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Comentário a “O princípio do comum como apófase ao princípio da propriedade nas democracias contemporâneas”

Nos últimos anos, a discussão em torno do comum ganhou muitos contornos. Desde a publicação de Governing the common (1990)OSTROM, Elinor. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. New York: Cambridge University Press, 1990, de Elinor Ostrom, a questão se pôs fundamentalmente como uma necessidade de repensar os desafios da vida humana, no contexto socioambiental defrontado pelo capitalismo econômico-financeiro. A proposta de Ostrom teve como peculiaridade a rejeição dos argumentos de Garrett Hardin, publicados em The tragedy of the commons, na década de 1970. Nesse texto, Hardin defende a tese de que estamos fadados à escassez, à individualidade, à competição e à extinção das espécies2 2 As teses conclusivas de Hardin são: (i) os homens são competidores natos que buscam maximizar seus lucros; (ii) não há comunicação entre usuários do mesmo recurso, o que constitui uma razão desigual no uso dos recursos; (iii) os recursos comuns são abertos aos usos e abusos, por parte dos indivíduos. - ou, então, ao trágico destino “[...] para o qual todos os homens correm”, o qual inviabilizaria qualquer compartilha do comum natural (HARDIN, 1968HARDIN, Garrett. The Tragedy of the Commons. Science, New Series, v. 162, n. 3859, p. 1243-1248, 1968., p. 1244).

Ostrom, por sua vez, indica que as comunidades serviam como antinomias para esse argumento, porque elas continham princípios de cooperação, participação e responsabilidade em torno dos bens comuns. O gerenciamento coletivo dos comuns operava a partir de relações sociais horizontais e envolvia, por isso, a deliberação e a ação de todos os membros. Esse gerenciamento coletivo era alimentado pela ótica da governança comunitária como um ângulo institucional de práticas democráticas e autônomas. Essas práticas serviam de exemplos fortes para objetar a tese de Hardin.

Hardt e Negri reouveram os argumentos de Ostrom, com a finalidade de conceber experiências sociais, essencialmente democráticas, em torno dos bens comuns como bens sociais - ou, então, as formas de riqueza social e natural que compartilhamos. O principal limite da tese de Ostrom é que a competição individual, refutada por ela contra Hardin, poderia qualificar a rivalidade entre as comunidades, pelo uso dos comuns naturais, já que a ótica em questão tomava as comunidades como instituições sociais independentes. Para Hardt e Negri, o governo dos comuns não pode se alocar apenas no interno de cada comunidade, a não ser que ele seja concebido como uma esfera compartilhada aos membros, mas ainda assim privada àquele público.

Disso resulta a concepção de que o comum opera como um princípio que “[...] designa uma estrutura igualitária e aberta para o acesso à riqueza combinada com mecanismos democráticos de tomadas de decisão.” (HARDT; NEGRI, 2018HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Assembly: a organização multitudinária do comum. Tradução de Lucas Carpinelli e Jefferson Viel. São Paulo: Politeia, 2018., p. 132). O comum é um meio fundamentalmente diferente de organizar o uso e a gestão de riqueza, porque ele, em si mesmo, é uma “[...] estrutura social e uma tecnologia social para o compartilhamento” (HARDT; NEGRI, 2018HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Assembly: a organização multitudinária do comum. Tradução de Lucas Carpinelli e Jefferson Viel. São Paulo: Politeia, 2018., p. 132), algo que destoa da lógica da propriedade.

O comum, enquanto estrutura social, evoca um tipo específico de direito. Os direitos do comum produzem relações sociais democráticas e participativas, geridas desde baixo e originárias desde o interior dos grupos sociais. Eles, portanto, diferem dos direitos sociais, fundamentalmente estáticos e normativos, porque não se submetem ao direito público a serviço do Estado, conforme Hardt e Negri. Os direitos do comum deslocam do plano jurídico para o social a capacidade de constituir práticas comunitárias de produção de riqueza e liberdade. Esse parece ser o mote em torno do qual Hardt e Negri aproximam o comum da democracia. Essencialmente, a democracia é um regime político mantido pelas práticas de agenciamento e governança da multidão. A multidão constitui os direitos do comum, nas democracias contemporâneas, a partir da imanência comunitária e das relações coletivas. Isso implica, necessariamente, a combustão da propriedade na forma de sua abolição ou de sua radical apófase, segundo sublinha Decothé Jr. (2023DECOTHÉ JR., Joel. O princípio do comum como apófase ao princípio da propriedade nas democracias contemporâneas. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 193-214, 2023.).

