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Crescimento econômico e renegociação da dívida externa

Economic growth and foreign debt negotiation

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar a negociação da dívida externa do Brasil dentro de uma estratégia de crescimento econômico. Traça um perfil geral das principais características do endividamento brasileiro, enfatizando os erros grosseiros da política econômica cometidos no período 1974/89. O artigo apresenta um modelo bastante simples de dinâmica da dívida externa e descreve a estrutura dos objetivos do programa de negociação da dívida. no combate à inflação e na restauração do crescimento econômico.

PALAVRAS-CHAVE:
Crescimento; dívida externa; negociação

ABSTRACT

The objective of this paper is to analyze the negotiation of Brazil’s foreign debt within a strategy of economic growth. It draws a general profile of the main characteristics of Brazilian indebtedness, emphasizing the gross errors of economic policy made during the period 1974/89. The paper presents a fairly simple model of foreign-debt dynamics and describes the framework of debt-negotiation program aims at fighting inflation and restoring economic growth.

KEYWORDS:
Growth; foreign debt; negotiation

I. INTRODUÇÃO

A negociação da dívida externa dos países subdesenvolvidos com os países credores e, em particular, com os bancos privados internacionais, tem sido conduzida com o duplo objetivo de reescalonar o fluxo de caixa do serviço da dívida e reduzir o valor atual da mesma. Na prática, as negociações vêm dando muito mais atenção ao problema do fluxo de caixa que ao valor atual da dívida. Um bom número de economistas e analistas políticos dos problemas criados pela crise da dívida externa têm alertado para o fato de que, nos próximos anos, o crescimento econômico dos países subdesenvolvidos depende de substancial redução do valor atual da dívida.

Este trabalho analisa a negociação da dívida externa dentro de uma estratégia de crescimento econômico. A Seção 2 expõe em linhas gerais as principais características do endividamento externo brasileiro. A Seção 3 contém breve retrospecto da economia brasileira no período 1974/1989, mostrando que os choques externos e os erros grosseiros da política econômica nesse período foram as principais razões para a crise da dívida externa. A Seção 4 descreve de modo bastante simples a dinâmica da dívida externa e permite compreender a importância da redução do seu valor atual numa estratégia de crescimento econômico. A Seção 5 conclui descrevendo o arcabouço de um programa de renegociação da dívida externa com o escopo do combate à inflação e da retomada do crescimento econômico.

II. EVOLUÇÃO DO ENDIVIDAMENTO EXTERNO BRASILEIRO

Tabela 1
Dívida Externa Brasileira Percentagem e USS Milhões
Tabela 2
Divida Externa com Bancos Comerciais Estrangeiros
Tabela 3
Dívida Externa Registrada e Não-Registrada

Os empréstimos dos bancos comerciais internacionais eram feitos a taxas de juros fixos até 1973, quando se introduziu o sistema de taxas de juros flutuantes, repactuadas, em geral, a cada seis meses. A Tabela 4 mostra que em 1989 cerca de 74,6% da dívida externa brasileira era contratada a taxas flutuantes, com 57,1% dos contratos tendo a LIBOR como taxa básica e 5,8% a taxa preferencial americana (prime rate).

Tabela 4
Divida Externa: Composição por Tipo de Taxas de Juros (Percentagem)

Após a crise da dívida externa, em 1982, desenvolveu-se um mercado secundário, onde são negociados títulos da dívida externa dos países devedores. A Tabela 5 mostra como tem evoluído a cotação dos títulos brasileiros. Em março de 1990, o deságio estava em torno de 75,9%.

Tabela 5
Preço da Divida Brasileira no Mercado Secundário

Na década de 70, foram criados incentivos fiscais para estimular a conversão da dívida externa brasileira em investimento direto. A Tabela 6 mostra o volume de conversões feitas a partir de 1978. Em 1978 e 1979 foram convertidos, respectivamente, 160 e 207 milhões de dólares. Em 1980 e 1981, houve uma redução substancial nos montantes convertidos. A partir de 1982, as conversões subiram, atingindo 746 milhões de dólares em 1984, caindo, depois, para 581 milhões em 1985 e 220 milhões de dólares em 1986.

Tabela 6
Investimentos Diretos Estrangeiros

Em novembro de 1984, o Banco Central (Carta Circular 1125) baixou novas regras para conversão: os empréstimos entre empresas (inter-company loans) e os créditos de instituições financeiras, não negociados em mercado secundário, poderiam ser convertidos em investimentos estrangeiros. Essa regulamentação impediu que empresas interessadas em investir no Brasil comprassem no mercado secundário com deságio e registrassem o investimento pelo valor de face. Em 20 de julho de 1987, os processos de conversões foram suspensos. No ano seguinte, nova regulamentação para a conversão formal foi baixada pelo Banco Central (Resolução 1460/88 e Circular 1302/88).

Uma modalidade de conversão consistia na permuta em investimento, através de leilões em bolsas de valores, de créditos contratualmente devidos pelo Banco Central ou depósitos em moeda estrangeira constituídos nessa entidade, decorrentes de parcelas vencidas do principal ou de juros de empréstimos e financiamentos de médio e longo prazos e respectivos encargos da dívida vencida.

Outra modalidade era a conversão das dívidas vincendas com regulamentação pela Resolução 1460/88 e Circular 1303/88 do Banco Central. As conversões eram realizadas por leilão, anuentes credor e empresa beneficiária do investimento, porém a autoridade monetária autorizava a operação e absorvia o deságio, efetivando a redução do valor de registro do capital estrangeiro convertido. O deságio era absorvido com base na média ponderada das propostas vencedoras a cada leilão formal de conversão. Desta forma, eram conversíveis as dívidas vincendas, incluindo as de depósitos voluntários com garantia cambial, constituídos junto ao Banco Central sob o amparo da Circular 230/74 e da Resolução 432/77.

Nos últimos anos, pelo processo de conversão da dívida externa em investimentos, seu estoque reduziu-se em 6,2 bilhões de dólares, como se observa na Tabela 7. Ressalte-se que a conversão de dívida representou, com exceção de 1980 e 1981, uma proporção não desprezível do fluxo líquido de capital estrangeiro no Brasil, cuja taxa de remessa, em média, não ultrapassou os 5% ao ano na última década.

Tabela 7
Conversão da Dívida Externa em Investimento

Uma característica do endividamento externo brasileiro: parte da dívida com os bancos comerciais fez-se a bancos brasileiros com agências no exterior. A dívida externa registrada desses bancos no Banco Central era de 6,963 milhões de dólares em 1982 e a dívida não-registrada representava 820 milhões de dólares no final do mesmo ano. A Tabela 8 fornece a evolução dessa parcela da dívida para o período 1981/1989.

