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Aborto, valores religiosos e políticas públicas: a controvérsia sobre a interrupção voluntária da gravidez na audiência pública da ADPF 442 no Supremo Tribunal Federal

Abortion, religious values and public policies: the controversy over voluntary interruption of pregnancy in the public hearing on ADPF 442 at the Supreme Court (Brazil)

Resumos

Resumo: O artigo analisa a audiência pública da ADPF 442, ação no Supremo Tribunal Federal, que trata da interrupção voluntária da gravidez até 12 semanas como exemplo de controvérsia pública. Demonstra-se que a criminalização do aborto gera desigualdade em diversos níveis e afeta políticas públicas de atendimento à mulher. Valores religiosos, centrados no argumento da defesa da vida fetal, também foram acionados para a manutenção da lei como está, com emprego de argumentos da Ciência e do Direito. As argumentações e evidências apresentadas na ação por parte da maioria dos expositores/as levou em consideração a autonomia das mulheres como agentes morais em respeito à sua cidadania plena. Houve falas dos expositores/as antiaborto que anteciparam a postura anticiência concretizada no governo Bolsonaro.

Palavras-chave:
aborto; ADPF 442; políticas públicas; religião; STF


Abstract: The article analyzes the public hearing of ADPF 442, a lawsuit in the Supreme Court that deals with the voluntary interruption of pregnancy up to 12 weeks as an example of public controversy. It demonstrates that the criminalization of abortion generates inequality at various levels and affects public policies for the care of women. Religious values, centered on the argument of the defense of fetal life, were also used to maintain the law as it is, using arguments from science and law. The arguments and evidence presented in the action by most of the speakers took into consideration the autonomy of women as moral agents in respect to their full citizenship. There were speeches by the anti-abortion panelists that anticipated the anti-science stance concretized in Bolsonaro government.

Keywords:
abortion; ADPF 442; public policies; religion; Supreme Court (Brazil)


Introdução

O presente artigo vai analisar a audiência pública da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 (ADPF 442SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 - Decisão com a Relação dos Inscritos Habilitados, Data, Ordem dos Trabalhos e Metodologia.) que trata da interrupção voluntária da gravidez até 12 semanas como exemplo de uma controvérsia pública. A partir das exposições proferidas na audiência, queremos demonstrar que a criminalização do aborto afeta diretamente políticas públicas de atendimento à mulher e gera desigualdade em diversos níveis. Queremos mostrar também como valores religiosos, centrados no argumento da defesa da vida fetal, são acionados para a manutenção da lei como está. Vamos ainda analisar como se portam agentes com identidade religiosa pública no referido evento e que argumentos são mobilizados para defender suas posições.

O material é analisado de dois prismas diferentes, uma visão interna e uma visão externa: como expositora que assistiu à integridade do evento, ou seja, uma etnografia com observação participante, e a partir do exame da transcrição da audiência pública, como etnografia de documentos (Muzzopappa & Villalta 2011MUZZOPAPPA, Eva; VILLALTA, Carla. (2011), “Los documentos como campo. Reflexiones teórico-metodológicas sobre un enfoque etnográfico de archivos y documentos estatales”. Revista Colombiana de Antropología, vol. 47, n° 1: 13-42.). Por isso o texto flui recorrendo ora ao tempo verbal da primeira pessoa do singular e ora à primeira pessoa do plural. A primeira autora examinou a transcrição, e a segunda teve sua participação como expositora na audiência. Mas o artigo foi moldado analiticamente e escrito por ambas as pesquisadoras que o assinam.

A ADPF é uma ação judicial. No caso da ADPF 442SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Interrupção voluntária da gravidez. ADPF 442. Audiência pública. , que trata da interrupção voluntária da gravidez, o questionamento da constitucionalidade dos artigos do código penal que criminalizam o autoaborto e o aborto realizado por terceiros vai incidir não somente na penalização e persecução penal de sujeitos envolvidos, em particular a gestante, mas diz respeito a políticas públicas de saúde que são afetadas em função da criminalização. O debate que contrapõe o direito de escolha da mulher e o direito à vida (do feto, mas também da mulher) envolve valores religiosos e põe em questão o preceito da laicidade do Estado. Metodologicamente, nos valemos da observação participante e da etnografia de documentos para a interpretação dos resultados do levantamento. Estudos anteriores como os apresentados no livro Valores religiosos e legislação no Brasil (Duarte et al., 2009DUARTE, Luiz Fernando Dias; GOMES, Edlaine de Campos; NATIVIDADE, M. T.; MENEZES, Rachel Aisengart. (2009), Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro: Garamond/Faperj.) foram a inspiração para abordar o evento e seu registro como uma controvérsia.

Este artigo quer analisar a audiência como a ilustração de um momento de controvérsia pública, nos termos de Giumbelli: “um momento de expressão e redefinição de pontos e problemas, os quais permanecem importantes, às vezes até cruciais, na constituição de uma sociedade” (2002GIUMBELLI, Emerson. (2002), “Para além do ‘trabalho de campo’: reflexões supostamente malinowskianas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 17, n° 48: 91-107.:96). A audiência também será examinada no tocante à sua composição, isto é, as entidades e sujeitos que expuseram como amici curiae (amigos da corte) bem como com respeito aos principais argumentos acionados e seu caráter: argumentos religiosos/filosóficos, argumentos da esfera do Direito, argumentos científicos (da Biologia e das Ciências Humanas).

Se consideramos a produção analítica das Ciências Sociais acerca do debate público sobre aborto, parte significativa aborda a agência de grupos religiosos e conservadores (Machado 2013MACHADO, Maria das Dores Campos. (2013), “Discursos pentecostais em torno do aborto e da homossexualidade na sociedade brasileira”. Cultura y Religión, vol. VII, nº2: 48-68.; Azevedo & Efrem Filho 2021AZEVEDO, Mariana; EFREM FILHO, Roberto. (2021), “A Maioria Perseguida: religião, ciência e democracia na audiência pública sobre aborto no STF”. Revista Anthropológicas, vol. 32, n° 2: 76-110.; Machado 2017MACHADO, Lia Zanotta. (2017), O aborto como direito e o aborto como crime: o retrocesso neoconservador. Cadernos Pagu, vol. 50: e17504.) ou como valores religiosos afetam o debate (Sales 2015SALES, Lilian. (2015), “‘Em defesa da vida humana’: moralidades em disputa em duas audiências públicas no STF”. Religião e Sociedade, vol. 35, nº 2: 143-164.; Luna 2018LUNA, Naara. (2018), “O julgamento no Supremo do aborto de anencéfalo - ADPF 54: uma etnografia da religião no espaço público”. Horizontes Antropológicos, ano 24, vol. 52: 165-197.), outros ainda exploram, além da reação conservadora, questões referentes aos valores de autonomia e dignidade humana e a perspectiva de gênero (Miguel, Biroli & Mariano 2017MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia; MARIANO, Rayani. (2017), “O direito ao aborto no debate legislativo brasileiro: a ofensiva conservadora na Câmara dos Deputados”. Opinião Pública, vol. 23, n°1: 230-260.; Machado 2010MACHADO, Lia Zanotta. (2010), “O impacto social das narrativas, biológicas, jurídicas e religiosas sobre o aborto”. In: L. Z. Machado. Feminismo em movimento. São Paulo: Francis, : 134-198.). As questões relacionadas à saúde têm sido abordadas pela antropologia (Porto e Galvão 2022PORTO, Rozeli; GALVÃO, Fabiana. (2022), “Itinerários abortivos e Terapeutas Populares: gênero, temporalidades e saberes localizados”. Revista Anthropológicas , ano 26, vol. 33, nº 1: 170-199. ; Porto, et al. 2018; Porto & Sousa 2017PORTO, Rozeli; SOUSA, Cassia. H. D. (2017), “‘Percorrendo caminhos da angústia’: Cytotec e os itinerários abortivos em uma capital do Nordeste brasileiro”. Revista Estudos Feministas , vol. 25: 1-20.) ou na perspectiva da saúde coletiva (Diniz, Medeiros, Madeiro 2017DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. (2017), “Pesquisa Nacional de Aborto 2016”. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 22, n° 2: 653-660.), mas, de modo geral, os diferentes elementos dessa complexa controvérsia não são contemplados em conjunto. A análise da audiência pública, devido à pluralidade de amici curiae incluídos nas distintas sessões, permite ampliar as perspectivas acerca do debate público sobre aborto, traçando relações entre as diferentes abordagens, contemplando agentes em disputa nessa arena. Aqui, remetemos para o debate sobre redefinição do espaço público, segundo Montero (2017MONTERO, Paula. (2016), “‘Religiões Públicas’ ou religiões na Esfera Pública? Para uma crítica ao conceito de campo religioso de Pierre Bourdieu”. Religião & Sociedade , vol. 36, nº1:128-150.):

No caso brasileiro, notemos apenas que os processos sociais e políticos que levaram à aceitação do pluralismo religioso como norma contribuíram para engendrar um espaço social novo no qual, por um lado, o entendimento do que é religioso se estendeu para as mais variadas formas de prática social e, por outro, cada agência religiosa passa a existir não mais em si mesma, mas uma em relação à outra de modo que sua autonomia e autocentramento cedem lugar à necessidade de justificação de suas práticas e exposição pública da força coletiva que lhe dá sustentação (Montero 2017:139).

O protagonismo de agentes religiosos na controvérsia engloba o aborto como assunto de seu domínio dentro da pauta moral, por isso o esforço de outros agentes para capturar o tópico para uma lógica discursiva distinta: a da saúde pública. Se a abordagem do aborto como “problema de saúde pública” tem sido uma bandeira da legalização (Anjos et al. 2013ANJOS, Karla Ferraz; SANTOS, Vanessa Cruz; SOUZAS, Raquel; EUGÊNIO, Benedito Gonçalves. (2013), “Aborto e saúde pública no Brasil: reflexões sob a perspectiva dos direitos humanos”. Saúde em Debate, vol. 37, n° 98: 504-515. ; Borsari et al. 2012BORSARI, Cristina Mendes Gigliotti; NOMURA, Roseli Mieko Yamamoto; BENUTE, Gláucia Guerra; NONNENMACHER, Danielle; LUCIA, Mara Cristina Souza de; FRANCISCO, Rossana Pulcineli Vieira. (2012), “O aborto inseguro é um problema de saúde pública”. Femina, vol. 40, nº 2: 63-68. ), uma palavra de ordem das mais repetidas, parte significativa das exposições na audiência pública vai ilustrar como se concretiza esse problema por meio dos relatos de diversas pesquisas.

A etnografia da audiência pública da ADPF 442

A resistência conservadora ao debate sobre aborto no Brasil, assim como em outros países ocorre no contexto de ascensão transnacional do neoconservadorismo, associado ao neoliberalismo. Segundo Brown (2006BROWN, Wendy. (2006), “American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization”. Political Theory, vol. 34, nº 6: 690-714.), essas racionalidades políticas, embora aparentemente contraditórias, convergem em vários efeitos “desdemocratizantes”: a desvalorização da liberdade política e da igualdade, o esvaziamento da cidadania (reduzida ao autocuidado e desviada de qualquer orientação para o bem comum), além da depreciação da regra da lei, em favor do governo de acordo com critérios de mercado de um lado e de valorização do poder do Estado para fins ditos morais. Esse conjunto enfraquece tanto a cultura como as instituições da democracia constitucional. As duas racionalidades trabalham de forma simbiótica para criar um sujeito indiferente à veracidade e responsabilidade no governo, e à liberdade política e igualdade na cidadania. Um desses alvos no tocante ao uso do Estado para fins morais é seu uso para impedir o direito de escolha ao aborto legal.

