Navigation – Plan du site

AccueilNuméros501O governo Bolsonaro contra os Pov...

O governo Bolsonaro contra os Povos Indígenas: as garantias constitucionais postas à prova

Gouvernement Bolsonaro vs. peuples amérindiens : l’épreuve de la Constitution
Bolsonaro government against indigenous peoples: constitutional guarantees put to the test
François-Michel Le Tourneau

Résumés

Les élections de 2018 ont porté au pouvoir au Brésil une force politique ultra-conservatrice qui représente un nouveau défi pour les droits fonciers des Amérindiens dans ce pays. En effet, malgré les garanties apportées par la Constitution de 1988, le gouvernement Bolsonaro a clairement annoncé son intention de paralyser toute nouvelle démarcation et de revenir, si possible, sur celles qui ont déjà été prononcées. Dans ce sombre tableau pour les Amérindiens et leurs supporters, cet article cherche à faire le point sur ce qui est en jeu. Pour ce faire, nous récapitulons dans un premier temps la répartition des territoires amérindiens au Brésil et nous rappelons les fondements juridiques qui les soutiennent. Nous analysons ensuite l’arrière-plan idéologique du gouvernement actuel sur la question amérindienne et les mesures prises depuis janvier 2019. Nous proposons enfin trois scénarios d’évolution pour la situation actuelle, du plus au moins optimiste, en tentant de déterminer les lignes de fractures qui se feront jour à court ou moyen terme.

Haut de page

Texte intégral

1Com a chegada ao poder de uma força política ultraconservadora, os maiores adversários dos direitos (especialmente fundiários) dos Povos Indígenas estão hoje em posição de força. Tentam, portanto, avançar na sua agenda, especialmente no que diz respeito ao enfraquecimento e se for possível à redução das terras indígenas, que totalizam hoje 13,76 % da superfície do Brasil. Frente a um ataque sem precedente desde a ditadura militar, os Povos Indígenas do Brasil estão hoje numa situação crítica. Entre os Evangélicos, que querem salvar as suas almas ao preço de sua cultura, o lobby da agropecuária, que quer expandir a sua atividade sobre as suas terras, e uma série de personagens que querem acreditar que os Índios participam de um complô internacional para roubar a Amazônia do Brasil, eles são o alvo de uma vindita ideológica profunda, mal disfarçada atrás de um paternalismo que acreditava-se ter desaparecido há muito. A única segurança que sobra aos povos indígenas, até agora, provem da inscrição dos seus direitos na Constituição federal de 1988, fazendo com que o governo não possa anulá-los por simples decreto. No entanto, é uma verdadeira guerra que o governo Bolsonaro resolveu travar contra os povos indígenas, e duras batalhas estão a vir.

2O objeto deste artigo é, em primeiro lugar, de resumir o que está em jogo, lembrando da extensão e repartição das terras indígenas no Brasil e recapitulando os fundamentos jurídicos que as sustentam. Em segundo lugar analisaremos o contexto ideológico do governo atual e as medidas tomadas desde a sua posse em janeiro de 2019. Finalmente, proporemos cenários para o futuro, do mais ao menos otimista. Pois, apesar de que impasses e deficiências não faltem na situação atual (Le Tourneau, 2016; 2017), parece claro que o desmantelamento das terras indígenas, especialmente na Amazônia, não será uma boa notícia para o Brasil, que perderá muito mais a longo prazo do ponto de vista ambiental do que ele ganhará a curto prazo do ponto de vista econômico.

As terras indígenas no Brasil contemporâneo

3A figura de terras reservadas para as populações indígenas, ou “terras indígenas” (TI) existe no Brasil desde a Constituição de 1934. No entanto, a Constituição federal adotada em 1988 mudou completamente o quadro ao alargar a base dos territórios elegíveis. Depois da sua promulgação, as demarcações e homologações se multiplicaram e hoje as terras indígenas representam 13,76 % do território do Brasil. Elas desempenham um papel fundamental para a manutenção de ecossistemas como a Amazônia, o que explica que tenham sido progressivamente consideradas como áreas protegidas.

As garantias constitucionais

4A noção de “terra indígena”, isto é um território reservado pelo Estado federal para o uso exclusivo das populações indígenas aparece na Constituição brasileira de 1934, e desde então ela sempre foi confirmada pelos textos fundamentais do Brasil, inclusive durante o regime militar. Este até acrescentou um outro texto importante, o Estatuto do índio, adotado em 1973. Apesar de redigido numa orientação de assimilação dos povos indígenas à sociedade brasileira, tal estatuto oferecia proteções (consideradas como temporária) que permitiram ao movimento pró-índio, surgido no meio dos anos 1970, de conseguir algumas vitórias no campo administrativo e jurídico, muitas vezes simbolizadas pelo reconhecimento do tal ou tal território indígena (Ramos, 1998 ; Belleau, 2014 ; Le Tourneau, 2015).

  • 1 Título VIII, artigos 231 et 232.