Tabela 8
Dívida Externa com Agências de Bancos Brasileiros no Exterior

Vários bancos comerciais brasileiros, privados e governamentais, abriram um grande número de agências no exterior na década de 70, graças às condições excepcionais do mercado financeiro internacional. Captavam recursos a curto prazo no mercado interbancário, que-na maioria-os emprestavam a empresas brasileiras, a médio e longo prazos. O colapso do mercado financeiro em 1982 resultou na crise de liquidez para esses bancos e, dentro do processo de renegociação da dívida externa brasileira, um esquema teve de ser montado para socorrê-los.

III. A ECONOMIA BRASILEIRA EM RETROSPECTO: 1973/1989

A economia brasileira foi bastante rica e diversificada no período 1973/89. Os aspectos que desejamos ressaltar estão mais ligados ao processo do endividamento externo: a incidência de choques externos e as respostas da política econômica a esses choques.

O Quadro I sintetiza a história do período sob este ângulo. No início do período 1973/1979, a economia brasileira foi duramente atingida por choques externos e o desempenho da política econômica foi razoável dentro da estratégia adotada. No período 1979/1982, a economia brasileira esteve no pior dos dois mundos, pois, além dos choques externos, a política econômica contribuiu para agravar uma situação que já era crítica.

Quadro 1

No período 1983/1985, a economia não foi afetada por choques externos e, a partir do início de 1983, foi submetida a um ajustamento que começou a dar resultados em 1984, entrando em fase de rápida recuperação em 1985.

De 1985 até o final do Governo Sarney, a economia brasileira não só não sofreu choques externos adversos, como se beneficiou do declínio das taxas de juros internacionais e da redução do preço do petróleo. Em contrapartida, sofreu excessiva degradação na qualidade da política econômica, experiência cujos custos sociais ainda estão por contabilizar devidamente.

A estratégia de crescimento com endividamento: 1973/1979

A opção de iniciar a análise da dívida externa a partir de 1973 deve-se ao fato de que esse ano é um marco na história recente da economia brasileira.

No período 1967/1972, o setor externo da economia teve desempenho bastante favorável: exportações e importações com elevadas taxas de crescimento, pequenos saldos na balança comercial e dívida externa líquida (1972) de cerca de 4 bilhões de dólares. O período ficou conhecido como o “milagre econômico”, pois a taxa média de crescimento do produto interno bruto foi de 10% ao ano.

A partir de 1973, a economia brasileira passou a sentir os efeitos da mudança de cenário dos anos anteriores. A quadruplicação do preço do petróleo, em fins de 1973, foi o principal evento. O acréscimo com gastos de importação foi de aproximadamente 2,1 bilhões de dólares, um terço do aumento de 6 bilhões de dólares nas importações em 1974, que cresceram 100% em relação ao ano anterior.

Outros fatores contribuíram para prejudicar o setor externo da economia brasileira: mudança adversa das relações de trocas e queda no ritmo de crescimento das importações dos países industrializados, prejudicando as exportações brasileiras para esses países.

Aliado aos diferentes choques externos, o governo brasileiro decidiu implementar um ambicioso programa de substituição de importações; o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), com base em grandes projetos públicos e privados na área de bens de capital e insumos básicos.

A opção do governo de fazer crescer a economia, com uma situação externa bastante adversa, só se tornou possível devido à facilidade de financiamento externo do sistema bancário internacional.

A taxa de investimento do período 1974/1979 manteve-se em torno de 22,5% do produto interno bruto, e a economia brasileira cresceu a uma taxa média de 8,2%, quando países industrializados cresciam a uma taxa média de 2 ao ano.

A contrapartida desse crescimento foi o endividamento externo. A conta corrente do balanço de pagamentos foi deficitária durante todo o período, com um déficit de 1,6 bilhões de dólares em 1973 e de cerca de 6 bilhões de dólares, em média, nos demais anos. A dívida externa bruta cresceu entre 1973 e 1978 a uma taxa média anual de 22,9%.

A taxa de inflação, pouco abaixo dos 20% ao ano no período 1967/1973, subiu em 1974 e estabilizou-se numa faixa de 35-40% ao ano no período 1974/1978. Essa elevação foi resultado de excessiva expansão monetária em 1973 e subsequente acomodação da política monetária a partir de 1974. A política comercial adotada em 1974 aumentou as tarifas alfandegárias; criou um depósito compulsório sobre as importações pelo prazo de doze meses, com devolução sem juros nem correção monetária; proibiu importações de produtos considerados supérfluos; e restringiu quantitativamente as importações de empresas governamentais. A política cambial procurou manter constante a taxa de câmbio real, pelo mecanismo das minidesvalorizações.

Erros de política econômica e choque externo: 1979/1982

O período 1979/1982 foi bastante adverso para a economia brasileira: além de sofrer diversos choques externos, cometeram-se erros grosseiros de política econômica, transformando uma situação difícil numa crise sem precedentes na história econômica recente.

Em 1979, com o segundo choque do petróleo, o preço médio do barril elevou-se de US$ 13,76, em 1978, para US$ 22,46, em 1979 e US$ 33,72 em 1980. A economia brasileira era, e ainda é, uma economia bastante fechada, com um grau de abertura em torno dos 6%. As importações de bens de consumo, em 1979, representaram apenas l0% das importações totais, sendo 90% a participação dos bens de capital e dos insumos no total. As importações de petróleo bruto passaram de 2,5 bilhões de dólares em 1974 para 6,3 bilhões de dólares em 1979, atingindo, neste último ano, a proporção de cerca de 35% nas importações totais. Com este nível e estrutura de importações, a margem de manobra, no curto prazo, foi bastante estreita e a contenção das importações só pôde ser feita com a redução do nível de atividade econômica e a diminuição da taxa de crescimento econômico.

O segundo choque do período foi a queda nas relações de trocas, com a diminuição dos preços dos produtos de exportação brasileira e o aumento dos preços de bens de capitais e insumos importados pelo Brasil. Ao choque do petróleo, superpôs-se o choque de outros preços de produtos comercializados pelo Brasil.

O terceiro choque desfavorável na economia nacional foi a recessão mundial que atingiu o desempenho das exportações brasileiras. O quarto choque foi o aumento abrupto e inesperado das taxas de juros internacionais, como resultado da combinação das políticas monetária e fiscal americana. O último choque do período 1979/1982 foi a ruptura dos mercados financeiros internacionais, no segundo semestre de 1982.

Não obstante quadro tão desfavorável, a política econômica ainda foi conduzida de maneira a agravá-la. No início do Governo Figueiredo, o então ministro do Planejamento desejava proceder a um ajustamento da economia brasileira, pois a estratégia de crescimento com endividamento do período 1974/1979 não seria mais viável. A nova estratégia reduziria, no curto prazo, a taxa de crescimento do produto interno bruto. Vários economistas, no entanto, dentro e fora do governo, fizeram-lhe cerrada oposição.