Vemos que os efeitos sombrios desse (neo)conservadorismo na América Latina não impediram que países como Uruguai, México, Argentina e Colômbia flexibilizassem suas leis sobre os direitos reprodutivos das mulheres e meninas. Vamos situar rapidamente essa audiência pública no quadro mais amplo.

É sabido que na América Latina e Caribe quase todos os países têm legislação bastante restritiva ao aborto, que é criminalizado, mas admite exceções de punibilidade, sendo que ao menos 30 desses países consideram o aborto um delito (Chiaparrone 2018CHIAPPARRONE, Norma Graciela. (2018), “El derecho al aborto en América Latina y el Caribe”. Atlánticas - Revista Internacional de Estudios Feministas, vol. 3, nº 1: 192-223.). Segundo Galli, com referência ao ano de 2019, na América Latina, uma das regiões com legislação mais restritiva no mundo, “apenas três países têm leis favoráveis à interrupção legal da gestação a pedido da mulher - Cuba, Guiana e Uruguai - e quatro países criminalizam totalmente o aborto - El Salvador, Honduras, Nicarágua e República Dominicana” (2020:1). No cenário até 2013, Ruibal descreve como, diante de tensões em sociedades conservadoras com mudanças sociais em curso, as estratégias dos movimentos feministas para obtenção do aborto legal têm se diversificado, mostrando caminhos para liberalizar regulações sobre aborto, mesmo que de forma limitada, via Legislativo ou Judiciário (2014).

Notadamente, o Uruguai foi o primeiro país no cenário mais recente a alcançar a legalização. A Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez, sancionada em 22/10/2012, autoriza o aborto por solicitação da mulher até 12 semanas de gravidez, em caso de estupro, até 14 semanas, e sem limite de prazo em caso de risco à saúde da mulher ou de malformações incompatíveis com a vida (Galli 2020GALLI, Beatriz. (2020), “Desafios e oportunidades para o acesso ao aborto legal e seguro na América Latina a partir dos cenários do Brasil, da Argentina e do Uruguai”. Cadernos de Saúde Pública. vol. 36, Sup 1: e00168419. ). No entanto, há etapas obrigatórias que podem constituir barreiras, como a necessidade de aconselhamento pré-aborto seguido de cinco dias de reflexão. Outro ponto importante é a consulta pós-aborto para acompanhamento e aconselhamento contraceptivo (Galli 2020).

Na Argentina, segundo o Código Penal de 1921 e decisão do Supremo Tribunal de Justiça em 2012 no caso F.A.L., o aborto é legal nos seguintes casos: risco de vida para a pessoa grávida, risco para bem-estar físico, emocional e social da gestante e se resulta de violação (Galli 2020GALLI, Beatriz. (2020), “Desafios e oportunidades para o acesso ao aborto legal e seguro na América Latina a partir dos cenários do Brasil, da Argentina e do Uruguai”. Cadernos de Saúde Pública. vol. 36, Sup 1: e00168419. ). Vale lembrar que a despenalização do aborto na Argentina percorreu um longo processo liderado pela “onda verde” feminista, tomando as ruas do país em 2018. Após anos de intensa luta pela despenalização do aborto, um projeto de lei propondo a Interrupción Voluntaria del Embaraço - IVE (Dirino; Pereira Arbués 2021DIRINO, Ana K; PEREIRA ARBUÉS, Margareth. (2021), “Corpo, política e religião: a luta pela descriminalização do aborto no Brasil e Argentina - Um desafio aos Direitos Humanos das Mulheres”. Brazilian Journal of Development, vol. 7, nº 2: 20614-20622.) entrou na pauta do congresso argentino. Tal projeto foi votado e aprovado pela Câmara, contudo, barrado pelo Senado. Notadamente, esse fato ocorreu em paralelo ao julgamento da ADPF 442 no Brasil, onde as feministas brasileiras acompanharam essa audiência no Festival intitulado Pela Vida das Mulheres. As atividades desse Festival acabaram por fazer parte de uma campanha nacional de apoio não somente à ADPF 442, mas também ao movimento pela legalização do aborto na Argentina. O voto contrário do Senado argentino em 2018 aprofundou a criação de redes entre organizações feministas, de mulheres, de sexualidades dissidentes e de profissionais de saúde, reivindicando uma lei que garantisse o direito ao aborto legal e seguro às mulheres, fazendo com que “el aborto irrumpa la cotidianeidad y se configure como problema social y como problema público, que se vuelva un reclamo masivo, intergeneracional, policlasista y plurinacional” (Burton & Peralta 2021BURTON, Julia; TRINIDAD PERALTA, Guillermina. (2021), “Un aborto feminista es un aborto cuidado. Prácticas de cuidado en el socorrismo patagónico”. Revista Estudos Feministas, vol. 29, nº 2: e70809.:2). A demanda acionada pelos diferentes coletivos feministas se empodera nesse processo e a onda verde argentina sai vitoriosa ao ver o aborto legalizado em dezembro de 2020.

No México, a via foi pelo Legislativo: a Assembleia Legislativa do Distrito Federal (Cidade do México) aprovou uma reforma legalizando o aborto por demanda da mulher no primeiro trimestre, o que refletiu as reivindicações do movimento feminista e foi apoiada pela Suprema Corte da Nação em 2008 (Ruibal 2014RUIBAL, Alba M. (2014), “Feminismo frente a fundamentalismos religiosos: mobilização e contramobilização em torno dos direitos reprodutivos na América Latina”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 14: 111-138.). Em 7 setembro de 2021, nove meses após a Argentina, a Suprema Corte de Justiça decidiu que era inconstitucional processar e prender a mulher por obter o procedimento (Barragán e Morán Breña. El País, 7 set. 2021BARRAGÁN, Almudena; MORÁN BREÑA, Carmen. (2021). “México descriminaliza o aborto após decisão judicial histórica”. El País, Espanha, 7/09/2021. Disponível em: Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-09-07/mexico-descriminaliza-o-aborto-apos-decisao-judicial-historica.html . Acesso em: 20 mar. 2023.
https://brasil.elpais.com/internacional/...
).

Por fim, na Colômbia, a ONG feminista internacional Women’s Link “apresentou uma ação de inconstitucionalidade perante a Corte Constitucional que levou à liberalização da lei penal sobre o aborto em três circunstâncias, em 2006” (Ruibal 2014RUIBAL, Alba M. (2014), “Feminismo frente a fundamentalismos religiosos: mobilização e contramobilização em torno dos direitos reprodutivos na América Latina”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 14: 111-138.:112): violação, risco de vida ou saúde da mulher e malformações fetais severas. Posteriormente, em fevereiro de 2022, o Tribunal Constitucional aprovou por cinco votos a quatro a descriminalização do aborto neste país. Foi um marco histórico para os diferentes coletivos feministas colombianos que se unem às conquistas de outros países latino-americanos como Uruguai, México e Argentina. Contudo, manteve o sistema de fundamentação estabelecido na sentença de 2006, que permite o aborto somente em casos de violação, malformação fetal e risco de morte para a mulher. Observe-se que prazo de 24 semanas consentido por esse Tribunal é o mais longo em comparação aos outros países da América Latina (Argentina 14 semanas; México 12 semanas, Uruguai 12 semanas). Diferentemente da Argentina, a decisão não eliminou o crime de aborto do Código Penal, ao preservar o sistema causal acima citado. A partir da 24ª semana, o aborto será considerado crime se a mulher o praticar fora dos motivos definidos pela lei (López Robles 2022LÓPEZ ROBLES, A. (2022), “Activismo hashtag y disputas por el sentido social en Twitter: El caso de la despenalización del aborto en Colombia”. Global Media Journal México, vol. 19, nº 36: 148-169. ).

No caso brasileiro, a estratégia de obter gradativamente resultados pelo lado judicial tem o marco no julgamento da ADPF 54, que abriu um permissivo para o caso de anencefalia (Diniz 2014DINIZ, Debora. (2014), “A arquitetura de uma ação em três atos: anencefalia no STF”. Direito.UnB, vol. 1, nº 2: 161-183.; Luna 2021LUNA, Naara. (2021), “O direito ao aborto em caso de anencefalia: uma análise antropológica do julgamento da ADPF 54 pelo Supremo Tribunal Federal”. Mana, vol. 27, nº 3: e273207.). A ONG ANIS - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero foi ator essencial para apresentar em 2004, a partir de parceria com a Associação de Trabalhadores na Saúde, uma ação no Supremo Tribunal Federal que permitiu a autorização do aborto para esses casos em 2012 (Diniz 2014; Luna 2021). A opção por esse caminho deve-se à resistência encarniçada contra o debate no Congresso Nacional, onde, pelo contrário, iniciativas de regressão têm grassado, com tentativas de incluir na legislação o direito à vida desde a concepção e de extinção dos permissivos existentes (Miguel, Biroli e Mariano 2017MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia; MARIANO, Rayani. (2017), “O direito ao aborto no debate legislativo brasileiro: a ofensiva conservadora na Câmara dos Deputados”. Opinião Pública, vol. 23, n°1: 230-260.; Luna 2019LUNA, Naara. (2019), “O debate sobre aborto na câmara de deputados no Brasil entre 2015 e 2017: agenda conservadora e resistência”. Sexualidad, Salud y Sociedad, vol. 33: 207-272.). Diante do cenário mais favorável no Judiciário, a via escolhida foi ajuizar a ADPF 442 em 2017 (Galli 2020GALLI, Beatriz. (2020), “Desafios e oportunidades para o acesso ao aborto legal e seguro na América Latina a partir dos cenários do Brasil, da Argentina e do Uruguai”. Cadernos de Saúde Pública. vol. 36, Sup 1: e00168419. ).

Assim, o debate sobre o aborto em nosso país ganhou força em Brasília no ano de 2018. Nos dias 3 e 6 de agosto, o STF realizou uma audiência pública envolvendo diferentes atores e atrizes que apresentaram argumentos favoráveis e contrários à descriminalização do aborto, com o objetivo de auxiliar os 11 ministros da corte a formar sua convicção para analisar uma ação ajuizada em 2017 pelo PSOL e pela ANIS - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

A ADPF 442, pede a liberação da interrupção da gravidez até 12 semanas de gestação. Tal ação solicita ao STF excluir do Código Penal Brasileiro os artigos 124 e 126, que definem como crime a interrupção da gravidez tanto para a mulher quanto para quem a ajuda a abortar. Sua proibição afrontaria preceitos fundamentais da Constituição Federal, tais como o direito das mulheres à vida, à dignidade, a cidadania, à não discriminação, à liberdade, à igualdade, à saúde e ao planejamento familiar. Nesse sentido, conforme observa Sônia Correa, a ADPF “provoca” o sistema Judiciário a dar uma resposta sobre a questão do aborto alegando que a criminalização da prática (aplicação do CP de 1940) fere a Constituição, ou seja, descumpre preceitos constitucionais fundamentais.1 1 O processo de democratização estabelece no Brasil o que vem sendo chamado de “sistema híbrido de controle judicial” (Avritzer 2016:82), que corresponde ao fato de que o controle repressivo de constitucionalidade pode acontecer de forma difusa ou concentrada, ou seja, pode ser acionada por todos os integrantes do Judiciário. Na prática, e com as reformas de 2014 por meio da Emenda Constitucional nº 45, o STF, assume cada vez mais centralidade, podendo, como “guardião da Constituição”, operar de dois modos, que mesclam modelos Constitucionais Europeus e Estadunidense. O STF funciona tanto como uma Corte Constitucional, atuando no controle de constitucionalidade das leis e que ao assumir esse papel se distingue como um poder “independente”; como também Opera na Revisão Judicial, o que incluiria o STF como um órgão dentre ou outros do poder judiciário com competências revisionais (Elias 2018).