5No entanto, é a Constituição de 19881 que realmente criou os fundamentos para uma transformação da situação dos índios brasileiros. Definindo o Brasil como um país multicultural, ela rompe com a ótica da assimilação que prevalecia até então e garante a preservação física mas também cultural das minorias étnicas. Esses princípios sustentam uma série de direitos, tal como o ensino na própria língua, e em cima de tudo eles garantem direitos fundiários. Como fatores econômicos, sociais e culturais foram incluídos nestes, as terras alocadas a partir deste momento foram muito mais amplas do que se via nos períodos anteriores. Imensas terras indígenas foram homologadas, não sem muita controversa, tais como a TI Yanomami (96 500 km²), o complexo Kayapo-Xingu ou o do Alto Rio Negro (+150 000 km² cada). Apesar desses casos simbólicos, deve-se ressaltar que o tamanho médio das TI no Brasil é bem inferior: 2 720 km² na região amazônica e apenas 101 km² no resto do Brasil.

6Os direitos fundiários dos povos indígenas são considerados como originais, significando que eles antecipam qualquer outro direito (é o princípio do “indigenato”). Por isso são reconhecidos e não conferidos pelo governo federal ou pelo Parlamento. Por isso também estes direitos têm uma força maior do que outros que podem ter sido adquiridos depois. Este preceito jurídico faz com que, em caso de reconhecimento de uma terra indígena, as propriedades que, porventura, ali existiam, inclusive quando adquiridas de boa-fé, não podem receber indenização pelo preço da terra pois em tese não deveriam existir. É uma diferença fundamental com os mecanismos de desapropriação em benefício da reforma agrária e uma fonte de conflitos com os grandes proprietários que a vêm como uma injustiça.

7Apesar de terem direitos fundiários, os povos indígenas não são proprietários das suas terras. A Constituição federal os confere um usufruto exclusivo e coletivo dos recursos do solo, mas a União federal é proprietária das terras, beneficiando também dos direitos exclusivos de exploração do subsolo.

8Um segundo amparo para as terras indígenas é a adesão do Brasil à convenção 169 da Organização internacional do trabalho, a qual garante em princípio uma série de direitos, em especial a consulta informada em caso de projeto que venha a ter um impacto sobre elas.

  • 2 Veremos adiante a questão da competência sobre o reconhecimento das TI.

9As terras indígenas homologadas e os povos indígenas do Brasil encontram-se sob a tutela da Fundação Nacional do Índio (FUNAI)2, um organismo que nunca beneficiou de um nível de financiamento adequado a imensidão que está supostamente manejando. O quadro funcional até 2018 não passava de 3 000 funcionários (concentrados em Brasília por mais da metade deles) para administrar quase 14% da superfície do Brasil e uma população de aproximadamente 900 000 Índios.

Terras indígenas no Brasil, área e localização

10O processo de reconhecimento de uma terra indígena tem cinco etapas. A primeira é o estudo do mérito das reivindicações oriundas de populações locais, em geral na forma de um relatório antropológico que analisa os componentes culturais do grupo em questão e busca estabelecer relações com grupos mencionados em fontes históricas. Parte deste trabalho também caracteriza qual seria o território associado à população em questão. Se o relatório for aprovado, tal área é “declarada” e a documentação publicada no diário oficial. Abre-se neste momento uma fase durante a qual ela pode ser contestada por proprietários que tiverem documentos demostrando que ela não é um território tradicional.

11Uma vez que as contradições forem resolvidas, o território é “declarado” com a sua forma final e deve ser normalmente “demarcado” fisicamente pela colocação de marcos de cimento ao longo do seu perímetro. Uma vez demarcadas e georreferenciadas, as terras indígenas são “homologadas” por um decreto assinado pelo Presidente da República. Em seguida são “regularizadas”, isto é inscritas definitivamente no patrimônio da União federal. Há de ressaltar que em caso de emergência (por exemplo para preservar grupos isolados), a FUNAI pode propor a interdição de uma área qualquer até que o processo formal de reconhecimento seja completo.

12Como a tabela 1 demostra, o total dos territórios alocados aos Índios no Brasil está hoje um pouco superior a 1,17 milhões de km², ou seja 13,76 % da superfície total do Brasil. As terras indígenas são extremamente concentradas na Amazônia (98,5 %), onde só reside aproximadamente a metade da população indígena do Brasil (Le Tourneau, 2015). Há, portanto, uma assimetria fundamental entre os povos indígenas da Amazônia, que dispõem em média de áreas bem maiores e que podem, por esta razão, manter sistemas econômicos tradicionais, e os povos do resto do Brasil cujas terras constituem somente pequenos redutos.

Tabela 1: as terras indígenas do Brasil e da Amazônia brasileira

  • 3 Os territórios em estudo não têm uma área fixa pois são precisamente em análise pela FUNAI para det (...)

Brasil

Amazônia

Número

Superfície (ha)

Número

Superfície (ha)
(% Amazônia / Brasil)

Em estudo3

118

-

43

-

Delimitadas

43

2 243 541

11

1 662 477 (74%)

Declaradas

74

7 602 655

32

6 982 470 (92%)

Homologadas

13

1 497 048

332

105 615 658 (98,5%)

Regularizadas

473

105 714 670

Interditadas

6

1 080 740

6

1 080 740 (100 %)

TOTAL

603

117 057 916

424

115 341 345

Em função da etapa no processo de reconhecimento

Fonte FUNAI et Instituto Socioambiental

  • 4 Fonte CIMI.

