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Comentário a “Francis Bacon e a imagem do livro da natureza”: as viravoltas baconianas

Dentre os grandes da filosofia moderna, Bacon é dos mais controversos e resistente às rotulações. Volta-se, por um lado, ao pensamento seiscentista e seus temas principais, é elogiado por Descartes e Espinosa; por outro, muitas de suas preocupações são classificáveis, na falta de termo melhor, como renascentistas (as fábulas, a história etc.). Temporalmente incontido, tematicamente ambivalente, ele chegou a ser alçado a herói do saber, no Preâmbulo da Enciclopédia; foi rubricado como pai do que se resolveu denominar “empirismo”; até hoje, devido à leitura desatenta de algumas máximas atravessadas pela grandiloquência, comete-se o descalabro de responsabilizá-lo pela destruição da natureza.

Dito isso, fica patente o interesse do artigo de Celi Hirata (2023HIRATA, Celi. Francis Bacon e a imagem do livro da natureza. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 75-98, 2023.). Além do mérito de tratar de um pensador pouco visado pelos estudos filosóficos brasileiros, ela faz inteiro jus à complexidade baconiana, graças ao foco ajustado sobre a ideia de “livro da natureza”, a qual permite ao mesmo tempo entroncar Bacon à tradição e revelar um uso não tradicionalista dessa mesma tradição. A consideração desse ponto central da filosofia baconiana porta ainda a uma conclusão de enorme interesse, na qual, com as devidas precisões, percebemos quanto o autor do Novo órganon se aproxima de Galileu e quanto dele se afasta; ademais, e muito curiosamente, como nalguns aspectos o projeto não matemático de ciência baconiano mostra-se mais radical e inovador. Em suma, estamos diante de um admirável exercício de ler Bacon com seriedade, livrando-o da rotulagem fácil e das simplificações deploráveis.

Ora, quem toma a sério a filosofia baconiana, rapidamente se convence de sua estrondosa originalidade, que vem à tona inclusive num estilo genioso e raro, nas paragens da filosofia. Tenho para mim que, do ponto de vista filosófico, a maior contribuição de Bacon seja a invenção de uma nova imagem da filosofia, no sentido mesmo que Deleuze utilizava esse termo, em Diferença e repetição. Em vez do esforço platônico de fazer a ideia coincidir com a realidade que ela descobre, a investigação busca o discernimento do real como efetividade. Nem platônico nem empirista (ambos procuram descortinar a realidade como ela é), Bacon vai ao mundo com a ambição de quem sai para colher frutos num pomar, faz experimentos e medita sobre eles, porque da realidade lhe interessa compreender o que o real pode, isto é, a sua efetividade em sentido literal: o que é mais real é o que é mais efetivo, e são essas potências e virtudes efetuadoras as formas produtoras de efeitos que, bem interpretadas e usadas, não somente desvelam o existente como podem ampliar o próprio âmbito da realidade. Ao invés de conhecer o já feito, antecipar e ousar o nunca tentado.

Disso, a arte da enxertadura é preciosa ilustração. O saber, na medida em que compreende a natureza (obedece-lhe, diz Bacon), é capaz de ampliá-la, produzindo naturalmente coisas que não são dadas pela natureza, como num enxerto. Para Bacon, em vez de simplesmente buscar a coincidência com o real, seja pela experiência, seja pela mente, trata-se de devassá-lo em suas entranhas, a fim de fazê-lo parir coisas novas, especialmente aquelas que permitam à humanidade alcançar um novo estádio, numa palavra, progredir.

Esse progresso, contudo, possui um caráter particularíssimo, elaborado que é a partir daquela ambiguidade da filosofia baconiana que. de início. salientamos - e um dos méritos do estudo de Celi é isso clarificar, por meio da paciente exposição das relações entre o livro revelado (a Escritura) e o livro das criaturas (o mundo). Acompanhemos, por um momento, a argumentação da autora.