Dentre as instituições participantes, essa ação contou com o apoio da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que com o apoio da ANIS, reivindicou o direito de participar como amicus curiae durante o julgamento da ADPF 442.

Gostaria de chamar atenção para a importância da participação da sociedade civil nesse processo, e particularmente, de nossa participação como representantes da ABA na construção de um argumento a ser apresentado à suprema corte, com base em nossas pesquisas na área da antropologia, feminismo, gênero e da saúde reprodutiva. Como antropólogas, há anos investigamos as dolorosas experiências sociais, profundas e dramáticas de mulheres que, pelas mais diversas razões, recorreram e recorrem ao aborto legal ou inseguro em nosso país. Chamamos atenção, do mesmo modo, para uma antropologia “extramuros”, em um debate que nos remete a diferentes configurações do exercício profissional da antropologia no mundo contemporâneo realizadas de maneiras posicionadas (Rosaldo 1993ROSALDO, R. (1993), Culture and truth: The remarking of social analysis. Boston: Beacon Press.)2 2 Rosaldo (1993) critica o conceito weberiano de apaixonada distância, introduzindo o conceito de sujeito posicionado. Rosaldo sugere que o pesquisador teria de explorar os sujeitos de sua pesquisa a partir de uma posição, como ele chama, do sujeito que se reposiciona. na instrumentalização dessa disciplina.

De acordo com os procedimentos, enviamos um memorial contendo uma versão plural sobre os argumentos solicitados pelo STF, sendo nosso pedido deferido junto a outras solicitações compostas por organizações de áreas da saúde e direitos humanos, entidades religiosas, civis dentre outros estudiosos do assunto. Segundo informações do STF,3 3 Essas informações foram obtidas do documento Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 - Decisão com a Relação dos Inscritos Habilitados, Data, Ordem dos Trabalhos e Metodologia. foram recebidos 502 e-mails entre o dia 2 de abril e 25 de abril de 2018, sendo que:

a) 180 pedidos eram para habilitação como expositor na audiência, de pessoas físicas com potencial de autoridade e representatividade, de organizações não governamentais, sociedades civis, sem finalidade lucrativa, e institutos específicos;

b) 150 manifestações de pessoas físicas em apoio à inscrição de alguma pessoa com autoridade e reconhecimento na matéria;

c) o restante dos e-mails, com pedidos de esclarecimento sobre o procedimento e os critérios exigidos para inscrição, bem como pedidos para participar da audiência na qualidade de ouvinte.

d) Desses, foram selecionados por volta de 52 pedidos de entidades ou sujeitos individuais, de acordo com os critérios estabelecidos na convocação, como a apresentação de um memorial, escrito com a argumentação a ser defendida, objetivando captar a pluralidade de pontos de vista propostos pelos especialistas e “autoridades” de diferentes perspectivas sociais.4 4 O sumário da transcrição da audiência pública registra 57 exposições, mas são 52 entidades representadas posto que algumas contaram com mais de uma pessoa. Segundo Elias (2018), foram 69 a expor.

e) em relação às exposições 36 foram favoráveis à descriminalização, 13 foram contra e dois indefinidos, lembrando que ainda não há data marcada para o julgamento do caso.5 5 A ministra Rosa Weber atualmente preside o STF, mas manteve o caso sob sua relatoria, o que sugere que pretende agendar o julgamento para antes da data de sua aposentadoria compulsória em outubro de 2023 (Falcão & Viva 2022).

Essa maioria, sem dúvida, foi publicamente questionada por setores conservadores que usam esse fato para argumentar que as audiências e uma possível decisão favorável do STF seriam fruto de ativismo jurídico e usurpação de poder legislativo pelo judiciário. Contudo, foi aberta ao público em geral a seleção de instituições capacitadas a participar, que seguia alguns critérios como os já anteriormente citados, sobre a apresentação de um memorial, por exemplo. Observe-se, nessa perspectiva, que o resultado se deve ao desenvolvimento e consolidação, de um campo de estudo, pesquisa e ativismo ligados ao tema do aborto. No que segue, todas as instituições tiveram que se apoiar em algum tipo de argumento para defesa ou não da descriminalização do aborto até as 12 semanas.

Entre rosários e orações de alguns sujeitos, contrapostos aos “lenços verdes” - símbolo da legalização do aborto na Argentina - e aos galhos de arruda utilizados por detrás das orelhas pelas feministas numa clara atitude de enfrentamento (que aliás, eram barradas na porta de entrada por utilizarem camisetas com dizeres a favor do aborto, os lenços verdes, dentre outros acessórios), iam se desenrolando os mais variados discursos e argumentos em torno da questão.

Como uma das expositoras, tive a oportunidade de acompanhar os debates que se deflagraram durante os dois dias na plenária. Pude observar o alto nível de maior parte das exposições no que pôde se chamar de uma “overdose de ciência e de conhecimento” sobre o tema aborto, especialmente na primeira sessão (3/08), quando foram alocadas exposições ligadas à área de saúde e da ciência. Nesta, estiveram presentes associações tais como o Ministério da Saúde - MS, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia - FEBRASGO, Academia Nacional de Medicina, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC, além de outras entidades como o Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas - CEMICAMP, FIOCRUZ, Conselho Federal de Psicologia, Instituto Baresi6 6 O Instituto Baresi é um fórum nacional para associações de pessoas com doenças raras, deficiências e outros grupos de minoria. e ANIS. Entre os expositores, Raphael Câmara, coordenador da residência médica em Ginecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi apresentado como representante da Universidade.

Na segunda sessão, na parte da tarde, participaram representantes da sociedade civil, sendo entidades de pesquisa e associações profissionais, como Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), Associação Brasileira de Antropologia - ABA, Sociedade Brasileira de Bioética, Instituto de Biodireito e Bioética - IBIOS. Também tiveram lugar representantes de movimentos sociais, como o Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular, a Rede Feminista de Juristas (DEFENDE), a Associação Crioula, o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, o Grupo Curumim - gestação e parto, e o Centro Feminista de Estudos e Assessoria, sendo esses grupos representados por três expositoras. Estiveram presentes também ONGs internacionais voltadas para os direitos das mulheres ou direitos humanos como International Women’s Health Coalition - IWHC; Human Rights Watch; Health, Access, Rights - IPAS; Consórcio Latino-Americano Contra o Aborto Inseguro - CLACAI e Women on Waves.7 7 Foi possível assistir a essas exposições de ONGs internacionais que não foram transcritas por serem em língua estrangeira. As posições foram favoráveis à tese da ADPF 442. Por outro lado, houve representação de movimentos antiaborto oriundos da sociedade civil como o Movimento Nacional Cidadania pela Vida, Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, Instituto de Políticas Governamentais, Centro de Reestruturação da Vida, além da Associação de Direito de Família e das Sucessões.

A terceira sessão, realizada em 6/08 na parte da manhã, foi constituída por representantes de entidades religiosas: CNBB, Conselho Nacional do Laicato do Brasil da Arquidiocese de Aracaju - CONAL, Convenção Geral das Assembleias de Deus, Convenção Batista Brasileira, Federação Espírita Brasileira, Confederação Israelita do Brasil e Federação das Associações Mulçumanas do Brasil - FAMBRAS. Nessa mesma sessão participaram associações de juristas com identidade religiosa: União dos Juristas Católicos de São Paulo (URJUCASP) e Associação dos Juristas Evangélicos (ANAJURE). Assinala-se a presença de minorias religiosas dissidentes da orientação institucional, caso das Católicas pelo Direito de Decidir, bem como o ISER - Instituto dos Estudos da Religião, que é uma ONG voltada para pesquisa, mas foi representado pela teóloga Lusmarina Campos Garcia.

A última sessão ocorreu em 6/08, na parte da tarde, e foi composta principalmente por operadores da área de Direito. Estavam representados: como órgãos do Estado o Conselho Nacional dos Direitos Humanos, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado de São Paulo - Núcleo Especializado na Promoção dos Direitos das Mulheres/NUDEM, Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro - Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos; ONGs e entidades da sociedade civil como Conectas Direitos Humanos, Instituto Brasileiro de Direito Civil, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais; núcleos ligados às universidades: Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais, Clínica UERJ de Direitos, Núcleo de Prática Jurídica em Direitos Humanos da USP. Um representante do Congresso Nacional, o Senador Magno Malta, falou em nome da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família. Como indivíduos, falaram a advogada Janaína Paschoal8 8 Por demanda da ministra para informar suas credenciais, apresentou-se como professora de Direito da USP, esclarecendo não representar a instituição. e José Paulo Leão Veloso Silva9 9 Apresentado como do Estado de Sergipe, no currículo consta “Procuradoria-Geral do Estado de Sergipe, Procuradoria-especial do contencioso fiscal”. (Estado de Sergipe).

A partir daqui, vamos elencar os principais argumentos apresentados na audiência no tocante à frequência e ao seu peso no debate, dispondo a partir das sessões que contaram com temáticas distintas na escalação de expositores e expositoras.

O primeiro dia da audiência pública

A primeira sessão contou com representantes ligados à área de saúde e da ciência, a segunda de associações da sociedade civil, incluindo ONGs e movimentos sociais, na terceira sessão estavam representantes de entidades religiosas, e finalmente na terceira sessão estavam operadores de instituições ligadas ao Direito. As representantes do Ministério da Saúde afirmaram apresentar informações para subsidiar a discussão, mas sem se posicionar sobre a ADPF 442. Como a ênfase é nos riscos do aborto inseguro e nos custos financeiros e humanos, consideramos sua posição pró-escolha.

Considerando o número de entidades expositoras: foram 36 pró-escolha ou de acordo com teses da ADPF 442, catorze contrárias e duas indefinidas. Salienta-se que as posições contrárias estão concentradas na terceira sessão dos representantes de entidades religiosas: nove dos treze expositores, sendo duas indefinidas e duas pró-escolha.

O argumento mais repetido são os números: as estimativas de altos números de aborto no país, e de mortalidade materna em decorrência de aborto clandestino. Os números citados vêm de fontes diferentes: do SUS (mortes, internações, complicações decorrentes de aborto); da Pesquisa Nacional de Aborto, realizada por demanda do Ministério da Saúde, em 2010 e 2016; pesquisa Nascer no Brasil: inquérito nacional sobre parto e nascimento, realizada pela FIOCRUZ. Essa magnitude é o dado mais contestado nas exposições contrárias à descriminalização.

Com base na premissa da magnitude do aborto clandestino no Brasil, decorrem os demais: do argumento geral, aborto é problema de saúde pública, confirmando o diagnóstico de grande difusão da prática ilegal no Brasil, feita por mulheres de todas as religiões.

No tocante à magnitude, Maria de Fátima de Souza (Ministério da Saúde) observa que “Uma, em cada cinco mulheres, já fez aborto neste país. A estimativa, nossa, do Ministério da Saúde, é que nós temos, por ano, cerca de um milhão de abortos induzidos” (:25).10 10 A partir daqui é informada a paginação conforme a transcrição da audiência.