13Tal contraste pode ser explicado por diversas razões, mas uma das principais encontra-se na diferença de contexto fundiário. Na Amazônia, grande parte das terras são devolutas, se bem que delimitar amplos territórios indígenas não lesava muita gente. Ao contrário, em outras regiões, as terras reivindicadas já são ocupadas, muitas vezes por fazendas de alta produtividade, e os seus proprietários empenham-se em preservá-las, usando da sua influência política e de violência se for necessário. Um bom exemplo dessa oposição são os estados de Amazonas e Mato Grosso do Sul, os quais detêm respectivamente o primeiro e segundo lugar no Brasil em termo de população indígena. No primeiro, os Índios são aproximadamente 170 000 pessoas e as terras reconhecidas ocupam quase um terço da área do estado; no segundo caso, a população indígena é de 73 000 pessoas, mas as terras ocupam menos de 1 % da área do estado. Não causa nenhuma surpresa portanto o fato de que os conflitos são bem mais violentos no segundo, que registrou 17 assassinatos de Índios ligados a conflitos fundiários em 20174.

14Um dos pontos criticados pela frente de oposição às terras indígenas é que o número de grupos que reivindicam uma terra cresce regularmente, dando a impressão que uma legislação muito generosa criou um efeito de oportunidade. De fato, em 1988 a Constituição previa que o governo deveria demarcar todas as terras num prazo de 10 anos, o qual foi regularmente postergado. Trinta anos depois, ainda não se chegou a completar a tarefa. Tal atraso se deve a três fatores principais. O primeiro é que o governo federal, qualquer que seja o partido ou a coalizão no poder, nunca deu prioridade para essa missão. A FUNAI sempre teve um orçamento muito reduzido (apesar de que ela conheceu períodos melhores e outros piores) e o seu orçamento está sempre contingenciado. Na Amazônia, o esforço de demarcação recebeu ajudas internacionais, em especial por meio do componente PPTAL do programa PPG-7, o que explica também em parte o desequilíbrio apontado antes. A fila de espera para os territórios a serem reconhecidos está bem congestionada (com 118 “em estudo”), e ela anda bem devagar.

15O segundo ponto é que em 1996 o processo de reconhecimento foi alterado para incluir a fase chamada de “contraditório”. O tempo administrativo para tratar cada caso aumentou em decorrência pois quase todos são contestados. Não é raro uma terra indígena necessitar vinte ou trinta anos para completar o processo inteiro, o que acirra os conflitos no campo, cada lado sendo frustrado pela longa indefinição.

16Finalmente, a lista das terras a serem estudadas aumenta regularmente com as etnias “emergentes”. Estas esconderam-se, às vezes por séculos, debaixo de outras identidades e passam a reivindicar-se como Índios em função do contexto novo criado pela Constituição de 1988. Como há de imaginar, quem opõe-se aos direitos fundiários dos povos indígenas considerará que só há nesses casos estratégias espúrias por parte de “falsos Índios” que almejam conseguir direitos sobre terras que não os pertencem. No entanto, o contexto de racismo e de violência contra povos indígenas no Brasil leva a questionar se reivindicar-se Índio realmente traz mais benefícios tangíveis do que estigmas. Por outro lado parte do problema vem do fato que a diferença entre esses povos “emergentes” e o resto da sociedade brasileira é menor do que a que existia com outros povos emblemáticos (Kayapo, Yanomami, etc.), o que dificulta a sua identificação como “Índios” já que por muitas pessoas esta é mais vista pela ótica da cultura material do que pela ótica da cosmogonia ou da ancestralidade.

Figura 1: reconhecimento de terras indígenas em função dos governos

Figura 1: reconhecimento de terras indígenas em função dos governos
  • 5 A área cumulada é derivada de uma fonte diferente da área apontada para cada governo. Alguns territ (...)

Fonte Instituto Socioambiental et FUNAI)5

17O empenho de cada governo no reconhecimento das terras indígenas desde o início dos anos 1980 (figura 1) mostra que houve diversas fases. A década de 1992 a 2002 foi particularmente favorável. Anota-se ao contrário que desde 2010, seja nos governos da Dilma Roussef ou no do Michel Temer, o processo foi praticamente paralisado em decorrência da pressão do lobby rural sobre o poder executivo. Assim como ressaltaremos em seguida, o mais provável é que segue dessa forma no governo Bolsonaro.

Terras indígenas, proteção do meio ambiente e atividades legítimas

18As terras indígenas do Brasil estão concentradas na Amazônia e elas constituem uma peça importante da proteção dessa região ameaçada pelo avanço da fronteira agrária. Estima-se que um estoque de 13 bilhões de toneladas de CO2 está armazenado nelas (Walker et al., 2014) e o seu desmatamento tem sido mínimo até agora: menos de 2 % em 2014, enquanto a Amazônia em geral chegava a 19 % (Cristosomo et al., 2015). Algumas terras indígenas são hoje verdadeiras “ilhas verdes” no meio de um oceano de desmatamento, assim como demostra a figura 2. A capacidade das terras indígenas de inibir as atividades predatórias ou os incêndios tem sido demonstrada por numerosos estudos (Nolte et al., 2013; Nepstad et al., 2006). Ainda mais, um estudo do WRI (Gray et al., 2015) demostra que o armazenamento de uma tonelada de CO2 em terras indígenas representa um investimento de somente 19 $ (tomando e conta o custo das políticas de controle e os benefícios sociais) enquanto a compensação da emissão da mesma representa 1 500 $ nas condições atuais do mercado. O serviço ambiental prestado é, portanto, valioso.