A inflação começou a acelerar-se no segundo semestre de 1979, como resultado do choque do petróleo e da expansão do déficit público. Os economistas, que se opunham ao ajustamento da economia, acreditavam que a melhor opção para combater a inflação seria o crescimento econômico. Em agosto de 1979, o ministro do Planejamento demitiu-se e seu sucessor, que tinha sido o czar da economia na época do milagre, começou a pôr em prática suas ideias.

Nova política salarial foi introduzida em novembro de 1979, com reajustes salariais a cada seis meses-até então eram anuais-, com base na taxa de inflação dos últimos seis meses, estabelecendo-se o critério de reajustes pelo pico do salário real e não pelo valor real médio como vinha sendo feito. Os salários inferiores a dez salários-mínimos recebiam uma bonificação de l0% da taxa de inflação. Assim, os trabalhadores tornaram-se sócios da inflação.

Em dezembro de 1979, o cruzeiro sofreu uma maxidesvalorização de 30%. Logo em seguida, em janeiro, anunciou-se que a correção monetária e a taxa de câmbio, ao longo do ano de 1980, seriam corrigidas em apenas 40%. A medida pretendia reverter as expectativas de inflação do setor privado. As políticas monetária e fiscal, todavia, continuavam expansionistas, incongruentes com as próprias metas do governo.

O resultado desse conjunto de medidas foi um forte crescimento da economia em 1980, quando o produto cresceu 9,2%. A inflação, que em 1979 já atingira a marca dos 70%, em 1980 ultrapassou a barreira dos 100%.

A teoria econômica ensina que uma desvalorização do câmbio numa economia com salários indexados apenas produz mais inflação. A prática confirmou a previsão.

A absorção de recursos em ritmo superior ao da produção agravou o balanço de pagamentos. A prefixação da taxa de desvalorização do câmbio teve de ser abandonada em meados de 1980, com a volta de diversos subsídios para as exportações e de impostos adicionais sobre as importações, que a maxidesvalorização de 1979 eliminara. O nível de reservas internacionais declinou em quase 3 bilhões de dólares em 1980. No final de 1980 e começo de 1981, a situação cambial aproximava-se do colapso. O setor privado não desejava tomar empréstimos em moeda estrangeira com receio de possíveis perdas provocadas por outra maxidesvalorização. O governo introduziu, então, um contingenciamento no crédito com fundos domésticos, obrigando as empresas a tomarem recursos no exterior. As operações da Resolução 63 cresceram cerca de 35% entre 1980 e 1981.

A política econômica sofreu uma guinada de 180° em 1981, com uma política monetária fortemente contracionista, embora a política fiscal permanecesse folgada. A taxa de juros real subiu acentuadamente. Em 1981, com o produto declinando de 4,4% em relação ao nível atingido em 1980, criaram-se as condições para a primeira recessão pós-guerra na economia brasileira. A situação do balanço de pagamentos agravou-se paulatinamente no segundo semestre de 1982, com a diminuição dos fluxos de empréstimos em moeda. No mesmo período, a moratória do México e o colapso do mercado financeiro internacional aprofundaram a crise. O ano de 1982, em que o produto cresceu apenas 0,7% e a inflação manteve-se no patamar dos 100% ao ano, era um ano eleitoral e o governo teve de esperar o final das eleições para imprimir novos rumos à economia.

Ajustamento segundo a receita do FMI: 1983/1985

No último trimestre de 1982, a situação cambial brasileira era crítica. O Tesouro Americano, o Banco de Compensações Internacionais (BIS) e os bancos comerciais internacionais tiveram de montar algumas operações de emergência para socorrer o governo brasileiro, enquanto se preparava um plano de curto prazo para reescalonar a dívida externa brasileira.

Em novembro e dezembro de 1982, o Governo acordou com o FMI o uso das facilidades de crédito ampliado, no valor de 4,5 bilhões de dólares, num período de três anos. O Brasil escreveu, então, a primeira carta de intenções para o Fundo Monetário Internacional. O pacote de dezembro de 1982 continha, em quatro itens, um plano de financiamento com os bancos internacionais: Projetos I, II, III e IV. No Projeto I, os bancos concediam novos empréstimos ao Brasil no valor de 4,4 bilhões de dólares; no Projeto II, havia o financiamento automático de 4,6 bilhões de dólares das amortizações de empréstimos que venciam durante o ano de 1983; no Projeto III, preservavam-se as linhas de crédito comerciais de curto prazo, no valor de 8,8 bilhões de dólares; e, no Projeto IV, mantinham-se os depósitos interbancários nas agências de bancos brasileiros no exterior, no total de 9,4 bilhões de dólares.

O programa acertado com o FMI previa inicialmente, ao longo de 1983, uma desvalorização cambial de 1% ao mês acima da taxa de inflação, além das metas do receituário tradicional do FMI com relação ao crédito doméstico, ao déficit público e ao balanço de pagamentos. No início de 1983, os saldos da balança comercial indicavam que a meta do balanço de pagamentos dificilmente seria atingida. Em consequência, em fevereiro de 1983, o cruzeiro sofreu uma desvalorização de 30% e nova carta de intenção ao FMI teve de ser escrita, pois a maxidesvalorização modificava completamente o programa anterior. A primeira carta de intenção, aliás, não chegou sequer a ser apreciada pela direção do FMI.

Os reflexos da maxidesvalorização do cruzeiro, aliados à forte contenção fiscal, à política monetária apertada e à desindexação parcial dos salários, fizeram a balança comercial apresentar saldos crescentes, atingindo, no final de 1983, a marca mensal de 1 bilhão de dólares. De outro lado, a inflação acelerou-se, saltando do patamar dos 100% ao ano, no período 1980/1982, para um novo plateau de 200% ao ano, nos três anos seguintes (1983/1985). O produto real declinou de 3,4% em 1983, no segundo ano de recessão pós-guerra da economia brasileira.

O fato de não terem sido cumpridas várias metas do acordo do governo brasileiro com o FMI levou as autoridades brasileiras a escreverem um total de sete cartas de intenções ao Diretor-Geral do FMI, no curto espaço de dois anos. A culpa de tal prolixidade deve ser atribuída a ambas as partes, pois se o receituário do FMI desconhecia as peculiaridades de uma economia amplamente indexada, o governo brasileiro não foi capaz de demonstrar a inconsistência das metas programadas. É fácil verificar que as metas para o balanço de pagamentos foram, em geral, atingidas. O mesmo não ocorreu, todavia, com as metas do déficit público e da inflação.

No segundo semestre de 1983, foi acertado, para 1984, com os bancos comerciais, outro programa de financiamento para o balanço de pagamentos, dentro da mesma concepção dos quatro projetos da primeira fase de renegociação da dívida externa brasileira: Projetos A, B, C e D. No Projeto A, o Brasil obteve 6,5 bilhões de dólares de dinheiro novo, com as comissões1 1 Spread, Flat fee e comissão de compromisso. diminuindo de 4,125%, na primeira fase, para 3,5% com relação à LIBOR. No Projeto B, foram refinanciados, por um prazo de nove anos e cinco de carência, 5,4 bilhões de dólares das amortizações que venciam ao longo do ano de 1984, com as comissões sendo fixadas em 3% acima da LIBOR, quando na primeira fase elas foram de 3,625%. No Projeto C, as linhas comerciais de curto prazo foram mantidas no nível de 9,8 bilhões de dólares. No Projeto D, foram mantidos 5,4 bilhões de dólares na linha interbancária, para financiamento dos bancos brasileiros no exterior.