Jorge Rezende Filho (Academia Nacional de Medicina) embala na mesma perspectiva: “Das quase meio milhão de mulheres que fizeram aborto clandestino em 2015, aproximadamente metade foi internada após o procedimento. A curetagem pós-aborto é um dos procedimentos mais realizados em assistência obstétrica pelo SUS. Estima-se que (:49) sejam realizadas por ano cerca de 200 mil internações relacionadas a curetagens pós abortamento, com custos elevados para o sistema de saúde” (:50).

Também foi muito citada a Pesquisa Nacional de Aborto, inclusive por sua autora Debora Diniz: “Uma em cada cinco mulheres, aos quarenta anos, já fez pelo menos, um aborto na vida.” (:173).

As duas expositoras que representaram o Ministério da Saúde enfatizaram as consequências do aborto inseguro para o sistema de saúde: assinalam o número elevado de interrupções voluntárias da gravidez e mostram que a mortalidade por aborto inseguro atinge mais mulheres miseráveis, comentando os altos custos financeiros e humanos.

Sobre o contraponto entre eficácia e segurança do aborto legal e do aborto realizado na clandestinidade, o médico e professor Rosires Pereira de Andrade (FEBRASGO) desenvolveu dois pontos em sua exposição: 1. segurança e eficácia dos métodos disponíveis para aborto legal, o aborto seguro como procedimento de saúde das mulheres; 2. Criminalização do aborto como obstáculo para o exercício regular e adequado da medicina. Após comentar o impacto da criminalização do aborto entre mulheres pobres, afirma: criminalização não impacta o número de abortos, apenas impede que sejam feitos de modo seguro, sem proteger o bem jurídico tutelado (vida do nascituro).

Segundo Jorge Rezende Filho (Academia Nacional de Medicina):

Criminalização do aborto impede a efetivação do acesso ao planejamento familiar, tendo em vista que estigmatiza e ameaça de punição as mulheres que se deparam com a impossibilidade de seguir adiante com uma gravidez, afastando-as dos serviços de saúde, impedindo que acessem efetivamente, inclusive, os serviços de prevenção - os quais envolvem o acesso a informação e a métodos contraceptivos particularmente importantes no momento pós-aborto, para evitar que outro venha a ocorrer (:52).

Em relação aos problemas metodológicos para aferir magnitude do aborto decorrem de sua criminalização e da clandestinidade, a médica Melânia Amorim (Instituto Paraibano de Pesquisa Joaquim Amorim Neto) chamou atenção para a experiência da Romênia. Disse que houve aumento de mortalidade quando o aborto foi criminalizado, contudo, quando removidas as restrições, este foi reduzido. Outros exemplos de queda da mortalidade materna aconteceram na África do Sul, Portugal e Uruguai. A descriminalização aparenta aumentar a taxa por causa da notificação. Programas de atenção pós-aborto incluem orientação contraceptiva, por isso caem as taxas. Há motivação para prevenir a repetição do aborto, onde este é legal e acessível. A médica também fala da relação médico-paciente: profissionais de saúde não podem orientar, não conseguem tratar porque as mulheres receiam a denúncia, muitas mulheres não falam a verdade. Dessa forma, a criminalização impede prevenção, atendimento e orientação à mulher que fez aborto a fim de dar acesso à contracepção.

Segundo Olímpio Moraes Filho (SBPC), a rota se inicia com o ingresso dessa mulher no serviço de saúde, procurando assistência no pré e/ou no pós-aborto. É nesse momento que se pode entender o que a levou a não querer continuar com a sua gravidez (:87). “Não sobra espaço para diálogo quando estamos lidando com uma prática que é crime, que enfrenta um forte estigma moral. A criminalização impede que a rota crítica seja o momento de proteção e cuidado, inclusive de prevenção do segundo aborto” (:88). Olímpio prossegue: Deve ser tratado como problema de saúde pública. Caso contrário, as mulheres continuarão a não procurar o serviço de saúde de forma tempestiva e, quando procurarem, continuarão negando informações que levaram à repetição do aborto, erro de diagnóstico, procedimentos inadequados com graves sequelas e morte” (:89).

Segundo Marcos Augusto Bastos Dias, da FIOCRUZ, a criminalização do aborto empurra mulheres para fora dos serviços de saúde. Desenvolve sua tese a partir de dois pontos: 1. o conceito de proteção integral à saúde proposto pela OMS; 2. “dever de médicos obstetras em oferecerem cuidados em saúde, nem que seja por redução dos danos ao aborto” (:108). Relata sobre as gestantes atendidas nos serviços da FIOCRUZ: “ambiente restritivo das possibilidades de aborto obriga as gestantes, com diagnóstico de fetos malformados e desejando interromper a gestação, a trilharem percursos que são um contínuo de sofrimento e de exposição à violência dos mais variados tipos” (:106).

Há estigma sobre demanda de aborto legal que fica sob suspeita:

Segundo Lia Zanotta11 11 Junto a Lia Zanotta Machado, a antropóloga Rozeli Porto (UFRN) foi uma das representantes da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) nessa audiência. Lia Zanotta, além de contribuir com a construção do argumento, foi a responsável pela leitura e exposição no STF. (Associação Brasileira de Antropologia - ABA), “O estigma do aborto faz com que os efeitos da criminalização excedam a ameaça da punição. O medo provocado nas mulheres e, secundariamente, nos profissionais de saúde gera barreiras ao acesso a serviços de saúde reprodutiva, mesmo nas hipóteses legais” (:219). A vigilância constante que acompanha o estigma do aborto como crime opera um ciclo de marginalização social, médica e jurídica dos processos reprodutivos das mulheres, o que impacta de forma significativa o seu cuidado em saúde” (:227).12 12 As antropólogas apresentaram como contraponto a história de Rebeca Mendes, que solicitou acesso ao aborto no Brasil, em 2017, mas apenas pôde realizá-lo na Colômbia, país em que as instituições do Estado, em especial as de saúde pública, oferecem uma lição a ser aprendida para redução do estigma às necessidades de saúde das mulheres.

Ainda, os representantes de movimentos sociais e da sociedade civil, denunciam desigualdade, racismo, insensibilidade do Congresso Nacional de homens brancos e composição feminina diminuta.

Nomes e casos de mulheres mortas são citados por muitas expositoras. Um exemplo é a fala de Natália Mori Cruz (Coletivo Margarida Alves), que iniciou sua exposição “em memória de Elisângela Barbosa, Jandira Madalena, Ingriane Barbosa e tantas outras mulheres que tiveram suas vidas interrompidas em consequência do aborto inseguro” (:233).

Uma das preocupações mais repetidas é a defesa do Estado laico. Ressaltamos aqui as observações de uma expositora ligada a movimentos sociais.

Natália Mori Cruz (Coletivo Margarida Alves) fala da importância dos movimentos feministas na defesa do Estado laico e denuncia que o direito a decidir sobre o próprio corpo desde a Constituinte foi “obstaculizada pela atuação política inconstitucional de igrejas de diferentes denominações, especialmente as cristãs” (:234). Também critica a atuação de parlamentares no Congresso Nacional que defendem a Bíblia antes da Constituição.

Sobre a dinâmica discursiva da controvérsia: além de defender os argumentos próprios, é necessário rebater os argumentos do campo oposto.

Assim Sandra Helena Sposito (Conselho Federal de Psicologia) afirma: “o sofrimento psíquico associado ao aborto pode não estar relacionado ao ato em si, mas ao contexto sociocultural e moral, que, ao impedir a autonomia para decidir, que, ao renegar ao âmbito do crime e da marginalidade, da indecência à pessoa que aborta, provoca intensos sofrimentos” (:124).

Da mesma forma, Letícia Gonçalves (Conselho Federal de Psicologia) diz: “posições divergentes à descriminalização das mulheres que interrompem voluntariamente uma gravidez têm defendido a relação unicausal do aborto com a produção de danos psíquicos às mulheres, (...) diagnóstico nomeado como Síndrome Pós-aborto” (:127). Tal “retórica salvacionista implica desrespeito à capacidade de agência das mulheres, uma vez que propõe que elas sejam salvas de uma decisão tomada por elas” (:128).

Também invertendo a lógica discursiva presente no discurso antiaborto, que denuncia que a legalização do aborto resulta em práticas eugênicas, é exemplar o depoimento de Adriana Abreu Magalhães Dias (Instituto Baresi). A antropóloga sofre de osteogênese imperfecta. Ela clama por representatividade: “Nós, mulheres com deficiência, também fazemos aborto; também esperamos por políticas de planejamento familiar adequadas as nossas realidades corporais diversas; queremos poder decidir quando, como e se teremos ou não filhos (:135). Acerca da participação das pessoas com deficiência na audiência: “Não fomos convidadas a falar, mas representantes sem deficiência falaram por nós” (:136). “Sustento que decisões individuais de mulheres por aborto, em quaisquer circunstâncias, não são decisões eugênicas” (:137). Ela finaliza com o marco legal: “o marco protetivo das pessoas com deficiência, tanto no campo internacional como no nacional, não equipara feto às pessoas nascidas” (:142), isso nem na Convenção de Direitos das Pessoas com Deficiência nem na Constituição.

Outro argumento de inversão da lógica discursiva antiaborto é questionar as pesquisas de opinião como não científicas, conforme Débora Diniz (Instituto de Bioética - ANIS): “Um estudo sobre aborto, por exemplo, que venha a afirmar que 86% da população brasileira é contra ou a favor do aborto - e em resposta se dizia contra - tem um erro de partida, que, em geral, são os erros de pesquisas de opinião sobre temas tão controversos como o aborto” (:169). Afirma haver “um erro de pergunta” (:170). Assim, o que interessa são as práticas. “Uma mesma mulher que venha a responder a uma pesquisa de opinião ‘eu sou contra o aborto’ pode ter feito um aborto na vida, porque há uma expectativa moral de uma resposta correta quando há alguém fazendo uma pergunta inquisitorial como essa” (:170). A primeira razão para a incoerência na resposta é a expectativa da resposta. “A segunda é de ordem filosófica ou jurídica. Nós somos incoerentes quando a lei penal nos ameaça de prisão” (:170).

Ainda rebatendo a defesa da vida desde a concepção, afirma-se a diferença entre embrião e pessoa humana. Heloísa Helena Gomes Barbosa (Instituto de Biodireito e Bioética - IBIOS) define: “Não há que se confundir vida humana com pessoa humana, muito menos com embrião, crioconservado ou não, assim também o feto não se pode confundir com pessoa” (:280).

Parte significativa das exposições na área de saúde principalmente, mas também na área do Direito e na sociedade civil mais ampla demonstrou que o cenário de criminalização repercute na execução de políticas públicas.

Vamos arrolar algumas das principais posições contra a ADPF apresentadas no primeiro dia da audiência, nas sessões com exposições ligadas à saúde e de representantes da sociedade civil.

Foi central o questionamento da magnitude dos números e das categorias usadas.

