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As políticas norte-americanas e a dívida e comércio da América Latina* * Agradecemos a Roxana Barrantes e a Curtis McDonald por sua colaboração na preparação deste trabalho. Traduzido por Ricardo B. Costa.

United States policies and the Latin America debt problems

RESUMO

Este artigo enfoca a posição contraditória dos Estados Unidos em suas políticas econômicas para a América Latina. Ao pressionar a região para manter o serviço da dívida, o governo dos EUA deixou os países latino-americanos com pouca escolha a não ser produzir grandes superávits comerciais, pois os fluxos voluntários de capital para a região se esgotaram na década de 1980. A insistência simultânea dos EUA, no entanto, de que os países latino-americanos reduzam seus programas de incentivo às exportações e liberalizem suas importações, torna o serviço da dívida ainda mais difícil e impõe pesados encargos às sociedades latino-americanas.

PALAVRAS-CHAVE:
Crise da dívida; dívida externa; política comercial

ABSTRACT

This article focuses on the contradictory position of the United States in its economic policies towards Latin America. By pressuring the region to maintain its debt service, the U.S. government left Latin American countries with little choice but to produce large trade surpluses, as voluntary capital flows to the region dried up in the 1980s. Simultaneous U.S. insistence, however, that Latin American countries curtail their export incentive programs and liberalize their imports, makes debt servicing even more difficult and imposes heavy burdens on Latin American societies.

KEYWORDS:
Debt crisis; external debt; trade policy

Durante toda a década de 80, os Estados Unidos, juntamente com outros países credores, vêm insistindo em que é obrigação da América Latina cumprir pontualmente com o serviço de sua enorme dívida.1 1 A regulamentação bancária vigente nos Estados Unidos obriga os bancos a insistir na manutenção dos pagamentos de juros. Os pagamentos de juros atrasados, além de um período de carência, obrigam os bancos ao reconhecimento de uma perda, através do aumento de suas reservas sobre os empréstimos. Ao mesmo tempo, o governo americano tem sofrido pressões. De um lado, dos setores internos, que competem com as importações, no sentido de obter de uma série de países latino-americanos a eliminação de diversos tipos de programas de incentivo às exportações, que estariam violando as regras do GATT; de outro, de grupos que querem ver liberalizadas as políticas de importação dos governos latino-americanos. Com isso, o governo americano tem adotado uma postura política cada vez mais pluralista e frequentemente contraditória. Este artigo examina as circunstâncias que produziram essa situação, considerando caminhos através dos quais se poderia desenvolver um conjunto de políticas mais consistente.

A EVOLUÇÃO DAS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE ESTADOS UNIDOS E AMÉRICA LATINA

Durante a maior parte deste século, os Estados Unidos têm sido um dos principais parceiros comerciais da América Latina, sendo-lhe fonte tanto de investimento direto quanto de capital financeiro. A contrapartida desse fluxo de capital americano foi um superávit de conta-corrente com a região. Isso implicou uma transferência de recursos reais da região rica em capital para outra menos desenvolvida. A maioria dos economistas acharia saudável esse padrão, já que aumenta a eficiência econômica mundial e faz crescer a renda em ambas as áreas. Mudanças internas de política econômica, contudo, reverteram recentemente essa tendência de longo prazo. Desde meados dos anos 70, e de forma crescente nos anos 80, a política fiscal americana tornou-se mais expansionista sem, no entanto, ser acomodada por uma política monetária. O resultado líquido foi um aumento enorme nas taxas de juros reais nos Estados Unidos e nos mercados de capitais mundiais e o desaparecimento do excedente de capital americano disponível para a América Latina.

Relações comerciais

No período 1970-81, a balança comercial dos Estados Unidos com a América Latina foi favorável em sete anos dentre os doze (veja tabela 3). Desde 1982, no entanto, quando a crise da dívida se tornou aguda, os Estados Unidos apresentaram déficits muito grandes e seguidos com a região, devidos à combinação de quedas nas exportações à América Latina e aumentos substanciais nas importações provenientes da região. A tabela 3 mostra que as exportações americanas à América Latina alcançaram um valor máximo de US$ 2,8 bilhões em 1981, declinando daí para frente até US$ 25,6 bilhões em 1983 e voltando a subir nos quatro anos seguintes, sem alcançar novamente, porém, os níveis de l 980-82. Por outro lado, as importações americanas provenientes da América Latina subiram consideravelmente no período: do nível de US$ 30,5 bilhões em 1979, elevaram-se para US$ 37,5 bilhões em 1980 e em 1987 estavam em US$ 47 bilhões. Pode-se notar que se a balança comercial americana com a América Latina, anteriormente a 1980, oscilava entre pequenos superávits e pequenos déficits, a partir de 1982 os déficits seguidos foram maiores do que haviam sido em qualquer período da década anterior.