Esse fio condutor nos conduz ao cerne da questão: conceber o comum como um princípio suficientemente forte para superar a propriedade. De fato, essa é uma tese robusta, permeada de pontos abertos e passíveis de discussão. Gostaríamos de mapear alguns elementos críticos não abordados diretamente por Decothé Jr. (2023DECOTHÉ JR., Joel. O princípio do comum como apófase ao princípio da propriedade nas democracias contemporâneas. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 193-214, 2023.), mas que enervam a discussão dos dois pensadores principais, Hardt e Negri, escolhidos por ele para sua interlocução. Esses apontamentos se fazem, sobretudo, a partir da IV parte de Assembly, onde Hardt e Negri lançam mão de propostas operacionais para o comum. De antemão, a problematização gira em torno de compreender se essas propostas são suficientemente fecundas para rebater o princípio da propriedade.

  1. Como se sabe, Hardt e Negri propõem a constituição de um “novo Príncipe” capaz de atacar o eixo vertical do poder e de esvaziar sua força repressiva (HARDT; NEGRI, 2018HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Assembly: a organização multitudinária do comum. Tradução de Lucas Carpinelli e Jefferson Viel. São Paulo: Politeia, 2018., p. 339). Para os pensadores, a multidão deve se constituir em um novo Príncipe, enquanto estrutura democrática. O Príncipe deve governar, tomar decisões relativas à vida social. Embora Hardt e Negri explicitem a função do novo Príncipe como constituidor do comum, parece-nos uma escolha arriscada optar pelo uso da terminologia monárquica tão saboreada por Maquiavel. Por essência, um principado nunca está arrancado do eixo vertical do poder e de suas práticas de captura da vida humana, tanto quanto nunca se constitui sem a propriedade. A propriedade garante ao Príncipe a força necessária para se proteger e para lutar contra os inimigos. Ainda que o Príncipe seja uma multidão pobre de propriedades, mesmo assim, há uma carga política que resta em sua condição monárquica.

  2. A conceituação do comum como “[...] estrutura social e uma tecnologia social para o compartilhamento” (HARDT; NEGRI, 2018HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Assembly: a organização multitudinária do comum. Tradução de Lucas Carpinelli e Jefferson Viel. São Paulo: Politeia, 2018., p. 132) cria certa confusão, porque essa é, em boa medida, atribuída à comunidade. A comunidade como uma organização coletiva da multidão pode cuidar do comum, e esse é o seu verdadeiro desafio. Sob esse prisma, as comunidades - entendo-as não somente como um agrupamento de indivíduos, mas como modelos éticos de vida - protegem o comum contra a apropriação ou a privatização. Essa leitura crítica se estende à proposição dos “direitos do comum” (HARDT; NEGRI, 2018HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Assembly: a organização multitudinária do comum. Tradução de Lucas Carpinelli e Jefferson Viel. São Paulo: Politeia, 2018., p. 132). Como sublinham os próprios autores, o direito é atravessado pela ótica da propriedade, e isso justifica, por exemplo, a capilarização dos direitos sociais. Dois pontos convergem aqui em torno da relação entre direito e comum. O primeiro foi dito antes, e o segundo segue em decurso dele. Se o direito é um modo de proteção formal da propriedade, qual tipo de relação estaria pressuposta entre ele e o comum? Ainda importante, quais são os direitos do comum? A menos que o comum seja pensado aqui como um ente com personalidade humana, seria praticamente impossível atribuir-lhe direitos.