Doutor Raphael Câmara (UFRJ) é coordenador da residência médica em Ginecologia. Sua expressão coloquial contrasta com a fala acadêmica das exposições anteriores. Ele critica os números apresentados pela imprensa acerca das mortes por aborto. Relata uma fonte: “Revista Reprodução e Climatério, revista cuja mantenedora é a ABRASCO, que é favorável à liberação do aborto” (:70). Afirma a impossibilidade de quantificar o aborto ilegal, atribuindo sua origem: “ONGs pró-aborto fazem manual para o jornalismo” (:71). “Não há epidemia de internação por aborto. De onde é que vêm esses números a favor da liberação do aborto? De estudos de 94 e daquele que eu apresentei, de 2015. Eles chutam, é chute que 12,5 é sub-registro, a proporção é de 25. E aí eles chutam que basta multiplicar isso por 5” (:71). Repete os números do Ministério da Saúde por ano: “olha a quantidade de aborto: 2014, 40; 2015, 56; 2016, 46” (:71). Também desqualifica as informações sobre os segmentos mais atingidos: “sempre que quer se convencer alguma coisa, você fala: preta, pobre (...). Virou um chavão”. Contrapõe que, segundo estudo da prefeitura do Rio, morreram mais brancas e pardas (:73).

O estilo de fala informal do expositor e a contestação das pesquisas apresentadas sobre a magnitude do aborto, durante a audiência em 2018, antecipam a postura anticiência que viria a ser típica do governo Bolsonaro e de seus apoiadores (Silva e Silveira 2020SILVA, Emanuel Freitas da; SILVEIRA, Emerson Sena da. (2020), “A pandemia de Covid-19 sob a benção de Bolsonaro e evangélicos: mobilização política anti-ciência, saber mágico e pós-verdade”. Inter-legere, vol. 3, n° 29: 1-28.).

Lenise Aparecida Martins Garcia (Movimento Nacional da Cidadania pela Vida) refere-se aos números usados na argumentação como fake News: “Chegaram a colocar duzentas mil mulheres - duzentas mil mulheres é três vezes mais do que o número total de mortes de mulheres em idade reprodutiva no Brasil. Então, um pouquinho de apuração jornalística mostraria que esse número é absurdo” (:154).

Essa mesma expositora ainda infere sobre os seguintes argumentos: 1. Legalização aumenta o número de abortos; 2. Direito à vida do feto, defesa da vida desde a concepção com questionamento a outros marcos de início da vida, crítica a hierarquias (feto indefeso). Sobre o primeiro argumento, afirma que a legalização aumenta o número de abortos, porque os números anteriores são supostos e não se pode trabalhar com eles. No segundo, expõe sobre aquele “que morre em 100% dos abortos; para ele não existe aborto seguro; então, a origem de todo ser humano e o marco referencial de início de cada vida humana” (:146). “Então, de onde vêm esses referenciais temporais, esses outros referenciais temporais que possam ser estabelecidos ao longo da gestação? (...) É totalmente arbitrário a definição de 12 semanas, e, não por acaso, cada país trabalha com uma data diferente” (:148).

Defesa da família é outro tópico abordado.

Segundo Hermes Rodrigues Nery, Presidente da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família: “fundações e organismos internacionais que querem empreender um eficaz controle populacional (...), debilitando assim as nossas instituições, a começar pela família, família constituída por homem e mulher, aberta à vida, duramente atacada e fragilizada por essa cultura da morte, impedindo assim o nosso verdadeiro desenvolvimento como nação” (:162).

Um novo ponto na retórica antiaborto é o lema “Salve as duas vidas” com ações de acolhida a mulheres para desistirem de abortar.

Rosemeire Santiago (Centro de Reestruturação da Vida) relata o apoio a mulheres: “quando dizemos para alguém ‘Você não está sozinha!’, diante de uma gravidez inesperada, diante de uma surpresa nem sempre tão boa, tão positiva, quando nós preparamos o abraço, quando nós preparamos a escuta, nós preparamos o espaço” (:246). Também diz defender as duas vidas: “trabalho que temos feito pela luta e pela defesa da mulher e do bebê desde a concepção” (:247). Para concluir sua exposição, ela afirma: “nenhuma mulher que desistiu do abortamento ou optou pela vida se arrepende” (:251).

Nesse sentido, faz-se a denúncia do aborto como violência contra a mulher, mostrando falta de autonomia. Vejamos:

Regina Beatriz Tavares da Silva (Associação de Direito de Famílias e Sucessões) afirma: “o aborto, além de configurar afronta à vida do nascituro, implica violência à mulher que aborta” (:259). Enfatiza inexistir autogoverno: “as mulheres que abortam, muitas vezes, não o fazem por deliberação própria, fazem-no por pressões externas, de seus parceiros, de seus ascendentes, que não aceitam uma gravidez prematura ou indesejada. E a mulher então se torna vulnerável, (...) a estas coações e constrangimentos externos. A legalização do aborto, certamente, agravaria estas circunstâncias” (:259).

Outro ponto destacado é o aborto como meio de controle populacional por parte de organismos internacionais:

Hermes Rodrigues Nery, Presidente da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, declara: “Desde 1952, com a fundação do Conselho Populacional, em Winesburg, Estados Unidos, juntamente com a Fundação Ford, nas décadas posteriores, vários demógrafos neomalthusianistas propuseram o aborto como meio mais eficaz de controle populacional.” (:158).

A tese controlista foi o cerne da exposição de Viviane Petinelli (Instituto de Políticas Governamentais), que ressaltou o impacto negativo para o desenvolvimento: “As experiências internacionais, em sua maioria, apontam para as duas implicações demográficas de curto e médio prazo que são geradas pela descriminalização do aborto voluntário. A primeira é o aumento do número de abortos na nação” (:210). “A segunda implicação, que resulta da primeira, é a redução da taxa de crescimento populacional do respectivo país” (:210). “Diante dessas implicações demográficas da descriminalização do abortamento voluntário, é de se esperar que a descriminalização do aborto também acarrete um aumento imediato de abortamentos provocados e, a curto e médio prazos, uma redução da taxa de fecundidade e um desequilíbrio populacional, o que, por sua vez, impactará negativamente a transição demográfica pela qual passamos e encurtará o período de bônus demográfico que nós experimentamos” (:212).

Um dos pontos mais repetidos foi o argumento legal contrário à ADPF: várias pessoas objetaram que a discussão sobre a legalidade do aborto fosse levada para o Judiciário, em vez de ser resolvida pelo Legislativo, no Congresso Nacional. Na crítica à judicialização, o STF é acusado de incompetente porque não representa a população, pois os juízes, ao contrário dos parlamentares, não são eleitos.

Reaparece aqui o Presidente da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, Hermes Rodrigues Nery: “Foi, então, que os promotores do aborto entenderam que, o aborto não passando pelo Legislativo, era preciso judicializar a questão, aproveitando-se de jurisprudências que foram sutilmente abertas no passado recente para viabilizar a legalização do aborto, via judiciária, num processo gradualista, por etapas, que começou com a ADI 3.510, depois com a ADPF 54, o HC 124.306, e agora com a ADPF 442” (:163). Acrescenta que estava o “STF na iminência de legalizar o aborto até a 12ª semana, por uma brecha aberta pelo Ministro aqui presente Luís Roberto Barroso, no HC 124.306” (:163).

As exposições contrárias à legalização do aborto realizadas na segunda sessão da audiência pública, constituída de representantes da sociedade civil, ilustram o processo analisado por Vaggione (2012VAGGIONE, Juan Marco. (2012), “‘La "cultura de la vida’: desplazamientos estratégicos del activismo católico conservador frente a los derechos sexuales y reproductivos”. Religião & Sociedade , vol. 32, n° 2: 57-80. 2017) de formação de organizações não governamentais “autodenominadas pro-vida o pro-família que utilizan una série de estratégias para impedir la efectivización de los derechos sexuales y reproductivos” (2012:68). Esse tipo de organização passou a liderar o ativismo religioso conservador articulando o movimento a partir da sociedade civil (Vaggione 2012). Conforme visto nas exposições, o discurso dessas ONGs mobiliza a categoria “cultura da morte”, um construto gerado em reação ao impacto dos movimentos feministas e pela diversidade sexual para promover a defesa do direito natural frente às legislações que autonomizam a sexualidade e reprodução (Vaggione 2017VAGGIONE, Juan Marco. (2017), “La Iglesia Católica frente a la política sexual: la configuración de una ciudadanía religiosa”. Cadernos Pagu , n° 50: e175002.). Associada a essa perspectiva está a representação de uma “multinacional da morte” que sofistica o controle da natalidade, particularmente no terceiro mundo (Vaggione 2017:15). Várias exposições mencionaram uma articulação controlista do primeiro mundo visando dominar o Brasil.

A sessão com representantes de entidades religiosas

Azevedo e Efrem Filho (2021AZEVEDO, Mariana; EFREM FILHO, Roberto. (2021), “A Maioria Perseguida: religião, ciência e democracia na audiência pública sobre aborto no STF”. Revista Anthropológicas, vol. 32, n° 2: 76-110.) analisam o discurso de representantes das entidades religiosas, bem como a menção à religião durante todas as sessões da audiência, revelando como expositoras e expositores ligados ao pensamento conservador e contra os direitos das mulheres dizem que sua fala não é religiosa, mas se baseia na Ciência ou no Direito, o que representa busca de legitimidade. Já as exposições progressistas assumem o discurso religioso e o usam como argumento contra a perspectiva antiescolha.

Assim se apresenta Ângela Gandra (União de Juristas Católicos de São Paulo): “defensora do Estado laico, do pluralismo, onde cabem todas as posições. E não venho defender a vida sob uma perspectiva religiosa, mas, como professora de Filosofia do Direito, como advogada, como antropóloga, como mulher” (:384).

Essa é a sessão da audiência pública em que houve mais manifestações contra a ADPF 442: 9 das 13 exposições. Vamos abordar primeiro os apoios.

Maria José Fontelas Rosado Nunes, representante das Católicas pelo Direito de Decidir, posicionou-se a favor da ADPF. Ela criticou: “discordo de quem mascara as suas razões religiosas com supostos argumentos jurídicos ou científicos” (:397). Ressaltou a recomendação do Papa Francisco de não julgar a mulher que aborta, orientando os padres a perdoar e acolher. Apresenta sua posição sobre a legalização do aborto em 4 pontos: 1. Responde a uma questão de justiça social e de justiça racial; 2. É democracia no sentido da cidadania das mulheres, e no tocante a ser um Estado laico; 3. Recurso ao aborto é uma questão ética e moral (:401); 4. No tocante ao início da vida e sua vida, ela esclarece: “em 1861, que o aborto foi declarado um pecado, sem nunca ter se tornado objeto de dogma” (:403). Ela critica o argumento dito pró-vida e a incoerência dessa posição, quando mulheres morrem devido à ilegalidade do aborto.

Já a representante do ISER, a teóloga Lusmarina Campos Garcia, aborda os textos bíblicos que mencionam o aborto. Ela mostra que há apenas duas situações: o primeiro é o caso de aborto em acidente, quando a mulher é chifrada por um touro do vizinho, demonstrando que a punição - o pagamento de uma indenização - era distinta da atribuída aos casos de homicídio. O segundo texto mostra um ordálio ao qual a mulher deve se submeter em caso de suspeita de infidelidade, ingerindo uma substância que levaria ao aborto, o que confirmaria o adultério e levaria a mulher à punição por apedrejamento. Isso mostra não haver condenação do aborto na Bíblia, sendo falsa a associação ao mandamento “não matarás”. Ela relata que, nas menções à gestação na Bíblia, não é marcado o momento da hominização.

