de ensinar. A nossa questão é que ele ensine o que tem de ser ensinado; que ele dê conta da matéria e que não queira aproveitar a sua função de professor e queira catequizar os alunos para a ideologia A, B ou C que ele defende (Deputado Pastor Eurico, PHS/SP, 14 fev. 2017).

A restrição dessas discussões e temáticas estaria justificada porque elas não fariam parte dos currículos das disciplinas. Essas abordagens dos problemas na educação é que permitiram identificar professores, movimentos sociais e partidos de esquerda como alvo de partidários do ESP. Nesse sentido, é relevante o debate em torno da diferença entre liberdade de expressão e liberdade de cátedra:

Entendo que o professor tem liberdade de ensinar, mas não tem liberdade de expressão. O professor, no seu tempo de aula, não tem liberdade de expressão. Um professor de Matemática tem que dar aula de Matemática, ele não pode falar sobre o que ele quiser. (Leandro Narloch, 28 mar. 2017).

Quando nós fazemos a distinção entre liberdade de expressão e liberdade de cátedra é exatamente no sentido de que, dentro da sala de aula, não há liberdade de expressão, há liberdade de cátedra. O professor, ao exercer o seu mister, ao transmitir os seus conhecimentos no exercício da sua atividade, tem ampla liberdade para expor, de acordo com o projeto pedagógico da escola, de acordo com o plano de trabalho, de acordo com o currículo, com a base curricular, conforme estas balizas. (Convidado, Procurador da República, Aílton Benedito, 4 abr. 2017).

Alguns professores, alguns educadores, em sala de aula, confundiram a liberdade do tema com a libertinagem do tema e avançaram muito. Querem discutir tudo: a opção sexual do meu filho, a religião do meu filho, tudo do meu filho, inclusive o partido político dele. Isso é inadmissível. (Deputado Nilson Leitão, PSDB/MT, 22 nov. 2018).

Os trechos de discursos acima tratam da questão da liberdade e defendem que professores não têm o direito de tratar em sala de aula questões que não se relacionem com o conteúdo programado. Alguns projetos de lei apensados ao PL principal procuraram institucionalizar a censura, proibindo a distribuição em escolas públicas de livros que tratassem de diversidade sexual (PL 5.487/2016) ou proibindo a “disseminação da ideologia de gênero nas escolas” (PL 10.577/2018).

Um dos casos de repercussão relacionado ao ESP colocaria o feminismo no centro das disputas. Ana Caroline Campagnolo, que foi mestranda na Universidade Estadual de Santa Catarina e protagonizou uma polêmica com a sua então orientadora, participou de uma das audiências (15 fev. 2017). Na ocasião, ela foi indagada pelo deputado Flavinho se existia na grade curricular a disciplina feminismo e respondeu que a disciplina que sua orientadora ministrava, que havia sido objeto de contestações públicas que deram a Campagnolo visibilidade nacional, se chamava História e Gênero, e afirmou que o problema estaria na “aplicação” de teorias sem “comprovação científica”:

Nem todo o historiador, nem todo sociólogo defende a teoria de gênero. Então, não existe unanimidade nem entre eles. Passar isso para a escola como obrigatório deveria ser ilegal. Na verdade, já é ilegal. Eu ainda posso me defender do que a professora fez comigo, porque já sou maior de idade, posso processá-la, inclusive. A grande questão é: e as crianças que não podem se defender e nem sabem o que está acontecendo? (Convidada, Ana Caroline Campagnolo, 15 fev. 2017).

Assim como no debate sobre aborto na Câmara dos Deputados, no qual o argumento de que a maioria da população brasileira é cristã, por isso o aborto não deveria ser um direito foi recorrente (Santos, 2015SANTOS, Rayani Mariano dos. 2015. “O debate parlamentar sobre aborto no Brasil : atores, posições e argumentos”. Dissertação de Mestrado em Ciência Política, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília. Brasília, DF: UnB.), nas discussões sobre o ESP, a proteção dos direitos das minorias, preocupação clássica e central de teóricos liberais do século XIX, como Stuart Mill e Alexis de Tocqueville, foi relegada a segundo plano. Como é possível ver no trecho a seguir:

Na democracia, claro, você tem que respeitar a minoria, mas tem que atender a maioria, e a maioria da população brasileira é cristã; se não é cristã, de alguma forma é conservadora e, com certeza, essas pautas que os professores tentam enfiar goela abaixo nessas propostas não seriam votadas pelos Parlamentares. Então, muitas vezes os professores tentam ser mais do que o Poder Legislativo (Convidada, Ana Campagnolo, 15 fev. 2017).