  3. Criar uma moeda comum é uma imagem sólida do comum, afirmam Hardt e Negri. O dinheiro se torna um problema, por causa da relação social que o sustém. Uma nova relação social, igualitária e livre no comum, pode alterar a concepção negativa do dinheiro. Todavia, “[...] como conceber um dinheiro fundamentado no comum, em vez de constituído por relações de propriedade?” (HARDT; NEGRI, 2018HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Assembly: a organização multitudinária do comum. Tradução de Lucas Carpinelli e Jefferson Viel. São Paulo: Politeia, 2018., p. 370), questionam os pensadores. Esse dinheiro não seria um título anonimizado, mas um título social provindo de dívidas no comum. Em termos concretos, uma renda básica comum seria a pedra angular para o desenvolvimento dessa moeda. Essa proposição muito se assemelha com as teses do multilateralismo capitalista, as quais defendem a criação de uma moeda comum de circulação global. Sem embargo, essa proposta não comunga do argumento da renda básica comum, mas sim da liberdade de circulação comum capaz de promover riquezas ao social. Essas duas perspectivas se tocam, porém. O ponto de partida é a economia como prisma de desenvolvimento social, no primeiro caso, e de desenvolvimento econômico, no segundo. De toda forma, a teoria da renda básica comum, enquanto emblema de uma moeda comum capaz de fortalecer o próprio comum, poderia ser útil, contudo, limitada. Certamente, uma renda básica comum diminui as desigualdades sociais, porém, não as elimina. Isso pode ser um entrave ao próprio comum, já que ele permaneceria no jargão economicista das igualdades menos desiguais ou da desigualdade mais igualitária. O fato é que pensar o comum nos trilhos econômicos fecha por si só o domínio aberto sobre o qual ele precisa permanecer.

  4. O eixo transversal da teoria do comum de Hardt e Negri poderia ser resumido com a seguinte frase: “[...] o comum é um meio, não propriedade, isto é, um fundamentalmente diferente de organizar o uso e a gestão de riqueza.” (HARDT; NEGRI, 2018HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Assembly: a organização multitudinária do comum. Tradução de Lucas Carpinelli e Jefferson Viel. São Paulo: Politeia, 2018., p. 132). Permanece latente, na visão dos pensadores, a importância de gerenciar - na forma de um empreendedorismo da multidão - a riqueza comum. Mais uma vez, Hardt e Negri se aproximam do jargão economicista no qual o comum, para ser comum, precisa ser um meio de organização de riqueza. Se assim o é, o comum está a encargo de um fim maior, porque é somente meio para isso. O comum não é em si comum, entretanto, um meio comum para gerar e distribuir riquezas comuns. Aqui o comum se torna um instrumento para algo maior, aparentemente mais preciso e mais incorporado àquilo que pode ser empreendido pelo social.

Esses quatro apontamentos críticos merecem atenção, porque reiteram a dificuldade de fecharmos uma única reflexão sobre o comum. Porém, como já sublinhamos, o comum como princípio de apófase ao princípio da propriedade, nas democracias contemporâneas, é um caminho possível, desde que se afaste do jargão economicista e do estruturalismo social. E isso se dá através de uma ótica inversa ao argumento da administração do comum, como meio de produzir riquezas sociais. Algumas considerações podem contribuir com a propositura de Decothé Jr. (2023DECOTHÉ JR., Joel. O princípio do comum como apófase ao princípio da propriedade nas democracias contemporâneas. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 193-214, 2023.):

  1. O que determina o comum a ser o comum não é sua suposta naturalidade, mas a decisão instituinte nascida do agir coletivo. Por isso, o comum não é um bem - não é um bem comum, nem um patrimônio comum da humanidade -, antes disso, ele é uma ação instituinte coletiva, sempre aberta às tensões existentes.

  2. O comum não se reduz aos recursos naturais. A língua, o conhecimento, o pensamento, o sangue, os órgãos3 3 Cada vez mais, argumentos a favor do comércio de órgãos têm surgido. Isso exemplifica a força com a qual o próprio sistema capitalista investe contrariamente aos comuns. , a vida, são exemplos de comuns inapropriáveis distintos dos elementos naturais. O Open Access Initiative e o Library Genesis são exemplos de como o comum pode funcionar: no caso do primeiro, a publicação de pesquisas de maneira livre contribuiu com o acesso de milhares de pessoas a documentos anteriormente comercializados; no caso do segundo, a proposta de disponibilizar livros ao grande público permite acesso e uso de materiais não disponibilizados gratuitamente.

  3. Estabelecer “direitos do comum” ou “direitos ao comum” é criar um rol de garantias jurídicas, mas não éticas nem políticas. Se o comum é instituído pela ação coletiva, pautá-lo na esfera do direito pode endossar sua captura. A relação com o comum precisa se dar como modo coletivo de vida e não como obrigação jurídica.