Os Estados Unidos têm assumido em sua conta-corrente parcela relativamente grande das consequências do ajustamento da América Latina depois de 1982, como demonstra a tabela 2. Embora recebedores de apenas um terço ou um quarto dos pagamentos do serviço da dívida externa latino-americana, favoreceram através do comércio com a América Latina mais de metade dos superávits comerciais que ela precisou gerar para financiar esses pagamentos. Apesar de isto poder ser explicado, em meados dos anos 80, pela sobrevalorização do dólar em relação a outros credores e parceiros comerciais da América Latina, a porção do superávit comercial da região gerada no comercio com os Estados Unidos tem de fato aumentado desde 1985. Nesse sentido, os ganhos dos credores não americanos da América Latina estão sendo mantidos às custas de um déficit comercial americano com a região.

TABELA 1

TABELA 2
Balança Comercial e Conta de Investimento da América Latina com os EUA (Porcentagem do Total da Balança Comercial e Conta de Investimento)
TABELA 3
Balança Comercial dos EUA com América Latina

O declínio das exportações americanas à América Latina se deve a uma série de fatores:

  1. A recessão em muitos países da região, resultante dos programas de ajustamento a que foram forçados pela crise da dívida. A taxa real de crescimento anual do PNB da América Latina no período 1971-80 foi de 5,9%; caiu para -1,0% em 1981-83 e se elevou para 3,4% no período de 1984 a 1987.2 2 A queda de crescimento em alguns dos principais países no mesmo período foi muito mais pronunciada: o crescimento da Argentina caiu de 2,6 para - 2,9% e a recuperação foi apenas para 1,2%; no Brasil, caiu de 8,7 a -1,7%, com recuperação para 6,1%; e o crescimento do México caiu de 6,6 para 1,2%, recuperando-se para apenas 0,9%. Isso explica, em parte, o declínio das exportações americanas de 1981 a 1983 e a fraca recuperação no período 1984-87.

  2. A grande desvalorização real de uma série de moedas-chave da região, o que tornou os bens estrangeiros mais caros. Para a região como um todo, a taxa de câmbio real efetiva subiu aproximadamente 51,3% de 1980 a 1987.

  3. Os resultados dos investimentos na substituição de importações nos anos 70. Este foi especialmente o caso do Brasil, onde grande parte dos empréstimos internacionais foi usada para construir a indústria de bens de capital.

  4. Barreiras tarifárias e não tarifárias, usadas para restringir as importações dos países em meio à crise de endividamento.

O crescimento das importações americanas provenientes da América Latina pode ser atribuído a três fatores:

  1. Ativo programa de diversificação das exportações, implementado por uma série de países e extremamente bem-sucedido em alguns deles. O crescimento das exportações não tradicionais deveu-se, em parte, ao uso de incentivos fiscais e creditícios.

  2. Substancial desvalorização real da moeda de muitos países latino-americanos, o que tornou as exportações cada vez mais competitivas.

  3. Elevada taxa de crescimento da economia americana nos anos 80, depois de breve período de baixa no início da década.

Deve-se notar que o declínio relativo dos Estados Unidos como parceiro comercial da América Latina reverteu-se nos anos 80. A tabela 1 mostra que a participação do mercado americano nas exportações latino-americanas cresceu de 35%, no final dos anos 70, para 49,4% em meados dos anos 80, enquanto as importações provenientes dos Estados Unidos cresceram de 32,9% para 48,7%. Uma explicação para a participação cada vez maior dos Estados Unidos no comércio latino-americano é sua taxa de crescimento superior à de outros países industriais durante a maior parte dos anos 80. Tal superioridade favoreceu maior grau de absorção das importações provenientes da região por parte dos Estados Unidos (aparentemente, isso foi mais importante do que a vantagem competitiva que os países latino-americanos passaram a gozar em outros países industriais como consequência da desvalorização do dólar). É também provável que a queda do dólar tenha tornado os bens americanos mais atraentes aos latino-americanos do que os de outros países industriais, explicando o crescimento da participação americana nas importações latino-americanas.

A participação da América Latina nas exportações americanas sofreu apenas uma leve flutuação, declinando 1,3 % nos anos 80, enquanto sua participação nas importações americanas caiu um pouco mais.