As posições da Confederação Israelita do Brasil e da FAMBRAS, pelos muçulmanos, foram indefinidas. O representante do judaísmo, Rabino Doutor Michel Schlesinger, da Confederação Israelita do Brasil, destacou o mesmo exemplo sobre indenização em caso de aborto apontado por Lusmarina, por conta disso, a tradição judaica entendeu que durante a gravidez não existe vida completa e autônoma. Ao abordar os estágios da gestação, mostra que o aborto seria aceitável na fase inicial, até os 40 dias, quando não haveria estrutura óssea formada. Após esse momento, o feto é considerado parte da mãe, por isso o aborto é aceitável, isto é, tirar essa parte se oferece risco ao organismo como um todo. Se a mulher tiver dificuldade de dar à luz, no momento do parto, a tentativa é salvar a vida da mãe. O rabino também aborda a legislação atual e acrescenta ainda os casos de malformação fetal e inviabilidade como na anencefalia como aceitáveis para o judaísmo. Concluiu falando da necessidade de aconselhar e acolher o indivíduo que vai tomar a decisão.

A visão do representante do Islã era mais restritiva que a do judaísmo. Pela Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (FAMBRAS) falou o professor Doutor Mohsin Ben Moussa. Após afirmar que a vida começa na fecundação, ele descreve a jurisprudência islâmica sobre o aborto e explica quando seria aceitável. Até o sexto dia, é possível qualquer intervenção, “não se considera ainda vida, apenas uma mistura de água e sangue” (:433), até 42 dias, o aborto não é recomendado, mas aceitável em casos de estupro, ou de necessidade. Dos 42 dias aos quatro meses, só é aceito o aborto para salvar a vida da mãe. Após 120 dias, não é mais possível aceitar, “porque já houve o sopro da alma no feto” (:435), então é cometer um crime julgado pela lei.

Importa ressaltar que, mesmo mais restritiva, a posição apresentada admite o aborto em alguns casos e no período inicial, não considerando o direito à vida fetal como absoluto. Isso vai divergir da maioria das posições de representantes de religiões cristãs que externaram sua posição contrária ao aborto na audiência.

As demais posições eram de representantes ligados ao cristianismo: dois da CNBB, representante do Conselho Nacional do Laicato do Brasil da Arquidiocese de Aracaju - CONAL, Convenção Geral das Assembleias de Deus, Convenção Batista Brasileira, além de entidades de juristas com identidade religiosa: ANAJURE (de juristas evangélicos) e URJUCASP (de juristas católicos de São Paulo).

Nesses exemplos, ressalta-se a semelhança das posições e os argumentos em comum.

O representante da CNBB, Dom Ricardo Hoerpers, começa sua exposição defendendo-se da acusação de fundamentalismo e afirmando o caráter científico da posição defendida:

Onde está o fundamentalismo religioso em aderir aos dados da ciência que comprovam o início da vida desde a concepção? Onde está o fanatismo religioso em acreditar que todo atentado contra a vida humana é um crime? Onde está o fundamentalismo religioso em dizer que queremos políticas públicas que atendam à saúde das mães e dos filhos? (:303)

Também Douglas Batista, representante das Assembleias de Deus, se queixa de perseguição religiosa: “somos fundamentalistas, fanáticos, extremistas” (:334) “simplesmente porque insistimos em defender a cultura judaico-cristã”. (:335). Expõe o argumento da defesa da liberdade de expressão.

A defesa do direito à vida desde a concepção, a acusação de pena de morte ao feto e a proposta de salvar as duas vidas são os argumentos mais repetidos, além do questionamento dos números sobre a magnitude do aborto no Brasil, ponto levantado também pelo segundo representante da CNBB, Padre José Eduardo, pela representante do Conselho Nacional do Laicato e pelo representante das Assembleias de Deus.

Padre José Eduardo (CNBB) denuncia o ativismo judicial de duas formas: os que defendem o aborto como direito tiveram mais que o dobro do tempo e do número de expositores, o que não respeitaria o princípio do contraditório. O segundo ponto já foi levantado: o Supremo não pode legislar.

Argumento associado à suposta incompetência do Supremo é o caráter do Congresso Nacional, casa onde haveria guarida do “pluralismo religioso” e do “debate democrático representativo”, segundo o representante das Assembleias de Deus (:337). Assim fala Edna Zilli, representante da ANAJURE: “se de fato houve transformações sociais tão profundas a justificarem uma inconstitucionalidade demasiadamente superveniente, tais, sem sombra de dúvidas, emergem do tecido social o que é constitucionalmente representado pelo Poder Legislativo, enquanto executor do poder que emana do povo” (:409). Nesse sentido, apenas o Legislativo pode discutir.

Também se questiona a ausência de omissão do Legislativo - motivo para uma ADPF - com crítica à atuação do STF “a Constituição determina que, se houvesse uma omissão - no caso, não há, porque há projetos tramitando no Congresso -, o Supremo tem que devolver a questão, sem invadir competências,” (:385) diz Ângela Gandra (União dos Juristas Católicos de São Paulo). Ausência de omissão é também afirmada por Edna Vasconcelos Zilli da ANAJURE: “existem reiterados projetos de leis sobre o tema e audiências públicas” para tratar do assunto. (...) “Não existe omissão por parte do Poder Legislativo” (:411).

Silvia Maria da Cruz (conselho do laicato) sugere outras medidas no lugar do aborto. Vários vão nessa direção: Dom Ricardo Hoerpers (CNBB) defende “produzir projetos sociais alternativos, para ajudar as mães a gerar e cuidar dos seus filhos” e “casas de acolhida”, citando vários exemplos. Edna Zilli, da ANAJURE, sintetiza a posição: tratar o binômio “mãe-nascituro” como sujeitos dignos de direitos (:419). Luciano Alencar da Cunha, representante da Federação Espírita do Brasil, exemplifica a perspectiva de buscar alternativas ao direito ao aborto:

Gostaríamos de propor aqui a construção de consensos progressivos: Planejamento familiar com métodos não abortivos; políticas públicas de saúde da mulher, assistência à gestação, à maternidade, à primeira infância, o Estatuto da Primeira Infância já prevê isso; a adoção, a facilitação dos mecanismos da adoção para acolher aquelas crianças que são fruto de gravidez indesejada (:378).

É importante mostrar que as políticas públicas são evocadas como alternativas à opção do aborto legal, como faz Ângela Gandra (URJUCASP), com argumento que pretende emancipar a mulher: “eu quero que o Brasil gaste não em aborto, mas em educação; eu quero que a mulher brasileira não seja manipulada pela sua própria ignorância; eu quero que a mulher brasileira possa não ser destinada a ter relações e abortar, mas seja destinada, de verdade, a construir um Brasil, a cooperar com todo esse desenvolvimento econômico” (:393).

Fizeram a acusação de pena de morte ou assassinato: Dom Ricardo, Silvia Cruz (conselho do laicato), Douglas Roberto Batista (Assembleia de Deus).

Foram levantados argumentos biológicos para fundamentar o início da vida na concepção, como questionar o marco de formação do sistema nervoso e mostrar propriedades de auto-organização do embrião, pontos levantados por Sílvia Cruz (conselho do laicato). Lourenço Stélio Rega (Convenção Batista Brasileira) também organiza sua exposição com orientação bioética, perguntando quando a vida se origina. Ele desenvolve um raciocínio com base biológica, cujo pano de fundo são valores individualistas: “A vontade da gestante ou de quem quer que seja não pode desconsiderar que um ser outro tem a sua própria identificação genética, que permanecerá até o restante e o final da sua vida. Portanto, o embrião é singular em sua própria identidade” (:347). Essa ancoragem individualista tem sido persistente nessa controvérsia, conforme já descrevemos em outra parte (Luna 2021LUNA, Naara. (2021), “O direito ao aborto em caso de anencefalia: uma análise antropológica do julgamento da ADPF 54 pelo Supremo Tribunal Federal”. Mana, vol. 27, nº 3: e273207.).

A representante do laicato, Sílvia Cruz, abordou a “repercussão psicopatológica do aborto”, afirmando que poderia levar ao suicídio.

Douglas Roberto Batista, representante da Convenção Geral das Assembleias de Deus, começa sua exposição mostrando o tamanho da denominação, em seguida expande para a posição de evangélicos e da maioria cristã no Brasil, o que revela uma estratégia de aumentar importância de sua base (Azevedo e Efrem Filho, 2021AZEVEDO, Mariana; EFREM FILHO, Roberto. (2021), “A Maioria Perseguida: religião, ciência e democracia na audiência pública sobre aborto no STF”. Revista Anthropológicas, vol. 32, n° 2: 76-110.). Seus primeiros argumentos são da área do Direito: defende a Constituição, dignidade da pessoa e direito à vida, menciona o Código Civil (personalidade civil no nascimento) e o Pacto de Costa Rica no tocante à proteção da vida desde a concepção. Ele afirma que o aborto está em desacordo com a moral dos brasileiros.

Nessa sessão dos representantes religiosos, a demanda contramajoritária pelo direito ao aborto legal é desqualificada: “O aborto não é uma questão de valorização de grupos minoritários, não é unicamente saúde pública, não é moralismo; envolve princípios e direitos fundamentais caríssimos e que não podem ser conduzidos de maneira leviana por aqueles que buscam apenas adquirir direitos, de acordo com a sua conveniência” (:410), diz Edna Zilli (ANAJURE).

A última sessão: entidades do Direito

A última sessão, composta por entidades ligadas ao Direito teve ampla maioria de posicionamentos favoráveis à ADPF (nove), sendo apenas três contrários. Das exposições contrárias, duas eram de sujeitos individuais. Vamos começar pelas posições contrárias, tentando mostrar elementos novos.

O senador Magno Malta representou a Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família. Ele critica ferozmente a autonomia da mulher, ressaltando não ser o embrião parte do corpo dela: “O feto, no útero da mãe, ele não é parte da mulher. Ele não é unha que cresceu, não é fio de cabelo, e ele tem direitos constitucionais já no útero da mãe. Tem a vida” (:478). Opõe a cultura da vida e a cultura da morte e ironiza contrastando a proteção de espécies ameaçadas à proposta sobre o aborto: “A Lei nº 9.630, que protege o ovo da tartaruga, porque tem vida dentro dela; é uma lei! E a Lei nº 9.630, que tem que ser cumprida e que tem sanções penais para tal” (:482).13 13 Ele se refere à Lei nº 9.605/1993 (Lei dos Crimes Ambientais - LCA). Cf. Viana (2013). Afirma a obrigação de cumprir os tratados internacionais, a exemplo do Pacto de São José da Costa Rica “que diz, no seu art. 4º, que ‘a vida começa na concepção’” (:479).

É necessário ressaltar, para efeitos de análise, que a citação feita por Malta não corresponde à letra do tratado. O artigo 4º trata da pena de morte. A redação é diferente da citada: “1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.”14 14 DECRETO Nº 678, DE 6 DE NOVEMBRO DE 1992. CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em 21/11/2022.

Questionando a competência do STF, Malta desafia a ministra Rosa Weber: “Vossa Excelência tem a oportunidade única de devolver ao Parlamento aquilo que lhe é devido, a votação desta matéria, a discussão desta matéria, porque ela não cabe ao Supremo” (:483). Encerrada a exposição, ele diz precisar se ausentar, mas é chamado pela ministra que rebate citando a Constituição:

A própria Constituição que, diante de uma arguição de descumprimento de preceito fundamental, fixa a competência para seu julgamento (:484). (...) tenho o maior respeito pelo Poder - nem poderia ser diferente - Legislativo do País; nós não estamos invadindo a competência, o que estamos aqui a fazer está dentro das nossas atribuições (:485).