  4. A desapropriação e a inapropriação não são categorias estanques. Elas permanecem como tensões em torno do comum. O que determina a recusa delas não deve ser o direito, mas a própria deliberação do povo. A guerra da água, na Bolívia, a qual evitou a apropriação pelo setor privado, em Cochabamba e El Alto, é um exemplo de como isso se dá. A vitória popular e as propostas de gestão por parte do povo encontraram resistência de autoridades, burocracias sindicais e da tecnocracia de empresas públicas (AGUITON, 2019AGUITON, Christophe. Comuns, a nova fronteira da luta anticapitalista. In: SOLÓN, Pablo. (org.). Alternativas sistêmicas: bem viver, decrescimento, comuns, ecofeminismo, direitos da Mãe Terra e desglobalização. São Paulo: Elefante, 2019.). A continuidade do movimento se tornou insustentável, e o comum se tornou algo sem concretude.

  5. A responsabilidade ética do povo com o comum implica um dever consciente de cuidado e não somente de administração das riquezas. O uso comedido e responsável do comum pode ser uma das formas de relações sociais fora da propriedade. A tensão entre uso e abuso permanece aberta, nesse caso. O limiar entre esses dois polos passa novamente pela conduta ética, que institui comportamentos nos sujeitos sobre os limites de suas ações.

  6. O comum desafia não apenas a propriedade, mas a própria democracia a se reinventar. Mesmo se pensarmos na erradicação da propriedade, as democracias contemporâneas correriam o grande risco de esgotar o comum, no aspecto governamental. Uma vez que as democracias contemporâneas se mantêm cada vez mais pelo gerenciamento biológico das populações, o risco é de que o comum também seja agenciado por essa ótica. Conceber o comum como um princípio instituinte da própria democracia pode ser uma saída para isso. Na medida em que o comum preconiza a deliberação instituinte do povo, a democracia se vê obrigada a mudar a racionalidade governamental de controlar a vida humana. A restituição ao espaço do autogoverno institui a práxis à qual o comum está orientado.

Os seis pontos não encerram o debate sobre o comum, entretanto, nos auxiliam a modelar vias de abolição da propriedade e de resistir ao avanço do sistema capitalista. O princípio do comum como apófase radical passa por uma luta que confronta a própria democracia, em seu estado atual. A linha tênue habitada pelo comum diz respeito à tensão inesgotável de desapropriar e de ser inapropriável pelos interesses e práticas econômicas, políticas, sociais etc. A razão governamental do capitalismo percebeu bem isso, de modo a revelar um certo gosto pelos comuns: quando não for possível apropriá-los, deve-se administrá-los como uma propriedade coletiva. Eis o risco que o comum corre.

Referências

  • AGUITON, Christophe. Comuns, a nova fronteira da luta anticapitalista. In: SOLÓN, Pablo. (org.). Alternativas sistêmicas: bem viver, decrescimento, comuns, ecofeminismo, direitos da Mãe Terra e desglobalização. São Paulo: Elefante, 2019.
  • DECOTHÉ JR., Joel. O princípio do comum como apófase ao princípio da propriedade nas democracias contemporâneas. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 193-214, 2023.
  • HARDIN, Garrett. The Tragedy of the Commons. Science, New Series, v. 162, n. 3859, p. 1243-1248, 1968.
  • HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Assembly: a organização multitudinária do comum. Tradução de Lucas Carpinelli e Jefferson Viel. São Paulo: Politeia, 2018.
  • OSTROM, Elinor. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. New York: Cambridge University Press, 1990
  • 2
    As teses conclusivas de Hardin são: (i) os homens são competidores natos que buscam maximizar seus lucros; (ii) não há comunicação entre usuários do mesmo recurso, o que constitui uma razão desigual no uso dos recursos; (iii) os recursos comuns são abertos aos usos e abusos, por parte dos indivíduos.
  • 3
    Cada vez mais, argumentos a favor do comércio de órgãos têm surgido. Isso exemplifica a força com a qual o próprio sistema capitalista investe contrariamente aos comuns.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2023
  • Aceito
    15 Jul 2023
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