Figura 2: a TI 7 de Setembro, uma ilha verde em Rondônia

Figura 2: a TI 7 de Setembro, uma ilha verde em Rondônia

Fonte site do Instituto Socioambiental: http://ti.socioambiental.org

19O aspecto de proteção do meio ambiente foi reforçado por uma série de dispositivos legais nos quinze últimos anos. De fato, a Constituição de 1988 reconhece as terras para efetivar o direito dos povos indígenas à sua sobrevivência física e cultural. Ela não põe limites às atividades que podem ser implantadas pelos Índios (mas só por eles, pois o usufruto é “exclusivo”), mesmo que a noção de sobrevivência cultural implica uma certa continuidade das atividades contemporâneas com o modo de vida tradicional.

  • 6 Decreto nº 5758/2006, que institui o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP).
  • 7 Política nacional de gestão ambiental das terras indígenas – PNGATI, 06/05/2012, décret nº 7.747.

20Mesmo assim, o contexto em que as grandes terras indígenas foram reconhecidas tem forte respaldos do socioambientalismo, uma corrente de pensamento que liga a preservação ambiental e a das culturas tradicionais. Um pacto tácito foi firmado no qual as terras alocadas a populações indígenas deviam servir para a preservação de floresta. Este pacto foi formalizado em 2006 quando as terras indígenas foram oficialmente incluídas na política de gestão das áreas protegidas6, e mais ainda em 2012 quando uma política de gestão ambiental das terras indígenas, de cunho preservacionista, foi adotada pelo governo brasileiro7. Na medida em que as TIs da Amazônia brasileira representam mais de 22% dessa região, elas têm um papel determinante no atual dispositivo de conservação dessa região (Le Tourneau, 2017).

  • 8 Declaração do presidente Bolsonaro, 30/11/2018.

21Tal orientação contem no entanto uma certa ambiguidade pois ela pressupõe que alguns traços culturais (tais como o papel da caça ou o papel das coletas) devem ser preservados, implicando uma certa forma de ingerência nas evoluções culturais de cada povo. Vários casos simbólicos já criaram o debate, em especial o dos Índios Parecis e Nambikwara, que firmaram acordos com os fazendeiros de Mato Grosso para plantar soja (muitas vezes transgênica) ou o dos Karajás da Ilha do Bananal que arrendam parte de suas terras para a criação de gado bovino. Atualmente tais atividades são perseguidas pelo Ministério Público. Mas como veremos adiante, esses debates também oferecem argumentos para os que denunciam, de forma evidentemente caluniosa e deformada, as terras indígenas enquanto “zoológicos humanos” 8.

O governo Bolsonaro: terras indígenas debaixo do fogo

22O governo de Jair Bolsonara sinaliza a chegada ao poder de uma coalizão heteróclita, cuja capacidade para durar ainda não foi totalmente testada, mas dentro da qual a hostilidade aos direitos fundiários dos povos indígenas é um elemento de convergência. Não há de estranhar, pois, que medidas e declarações destinadas a diminuí-los tenham entrado nos primeiros pacotes de medidas e que elas continuam fortemente presentes na ação do governo.

Os fundamentos ideológicos

23Três fontes principais de hostilidade aos direitos fundiários dos povos indígenas do Brasil podem ser identificadas na coalizão que suporta o atual governo federal.

  • 9 Ou “Frente parlamentar mista da agropecuária”.
  • 10 Curiosamente, os mesmos não qualificam da mesma forma a área total possuída pelos 1 % dos fazendeir (...)

24A primeira força é a bancada ruralista9, a mais potente articulação do Congresso nacional com 226 deputados (num total de 513) e 27 senadores (num total de 81). Os seus membros sempre foram contra a demarcação de terras indígenas por entender que as TI retiravam espaço para o desenvolvimento do agronegócio no Brasil. O principal leme desses opositores é “muita terra para pouco Índio10, ou seja, que os territórios alocados são vastos demais em relação à realidade demográfica dos povos indígenas. A sua oposição tem sido galvanizada por casos em que a homologação das terras finalmente resultou na expulsão dos fazendeiros ali instalados, tais como o da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima, ou o da TI Maraiwatsede em Mato Grosso. Mas é no Centro-Oeste do país, especialmente em Mato Grosso do Sul, que os conflitos se tornaram mais violentos ultimamente. A área faz parte do coração do agribusiness brasileiro e os fazendeiros ali não querem aceitar a perda de sequer um hectare de terra para os Índios Guarani. Em outras regiões, membros da bancada ruralista invadem ou facilitam a invasão das terras homologadas por fazendeiros, madeireiros ou garimpeiros, apesar dessas atividades estarem estritamente proibidas nelas. Outra força de influência na política brasileira, a indústria da mineração prefere explorar uma outra via. Em vez de pedir a redução ou o cancelamento das TI, ela aposta na criação de novas leis permitindo a exploração do subsolo das TI, que são da propriedade da União federal. Para eles, a questão é saber o nível de royalties que eles terão que desembolsar.