Um dos argumentos usados pelos deputados foi que um dos problemas das escolas é que as crianças não têm a liberdade de não estar presente ou de se retirarem, elas seriam obrigadas a ouvir o que o professor fala, e, por essa razão, o uso do cartaz com os direitos dos alunos afixado nas salas seria essencial: daria a elas a clareza de seus direitos a recusar certas discussões e aulas. Dessa forma, o cartaz seria a solução para o problema da doutrinação nas escolas, atingindo muito diretamente a pluralidade nesses espaços coletivos.

O Escola sem Partido está ali. A única obrigatoriedade é colocar um cartaz como aquele na parede. O que é que aquilo pode atrapalhar alguém? Não atrapalha ninguém em nada. Não tira do professor o seu direito de cátedra, não coloca uma mordaça na boca do professor. Vai, sim, mutilar aqueles professores de esquerda que não sabem fazer outra coisa a não ser xingar, brigar, humilhar. (Deputado Pastor Marco Feliciano, PSC/SP, 8 ago. 2017).

Em diferentes discursos, parlamentares falavam que não entendiam o motivo de tanta contestação, já que a lei que queriam aprovar se resumia à fixação do cartaz nas escolas. Porém, é possível dizer que o cartaz faz parte dessa solução do problema relacionada à busca pela restrição e censura de temas que podem ser discutidos em sala de aula. O discurso acima resume o argumento e também mostra a visão de alguns parlamentares sobre “professores de esquerda”.

A retração do compromisso estatal com agendas igualitárias

As duas frentes anteriores estão diretamente relacionadas à perspectiva da retração do compromisso estatal com agendas igualitárias. A proibição de que determinadas temáticas sejam discutidas nas escolas é um movimento no sentido da reprivatização e recusa de que a promoção de uma sociedade mais justa e igualitária seria responsabilidade do Estado, por meio de políticas públicas compatíveis com esses valores.

Para parlamentares e convidadas/os que discursaram em favor do ESP, grupos e movimentos críticos das desigualdades visavam dividir a sociedade brasileira, inventando opressões que não existiriam, que seriam ilusórias. A agenda de gênero e, em particular, a educação sexual são vistas como conflitivas, antagônicas à ordem familiar e social, que aparecem fundidas nos discursos. Mas é interessante observar que as divisões de classe - entre patrões e empregados, como aparece em um dos trechos destacados abaixo - sejam também vistas como invenções da esquerda.

Ensinar educação sexual para uma criança de 6, 7 ou 8 anos de idade, com a convicção dele - a convicção dos macaquinhos que colocavam o dedo no ânus do senhor da frente -, usando o dinheiro público, não é minha convicção. […]

Isso é a sindicalização, é o confronto do nós e eles dentro das escolas: é o pobre contra o rico, é o heterossexual contra o homossexual, é o branco contra o negro. Nós somos todos iguais, mas, para governar, eles têm que dividir. E nos dividem também dividindo os professores e professoras do nosso País. (Deputado Delegado Franceschini, SD/PR, 13 jun. 2017).

Eu trago aqui um dado. A Noruega é tida como um país exemplo em igualdade de gênero. E lá, no universo das enfermeiras, 90% são mulheres, enquanto apenas 10% dos engenheiros são do sexo feminino. A pergunta que eu faço é a seguinte: existe preconceito nisso? Será que tudo na nossa vida tem que ser meio a meio? Ou não? Se a nossa população é composta 55% de mulheres, tem que haver 55% de Parlamentares mulheres? Isso eu vejo como uma certa ignorância. Nós vamos deixando de lado a meritocracia e vamos nos agarrando apenas ao que conseguimos ver. Eu não sei nem se dá para chamar isso de raciocínio.