A advogada Janaína Paschoal é mais uma que alega não se tratar de discussão religiosa (:502). Questiona a representatividade do PSOL de falar em nome das mulheres: “Não, porque é ‘em nome das mulheres pobres e das mulheres negras’. Se nós as consultarmos, chegaremos à conclusão de que a maioria não é favorável ao provimento dessa ação” (:501). No tocante às políticas públicas, ela ressalta os procedimentos do Conselho Nacional de Justiça sobre adoção: “uma política do CNJ: Reforçar a entrega legal” (...) “Ela está fazendo um bem para aquela criança, que tem direito a nascer, e ela está fazendo o bem para uma família que, muitas vezes, não tem condições de conceber” (:500). Paschoal afirma inexistirem mulheres presas por aborto, ponto que será contestado por outras expositoras na mesma sessão.

José Paulo Leão Veloso Silva (Estado de Sergipe) refuta a designação do tema “interrupção voluntária da gravidez”. Sugere usar: “eliminação do feto ou o fim da gestação” (:564). Ele defende que, para o Direito Penal, “o feto é ser humano desde a concepção” (:570) e tira consequências: “se eu considerar que o Código Penal é inconstitucional, por arrastamento, devo considerar inconstitucional uma série de direitos: o direito de receber doação até a 12ª semana; qualquer direito patrimonial até a 12ª semana, porque não tem sentido nenhum. Se não é vida, se não é ser, então, a proteção é nenhuma” (:571). A partir daí, ele questiona um dos pontos mais citados: as implicações racistas da criminalização do aborto: “se fosse nessa onda de racismo, eu teria de acabar com Código Penal (...). A maior parte da população carcerária é negra. A maior parte da população carcerária é pobre” (:571).

Na lógica discursiva de inversão e deslegitimação dos argumentos opostos, no tocante à laicidade do Estado, ele qualifica de religiosas as crenças feministas baseadas na Pesquisa de Aborto no Brasil: “Eu entendi que, com todo o respeito, tanto quanto as religiões cristãs, judaicas e muçulmanas, o feminismo também é um ato de fé. E esse ato de fé é subsidiado em dogmas e esses dogmas motivam posturas. Por exemplo, a crença na pesquisa que foi feita em 2010 e em 2016 é um ato de fé. Afirma-se, como se fosse uma verdade absoluta, que, de cada 5 mulheres, 1 abortou” (:576). Em seguida defende que esse ato está relacionado ao financiamento e a interesses internacionais.

Já os argumentos favoráveis ao pleito da ADPF 54 giram em torno da desigualdade entre homens e mulheres na responsabilidade sobre a gravidez, da produção de desigualdade entre mulheres que fazem aborto seguro clandestino (educadas, de classe média e brancas em maioria), porque podem pagar, e as que fazem em piores condições e são vítimas das complicações e mortes.

Defender o STF como fórum contramajoritário é central:

Em contraste com pesquisas de opinião que representariam a maior parte da população brasileira, um dos argumentos acionados na sessão de especialistas na área do Direito é a proteção de minorias na tutela de direitos: “a magistratura é crucial na democracia para tutelar direitos fundamentais, mesmo quando a intervenção do Judiciário assuma feição contramajoritária” (:486) diz Ana Carla Matos (Instituto Brasileiro de Direito Civil).

Nesse sentido, Cristina Telles (Clínica UERJ de Direitos) afirma que a garantia de direitos pode ser ameaçada se depender apenas do Congresso Nacional, assim esses direitos “não são benesses dadas pelo legislador e que, portanto, possam variar conforme a maioria do Congresso em um momento mais conservador ou mais liberal. O que está em jogo são direitos fundamentais das mulheres” (:595). Ela prossegue:

Desde 1988, algumas tentativas foram feitas e costumam esbarrar em comissões da Câmara dos Deputados, em que a participação feminina é ainda menor do que a verificada na Casa como um todo. (:597) (...) [o aborto] É considerado um grave risco eleitoral, gera a perda de votos. Por isso, é mais do que legítimo ser a matéria tratada por uma instituição que não depende de votos, tem sua legitimidade extraída da Constituição por outros motivos (:598).

Também se rebate o argumento do direito à vida, usando o princípio da ponderação: “Nesse movimento de ponderação, a gestante deve receber valorização diferenciada e é merecedora de maior proteção, dado não condensar mera expectativa de vida, mas o sujeito em cujo corpo se desenvolve o nascituro” (:488) - diz Ana Carla Matos (Instituto Brasileiro de Direito Civil). Assim “direito à vida, este não pode ser considerado de modo absoluto ou hierarquicamente superior aos demais direitos fundamentais. É preciso contrastá-lo com a titularidade plena desse mesmo direito às mulheres, em especial, se considerado o risco trazido por abortos clandestinos” (:488).

Camila Silva Nicácio (Clínica de Direitos Humanos da UFMG) aborda um dos tratados mais citados pelo movimento antiaborto, o Pacto de Costa Rica, tendo como base a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mostra a possibilidade de exceções à regra de proteção à vida desde a concepção: “em 81, a Corte já havia deixado claro o seu posicionamento acerca da possibilidade de o aborto se tornar uma das exceções permitidas pelo uso da expressão ‘em geral’, contida no artigo 4.1” (:582). Pois “o direito à vida não é absoluto e de que os supostos direitos do embrião não podem ultrapassar a esfera dos direitos individuais da mulher” (:583).

Com respeito aos direitos fundamentais, a criminalização do aborto “intervém de forma excessivamente desproporcional, em face do direito de dispor do próprio corpo, do próprio desejo e planejamento familiar, ou seja, da autonomia e da autodeterminação feminina, em relação ao próprio corpo e o controle da reprodução inerente ao seu corpo” (:514), diz Eleonora Nacif (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).

A denúncia da criminalização do aborto como instrumento de opressão de gênero está relacionada à ausência de políticas públicas de proteção: “O Estado que conduz a obrigatoriedade da concepção protagoniza paradoxalmente baixa proteção com a infância e a juventude” (:492), afirma Ana Carla Matos (Instituto Brasileiro de Direito Civil).

Ainda no tocante a políticas públicas, Charlene da Silva Borges (Defensoria Pública da União) mostra a omissão do Estado: “o Estado ainda se omite, porque ele não implementa as políticas públicas relativas à justiça reprodutiva, ou seja, políticas relacionadas a planejamento familiar, garantindo os direitos reprodutivos e sexuais da mulher” (:529). Ela prossegue:

O documento Política Nacional de Atenção à Saúde Integral da Mulher, do Ministério da Saúde, afirma que o aborto provocado é causa também de discriminação e de violência institucional contra as mulheres no âmbito do serviço de saúde, o que pode traduzir-se como um retardo no atendimento, por vezes elas não recebem anestesia, existe uma falta de interesse das equipes médicas em ouvi-las, existe uma demora no atendimento, falta de interesse em orientar a paciente que abortou e, muitas vezes, ocorrem condenações morais, explícitas, ofensivas, no âmbito do serviço de saúde (:529).

Charlene Borges ainda associa a falta de execução de políticas públicas com o problema da laicidade: “promoção de políticas públicas, que tratem de maneira séria e sob o prisma do princípio da laicidade temas como a educação sexual, mas também pela aplicação efetiva de recursos administrativos ligados ao planejamento familiar, com informação, com acesso a métodos contraceptivos adequados a cada caso” (:536).

Ainda com respeito à omissão nas políticas públicas, Camila Nicacio mostra que a criminalização do aborto não protege o bem tutelado (a vida do feto) e viola o princípio da intervenção pública “manifesta a partir da constatação da escassez de políticas públicas que promovam a educação sexual, a saúde reprodutiva, o acesso ao planejamento familiar, bem como, medidas preventivas, como investimento na disseminação de informações e acesso a métodos contraceptivos” (:585). O dever constitucional do Estado em garantir a saúde demanda “promover políticas públicas que reduzam os índices de mortalidade e danos à saúde das mulheres, decorrentes de procedimentos inseguros de aborto” (:587).

Um dos pontos mais explorados no tocante à criminalização do aborto é a produção de desigualdade entre as mulheres. Lívia Gil Guimarães (Núcleo de Prática Jurídica em Direitos Humanos da USP) discute a questão da desigualdade com base no princípio da cidadania, interpretado sob a perspectiva de gênero:

Com a criminalização, a escolha por abortar ou não acaba sendo um privilégio privado de mulheres brancas e afortunadas, demarcando uma desigualdade entre mulheres, relegando às negras, pobres e indígenas uma cidadania de segunda classe. Por fim, o aborto seguro pode e deve ser garantido como um direito público de todas (:610).

Ponto alto foi a exposição de pesquisas com mulheres processadas por aborto:

Eleonora Nacif (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) rebate Janaína Paschoal e afirma ser testemunha de julgamentos recentes no tribunal do júri de acusação pelo crime de aborto.

As pesquisas qualitativas feitas pela defensoria pública de São Paulo e do Rio de Janeiro com mulheres denunciadas por crime de aborto mostram o caráter seletivo da criminalização e como atinge as mulheres mais vulneráveis socialmente, as negras e pobres: Ana Rita Souza Prata (Defensoria Pública do Estado de São Paulo - Núcleo Especializado na Promoção dos Direitos das Mulheres/NUDEM) faz o relato de “30 ações penais e socioeducativas nas quais mulheres eram acusadas de provocar aborto em si mesmas” (:541). São mulheres jovens, pobres, de baixa escolaridade, moradoras de periferia e mães. Homens foram denunciados apenas em 5 casos.

Lívia Miranda Müller Drumond Casseres - (Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro - Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos) contrasta o perfil de dois grupos de mulheres criminalizadas por aborto: “No primeiro grupo, estão os abortos realizados sem qualquer assistência, praticados pelas mulheres sozinhas ou com ajuda de um terceiro, sua mãe, uma amiga, um companheiro”, usando “métodos rudimentares” (:550). Essas mulheres foram denunciadas ao procurar serviços de saúde em função das complicações: “60%, mulheres negras e contavam com idade entre 18 e 36 anos na data dos fatos” (:550), maioria de residentes em regiões periféricas do Grande Rio. O aborto foi realizado com mais de 12 semanas. O segundo grupo reuniu mulheres processadas em decorrência de investigação policial de clínica clandestina onde foram atendidas (:551). “53% das acusadas eram brancas; havia a prevalência de mulheres com maior escolaridade; 75% delas já tinham cursado o segundo grau, contra 22% no primeiro grupo”. Abortaram “com menos de 12 semanas, um cenário de menor risco de mortes e menores complicações” (:552). A defensora relata que, a despeito das prisões em flagrante, nenhuma mulher foi mantida presa e não houve condenação à pena privativa de liberdade.