  • 11 Tal teoria foi enunciada pelo presidente Bolsonara durante uma entrevista dia 30/11/2018.

25A segunda força da oposição às TIs vem de alguns militares, em especiais oficiais e generais do Exército. Dentro deles o general Augusto Heleno, chefe do gabinete de segurança institucional e ex-comandante das forças armadas na Amazônia é uma figura emblemática. Esses generais consideram que a Amazônia é vulnerável aos “interesses estrangeiros” e temem que as TIs possam levar a um verdadeiro desmantelamento do Brasil. Eles também vislumbram as ONGs internacionais como vetores de uma influência externa destinada a enfraquecer o Estado brasileiro. Fundamentadas em cima de verdadeiras teorias do complô disseminadas por livros (tais como A Farsa Ianomami ou Mafia Verde) e e-mails de teor complotista tais visões também se apoiam em rumores infundados, por exemplo o fato de que a ONU estaria pronta a proclamar a independência de todos os territórios indígenas do mundo11.

26Trata-se de temores sem fundamento, pois nenhum dos povos indígenas do Brasil sequer reivindicou independência em relação ao Brasil. Mas o fato é que as polêmicas recentes com o Presidente Emmanuel Macron e alguns apelos à uma ingerência na Amazônia só serviram para reforçar a convicção de quem já acreditava nessas teorias. Um ponto importante a destacar é que a desconfiança em relação aos povos indígenas está bastante em ruptura com a história das forças armadas no Brasil. Muitas vezes estas usaram etnias aliadas para assegurar o domínio do Brasil sobre o seu território (especialmente na Amazônia onde os Índios foram “as muralhas do Sertão”). Também é no meio do Exército que surgiu a figura do Marechal Rondon, o fundador do indigenismo no Brasil. A despeito disso, a hostilidade aos direitos fundiários dos povos indígenas está bastante difusa nos altos escalões do Exército, aliada a certa xenofobia, exacerbada no contexto atual.

27Finalmente, a última parte do painel de fundo ideológico do governo atual em relação aos povos indígenas vem das igrejas evangélicas, e notadamente das mais radicais. Segundo essa visão, os Índios vivem no pecado e correm o risco de verem as suas almas danadas caso não sejam socorridos pela ação missionária – lembrando o zelo missionário no período colonial que levou centenas de milhares de mortes indígenas por causa da concentração nas missões. Várias práticas culturais indígenas são consideradas por elas como imorais e devendo ser mudadas ou proibidas, tais como a poligamia ou, especialmente, os infanticídios. Este último tem sido exagerado conscientemente a fim de justificar o que aparece como um tipo de cruzada. No campo, missionários evangélicos atuam em um grande número de comunidades, tentando impor os seus princípios. A FUNAI tem tentado evitar a sua presença em nome da imparcialidade do Estado e do direito a preservar a sua cultura, mas esse esforço está sendo cada vez mais difícil como veremos adiante.

28As três forças que acabamos de descrever usam de tudo para criticar os supostos entraves que as TI representariam para o Brasil. Elas denunciam assim o fato que o direito dos povos indígenas a serem consultados, previsto na convenção 169 da OIT, travaria diversos projetos de infraestrutura estratégicos para o Brasil. Apontam por exemplo o caso dos Waimiri Atroari e da construção do chamado “linhão de Tucuruí” para conectar o Roraima com a rede elétrica nacional, ou a paralização pela Justiça dos estudos para a estrada de ferro “ferrogrão”, destinada a escoar a produção agrícola de Mato Grosso até os portos amazônicos, por falta de consulta aos povos diretamente afetados.

29Em relação ao futuro que vêm para os povos indígenas, essas três forças estão bastante alinhadas. A intenção é uma “integração à sociedade nacional” que lembra a “assimilação” considerada até a ruptura da Constituição de 1988 como o destino natural dos povos indígenas. Considera-se nessa linha de pensamento que o estatuto diferenciado dado aos povos indígenas é provisório e destinado a proporcionar a eles o tempo para se alinhar com o resto da sociedade brasileira. Em geral observa-se também um certo paternalismo associado a essa orientação, considerando que os Índios devem ser acompanhados para aprender o capitalismo e as realidades do mercado. Ao mesmo tempo é frequente a referência a povos indígenas como um tipo de menores que seriam influenciados pelas ONG e não saberiam identificar o que é verdadeiramente o seu interesse.

Medidas simbólicas e resistências…

30Mesmo que o governo Bolsonaro esteja governando por menos de um ano, as medidas contra os povos indígenas já foram muito fortes, o que não chega a ser uma surpresa já que as declarações de campanha ou a fase de transição com o governo anterior tinha dado claras indicações que o tema seria uma prioridade para Jair Bolsonaro e seus ministros. Ainda candidato, o futuro presidente tinha assim jurado “não ceder mais um centímetro aos Índios” e denunciado em várias oportunidades a “indústria de terras indígenas”, tema que repetiu até recentemente durante o encontro dois governos dos países amazônicas em Tabatinga.

  • 12 MP 889/2019.