Levam isso para o caso dos presidiários: Ah, porque a maioria dos presidiários é negra. Ora, será que no Código Penal está escrito isto: roubar, 10 a 20 anos, mas, se for negro, de 20 a 30? Será que a polícia é formada exclusivamente por negros? Mas eles tentam, de alguma maneira, deturpar a realidade, para jogar uns contra os outros, e ai daquele que falar o contrário, porque, se fizer isso, é racista. E depois a nossa sociedade não sabe por que estamos tão divididos. É porque não há mais debate hoje em dia. Você é contra as cotas raciais? Você é racista. Você é contra o kit gay? Você é homofóbico. Você é contra o Bolsa Família, quer uma saída para o Bolsa Família? Então você é contra os nordestinos, é contra os pobres. É contra a Lei da Palmada? Então você é a favor da tortura de crianças. É isso o que a sociedade não aguenta mais. (Deputado Eduardo Bolsonaro, 8 ago. 2017).

Nós estamos assistindo à população brasileira sendo dividida entre nós e eles, entre patrões e empregados, com intolerância e preconceito sempre entre um lado e outro. Lembro que muitas vezes nós nos unimos somente em Copas do Mundo. Quando acabam as Copas do Mundo, parece que o País se divide de novo. (Convidado, vereador Belo Horizonte, Fernando Borja, 4 abr. 2018).

Essa retração do compromisso igualitário e naturalização das desigualdades também se apresenta quando o mercado é ressaltado como o lugar neutro em que todos seriam iguais e teriam as mesmas condições. Nesse sentido, subentende-se que o Estado não teria um papel de buscar a igualdade porque o mercado já promoveria a competição e isso seria suficiente. Essa ideia pode ser observada na fala abaixo:

Fazer uma opção de gênero ou fazer uma opção de raça é olhar para a pessoa e dizer: Olhe, eu o respeito. E exatamente porque o respeito, vou dar a você condições de competividade, seja você branco, negro, homossexual, heterossexual. Não interessa isso, você vai ser competitivo no mercado! E eu o respeito por isso. Agora, começar a dizer para a pessoa: Você é negro, então você vai ser respeitado porque você é negro, não porque você é competitivo. E você vai ser respeitado porque você é homossexual, porque você é mulher… (Convidado, professor na UFG, Pedro Sérgio dos Santos, 7 mar. 2017).

Entendemos que a retração do compromisso estatal com agendas igualitárias, como dito anteriormente, se relaciona diretamente com as questões discutidas nos tópicos a e b. Quando discutimos sobre a expansão da esfera pessoal, também apresentamos alguns discursos nos quais o mercado é exaltado em detrimento do Estado. Parece-nos que algumas premissas presentes no debate que ocorreu na Comissão Especial são representativas da racionalidade neoliberal - como a de que o mercado seria a esfera ideal de regulação de todos os aspectos da vida. Como discutem Dardot e Laval (2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. 2016. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo .), o neoliberalismo, ao destacar e incentivar a competição no lugar da troca, naturaliza as desigualdades. E essa naturalização se apresenta no debate do ESP tanto quando parlamentares e convidados criticam uma divisão supostamente artificial da sociedade quanto quando ressaltam o mercado como o local em que gênero, classe e raça não importariam, em que todos seriam iguais.

Também na primeira frente discutida, quando tratamos da expansão da esfera pessoal, e trouxemos exemplos de discursos que reforçavam o mercado e defendiam a liberdade no mercado, mencionamos que o neoliberalismo reforçava a ideia da responsabilidade de famílias e indivíduos, retirando a responsabilidade estatal. Tronto (2013TRONTO, Joan. 2013. Caring democracy: markets, equality, and justice. New York: New York University Press.) argumenta que enxergar a responsabilidade pessoal como a única que importa é problemático porque parte do pressuposto de que os pontos iniciais e finais das vidas das pessoas são iguais e, por isso, seria possível cobrar o mesmo grau de responsabilidade de todos. A responsabilidade pessoal, nessa perspectiva, seria antidemocrática porque não considera os efeitos que grandes níveis de desigualdades terão nos indivíduos e na vida pública; e porque supõe que todas as instituições sociais possuem a forma de um mercado ideal que seria neutro, sem passado, limites ou preocupações - suposição irreal já que o mercado beneficia os que já estão em uma posição favorável e prejudica quem não está (Tronto, 2013TRONTO, Joan. 2013. Caring democracy: markets, equality, and justice. New York: New York University Press.).