Balança de Serviços

O exame da tabela 4 revela que a balança de serviços da América Latina com os Estados Unidos foi sempre desfavorável nas décadas de 70 e 80, piorando, no entanto, substancialmente, no final dos anos 70, com pico em 1981. Depois daquele ano, o déficit nos serviços declinou, continuando, porém, num nível bem maior do que anteriormente ao final dos anos 70.

A principal explicação para o crescimento do déficit nos serviços pode ser encontrada na coluna 2 da tabela 4: “Receitas Líquidas sobre Outros Investimentos Privados”, que representa principalmente pagamentos de juros. O crescimento desse item, acentuado a partir de 1979 - de menos de um bilhão para próximo de doze bilhões em 1982 -, deve-se em grande medida ao rápido crescimento das taxas de juros americanas e é responsável pela maior parte do crescimento do déficit global nos serviços. A prática de uma política monetária muito apertada no final dos anos 70 e começo dos anos 80, para enfrentar a inflação nos Estados Unidos, associada à continuação de uma política fiscal expansionista, teve repercussão nas taxas de juros de todo o mundo (por exemplo, a prime rate anual média cresceu de 6,83% em 1977 para 18,87% em 1981, enquanto as taxas libor cresceram de uma média anual de 6,2% em 1977 para 16,5% em 1981). Como a maior parte da dívida latino-americana estava contratada em termos de taxas de juros flexíveis, essa evolução das taxas mundiais aumentou o fardo da dívida carregado pela região.

A coluna 3 da tabela 4 mostra que as receitas líquidas do governo americano com juros eram positivas, porém se tornaram negativas a partir de 1985. Essa tendência deveu-se em parte a reduções negociadas da dívida oficial e do seu serviço por meio de esquemas do Clube de Paris. Infelizmente, o alívio no serviço da dívida oficial foi pequeno em relação aos grandes pagamentos relativos ao serviço da dívida privada, que a região teve que fazer a credores baseados nos Estados Unidos. De fato, os contribuintes americanos e de outros países credores importantes aceitaram uma redução da renda com a dívida oficial para que fossem mantidos ou até mesmo aumentados os pagamentos da América Latina aos credores privados.

A coluna 1 da tabela 4 contém informações sobre os ganhos relativos aos investimentos diretos. Esse item foi sempre positivo para os Estados Unidos, já que consistia primariamente da remessa de lucros por companhias americanas na América Latina. O declínio pós-1980 reflete a crise econômica pela qual passava a região nos anos 80. À medida que as economias estagnavam, declinavam os lucros das firmas americanas, bem como suas remessas de lucros. Essa tendência foi reforçada em alguns países por controles sobre as remessas de lucros, à medida que piorava a situação do balanço de pagamentos.

Capital

Durante a maior parte do período pós-Segunda Guerra Mundial, a América Latina foi grande beneficiária de fluxos de capital, tanto pela via do investimento direto quanto através de empréstimos. Tendo substituído a Grã-Bretanha como potência econômica estrangeira dominante na região, depois da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos se tornaram a principal fonte de fluxos líquidos de capital para a América Latina. O ponto culminante desse predomínio foi alcançado logo após a Segunda Guerra Mundial, quando mais de 50% dos investimentos diretos e fluxos de capital eram de origem americana. Com a recuperação e o crescimento mais rápido da Europa Ocidental e Japão, as participações americanas diminuíram, não obstante o crescimento em termos absolutos dos investimentos durante os anos 70. Embora em termos relativos, os Estados Unidos continuaram a ser a principal fonte de capital externo.

TABELA 4
Conta de Serviços dos EUA com a América Latina

Deve-se também considerar que, além da importância de ser a origem de parcela substancial do capital estrangeiro da América Latina, o papel de líder dos Estados Unidos na intermediação financeira mundial foi particularmente relevante naquela região, especialmente após 1973, quando os bancos multinacionais baseados nos Estados Unidos foram responsáveis pela reciclagem de parcela considerável dos superávits da OPEP a tomadores latino-americanos. A influência americana também foi notável nas organizações multinacionais, como o Banco Mundial e o Banco de Desenvolvimento Interamericano.

Este padrão histórico foi abruptamente modificado no início dos anos 80. Com a explosão da crise da dívida, a América Latina se transformou num exportador líquido de capital para os seus países credores, particularmente os Estados Unidos.