No reino da fantasia heterodoxa: 1985/1987

O fim do regime militar em março de 1985 iniciou-se com a tragédia da morte do presidente eleito Tancredo Neves, que repartira os cargos dos vários escalões entre os partidos da frente ampla que apoiara sua candidatura à presidência da República. Em consequência, assumiu o vice-presidente e confirmou o Ministério já indicado.

Durante cerca de cinco meses, os ministros da Fazenda e do Planejamento não se entenderam sobre política econômica. Enquanto o ministério da Fazenda defendia uma política monetária apertada e um controle de preços que prejudicava as empresas estatais, o do Planejamento o responsabilizava pelo aumento do déficit público, pois o controle de preços diminuía a receita das empresas estatais e a subida da taxa de juros aumentava o serviço da dívida pública interna. Os economistas da Fazenda acusavam o Planejamento de aumentar o déficit público, pela expansão dos gastos governamentais. O impasse foi finalmente resolvido com a saída do ministro da Fazenda.

Uma das primeiras providências do novo titular foi reverter a política monetária, aumentando o ritmo da expansão da moeda e diminuindo a taxa de juros. A política monetária folgada, aliada a um choque agrícola no final de 1985, fez disparar a taxa de inflação nos primeiros meses de 1986.

Ao final de 1985, para resolver o problema do déficit público, um pacote fiscal foi aprovado pelo Congresso Nacional. Tinha duas características básicas: indexava todos os impostos e reduzia a defasagem entre os fatos geradores de alguns tributos e respectiva arrecadação.

Avaliando as elevadas taxas de inflação de 1984 e 1985, vários economistas brasileiros desenvolveram a hipótese de que a inflação brasileira era puramente inercial, isto é, em virtude do sistema de indexação, reproduzia o passado indefinidamente. Esses economistas acreditavam combater a inflação desmantelando o sistema de indexação, congelando preços, implantando uma reforma monetária-com a introdução de uma tabela de conversão entre a nova e a velha moedas para evitar transferências de rendas entre devedores e credores-e fixando a taxa de câmbio, que serviria de âncora para a nova moeda.

No início de 1986, quando percebeu que tinha perdido o controle da inflação, o ministro da Fazenda optou pelo choque heterodoxo e, em 28 de fevereiro, divulgou o Plano Cruzado.

O apoio popular ao plano não teve precedentes na história brasileira. Nos primeiros meses, os economistas do governo acreditavam que o Brasil se tornara uma mistura de Suíça, com baixas taxas de inflação, e Japão, com elevadas taxas de crescimento do produto.

Em virtude do processo de reajustes justapostos da economia brasileira, os salários nominais foram convertidos para a nova moeda, o cruzado, pelo seu valor real médio, acrescido de um bônus de cerca de 16% para o salário-mínimo e de 8% para os demais salários.

A política monetária foi conduzida nos primeiros meses na expectativa de inflação próxima de zero na nova moeda. A taxa de expansão da base monetária nos três primeiros meses, porém, foi de 66%. O déficit público operacional que, segundo os economistas do governo, estaria sob controle, na realidade, segundo informações divulgadas posteriormente, diminuiu ligeiramente de 4,3%, em 1985, para 3,6%, em 1986.

Os resultados de todos esses fatores foram: aquecimento excepcional da demanda, com a cobrança generalizada de ágios na comercialização de grande número de bens e serviços; desmoralização do controle de preços; excesso de absorção doméstica sobre o nível do produto; queda do nível de reservas internacionais; importação de bens de consumo em níveis nunca vistos na economia brasileira; queda das exportações para atender ao mercado doméstico e a consequente redução dos saldos da balança comercial, que chegou a se tornar negativa em outubro de 1986.

Depois de duas tentativas de conter a demanda com medidas fiscais, o Plano Cruzado fracassou. No primeiro quadrimestre de 1986, a inflação voltou a atingir taxas mensais até então inéditas na economia brasileira, instaurando a pior crise econômica do país após a segunda guerra mundial e um processo acelerado de estagflação.

A queda das reservas internacionais resultou na moratória de fevereiro de 1987: o pagamento de juros aos bancos credores internacionais foi suspenso em virtude dos saldos da balança comercial e dos níveis atingidos pelas reservas. A moratória não se inseriu em nova estratégia de renegociação da dívida externa, mas foi ditada por erros grosseiros de política econômica.

O período 1985/1987 caracterizou-se, também, por completo imobilismo no processo de renegociação da dívida externa. O principal partido político que sustentava o governo era radicalmente contra qualquer forma de negociação que envolvesse um acordo com o FMI, ao qual era atribuída a recessão econômica de 1983. De outro lado, o governo brasileiro também não formulou nenhuma estratégia que envolvesse novas propostas para a administração da dívida externa.

O Plano Bresser: 1987

Em maio de 1987, um novo ministro, o economista Luiz Carlos Bresser -Pereira, assumiu a pasta da Fazenda. Em meados de junho, surgiu um programa de combate à inflação, o Plano Bresser, que previa três etapas. Na primeira, os preços e salários seriam congelados por um período máximo de noventa dias. Na segunda, os preços seriam flexibilizados com reajustes mensais de salários e preços, para evitar a desorganização da produção e do consumo que tinha ocorrido no Plano Cruzado. Nesta etapa os salários seriam corrigidos de acordo com um novo indexador, a Unidade de Referência de Preços (URP). A taxa que atualizava mensalmente o valor da URP era igual à taxa média (geométrica) mensal de variação do Índice de Preços ao Consumidor (IPC), do IBGE, no trimestre imediatamente anterior. A URP serviria, também, como teto para o aumento dos preços. A terceira etapa do Plano Bresser, a ser implementada em 1988, seria de estabilidade de preços, com o funcionamento livre dos mercados, exceto pelos controles tradicionais do CIP. A redução do déficit público em 1987 e sua eliminação completa em 1988 tornaria possível a implementação dessa terceira etapa. O Plano Bresser preocupou-se também em realinhar vários preços de bens e serviços de empresas públicas, defasados desde o Plano Cruzado. Em meados de junho de 1987 fez uma mididesvalorização cambial de 9,5%, procurou introduzir alguns aperfeiçoamentos institucionais, como a total separação entre o Tesouro Nacional e o Banco Central do Brasil e a unificação dos orçamentos fiscal e monetário. As raízes da crise interna brasileira não foram atacadas, porém, porque insertas no regime das políticas monetária/fiscal, cuja mudança implicava imensa reforma institucional: a redefinição do papel do Estado na economia brasileira, com novas regras e disciplina na formulação e execução da política econômica e um ajuste fiscal profundo.