Conclusão

Quando estão em jogo direitos das mulheres, de pessoas LGBTQIAP+ e de crianças, a oposição a direitos em nome da defesa da família tem sido uma constante. Teixeira e Biroli (2022TEIXEIRA, Raniery Parra; BIROLI, Flávia. 2022. Contra o gênero: a “ideologia de gênero” na Câmara dos Deputados brasileira. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 38, pp. 1-40., p. 23), analisando a reação à igualdade de gênero e diversidade sexual na Câmara dos Deputados, observaram que apesar de a maioria das proposições terem sido apresentadas por parlamentares religiosos, a linguagem era predominantemente laica e “pautada na ideia de que se trata da defesa de direitos constituídos em nome da família”. No debate sobre aborto na Câmara dos Deputados, afirmou-se em muitos momentos que a descriminalização da interrupção da gravidez colocaria em risco a família (Santos, 2015SANTOS, Rayani Mariano dos. 2015. “O debate parlamentar sobre aborto no Brasil : atores, posições e argumentos”. Dissertação de Mestrado em Ciência Política, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília. Brasília, DF: UnB.). Quando foi discutida, na mesma casa, a proibição de castigos físicos e degradantes a crianças e adolescentes (PL 7.672/2010, conhecido como Lei Menino Bernardo) e a definição de família (PL 6583/2013, conhecido como Estatuto da Família), o argumento de que era preciso defender a família e a autoridade familiar também se destacou como contraponto à preservação do direito à integridade das crianças e do respeito à pluralidade dos arranjos familiares (Santos, 2019SANTOS, Rayani Mariano dos. 2019. “As disputas em torno das famílias na Câmara dos Deputados entre 2007 e 2018: familismo, conservadorismo e neoliberalismo”. Tese de Doutorado em Ciência Política, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília. Brasília, DF: UnB.). Biroli, Macgado e Vaggione (2020)BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco. 2020. Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo. e Biroli (2019)BIROLI, Flávia; QUINTELA, Débora Françolin. 2021. Mulheres e direitos humanos sob a ideologia da ‘defesa da família’. In: AVRITZER, Leonardo et al. (org.). Governo Bolsonaro: Retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica. pp. 343-358. mostraram que a mobilização da família para justificar o bloqueio a direitos não se restringe ao Brasil. Tem se apresentado em diferentes países da América Latina e constitui processos de desdemocratização em outras partes do mundo, como o leste e centro da Europa (Roggeband; Kriszán, 2018ROGGEBAND, Conny; KRIZSÁN, Andrea. 2018. Reversing gender policy progress: patterns of backsliding in Central and Eastern European new democracies. European Journal of Gender and Politics, v. 1, n. 3, pp. 367-85.).

Entendemos que a discussão realizada neste artigo indica que, no caso do ESP, destaca-se o mecanismo de privatização como forma de captura do público e do coletivo, associado à expansão do controle sobre as condutas. No artigo, destacamos os problemas e orientações apontados pelos defensores do ESP em seus discursos na comissão especial, organizando-os analiticamente nos seguintes eixos (1) a expansão do privado em detrimento do público; (2) a censura de pautas e atores; e (3) a retração do compromisso estatal com agendas igualitárias.

Vale reforçar que eles vão além da recusa de um tipo de educação. Apresentam alternativas contrárias a valores e normas democráticas, mas que poderiam ser incorporadas em um processo de limitação dos sentidos da democracia e de recorte da cidadania. Nelas, a afirmação da autoridade familiar e religiosa como fonte legítima para tratar de temas como gênero e sexualidade é um elemento importante.

Em sociedades nas quais o gênero é constitutivo das hierarquias e violências, inclusive na configuração familiar, a expansão do privado significa, para dialogar novamente com Wendy Brown, a normalização e normatização de desigualdades e injustiças existentes. Os mecanismos apontados na análise ativam o contraponto entre o Estado como fonte indesejável de regulações extrafamiliares e o mercado como âmbito em que a liberdade pode se manifestar. Vale observar, ainda, que uma das faces do controle sobre as condutas é a produção do que Amaya (2017AMAYA, José Fernando Serrano. 2017. La tormenta perfecta: ideologia de género y articulación de públicos. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 27, pp. 149-171.) definiu, em sua análise do caso colombiano, como públicos vigilantes. Nesse caso, estudantes, pais e organizações conservadoras e de extrema-direita são chamados a denunciar docentes que confrontem o silenciamento que se procura impor.