Considerações Finais

Lia Zanotta Machado observa que o direito das mulheres de interromper a gravidez até o terceiro mês gestacional era, há alguns anos, uma causa quase que exclusivamente feminista, “mas agora tem uma resposta de associações médicas, de pesquisadores, de psicólogos”. Segundo a antropóloga, “existem outras escutas que partem da comunidade científica, da comunidade médica e também da comunidade jurídica” (Agência Brasil, 3/08/2018AGÊNCIA BRASIL. (2022), “Debate sobre aborto teve abordagem mais científica no Supremo”. O Vale. 3 ago. 2018. Disponível em: Disponível em: https://sampi.net.br/ovale/noticias/675057/o-vale/2018/08/debate-sobre-aborto-teve-abordagem-mais-cientifica-no-supremo . Acesso em: 3 dez. 2022.
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). Inclusive, pôde-se observar nessa audiência que alguns expositores com argumentos contrários ao aborto, engendram proposições laicas com argumentos legais e científicos, em busca de legitimidade (Montero 2017), para além do enfoque religioso (Miguel, Biroli e Mariano 2017MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia; MARIANO, Rayani. (2017), “O direito ao aborto no debate legislativo brasileiro: a ofensiva conservadora na Câmara dos Deputados”. Opinião Pública, vol. 23, n°1: 230-260.).

Contudo, nos estudos sobre o debate público acerca do aborto, é consenso que se está em um período de reação conservadora contra avanços dos direitos das mulheres obtidos em decisões judiciais ou ampliados por conta de políticas públicas de caráter progressista.

Conforme visto anteriormente, a maior parte do impulso antiaborto se origina do ativismo religioso conservador, mesmo se supostamente laicizado em ONGs pró-vida e pró-família. Em resposta ao debate sobre o conflito de direitos individuais, se os do embrião/feto ou da mulher (Rostagnol 2008ROSTAGNOL, Susana. (2008). “El conflicto mujer-embrión en debate parlamentario sobre el aborto”. Estudos Feministas, vol. 16, n° 2: 667-674. ), a resposta vem na fórmula “salvar as duas vidas”, considerar feto e mulher como um “binômio”. Assim, o movimento antiaborto tem assimilado vocabulário feminista a fim de impedir que as mulheres acedam ao direito ao aborto legal: além do “salvar duas vidas” e propor políticas de amparo ao período gestacional, denuncia que a legalização prejudicaria a autonomia feminina, pois mulheres seriam forçadas ao aborto pelo seu parceiro. Já o discurso anti-imperialismo vem na denúncia de organizações controlistas que comandariam os movimentos a favor da legalização.

Pode-se falar do contraponto ao ativismo religioso conservador no ativismo religioso progressista representado por Católicas pelo Direito de Decidir, presentes na audiência, mas também na Frente Evangélica pela Legalização do Aborto.15 15 Cf. https://www.instagram.com/evangelicaspelalegalizacao/.

No tocante à controvérsia, a audiência da ADPF 442 revela para a sociedade mais ampla vozes que se manifestam na academia e no serviço público, mas que são pouco perceptíveis no debate, colocando as graves consequências do aborto clandestino e inseguro, na perspectiva da saúde pública. Como parte do embate, os números que mostram a magnitude do aborto no Brasil, tão questionados nas exposições antiaborto, são corroborados nas pesquisas qualitativas na área do Direito: estas mostram como mulheres periféricas, isto é, negras, das classes populares, mais vulneráveis socialmente, com pior inserção do mercado de trabalho, até mesmo adolescentes, são as maiores vítimas do aborto clandestino e inseguro, principalmente por conta das complicações. As mulheres brancas, com mais escolaridade e renda, fazem o aborto clandestino em ambientes com suporte médico (Porto et al. 2018PORTO, Rozeli; SOUSA, Cássia Helena; BALZA, Mayra. (2018), “Aborto e Saúde reprodutiva no Nordeste brasileiro: Mulheres, Poder e Resistência”. In: E. Neves; M. Longhi; M. Franch (org.). Antropologia da Saúde: Ensaios em Políticas da Vida e Cidadania. Brasília, João Pessoa: ABA Publicações; Mídia Gráfica: 129-152.). Podem ser alcançadas pelo braço da lei que investiga clínicas clandestinas, tal como ocorreu durante a Operação Herodes, realizada pela polícia do Rio de Janeiro, em 2014, visando a combater o aborto clandestino (Luna e Owsiany 2019LUNA, Naara; OWSIANY, Laryssa. (2019), “Aborto e luta por direitos humanos na ALERJ: religiosos e feministas em disputa”. Religião & Sociedade, vol. 39, nº 2: 49-77.), mas não são elas a chegar nos serviços de saúde com problemas graves.

No tocante às políticas públicas no debate sobre aborto, ambos os lados enfocam esse tópico. Do lado antiaborto, políticas públicas de amparo a mulher devem ser a resposta para prevenir o aborto, e sufocar o debate sobre a legalização. Do lado pró-escolha, as exposições de profissionais da área de saúde revelaram o quanto as políticas públicas de atendimento ficam prejudicadas pelo contexto de criminalização, por impedir a assistência devida às mulheres que chegam aos serviços e precisam de auxílio médico. Nesse sentido, as exposições apontam que existe a necessidade de um remanejamento de atitudes e saberes de profissionais de saúde - dentre outros profissionais envolvidos nesse processo -, que poderiam contemplar uma política de redução de danos (Porto 2017PORTO, Rozeli. (2017), “Entremeando Relações de Poder: Itinerários Abortivos e os/as diferentes Mediadores/as em Saúde”. In: Valle. C. G. O; Neves, R. C. M ; Teixeira, C. C. (Org.), Antropologia e Mediadores no Campo das Políticas de Saúde. Valle, ABA Publicações: 277-308. ).

As argumentações e evidências apresentadas na ação por parte da maioria dos expositores e expositoras levou em consideração a autonomia decisória das mulheres como agentes morais em respeito à sua cidadania plena (Miguel 2017MIGUEL, Luis Felipe. (2017), “Sem direito ao aborto, não há cidadania para as mulheres”. Portal Justificando, 6/07/2017. Disponível em: Disponível em: https://portal-justificando.jusbrasil.com.br/noticias/475694699/sem-direito-ao-aborto-nao-ha-cidadania-para-as-mulheres/amp . Acesso em: 19 dez. 2022.
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), assim como a sua dignidade, a saúde e ao planejamento familiar e a sua liberdade de escolha. Mas algumas falas dos expositores antiaborto, embora minoritárias, já antecipavam o negacionismo, a postura anticiência e a lógica neoliberal que viria a ser palco para as práticas necropolíticas do governo de Jair Bolsonaro.

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  • SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 - Decisão com a Relação dos Inscritos Habilitados, Data, Ordem dos Trabalhos e Metodologia.
  • SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Interrupção voluntária da gravidez. ADPF 442. Audiência pública.
  • 1
    O processo de democratização estabelece no Brasil o que vem sendo chamado de “sistema híbrido de controle judicial” (Avritzer 2016AVRITZER, Leonardo. (2016), Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.:82), que corresponde ao fato de que o controle repressivo de constitucionalidade pode acontecer de forma difusa ou concentrada, ou seja, pode ser acionada por todos os integrantes do Judiciário. Na prática, e com as reformas de 2014 por meio da Emenda Constitucional nº 45, o STF, assume cada vez mais centralidade, podendo, como “guardião da Constituição”, operar de dois modos, que mesclam modelos Constitucionais Europeus e Estadunidense. O STF funciona tanto como uma Corte Constitucional, atuando no controle de constitucionalidade das leis e que ao assumir esse papel se distingue como um poder “independente”; como também Opera na Revisão Judicial, o que incluiria o STF como um órgão dentre ou outros do poder judiciário com competências revisionais (Elias 2018ELIAS, Ligia G. G. R. (2018), “Democracia e aborto: uma reivindicação feminista em contexto de guinada conservadora no Brasil - Uma análise das audiências Públicas da ADPF 442 no STF”. 42º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, Caxambu . Anais. [GT 08 Democracia e Desigualdades] . Disponível em: Disponível em: https://portal.anpocs.org/index.php/encontros/papers/42-encontro-anual-da-anpocs/gt-31/gt08-27 . Acesso em: 3 dez. 2022.
    https://portal.anpocs.org/index.php/enco...
    ).
  • 2
    Rosaldo (1993) critica o conceito weberiano de apaixonada distância, introduzindo o conceito de sujeito posicionado. Rosaldo sugere que o pesquisador teria de explorar os sujeitos de sua pesquisa a partir de uma posição, como ele chama, do sujeito que se reposiciona.
  • 3
    Essas informações foram obtidas do documento Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 - Decisão com a Relação dos Inscritos Habilitados, Data, Ordem dos Trabalhos e Metodologia.
  • 4
    O sumário da transcrição da audiência pública registra 57 exposições, mas são 52 entidades representadas posto que algumas contaram com mais de uma pessoa. Segundo Elias (2018), foram 69 a expor.
  • 5
    A ministra Rosa Weber atualmente preside o STF, mas manteve o caso sob sua relatoria, o que sugere que pretende agendar o julgamento para antes da data de sua aposentadoria compulsória em outubro de 2023 (Falcão & Viva 2022FALCÃO, Márcio; VIVAS, Fernanda. (2022), “Na Presidência do STF, Rosa Weber mantém relatoria de orçamento secreto, aborto e perdão da pena de Silveira”. G1, 14/09/2022. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/09/14/na-presidencia-rosa-weber-mantem-relatoria-de-orcamento-secreto-aborto-e-perdao-da-pena-de-silveira.ghtml . Acesso em: 14 dez. 2022.
    https://g1.globo.com/politica/noticia/20...
    ).
  • 6
    O Instituto Baresi é um fórum nacional para associações de pessoas com doenças raras, deficiências e outros grupos de minoria.
  • 7
    Foi possível assistir a essas exposições de ONGs internacionais que não foram transcritas por serem em língua estrangeira. As posições foram favoráveis à tese da ADPF 442.
  • 8
    Por demanda da ministra para informar suas credenciais, apresentou-se como professora de Direito da USP, esclarecendo não representar a instituição.
  • 9
    Apresentado como do Estado de Sergipe, no currículo consta “Procuradoria-Geral do Estado de Sergipe, Procuradoria-especial do contencioso fiscal”.
  • 10
    A partir daqui é informada a paginação conforme a transcrição da audiência.
  • 11
    Junto a Lia Zanotta Machado, a antropóloga Rozeli Porto (UFRN) foi uma das representantes da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) nessa audiência. Lia Zanotta, além de contribuir com a construção do argumento, foi a responsável pela leitura e exposição no STF.
  • 12
    As antropólogas apresentaram como contraponto a história de Rebeca Mendes, que solicitou acesso ao aborto no Brasil, em 2017, mas apenas pôde realizá-lo na Colômbia, país em que as instituições do Estado, em especial as de saúde pública, oferecem uma lição a ser aprendida para redução do estigma às necessidades de saúde das mulheres.
  • 13
    Ele se refere à Lei nº 9.605/1993 (Lei dos Crimes Ambientais - LCA). Cf. Viana (2013VIANA, Thiago Gomes. (2013), Ovos de tartaruga, fetos humanos e falácias - uma réplica a Ives Gandra. Jusbrasil. 30/09/2013. Disponível em: Disponível em: https://thiagogv.jusbrasil.com.br/artigos/121942816/ovos-de-tartaruga-fetos-humanos-e-falacias-uma-replica-a-ives-gandra . Acesso em: 12 dez. 2022.
    https://thiagogv.jusbrasil.com.br/artigo...
    ).
  • 14
    DECRETO Nº 678, DE 6 DE NOVEMBRO DE 1992DECRETO Nº 678, DE 6 DE NOVEMBRO DE 1992. CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 21 nov. 2022.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
    . CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em 21/11/2022.
  • 15
    Cf. https://www.instagram.com/evangelicaspelalegalizacao/.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2022
  • Aceito
    05 Abr 2023
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