No front da dívida externa, o Brasil continuou em moratória. O Plano Bresser fez com que a taxa de inflação sofresse forte redução no terceiro trimestre do ano em relação ao segundo trimestre: a taxa média, segundo o INPC, caiu de 21,9% para 7,4%. No último trimestre de 1987, entretanto, a taxa média de inflação já era de 13,3%, em aceleração, e bastante próxima da taxa de 15% observada no primeiro trimestre de 1987.

O ministro Bresser tentou, no final do ano, implantar mais um pacote fiscal para combater o déficit público. O próprio governo torpedeou a medida e o ministro da Fazenda preferiu, então, renunciar ao cargo.

Durante os Planos Cruzados e Bresser, no que se refere ao ajuste fiscal, houve repetidas tentativas de elevar a receita sem nenhum esforço significativo para reduzir os gastos. Além do mais, o problema fiscal foi tratado de maneira equivocada, ou seja, sem considerar a necessária dimensão intertemporal. Uma reforma fiscal de emergência pode ser necessária para o sucesso de um plano de estabilização no Brasil, porém não é por si só suficiente. A reforma fiscal, como mencionado anteriormente, deve ter maior abrangência e profundidade para mudar a política macroeconômica.

A política do feijão com arroz e o Plano Verão: 1988/1989

Em substituição ao ministro Bresser, Maílson da Nóbrega assumiu a pasta da Fazenda. A economia brasileira vinha de duas experiências fracassadas com relação ao combate à inflação; o novo ministro implantou uma política gradualista, procurando reduzir o déficit público e adotando uma política monetária apertada que ficou conhecida como do “feijão com arroz”.

Simultaneamente, procurou normalizar as relações com a comunidade financeira internacional, revogando a moratória decretada em 20 de fevereiro de 1987 e negociando acordos com os banqueiros internacionais, agências governamentais e um empréstimo stand by firmado com o FMI. A normalização da economia brasileira com o sistema financeiro internacional em bases posteriores a 1982, só foi possível atuando em três segmentos: FMI, Clube de Paris e bancos comerciais. Ao Fundo Monetário Internacional, o governo brasileiro solicitou um empréstimo de aproximadamente USS 1,5 bilhão na forma de stand by, de dezenove meses, em 29 de junho de 1988. Sobre o montante incidia uma taxa de juros favorecida, já que o empréstimo fora concedido com recursos próprios do Fundo. O pagamento seria efetuado em doze prestações semestrais de igual valor, no prazo de dez anos, com quatro de carência. No Clube de Paris (credores oficiais), em 29 de julho de 1988, foram firmados acordos de reescalonamento dos empréstimos e financiamentos de médio e longo prazos de agências governamentais ou por elas garantidos, contratados até 31 de março de 1983, com vencimentos entre 1º de janeiro de 1987 e 31 de março de 1990, totalizando em torno de US$ 3,9 bilhões. Adicionalmente, foi negociado US$ 1,1 bilhão de juros vencíveis no período de 1º de agosto de 1988 a 31 de março de 1990.

O pagamento do principal refinanciado seria efetuado em dez anos, com cinco de carência. Já o pagamento dos juros refinanciados deveria ser feito da seguinte forma: 15% em abril de 1990, 15% em abril de 1991 e 70% em dez prestações semestrais e sucessivas, vencendo a primeira em 1º de abril de 1995 e a última em 1º de outubro de 1999. Em 22 de setembro de 1988, foi firmado com os banqueiros internacionais o acordo sobre o refinanciamento de aproximadamente USS 61 bilhões do principal da dívida, com vencimento entre 1987 (incluídos os vencimentos de 1986) e 1993, e o ingresso de US$ 5,2 bilhões de dinheiro novo. Os USS 61 bilhões deveriam ser pagos em vinte anos, com oito de carência, e os US$ 5,2 bilhões em doze anos, com cinco de carência. Na época se enfatizou o fato de que este acordo com os bancos comerciais não estava vinculado a um programa previamente definido com o FMI. Os desembolsos dos bancos comerciais, no valor total de USS 5,2 bilhões seriam feitos em três parcelas: a primeira de USS 4 bilhões e as outras duas de US$ 600 milhões, em paralelo com o programa do FMI. O não-cumprimento do acordo com o FMI impediu que fosse liberada a última parcela de US$ 600 milhões, prevista para o primeiro semestre de 1989.

A renegociação substituiu a taxa de juros prime-rate pela LIBOR e reduziu o Spread para 0,8125%, que incidiu sobre a dívida depositada no Banco Central, a partir de 1º de janeiro de 1988, e, sobre o restante da dívida do setor público, a partir de 1º de janeiro de 1989.

Estabeleceu-se, também, a prorrogação das linhas de crédito de curto prazo, no total de US$ 14,4 bilhões, e a transferência de US$ 600 milhões anuais das linhas interbancárias para as linhas de comércio no período 1988/1990.

As taxas de inflação no período do “feijão com arroz” atingiram 29% em dezembro de 1988. Assim, em 15 de janeiro de 1989, veio um novo plano de estabilização: o Plano Verão2 2 A exposição que se segue é baseada em Barbosa et alii (1989). que, além dos já tradicionais ingredientes heterodoxos (desindexação e congelamento de preços), demonstrava maior preocupação com o equilíbrio do orçamento.

Principais medidas do novo plano econômico3 3 O Plano Verão foi regulamentado principalmente pela Medida Provisória 32, de 15 de janeiro de 1989. Posteriormente, essa medida provisória foi transformada na Lei 7730, de 31 de janeiro de 1989.

  1. Foram retirados três zeros do Cruzado, que passou a chamar-se Cruzado Novo;

  2. Os salários foram convertidos para cruzados novos pelo valor médio do salário em OTNs no período janeiro/dezembro de 1988 e levados, então, para 1º de fevereiro, corrigidos pela URP (cujo valor era de 26,05%). O procedimento só se aplicou aos salários que estavam abaixo da média (aqueles que estavam acima da média não foram modificados);

  3. Todos os preços foram congelados por tempo indeterminado, de acordo com a Lei 7730. Os membros da equipe econômica afirmavam, entretanto, que o congelamento de preços não deveria estender-se por mais de noventa dias e também que estariam dispostos a rever os preços defasados de alguns produtos. A preocupação refletia o temor de que se repetissem os problemas de abastecimento do Plano Cruzado;

  4. Foram introduzidas mudanças no cálculo da inflação (IPC) de janeiro, com o objetivo de eliminar do índice de fevereiro os aumentos de preço que ocorreram na antevéspera do plano (a modificação fez com que a inflação de janeiro, de fato, incluísse a variação de preços ocorrida em 45 dias, com um valor da ordem de 70%);