As principais tendências da conta de capitais dos Estados Unidos com a América Latina estão resumidas na tabela 5. Os Estados Unidos foram emprestadores líquidos de capital à América Latina em todos os anos entre 1970 e 1983, excetuando-se o de 1979, como se vê na coluna A. A maior parte deste capital era financeiro, particularmente depois de 1973, como evidenciado na coluna B da tabela 5. Havia várias razões para a preponderância dos fluxos de capital financeiro sobre os investimentos na forma de participação. Em primeiro lugar, a comunidade financeira internacional, à época, considerava tais empréstimos menos arriscados do que os investimentos na forma de participação, especialmente quando concedidos a governos soberanos, já que estariam supostamente cobertos pela capacidade fiscal dos governos tomadores. Por mais incorreta que possa parecer esta suposição - olhando-se agora para o problema e à luz da ênfase atual nas conversões de dívida em participação -, ainda assim os fluxos de capital financeiro foram claramente preferidos nos anos 70.

TABELA 5
Conta de Capital dos EUA com a América Latina

Uma segunda razão foi o desenvolvimento e aperfeiçoamento de empréstimos a taxas variáveis, que pareciam remover a incerteza sobre as taxas de juros tanto para emprestadores quanto para tomadores.

Finalmente, em alguns países, como o Brasil, havia razões técnicas para a preferência dos fluxos de capital financeiro aos investimentos na forma de participação, já que a regulamentação sobre os investimentos diretos não considerava os efeitos da inflação do país emprestador, ao passo que essa inflação era automaticamente incorporada na taxa de juros nominais paga sobre o empréstimo.

A maior parte desse fluxo de capital financeiro era constituído de empréstimos líquidos (veja a coluna C da tabela 5) dos bancos americanos. Os valores líquidos, todavia, não dizem tudo. Os empréstimos brutos de bancos americanos à América Latina - medidos pela variação nos títulos de crédito em poder de bancos americanos emitidos por tomadores latino-americanos - foram sempre positivos (o sinal de menos indica um fluxo para fora dos Estados Unidos), excetuando-se o ano de 1985. Note-se também que os empréstimos brutos americanos alcançaram um pico em 1982, caindo bruscamente depois desse período. Após 1982, boa parte dos empréstimos brutos foram, na verdade, forçados, induzidos pela necessidade de renegociar e reescalonar empréstimos antigos.

Os fluxos de capital da América Latina para os bancos americanos são mostrados na coluna E. Uma parcela substancial desse fluxo aconteceu na forma de fuga de capital privado, fuga esta que sofreu um crescimento dramático depois de 1977. Em 1979, apesar da manutenção dos empréstimos brutos americanos à América Latina (coluna D), o saldo resultante dos respectivos fluxos de saída foi um influxo líquido de capital no sistema bancário americano de mais de sete bilhões de dólares.

O exame conjunto das colunas C, D, e E revela que boa parte do crescimento da dívida bruta da América Latina, devida a bancos americanos, serviu para financiar um enorme fluxo de capital para esses bancos, refletindo uma fuga de capital induzida, em parte, por taxas de câmbio sobrevalorizadas, associadas a crises internas (especialmente em países como Argentina, Chile, México e Venezuela).

A inversão dramática ocorrida nos empréstimos bancários líquidos à América Latina entre 1982 e 1983 - quando, ao influxo recorde de 1982 de mais de vinte bilhões de dólares, sucedeu-se, em 1983, uma evasão líquida de mais de doze bilhões - deveu-se tanto à queda brusca nos empréstimos bancários brutos à América Latina, quanto à manutenção dos fluxos de capital privado aos bancos americanos.

Outros fluxos de capital financeiro dos Estados Unidos à América Latina foram relativamente irrelevantes, quando comparados aos empréstimos bancários, como se pode inferir da coluna F da tabela 5. A maioria desses fluxos consistia na troca de títulos entre Estados Unidos e América Latina e de financiamento não bancário. Este último referia-se, em sua maior parte, a operações multinacionais, ou seja, devido a fluxos financeiros entre matriz americana e subsidiárias na América Latina. Como no caso dos empréstimos bancários, também houve uma inversão nos outros fluxos financeiros líquidos depois de 1982.

A tabela 6 mostra as tendências desses dois tipos de empréstimos não bancários em termos brutos e líquidos desde 1970. Um dos aspectos mais interessantes desses fluxos de capital entre essas duas regiões é que a América Latina se tornou um emprestador líquido no comércio de títulos já em 1977, isto é, cinco anos antes da crise da dívida. No período pós-1982, o fluxo líquido negativo para a América Latina em títulos representava mais de US$ 5 bilhões anuais, o que pode ser outra manifestação da fuga de capital.