31Concretamente, apesar da sua ideologia, é muito provável que o governo seja ciente que as TI homologadas beneficiam de uma proteção forte pois derivada diretamente da Constituição. Dessa forma, a estratégia adotada até agora avança em duas áreas onde o executivo tem mais liberdade de ação. A primeira é o processo de reconhecimento das TI, que o governo almeja tornar muito mais restritivo (até, se for possível, fechado). O governo Temer já tinha avançado nessa direção quando tentou subordinar a delimitação das TI, que era competência da FUNAI desde 1988, a um comitê técnico contando representantes de outros órgãos. Na organização inicial do governo Bolsonaro, essa prerrogativa foi transferida para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), dirigido por uma representante da bancada ruralista e tradicionalmente alinhado na visão dos fazendeiros em relação às TIs. Tal disposição foi vetada pelo Congresso em maio de 2019 e reeditada em junho por meio de uma medida provisória12. Não há dúvida que, atrás desse jogo de xadrez em torno da competência de delimitar as TI há a intenção de adotar uma ótica muito restritiva sobre as áreas a serem reconhecidas. Uma « revista de todos os processos em estudo » também foi anunciada, sendo provavelmente o primeiro passo nesse sentido.

  • 13 Ela foi notadamente uma das pessoas que fizeram campanha sobre o tema do infanticídio nos povos ind (...)

32A segunda direção caminhada pelo governo atual é de continuar o enfraquecimento da FUNAI. Tentou-se deslocá-la do ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, dirigido por uma pastora evangélica ultraconservadora13. Apesar de rechaçado pelo Congresso, o movimento ilustra o interesse dos Evangélicos para a questão indígena e a fragilidade da barreira que separa os povos indígenas dos missionários.

33Esses movimentos do governo encontram resistências. A organização dos serviços do governo proposta pelo presidente foi alterada pelo Congresso e a FUNAI voltou ao ministério da Justiça. Mas as futuras e mais decisivas batalhas serão provavelmente travadas a respeito de processos de reconhecimento em curso. Os povos indígenas e os seus aliados se apoiarão na Constituição para conseguir emplacar estes. Lembra-se que em 1990 foi nessa base que um juiz federal mandou retirar todos os garimpeiros da terra Yanomami e retomar o processo de delimitação, parado na época. Aquilo levou ao reconhecimento da maior TI do Brasil em 1992. No entanto a Supremo Tribunal Federal não está completamente alheio às teses do governo atual. Em 2009, ao confirmar a homologação da TI Raposa Serra do Sol, ele emitiu uma série de “condicionantes” que via como uma nova jurisprudência sobre o tema. Foi finalmente considerado que estes só valiam para o caso em discussão, mas tal fato demonstra que os julgamentos que serão proferidos irão provavelmente confirmar essa tentativa de enquadrar os direitos fundiários dos povos indígenas, particularmente se ministros do STF forem designados pelo governo atual em decorrência da aposentadoria de ministros atuais.

34Um dos pontos sensíveis nessa área é a questão do “marco temporal”, ou seja do período de referência para a determinação da validade dos pedidos de demarcação de uma TI. A bancada ruralista insiste para que só possam ser considerados casos em que grupos habitavam efetivamente as terras reivindicadas no momento da adoção da Constituição, o que deixaria de lado todos os casos em que etnias deslocadas, em especial durante a ditatura militar, querem retomar posse de áreas perdidas.

A situação piora no campo

35Desde a campanha eleitoral de 2018, os ataques direcionados a terras indígenas multiplicaram-se num contexto geral de aumento das infrações às leis ambientais e do desmatamento. Indivíduos, prevalecendo-se do fato de que “o governo agora está do nosso lado” tentam antecipar as mudanças legislativas que acham por vir, acirrando conflitos e criando ainda mais instabilidade. Verdadeiros ataques são organizados, tais como na TI Pankararu, em Pernambuco, onde um posto de saúde e uma escola foram queimados, ou entre os Pitaguary, no Ceará, com uma tentativa de assassinato. Essa violência também alcança os aliados dos povos indígenas, como demonstra o assassinato do indigenista Maxiel dos Santos no Amazonas em setembro de 2019. Invasões de terra também aumentam, em especial em Rondônia, onde grileiros estão atuando na terra Uru Eu Wau Wau, e no Pará onde os Tembé pediram oficialmente a proteção da polícia por causa de ameaças vindas de madeireiros operando nas suas terras.

  • 14 http://caci.cimi.org.br
  • 15 Relatório para o Conselho dos Direitos Humanos, 2018.

36De modo geral, a situação de violência atual pode ser medida por meio da lista de exações recenseadas pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) na sua plataforma eletrônica CACI14. Ela permite localizar 476 assassinatos de Índios dentro de conflitos de terra acontecidos desde 2010. Também explicita o nível de violência o fato da relatora da ONU para os povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, ter declarado o Brasil o país mais perigoso do mundo para os defensores dos direitos dos autóctones15.