Ao final do Novo órganon, Bacon propõe uma releitura (também apresentada noutras obras) do episódio da queda adâmica. Segundo ele, o homem perdeu a inocência e o domínio sobre as criaturas que lhe fora destinado pelo criador, não em virtude da aspiração ao conhecimento da natureza, mas pela desatada vontade de pretender conhecer o bem e o mal. É por isso que a ciência não só não é pecaminosa, como é, inversamente, um instrumento-chave na reparação de nossa atual condição, quanto possível, neste mundo, contanto que associada à religião; ao passo que esta nos faz reencontrar a inocência do primeiro homem, as artes e as ciências ajudam a restabelecer o domínio humano que, desde o início, estava no plano divino. Eis uma primeira e curiosa viravolta: o máximo progresso é o mais intransigente regresso aos inícios do mundo; a condução da humanidade aos mais elevados patamares de bem-estar, mediante a ciência e as técnicas, identifica-se à restauração (parcial, embora) da situação do primeiro homem, antes do pecado. Encontramos, conclui a autora, “uma relação de mão dupla” segundo a qual a religião leva à ciência e esta à religião. “O conhecimento não é um fim em si mesmo, mas, ao contrário, seu objetivo é o bem-estar da humanidade e sua restauração à condição originária, que lhe pertencia de direito antes do pecado. A filosofia da natureza se justifica a partir de um projeto maior, projeto que é, por sua vez, calcado em uma interpretação determinada da Bíblia.” E, nessa medida, o saber científico torna-se “servente da religião”.

Sublinhemos essa formulação que nos joga no cerne da velha problemática das relações entre fé e razão. Não acho impossível que algum leitor, aí chegado, se decepcione - ao fim e ao cabo, o intrépido lorde-chanceler reservará à filosofia o posto de serva? Não, muito pelo contrário. É aí que devemos saber apreciar uma solução original - diversa daquelas dadas por Galileu, Descartes, Espinosa -, radical e até mesmo matreira, como só pode ser o negaceio conceitual de um filósofo que era também um político tarimbado, nas altas e nas baixas esferas dos negócios mundanos. Creio que a engenhosidade de Bacon esteja em, numa viravolta inusitada, firmar a autonomia do saber no fato mesmo de este tornar-se servente da fé.

Tenhamos em mente o terceiro aforismo do Novo órganon, citado no artigo em tela, o qual afirma peremptoriamente que só vencemos a natureza quando a obedecemos. Noutras palavras, é somente conhecendo a natureza e suas causas que conseguimos produzir os efeitos que desejamos, muita vez expandindo o próprio real; só assim o homem, verdadeiramente, é intérprete da natureza e chega a ser dela ministro. Portanto, a correta interpretação implica submeter-se e obedecer às potências e aos limites da natureza, a fim de pô-la a trabalhar para nossos fins.

Voltemos à enxertadura. Para que nela se tenha êxito, é imprescindível conhecer as potências em jogo, bem como os seus limites (não é qualquer coisa enxertada em qualquer coisa que vai frutificar); por isso, baconianamente falando, o mais banal enxerto que vinga emblema uma enorme vitória e demonstra que o saber é poder. Graças à nossa compreensão das forças da natureza, podemos induzi-la, coagi-la a produzir o que ela não produziria espontaneamente: uma nova realidade natural, embora não dada pela natureza imediatamente; uma ampliação do campo do real, segundo os nossos interesses (por isso, multiplicamos as raças bovinas, jamais as serpentes).

Pois bem, do ponto de vista de Bacon, não seria do mesmo tipo a relação que podemos conceber entre religião e ciência? A postura científica relativamente ao livro da natureza (obedecer para vencer) não é igual àquela com relação ao livro divino? Acredito que sim - e o artigo de Celi Hirata dá elementos para apreciarmos essa dialética viravolta entre senhora e escrava, religião e ciência. A correta interpretação do livro sagrado não estabelece a autonomia do saber, porque, inversamente, lhe estipula o serviço à religião; todavia, por isso mesmo, a ciência torna-se instrumento indispensável à realização do plano da divindade, ao criar o mundo. Quer dizer, obedecendo à religião, mais que uma veleidosa e inútil autonomia, a ciência esbanjará um poder e uma dignidade (termo baconiano capital) que não se reconhece em nenhuma outra atividade humana, quiçá nem mesmo numa fé, a qual, desamparada do saber, seria apenas um terreno inculto à mercê das ervas daninhas.

Referência

  • HIRATA, Celi. Francis Bacon e a imagem do livro da natureza. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 75-98, 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2023
  • Aceito
    03 Jul 2023
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