TABELA 6
Conta de Capital da América Latina com os EUA

O investimento estrangeiro direto, mostrado na tabela 7, foi um componente menos importante do que os fluxos financeiros na conta de capitais americana frente à América Latina, em parte por razões já apresentadas. Como na troca de títulos, a inversão nos investimentos diretos líquidos precedeu a crise de endividamento de 1982. Os investimentos diretos brutos dos Estados Unidos na América Latina alcançaram um pico em 1978 e declinaram rapidamente para um fluxo líquido para fora da região, que chegou perto dos US$ 6 bilhões em 1982.

TABELA 7
Saldo de Investimento Diretos entre EUA e América Latina

OBJETIVOS POLÍTICOS CONFLITANTES NAS RELAÇÕES ECONÔMICAS COM A AMÉRICA LATINA: UMA INTERPRETAÇÃO

As relações econômicas entre qualquer país e o resto do mundo fluem potencialmente através de dois canais principais: o mercado de bens e o mercado de capitais (ou de ativos). A eles corresponde, no balanço de pagamentos, respectivamente a conta-corrente e a conta de capitais, as quais deverão compensar-se no longo prazo. Durante a maior parte do período pós-guerra até os anos 70, tanto os agentes do mercado quanto os formuladores de políticas renderam mais atenção ao comércio, isto é, à conta-corrente.

A Inversão na Conta de Capital

Com o surgimento da atividade bancária multinacional - iniciada nos anos 60 e expandida significativamente nos anos 70 pela disponibilidade de petrodólares depois do primeiro choque do petróleo -, as transações do mercado de ativos (ou de conta de capitais) passaram, eventualmente, a assumir maior importância do que as questões comerciais; com isso, uma série de fatos novos passou a merecer o exame dos formuladores de políticas. Em tempos anteriores, aparentemente mais simples, os gestores da política econômica dos Estados Unidos com relação à América Latina preocupavam-se primariamente com as questões comerciais, sobretudo com a manutenção dos mercados para as exportações americanas, e com o acesso seguro às importações essenciais prove­nientes da região. Assumiu-se que qualquer déficit de conta-corrente, resultante desse quadro, seria facilmente financiado via conta de capitais, implicando um fluxo de capital dos Estados Unidos e outros países credores para a América Latina. Esse esquema funcionou particularmente bem em meados dos anos 70, quando a comunidade financeira internacional estava repleta de petrodólares, passíveis de serem emprestados a taxas nominais de juros próximas ou mesmo abaixo da inflação nos países credores. Os débitos antigos e seus encargos eram financiados por novos empréstimos líquidos, como mostrado anteriormente.

Existe hoje um consenso de que esse desequilíbrio do mercado de ativos, ou déficit na conta de capitais da América Latina, não poderia continuar indefinidamente. Alguns agentes do mercado de capitais aparentemente perceberam esse fato mais cedo do que outros. Como visto na seção anterior, os aumentos no volume de títulos americanos, que a América Latina detinha em carteira, começaram a acelerar-se já em 1976 (veja tabela 6), enquanto os aumentos nos títulos latino-americanos em mãos dos Estados Unidos alcançaram um pico em 1975 e decresceram de 1979 em diante. Verifica-se tendência similar no comércio de ativos financeiros não bancários, no qual os fluxos saídos dos Estados Unidos tiveram um pico em 1980. Os depósitos bancários latino-americanos nos Estados Unidos sofreram, a partir de 1978, uma forte aceleração (tabela 7). Os fluxos de investimentos diretos à América Latina começaram a cair depois de 1978 (tabela 7).

Não obstante os nossos dados mascararem as consideráveis variações nos fluxos de capital entre os Estados Unidos e alguns países latino-americanos individualmente, os dados agregados deixam claro que a crise de endividamento bancário de 1982 foi antecipada em vários anos em outros mercados de capitais internacionais. Fazendo uma retrospectiva, se poderia perguntar por que a comunidade bancária americana continuou a aumentar os seus empréstimos durante todo o ano de 1982, quando os empréstimos bancários brutos dos Estados Unidos à América Latina passaram dos US$ 51 bilhões.

Não obstante a virada nos empréstimos bancários americanos à América Latina ter acontecido depois de todas as outras inversões nos fluxos de capital, foi brutal quando ocorreu. Os empréstimos brutos caíram em quase US$ 40 bilhões entre 1982 e 1983 e em 1985 houve até mesmo um fluxo negativo (veja tabela 5). Diante da insistência dos banqueiros internacionais, as perspectivas de qualquer novo empréstimo passaram a ser condicionadas a forte melhora na conta-corrente, melhora esta que, dada a insistência na manutenção dos pagamentos de juros, implicava aumento ainda maior do superávit comercial.