  5. Como no Plano Cruzado, foi criada uma tablita para corrigir os valores dos contratos celebrados entre 1º de janeiro de 1988 e 15 de janeiro de 1989. O fator de correção utilizado (1,004249 por dia decorrido a partir de 16 de janeiro de 1989) refletia uma taxa de inflação de 13,56% ao mês. A Lei 7730 dava ao ministro da Fazenda poderes para alterar o fator de conversão, se necessário;

  6. Foi extinta a OTN (Obrigação do Tesouro Nacional, criada no Plano Cruzado em substituição à ORTN) e foi proibida a inclusão de cláusula de correção monetária nos contratos de até 90 dias de duração;

  7. O reajustamento dos salários dos funcionários públicos passou a depender do comportamento da receita líquida da União, excetuando-se as receitas provenientes de operações de crédito. Na verdade, limitava-se o gasto com salários no setor público a 65% da receita líquida. Além disso, a data para pagamento dos funcionários públicos passou a ser o dia 10 do mês subsequente (o que permitiria que o governo pagasse uma folha de salários a menos no ano de 1989);

  8. O desembolso de recursos por parte do Tesouro Nacional ficou condicionado à disponibilidade de caixa (isto é, receitas efetivamente arrecadadas mais a disponibilidade de caixa existente em 31 de dezembro de 1988). O governo promoveu uma desvalorização cambial de 17% no dia 15 de janeiro e se comprometeu a seguir uma política monetária austera, com taxas de juros elevadas. Em função da regra de só gastar o que estivesse em caixa, a emissão de títulos da dívida pública, segundo a Lei 7730 (art. 18, § 4), ficaria condicionada aos pagamentos de juros desta dívida e da rolagem do principal.

Na apresentação do plano, o governo também se comprometeu com outras medidas de caráter fiscal, que posteriormente não foram aprovadas pelo Congresso: privatização de empresas estatais e demissão de funcionários públicos. Em maio de 1989, porém, a inflação mensal já estava na casa dos dois dígitos. Em junho, segundo o IGP da Fundação Getúlio Vargas, voltou ao mesmo patamar de antes do Plano Verão. A principal razão do fracasso deste, como das outras tentativas heterodoxas da década dos 80, é que não houve nenhuma redução no déficit do governo e a política monetária continuou sua trajetória passiva e permissiva. Para ilustrar as dificuldades do governo com relação ao déficit público, os dados mais recentes do Banco Central indicam que o déficit operacional (que não inclui a correção monetária da dívida interna) era da ordem de 3,6% do PIB em 1986 (o déficit nominal foi de 11,13%), passou para 5,52% em 1987 (déficit nominal de 31,37%) e sofreu pequena redução para 4,51% em 1988 (déficit nominal de 48,54%); em 1989, o déficit operacional foi igual a 7,29% do PIB.

IV. AS CONDICIONALIDADES PARA A ADMINISTRAÇÃO DA DÍVIDA EXTERNA

A relação dívida/exportação tem sido usada como indicador de capacidade de pagamento da dívida externa de um país. Simonsen (1985SIMONSEN, M. H. (1985) “The Developing-Country Debt Problem”. In: Gordon W. Smith and John T. Cuddington, eds., International Debt and the Developing Countries, Washington: The world Bank, 1985.) usou essa relação para obter condição asseguradora da estabilidade do processo de crescimento da dívida externa. Essa condição afirma que se as exportações crescerem a uma taxa superior à taxa de juros internacional, o país pode absorver recursos do exterior e a relação dívida/exportação convergirá para um valor estável.

O valor das exportações é uma medida dos recursos que o país pode efetivamente utilizar no pagamento de sua dívida externa. A capacidade de pagamento do país poderia ser medida de maneira mais adequada, todavia, pelo valor de sua produção de produtos comercializáveis internacionalmente, avaliada a preços internacionais. A capacidade de pagamento independe da imposição de políticas restritivas pelos parceiros comerciais, o que não acontece com as exportações. É possível que um país tenha dificuldades em servir sua dívida externa porque os países credores estão impondo tarifas elevadas ou um sistema de quotas que impossibilita as vendas externas, embora a capacidade de exportação seja bastante elevada. A medida é, também, mais abrangente, pois inclui a produção doméstica de bens e serviços que substituam as importações.

Seja d a relação entre a dívida líquida (D) e o valor da produção (y) dos bens e serviços comercializáveis internacionalmente, valor este avaliado a preços (P) internacionais.

Isto é:

d = D P y (1)

O aumento da dívida líquida é igual à soma do total de juros pagos (iD), adicionado ao hiato de recursos (H):

D ˙ = i D + (2)

onde um ponto em cima de uma letra indica a derivada da respectiva variável com relação ao tempo.

Diferenciando-se em relação ao tempo ambos os lados da equação (1), obtém-se:

d (3) d

d ˙ d = D ˙ D - P ˙ P - y ˙ y (3)

Substituindo-se (2) em (3) e rearranjando-se os termos, chega-se a:

d ˙ = i - π - g d + h (4)

onde π=P/P é a taxa de inflação, medida a partir de um índice de bens e serviços comercializáveis, g=y/y é a taxa de crescimento do produto físico do setor de bens comercializáveis da economia e h=H/Py é a absorção de recursos, como uma proporção do valor da produção de bens e serviços comercializáveis internacionalmente.

Admitiremos, por simplicidade, que i, 1r, g eh sejam parâmetros. A equação (4) é uma equação diferencial de primeira ordem, cujo diagrama de fase está representado na Figura 1.

Figura 1
Diagrama de Fase

Quando i-π-g<0, a equação (4) é estável, e a razão d converge para d. Por outro lado, quando i-π-g>0, a equação (4) é instável e a relação entre a dívida externa líquida e o valor da produção de bens comercializáveis cresce indefinidamente.

Como os países devedores não têm controle sobre a taxa de juros i e a taxa de inflação π, a condição de estabilidade nos diz que a administração da dívida externa deve ser tal que o setor de comercializáveis da economia cresça a uma taxa superior à taxa de juros real, onde os juros reais são computados a partir da taxa de inflação dos bens e serviços comercializáveis internacionalmente.

A equação (4) nos ajuda a compreender as origens da crise da dívida externa de 1982 e como a responsabilidade pela mesma deve ser dividida entre os países credores e os países devedores.

Os países credores foram responsáveis pela elevação da taxa de juros real internacional, com políticas que fizeram com que a taxa nominal de juros subisse e a taxa de inflação diminuísse (ou mesmo que 7r se tornasse em algumas ocasiões negativa).

Os países devedores, por sua vez, não implementaram políticas de crescimento com ênfase suficiente no setor de bens e serviços comercializáveis internacionalmente, para fazê-lo crescer a taxas superiores às taxas de juros reais internacionais. Países como a Coréia do Sul, por exemplo, que pouco sofreram as consequências da crise externa, tiveram um crescimento do setor de bens comercializáveis, que contrabalançou os efeitos da subida da taxa de juros real.