A retração do público (do coletivo e do papel distributivo do Estado), as restrições à pluralidade (pela censura e potencial silenciamento de posições críticas) e o descompromisso com a justiça social e a igualdade (pela normalização e normatização de hierarquias e violências) constituem a desdemocratização no país. Os sentidos da privatização não são únicos. A expansão do papel da família é fundamental aos projetos que envolvem a redução de direitos sociais e o desmonte de políticas públicas que dão suporte à vulnerabilidade - por exemplo, a retração nos direitos trabalhistas e de direitos e políticas nas áreas de seguridade, assistência social, saúde e educação. Mas a família figura, também, como justificação moral para formas autoritárias de controle sobre condutas. A ativação da autoridade familiar como resposta às inseguranças corresponde à promessa de que uma ordem hierárquica pode ser restaurada.

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  • 1
    Disponível em: https://bit.ly/3QTGDYL. Acesso em: 30 out. 2023.
  • 2
    O decreto presidencial 10.570, de 9 de dezembro de 2020, instituiu a Estratégia Nacional para o Fortalecimento da Família e o comitê interministerial responsável por sua implementação. Disponível em: https://bit.ly/3QTGMvh. Acesso em: 6 out. 2021.
  • 3
    O Estatuto da Família (PL 6.583/2013) foi proposto pelo deputado Anderson Ferreira, do Partido da República de Pernambuco (PR/PE) e busca restringir a definição de família excluindo outros arranjos da definição. O projeto foi aprovado na comissão especial criada para discuti-lo em 2015.
  • 4
    Disponível em: https://bit.ly/3QOc9HT. Acesso em: 20 maio 2021.
  • 5
    Em 2004, foi lançado o Programa Brasil sem Homofobia visando combater a violência contra a população LGBTI+. No âmbito desse programa, surgiu o projeto Escola sem Homofobia, estruturado em dois eixos. Um deles mais relacionado a uma estratégia de comunicação sobre homossexualidade em contextos educativos, e que incluía a produção do material que acabou sendo pejorativamente chamado de “kit gay” (Vital e Lopes, 2013VITAL, Christina; LOPES, Paulo Victor Leite. 2013. Religião e Política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll; Instituto de Estudos da Religião (ISER).).
  • 6
    É algo que desenvolve ao mencionar o PL 867/2015, apensado ao PL 7180/2014 em março de 2015. Chamamos a atenção para o PL 867/2015 em meio a tantos outros apensados porque ele busca incluir o ‘Programa Escola sem Partido’ entre as diretrizes e bases da educação nacional. Proposto pelo deputado Izalci (PSDB/DF), consta no PL que se espelha no anteprojeto de lei elaborado pelo Programa Escola sem Partido.
  • 7
    Foram 15 audiências no primeiro semestre de 2017; duas audiências, uma reunião pública com convidados e uma reunião ordinária com convidados no 2º semestre de 2017; três audiências, duas reuniões ordinárias (uma delas para apresentação do parecer) e seis reuniões deliberativas em 2018.
  • 8
    Para cada parlamentar ou participante de reunião ou audiência pública que se pronunciou foi gerada uma ficha. Mesmo que a pessoa tenha se pronunciado mais de uma vez na mesma reunião, foi feita apenas uma ficha; por outro lado, se a mesma pessoa se pronunciou em reuniões diferentes, foi gerada uma ficha em seu nome para cada reunião, por isso o número total de fichas ultrapassa o de participantes.
  • 9
    Utilizamos a expressão “interferência estatal” entre aspas por entender que ela carrega um julgamento de que a atuação do Estado em relação às famílias seria equivocada e indevida.
  • 10
    Os grifos nos trechos de discursos, em toda a análise neste artigo, são das autoras.
  • 11
    Deputado Eduardo Bolsonaro (PSC/SP), 28 mar. 2017, Comissão Especial, Escola sem Partido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2022
  • Aceito
    17 Out 2023
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