Os interesses conflitantes dos participantes do comércio e dos movimentos de capital entre Estados Unidos e América Latina

Até que tardiamente reconhecesse a inviabilidade, no longo prazo, do contínuo crescimento do endividamento da América Latina, a comunidade bancária internacional era um parceiro sempre disposto a colaborar com a expansão das políticas fiscais na região. Em qualquer economia, quando a poupança interna não é suficiente para financiar tanto o investimento doméstico quanto os gastos públicos, excedendo as receitas fiscais, o saldo deve vir de fora, na forma de um déficit de conta-corrente. Nesse sentido, os desequilíbrios cada vez piores de conta-corrente da América Latina nos anos 70 estavam intimamente ligados a uma poupança interna insuficiente e, particularmente, a déficits crescentes do setor público. Em muitos dos países da região, o crescimento dos gastos do setor público superou tanto o crescimento global da economia quanto o crescimento das receitas fiscais. Tais déficits do setor público podiam ser financiados pela criação de moeda ou por meio do endividamento interno ou externo. O último desses três meios de financiamento do déficit - os empréstimos estrangeiros - foi pouco usado pela maioria dos países latino-americanos antes do final dos anos 60. Com o vasto aumento verificado na disponibilidade internacional de capital nos anos 70, poucos foram os governos latino-americanos que resistiram à tentação de ir aos mercados de capitais internacionais, ao invés de recorrer aos seus próprios poupadores e contribuintes. Essa demanda por financiamento por parte dos governos latino-americanos provou ser lucrativa para a comunidade bancária internacional, a qual estava frequentemente mais disposta a emprestar a um governo soberano do que a investidores privados.

Ao perceber os riscos de longo prazo inerentes ao processo, bem como sua inviabilidade final, a comunidade bancária internacional começou a sondar, como faziam os banqueiros de antigamente. De 1982 em diante, os banqueiros passaram a insistir na comprovação de credibilidade como pré-condição ao reescalonamento de débitos em vencimento, com prazos cada vez mais curtos.

O objetivo central dos banqueiros era conseguir superávits comerciais suficientemente grandes para financiar os pagamentos de juros sobre os débitos pendentes, dada a sua relutância em adiantar novos empréstimos. Os meios através dos quais isto seria conseguido importavam menos do que o fim. Como um superávit comercial é conseguido ou pela expansão das exportações ou pela contração das importações, ambos os tipos de políticas receberam o apoio dos banqueiros, bem como do FMI. No curto prazo, é provavelmente muito mais fácil gerar um superávit comercial pela redução das importações do que pelo aumento das exportações. Como sugere a tabela 3, a maior parte da forte inversão no saldo comercial da América Latina no início dos anos 80, se deveu não à expansão das exportações, mas sim à redução das importações. Essa queda nas importações foi o resultado de vários fatores: restrições diretas a importação, desvalorizações reais e, talvez de maneira mais preponderante, uma queda na taxa de crescimento do PNB (que em alguns países se tornou negativa pela primeira vez desde a Grande Depressão dos anos 30). O fraco desempenho latino-americano no lado das exportações deveu-se, em parte, à recessão mundial do início dos anos 80, bem como às quedas agudas dos preços de uma série de importantes produtos primários de exportação da América Latina. Os valores agregados referentes à exportação, contudo, escondem os tremendos esforços empreendidos por alguns países latino-americanos em levar para frente sua exportação de manufaturados, notadamente no Brasil e no México.3 3 A exportação global de manufaturados brasileiros aumentou de US$ 6,6 bilhões em 1979 para US$ 15,1 bilhões em 1984 e espera-se que alcance os US$ 18 bilhões em 1988. As exportações mexicanas não tradicionais cresceram de US$ 1,2 bilhão em 1981 para US$ 4,1 bilhões em 1985. Assim, em meados dos anos 80, se poderia dizer que as comunidades bancárias tinham atingido seu objetivo, já que a região estava produzindo os superávits comerciais necessários ao pagamento do serviço da dívida.

Embora isso pudesse ter resolvido o problema imediato do ponto de vista da comunidade bancária internacional, a obtenção do superávit comercial não era de interesse de outros grupos políticos americanos. A América Latina há muito tempo vinha sendo um dos maiores mercados para as exportações americanas, particularmente as de bens de capital. A queda abrupta das importações latino-americanas foi particularmente dura para a manufatura americana, já fortemente machucada pela sobrevalorização do dólar americano, pelas altas taxas de juros e pela recessão interna do início dos anos 80.