O diagrama de fase da Figura 2 ajuda a compreender a estratégia atual do processo de administração internacional da dívida externa e possíveis caminhos alternativos para essa estratégia.

Figura 2
Transferência de Recursos e Capacidade de Pagamento da Dívida

Em primeiro lugar, comecemos por mencionar alguns fatos estilizados: a) a crise da dívida externa certamente surgiu porque a relação d cresceu de maneira explosiva, em virtude dos choques externos e dos erros de política econômica dos países endividados, além daquilo que seria recomendável pelo hiato de recursos e pelo diferencial entre a taxa de crescimento do produto do setor de bens comercializáveis e a taxa de juros real, depois de realizadas políticas de ajuste; b) países endividados, como o Brasil, têm transferido nos últimos anos um volume substancial de recursos para os países credores; e c) existem alguns indícios de que a relação d diminuiu após a crise de 1982.

Admita-se que atualmente g>i-π. O ponto E da Figura 2 representaria a situação de países, como o Brasil, que estão transferindo recursos para o exterior, e ao mesmo tempo fizeram algum tipo de ajuste, que privilegiou o setor de bens comercializáveis internacionalmente. A trajetória de ajuste AA’ além de impor pesados custos aos países devedores, pode se tornar inviável, pois a taxa de crescimento da economia, e do setor de bens comercializáveis em particular, pode depender da absorção de recursos através de importações de bens de capital e de insumos básicos sem substitutos domésticos. Seja OB, na Figura 2, o limite de recursos dado por esta restrição externa. Uma estratégia alternativa de renegociação da dívida seria a redução imediata do valor atual da dívida, de sorte a colocar a economia no ponto E, onde a razão entre a dívida e o valor da produção dos bens comercializáveis é seu valor estável de longo prazo. Nessa estratégia, os países devedores assumiriam o compromisso de que os recursos da economia seriam alocados de tal sorte a manter a condição de estabilidade da administração da dívida: a taxa de crescimento da produção de comercializáveis ser maior do que a taxa de juros real internacional.

Os países credores, por outro lado, assumiriam o compromisso de criarem condições adequadas no comércio internacional, para que os países devedores transformem capacidade produtiva de bens comercializáveis em exportação.

V. UMA PROPOSTA PARA RENEGOCIAÇÃO DA DÍVIDA EXTERNA

A crise da dívida externa brasileira foi o resultado de um longo processo que combinou choques externos adversos com erros grosseiros de política econômica. A responsabilidade por ela deve ser atribuída ao governo brasileiro e aos governos dos países credores, embora seja bastante difícil avaliar a contribuição de cada um desses protagonistas na história que ainda está por terminar. A solução duradoura para o problema da dívida externa requer a participação cooperativa dos países devedores e credores, mas com os custos do programa sendo dividido entre os dois grupos de países.

O modelo desenvolvido na Seção 4 indica que para a estabilidade da administração da dívida externa é necessário que as economias dos países devedores cresçam e que este crescimento se faça com ênfase no setor de bens comercializáveis internacionalmente. Os países credores, por sua vez, têm que aceitar uma redução do valor atual da dívida e estabelecerem ambiente propício ao comércio internacional que viabilize o serviço da dívida remanescente. A estratégia de renegociação da dívida externa, posta em prática pelos países credores, desde a moratória mexicana de 1982, e que ficou conhecida pela denominação inglesa muddling through, que significa literalmente “empurrar com a barriga”, resolveu o problema dos bancos comerciais estrangeiros. Com efeito, a estratégia deu-lhes tempo suficiente para formarem reservas para absorver perdas substanciais dos créditos outorgados aos países devedores, sem serem obrigados a recorrer aos bancos centrais dos respectivos países. Essa estratégia, todavia, não atendeu aos interesses dos países devedores e tem de ser mudada. O Plano Brady o reconheceu de maneira implícita e sinalizou uma mudança importante na postura dos Estados Unidos, país responsável pela estratégia de “empurrar com a barriga”. Impõe-se, agora, que os países devedores formulem uma estratégia duradoura, num horizonte intertemporal, que abranja um período de, pelo menos, dez anos.

Os erros grosseiros da política econômica brasileira na década de 80, acentuadamente na administração do presidente Sarney, ensinam que o combate à inflação e a retomada do crescimento econômico não podem basear-se em medidas utópicas e em planos inconsistentes. É necessário atacar simultaneamente todos os problemas que contribuíram para a falência do setor público brasileiro. A dívida externa é um deles, mas não é o único. A proposta de renegociação da dívida externa que será feita a seguir deve ser entendida e realizada dentro de um ajuste fiscal estrutural, que contemple reordenamento completo do financiamento do setor público brasileiro, e de uma reforma institucional que permita ao Banco Central do Brasil ter efetivo controle da política monetária.

Estratégia de renegociação da dívida externa4 4 Esta proposta foi escrita antes do Plano Collor e publicada por um dos autores no jornal Folha de S. Paulo, em 24.2.90.

  1. Criação da Agência Nacional da Dívida Externa (ANDEX), subordinada ao Tesouro Nacional, que estatizaria de maneira formal a dívida externa, com os bancos comerciais estrangeiros, de todo o setor público brasileiro (União, Estado, Município e Empresas Públicas, pertencentes às três esferas do poder executivo).

  2. Os estados e municípios que desejassem transferir suas obrigações da dívida externa para a ANDEX deveriam renunciar à cobrança de qualquer tipo de imposto sobre as exportações de bens e serviços.

  3. Criação de um imposto sobre operações de câmbio, a ser pago em divisas estrangeiras, pelo importador, no momento de fechar o contrato de câmbio. O adicional incidiria sobre todos os produtos importados, sem isenção sob qualquer pretexto.

  4. Os recursos do imposto sobre operações de câmbio seriam destinados, única e exclusivamente, à ANDEX e depositados imediatamente em contas desta Agência no exterior, proibidos os depósitos no Banco Central do Brasil, ou com a sua interveniência.

  5. Os recursos do imposto sobre operações de câmbio seriam usados, única e exclusivamente, para o pagamento da parcela dos juros da dívida externa junto aos bancos comerciais estrangeiros. Não poderiam, pois, ser utilizados para o serviço da dívida externa com agências multilaterais (Banco Mundial, Banco Interamericano, FMI) e governamentais (membros do Clube de Paris).

  6. Criação de um adicional sobre o imposto de renda das pessoas físicas e jurídicas com a simultânea eliminação de todos os incentivos fiscais. O total desse acréscimo de imposto seria destinado à ANDEX, sendo proibido o seu depósito no Banco Central do Brasil.

  7. Os recursos do adicional do imposto de renda seriam usados para o financiamento da conversão da parcela restante dos juros da dívida externa em moeda nacional, convertidos obrigatoriamente em investimentos diretos no país.