37Os embates com a administração serão sem dúvida explorados pelo governo atual para demostrar o caráter nocivo das TI para o Brasil. Um censo realizado pelo Instituto Sociomabiental aponta que mais de 40 grandes projetos de infraestrutura atingem territórios indígenas, prometendo numerosas lutas jurídicas nos próximos anos. Alguns projetos de lei que estão tramitando almejam limitar as proteções de que beneficiam (direito a consulta informada, compensações socioambientais), liberando dessas obrigações obras particularmente polémicas, tal como a hidrelétrica de São Luiz do Tapajós.

Cenários para o futuro

38Tomando em conta os elementos apontados em cima, podemos traçar três cenários para os próximos anos, que apresentamos aqui do mais ao menos otimista...

Cenário 1 : queda de braço entre o MPF e o governo a respeito dos direitos dos povos indígenas

39O Brasil dispõe com o Ministério Público Federal (MPF) de um poder independente do Executivo. Destinado a assegurar que todos os cidadãos gozem da integralidade dos seus direitos e zelar pela integridade do patrimônio federal, essa instituição dispõe de uma câmara dedicada às questões ambientais e aos direitos das minorias (sexta câmara). A implicação do MPF nas questões indígenas é importante pois essas são explicitamente colocadas debaixo da sua jurisdição pelo artigo 232 da Constituição, e ele tem atuado em vários processos ligados a terras indígenas, ao ponto de quase depositar em 1990 um pedido de impeachment contra o Presidente Sarney no caso da terra Yanomami (Le Touneau, 2010). Toda iniciativa para reduzir ou contestar terras indígenas farão muito provavelmente o objeto de processos na sexta câmara, com boas perspectivas de vitória perante os tribunais, pelo menos enquanto a Constituição permanecer inalterada.

40O cenário que poderia se revelar veria então um governo demostrando a maior má vontade na questão da demarcação das terras indígenas e só atuando quando empurrado por decisões judiciais depois de perder todos os recursos. Os processos seriam ainda mais lentos do que agora (observa-se que já foram quase paralisados por quase 10 anos) e as ações de proteção das TI seriam menos eficientes já que demorariam para acontecer, necessitando cada vez de longas batalhas jurídicas para acontecer, e não teriam os recursos necessários. A ação do MPF para que as garantias dadas aos Índios no Brasil sejam respeitadas poderia receber reforços externos da Organização dos Estados Americanos (OEA) na base da convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil. No entanto tal apoio fez pouca diferença no caso da usina de Belo Monte.

41Nesse cenário o MPF deverá lutar também na justiça para contestar a abertura das TI à exploração dos seus recursos naturais por terceiros, na base da exclusividade do usufruto exclusivo indicado na Constituição. Ai também, enquanto a Constituição não mudar, casos podem ser ganhos, mas ao preço de longos processos.

42No final, neste cenário, o governo poderá mostrar aos seus aliados que está atuando assim que prometeu na questão dos povos indígenas, mas será coagido a aceitar algumas decisões contrárias às suas orientações por decisões judiciais baseadas na Constituição de 1988. O patrimônio indígena irá sofrer por causa de invasões e os processos em estudo serão atrasados, mas não deveria haver mudança fundamental na situação atual. É claro que tal quadro pressupõe uma atuação da PGR igual à que teve até agora. A designação pelo presidente Bolsonaro de Augusto Aras como novo procurador geral da República pode levar a mudanças nesse cenário, pois se ele afirmou querer o respeito integral da Constituição, ele já revelou posições relativamente alinhadas com as do governo sobre a questão do desenvolvimento econômico das Tis durante a sua sabatina pelo Senado.

Cenário 2: uma pulverização da oposição, mas pouca mudança no quadro fundiário

43O segundo cenário que pode ser traçado prevê que a linha do desenvolvimento econômico, que foi esboçada algumas vezes pelo candidato e depois presidente Bolsonaro, torne-se o principal ângulo de ataque. Em vez de tentar rever as homologações de terras indígenas, que têm uma força jurídica muito grande, o governo poderia basear-se nesse ponto sensível, justificando suas medidas de abertura das TI pelo necessário desenvolvimento econômico e social.

  • 16 Notadamente os PL 490/2007 e PL 6818/2013.

44Nesse cenário, uma primeira linha de atuação seria no campo legislativo. O governo Bolsonaro poder-se-á aproveitar da (necessária) reforma de textos tais como o Estatuto do Índio para afrouxar as condições da exploração dos recursos naturais ou da entrada de terceiros nas TI. O código da mineração também fará parte do pacote, o governo podendo valer-se do fato de que o subsolo das terras indígenas é propriedade da União federal e que a questão da exploração dos minérios em terras indígenas está se arrastando há trinta anos no Congresso. Finalmente, o governo poderia deixar de querer reduzir as TI existentes, mas ao mesmo tempo tornar mais difíceis novas homologações incluindo o marco temporal na legislação. Vários projetos de lei já estão em tramite16 e só precisaria de uma maioria para aprová-los

45Uma segunda linha de atuação neste quadro, complementar à primeira, seria de incentivar o desenvolvimento de parcerias dentro dos quais os povos indígenas poderão arrendar de forma ou outra as suas terras em benefício dos criadores de gado ou dos plantadores de commodities. Como apontamos na parte I, este modelo já existe em diversas regiões de Mato Grosso, mas permanece bastante polêmico e proibido pela justiça federal até agora. Será fácil para o governo insistir nos benefícios materiais que os Índios poderiam retirar de tais arranjos, assim como o fato de que poderiam receber formações profissionais (mecânico, operador de máquinas, etc.) e que, caso eles sejam eles mesmo a mão de obra que atuaria, o usufruto exclusivo seria respeitado. Claro, tais “parcerias” poderiam ser estendidas para atividades de garimpo ou de exploração madeireira.