Embora o fardo inicial do ajustamento comercial da América Latina tenha caído primariamente sobre os exportadores americanos, o sucesso subsequente das exportações latino-americanas de bens manufaturados afetou ainda um grupo diferente. Pela primeira vez, os bens manufaturados latino-americanos estavam em condições de representar séria ameaça em setores como os do aço, têxtil, de maquinaria, vestuário, de calçados, equipamentos de transporte e outros. Essas novas pressões levaram a reações previsíveis dos produtores internos ameaçados. Não demorou para que registrassem queixas contra os países latino-americanos por usarem subsídios fiscais e creditícios, supostamente em violação às regras do GATT. Mesmo quando tais queixas eram rejeitadas, frequentemente forçavam os potenciais exportadores latino-americanos a incorrerem em custos adicionais significativos.

Com a virada no saldo comercial da América Latina, as multinacionais americanas localizadas na região desfrutaram posição mais favorável em algumas áreas, já que passaram a gozar de melhor acesso aos mercados americanos. Foram beneficiados pela queda acentuada nos salários reais relativos e em outros custos internos à América Latina, bem como por uma variedade de incentivos à exportação instituídos pelos países latino-americanos. Essas vantagens, entretanto, foram parcialmente compensadas pelas crescentes barreiras administrativas às importações, particularmente severas para as indústrias dependentes de grande quantidade de componentes importados.

A descapitalização da América Latina e os interesses políticos dos Estados Unidos

A forte inversão nos fluxos líquidos de capital para a América Latina foi acompanhada, talvez não coincidentemente, por uma inversão no panorama político. Entre meados dos anos 70 e meados dos anos 80, os governos autoritários foram substituídos por regimes democráticos na maioria dos países Jatino-americanos.4 4 Em meados dos anos 70, as dezenove nações latino-americanas (de língua portuguesa e espanhola) podiam ser classificadas em quatorze regimes autoritários e cinco democracias. Em meados dos anos 80, o número de governos democráticos subiu para treze. Essa tendência era evidente em vários dos principais países da região, particularmente Argentina e Brasil. Poucos duvidariam do interesse americano de longo prazo em encorajar a tendência de uma abertura política cada vez maior. Contudo, a política econômica americana de curto prazo pode até trabalhar no sentido oposto, ou mesmo minar seus objetivos políticos de longo prazo.

Governar países latino-americanos nunca foi tarefa simples, tanto para ditadores quanto para democratas, como tem demonstrado este século de instabilidade política na região. Quando aos problemas já existentes é acrescentado o fardo de efetuar uma transferência líquida de recursos para o resto do mundo, a sobrevivência de frágeis e recentes democracias torna-se ainda mais precária. Os formuladores de políticas nos Estados Unidos não têm ignorado esse problema, como demonstrou a presteza americana em conceder empréstimos-ponte aos principais tomadores, quando os mercados de crédito fecharam em 1982 e 1983. Mas no longo prazo, o apoio americano ao Banco Mundial, BID e a outros tipos de assistência multilateral se baseia, em parte, na crença de que poderá custar menos fornecer uma ajuda modesta à região agora do que enfrentar os custos de levantes maiores no futuro.

Estamos chegando a um ponto em que esse tipo de ajuda já não será suficiente para lidar com as condições econômicas latino-americanas da última década do século 20. As pressões dos Estados Unidos, anteriormente exercidas sobre países devedores latino-americanos, para que fossem seguidos os programas de austeridade endossados pelo FMI, obtiveram um sucesso de curto prazo, apenas no sentido mais estreito de evitar os defaults e uma crise financeira internacional maior, pela manutenção do cumprimento do serviço da dívida em dia, como uma condição para o reescalonamento periódico do principal. Esses benefícios de curto prazo, contudo, têm implicado enormes custos de longo prazo, causando atualmente forte queda no padrão de vida da região, que, no futuro - talvez ainda mais sinistro -, poderá ser até mais baixo em função da queda no nível de investimento.

Os dados disponíveis são inequivocamente desencorajadores. Os salários mínimos reais da América Latina caíram mais de 15% entre 1980 e 1985 (no México a queda foi de 43% e no Brasil de 16%), enquanto a produção per capita, que havia crescido 33% entre 1970 e 1981, caiu 3,3% de 1982 a 1987. A razão entre o investimento e o PNB para a América Latina, ademais, era de 22,6% no período de 1970 a 1981, caindo para 16,6% no período 1982-87, enquanto a transferência anual líquida de capitais para o Exterior, nos anos 1983-87, totalizou US$ 25 bilhões.5 5 Dados extraídos de Inter-American Development Bank, Economic and Social Progress in Latin America: 1988 Report; U.N., Economic Commission for Latin America and the Caribbean, Economic Panorama of Latin America 1988.