  8. A conversão dessa parcela dos juros da dívida externa em moeda nacional seria feita com desconto, através de critérios a serem definidos. Os investimentos realizados com esses recursos só poderiam ser aplicados em projetos que contemplassem a produção de bens comercializáveis internacionalmente.

  9. A taxa de câmbio seria determinada livremente no mercado, mantendo-se todos os controles cambiais vigentes atualmente. O Banco Central do Brasil deixaria, portanto, de fixar o câmbio.

A criação da ANDEX seria baseada nas seguintes razões: a) o Tesouro Nacional diretamente, ou como avalista, já é o responsável pela maior parte da dívida externa brasileira junto aos bancos comerciais estrangeiros; b) é muito pouco provável que o mercado financeiro internacional volte a funcionar para atender às necessidades de países endividados como o Brasil; c) o Banco Central do Brasil deixaria de participar em todas as operações que envolvessem a dívida externa brasileira, ficando liberado para conduzir de maneira autônoma a política monetária.

A estratégia de renegociação da dívida externa proposta aqui admite como premissa básica uma redução do valor atual da dívida. Para entendê-la, considere-se o seguinte exemplo hipotético, mas que permite compreender a essência da estratégia. O valor atual de um fluxo de pagamentos em n períodos, J1 J2, ..., Jn, com taxas de juros iguais a r1, r2, ..., rn, em moeda do período inicial (t=0), é dado por:

V = i = 1 n J i 1 + r i i

Aplicando-se um redutor igual a f, 0≤f≤1, no pagamento de juros, o novo valor atual Vd será dado por:

V d = i = 1 n f J i 1 + r i i = f V

ou seja, o valor atual é reduzido pelo mesmo fator f dos juros.

A ideia consiste, então, em aplicar um redutor f no pagamento de juros da dívida, sem permitir a capitalização dos mesmos. O pagamento de uma parcela dos juros será feito em divisas estrangeiras e a outra parcela em moeda nacional, em ambos os casos com desconto em relação ao valor de face. Um acerto definitivo com os bancos credores, com relação ao principal, será feito depois de decorridos dez anos da renegociação.

O imposto sobre operações de câmbio é um mecanismo bastante simples, do ponto de vista administrativo, para que toda sociedade contribua para o pagamento do serviço da dívida externa. Como a sociedade está pagando a conta, todos os órgãos e empresas públicas, que tenham dívida externa com os bancos comerciais, podem transferir suas obrigações para a ANDEX, que assumirá os encargos dessas dívidas. Esta medida contribuirá, também, para o saneamento financeiro de diversas empresas públicas, que foram quase obrigadas a contrair empréstimos com os bancos comerciais estrangeiros para, na verdade, financiar os déficits no balanço de pagamentos brasileiro.

O imposto sobre operações de câmbio será uma distorção a mais introduzida no comércio exterior, pois aumentará o custo das importações e penalizará também as exportações. Consequentemente, os estados deverão renunciar à taxação, aprovada na nova constituição, na exportação de produtos semi­manufaturados, e se comprometerem a não criar, sob qualquer pretexto, tributos que incidam sobre o comércio exterior.

A Agência Nacional da Dívida Externa necessitará de recursos para o pagamento da parcela de juros da dívida externa, que será feito em moeda nacional. Daí a criação do adicional sobre o imposto de renda. De outro lado, é fato amplamente conhecido que os incentivos existentes não contribuíram para resolver os problemas para os quais foram criados, como a diminuição das desigualdades regionais. É recomendável, portanto, que se acabe com a renúncia fiscal, que só tem agravado a situação das finanças públicas do estado brasileiro.

A conversão da parcela dos juros da dívida externa financiada por aumento da tributação eliminará as consequências monetárias do processo de conversão da dívida, que foi posto em prática nos últimos anos. Uma parcela desses investimentos poderá ser alocada para as regiões Norte e Nordeste do país, com a finalidade de fomentar o desenvolvimento regional.

A estratégia de crescimento econômico do país nos próximos anos deve ter como um de seus objetivos superar completamente a restrição externa num horizonte de médio e longo prazos, para que crises, como as da década de 80, não se repitam no futuro próximo. Logo, a ênfase na produção de bens comercializáveis internacionalmente, com a contribuição do capital estrangeiro, é um ingrediente fundamental na retomada do crescimento econômico em bases permanentes. Daí a condição de que a conversão dos juros da dívida seja aplicada em projetos de investimento para a produção de bens e serviços comercializáveis internacionalmente.

Muitos economistas são contra o sistema de taxa de câmbio livre. Seu principal argumento é de que tal sistema gera grande instabilidade, com flutuações amplas na taxa de câmbio. O fato tem sido observado nos países industrializados desde o fim do sistema de taxas fixas de Bretton Woods, com a flutuação das principais moedas internacionais. A experiência brasileira dos últimos vinte anos tem mostrado, todavia, que o governo não administrou corretamente a taxa de câmbio no momento apropriado, principalmente diante de choques externos adversos, que não tinham caráter puramente transitório. Nessas circunstâncias, uma desvalorização real do câmbio seria desejável, mas os governos relutam em fazê-lo de imediato. É preciso, em geral, que haja uma crise cambial e que a situação seja insustentável para que se tome a decisão de desvalorizar o câmbio.

A proposta da taxa de câmbio livre significa dizer que nos próximos anos haverá equilíbrio automático do balanço de pagamentos, cujo déficit não será preciso financiar. Os banqueiros internacionais estarão assegurados de que esta renegociação não fará com que o Brasil volte novamente a bater nas suas portas atrás de recursos para fechar déficits no balanço de pagamentos. Adicionalmente, com esse sistema cambial, o Banco Central do Brasil terá sob seu comando a política monetária e poderá controlar efetivamente, no longo prazo, a taxa de inflação.

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  • SIMONSEN, M. H. (1985) “The Developing-Country Debt Problem”. In: Gordon W. Smith and John T. Cuddington, eds., International Debt and the Developing Countries, Washington: The world Bank, 1985.
  • 1
    Spread, Flat fee e comissão de compromisso.
  • 2
    A exposição que se segue é baseada em Barbosa et alii (1989BARBOSA, F. H. e M. S. de la Cal. (1989) “Brazilian Experience with External Debt and Prospects for Growth”. In: H. W. Singer and S. Sharma, eds., Economic Development & World Debt, London, Macmillan Press, pp. 397-412.).
  • 3
    O Plano Verão foi regulamentado principalmente pela Medida Provisória 32, de 15 de janeiro de 1989. Posteriormente, essa medida provisória foi transformada na Lei 7730, de 31 de janeiro de 1989.
  • 4
    Esta proposta foi escrita antes do Plano Collor e publicada por um dos autores no jornal Folha de S. Paulo, em 24.2.90.
  • JEL Classification: F30; F34.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1992
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