Não só a queda no padrão de vida da região ameaça a sobrevivência de longo prazo dos governos democráticos, mas também as atividades de investimento cada vez menores tornarão mais e mais difícil para as economias latino-americanas manterem o passo com o resto do mundo. O baixo nível de investimento fará com que a América Latina retroceda cada vez mais em produtividade e tecnologia, ficando difícil manter sua porção no mercado mundial, mesmo com algum crescimento.

Os superávits comerciais da região nos anos 80, especialmente com os Estados Unidos, como visto anteriormente, foram consequência de esforços de compressão nas importações e, em alguns países, da promoção das exportações através de programas de incentivos e de uma depreciação real. As pressões resultantes por parte daqueles grupos de interesse nos Estados Unidos, ansiosos por manter suas vendas à América Latina, e por outros, que se sentem ameaçados pela penetração latino-americana nos mercados dos Estados Unidos, têm colocado restrições adicionais às políticas desse país.

É de interesse tanto dos Estados Unidos quanto da América Latina encontrar solução mais definitiva para reduzir o fardo real da dívida. O mecanismo de alívio da dívida que o próprio mercado encontrou, na forma de descontos sobre o valor de face dos débitos no mercado secundário, não é solução satisfatória, já é incerta e arbitrária, não incentivando o investimento de longo prazo.6 6 Em novembro de 1988, por exemplo, a dívida brasileira era vendida no mercado secundário a aproximadamente 40% de seu valor de face, enquanto a dívida mexicana era vendida a aproximadamente 45% e a argentina a menos de 20% (The Economist, 26 novembro, 1988, p. 112).

Uma vez reduzido substancialmente o fardo da dívida, a América Latina terá maior quantidade de moeda estrangeira disponível, podendo permitir-se liberalizar as importações e aumentar com isso a eficiência econômica. Um aumento substancial nas importações latino-americanas também tornaria possível aumentar a razão de investimento da região e, com isso, expandir e modernizar a sua capacidade produtiva. Finalmente, um aumento substancial das importações latino-americanas também poderia desarmar a oposição à penetração dos bens não tradicionais provenientes da América Latina no mercado dos Estados Unidos.

  • 1
    A regulamentação bancária vigente nos Estados Unidos obriga os bancos a insistir na manutenção dos pagamentos de juros. Os pagamentos de juros atrasados, além de um período de carência, obrigam os bancos ao reconhecimento de uma perda, através do aumento de suas reservas sobre os empréstimos.
  • 2
    A queda de crescimento em alguns dos principais países no mesmo período foi muito mais pronunciada: o crescimento da Argentina caiu de 2,6 para - 2,9% e a recuperação foi apenas para 1,2%; no Brasil, caiu de 8,7 a -1,7%, com recuperação para 6,1%; e o crescimento do México caiu de 6,6 para 1,2%, recuperando-se para apenas 0,9%.
  • 3
    A exportação global de manufaturados brasileiros aumentou de US$ 6,6 bilhões em 1979 para US$ 15,1 bilhões em 1984 e espera-se que alcance os US$ 18 bilhões em 1988. As exportações mexicanas não tradicionais cresceram de US$ 1,2 bilhão em 1981 para US$ 4,1 bilhões em 1985.
  • 4
    Em meados dos anos 70, as dezenove nações latino-americanas (de língua portuguesa e espanhola) podiam ser classificadas em quatorze regimes autoritários e cinco democracias. Em meados dos anos 80, o número de governos democráticos subiu para treze.
  • 5
    Dados extraídos de Inter-American Development Bank, Economic and Social Progress in Latin America: 1988 Report; U.N., Economic Commission for Latin America and the Caribbean, Economic Panorama of Latin America 1988.
  • 6
    Em novembro de 1988, por exemplo, a dívida brasileira era vendida no mercado secundário a aproximadamente 40% de seu valor de face, enquanto a dívida mexicana era vendida a aproximadamente 45% e a argentina a menos de 20% (The Economist, 26 novembro, 1988, p. 112).
  • 8
    JEL Classification: H63; F53; F34.
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Agradecemos a Roxana Barrantes e a Curtis McDonald por sua colaboração na preparação deste trabalho. Traduzido por Ricardo B. Costa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1990
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