  • 17 Alguns desses últimos fecharam a BR-163 em agosto de 2019 para reivindicar a abertura das TIs ao ga (...)

46Para o campo indigenista, o problema é que tal estratégia poderia encontrar um eco positivo em alguns povos, ou pelo menos em algumas frações de alguns povos. Como já ressaltamos, acordos ilegais firmados por algumas lideranças ou aldeias já existem com garimpeiros (nos Cinta Larga e nos Munduruku17), madeireiros (Kayapo, Suruí) ou plantadores de soja (Cinta Larga, Munduruku). Em relação a este último item, a FUNAI contou 22 terras indígenas onde existem arrendamentos, com uma área cumulada de 3,1 milhões de hectares. A razão por isso é bastante simples: as compensações monetárias oferecidas nessas parcerias, mesmo que só represente uma pequena fração do valor do produto extraído, são muito mais altas do que qualquer projeto proposto pela FUNAI ou pelas ONG indigenistas. Também essas parcerias ativam linhas de fração dentro do jogo político próprio a cada povo. Fações minoritárias que não conseguem financiamentos por parte das ONGs ou que são marginalizadas perante a FUNAI podem escolher os adversários dessas como os seus aliados para reverter a sua situação. Um caso simbólico é o dos Suruí, onde um projeto de poço de CO2 apoiado por parceiros prestigiosos tal como a Google foi parado por causa do desmatamento causado pela atuação de madeireiros aliados de uma fação concorrente da que firmou o acordo.

47Apontando para as compensações financeiras que já beneficiam povos cujas terras são alcançadas por atividades minerarias (tias como os Xikrin) ou por barragens (tais como os Waimiri-Atroari), o governo poderia agrupar ao redor de suas propostas algumas lideranças indígenas e forçar um debate sobre o alargamento do espectro de atividades a serem autorizadas no âmbito da PNGATI, ou até a revogação dessa, preparando o caminho para a aprovação no Congresso dos projetos citados acima ou até mesmo de uma emenda constitucional que aceitaria acordos para a exploração dos recursos naturais das TI (toda a questão sendo de saber quem é legítimo para assinar acordos que concernam uma etnia inteira, no contexto de uma política muito complexa dentro de cada povo). Mas para convencer eventuais aliados do lado dos Índios, o presidente Bolsonaro e as forças políticas que o apoiam deveriam ser capazes de mudar o discurso estigmatizante e racista que adotam geralmente em relação a povos indígenas. O fato de levar uma mulher indígena do Xingu alinhada nas teses bolsonaristas na reunião da ONU em Nova York é evidentemente um passo nesse sentido.

Cenário 3 : O grande colapso, revisão da Constituição e diminuição do patrimônio fundiário dos povos indígenas

  • 18 PEC 215 proposta em 2000 dando ao Congresso o poder de aprovar as homologações das TI.

48O último cenário supõe que o governo esteja capaz de utilizar a onda conservadora que se manifestou no Congresso durante a última eleição para empurrar uma ampla reforma da Constituição baseada entre outros nos diversos projetos de emenda constitucional propostos pelo então deputado Bolsonaro18. A partir desse momento, pode-se prever um ataque frontal contra os povos indígenas e as suas terras.

49No plano da demarcação de novos territórios, o Congresso se veria conferido um papel importante na elaboração dos estudos e na aprovação das áreas a serem delimitadas. Um poder de veto também provavelmente seria dado ao Exército ou ao Gabinete de Segurança Institucional o que seria mais uma volta aos mecanismos do tempo do regime militar. Na medida em que tanto o Congresso quanto o GSI estão fortemente desfavoráveis às TI, com a exceção de microterritórios, significaria praticamente o fim das demarcações de TI a curto e médio prazo, ou seja, até que a reforma esteja desfeita por outra revisão da Constituição.

50Assim como no cenário 2, a exclusividade do usufruto das TI seria também afrouxada, mas de forma mais radical ainda. Acordos locais feitos por “lideranças” de qualquer aldeia seriam o suficiente para abrir as portas a fazendeiros, sojicultores ou garimpeiros em troca de compensações mal definidas. A reforma do Estatuto do Índio no intuito de retirar os mecanismos de proteção nele embutidos (sob o pretexto de fazer do Índio um cidadão “normal”) faria obviamente parte do pacote das reformas.

51Finalmente, nesse cenário, é mais do que provável que um mecanismo irá ser criado permitindo um reexame de todas as terras que já foram homologadas, especialmente as situadas a proximidade das frentes de expansão da agropecuária ou na faixa de fronteira. Reduções serão buscadas e obtidas sob o pretexto de um excesso de terras em relação à população (argumento da “indústria de terras indígenas” reiterado muitas vezes pelo presidente), da segurança nacional (argumento dos militares desde os anos 1960) ou da necessidade de desenvolvimento da economia do Brasil (visto em geral como uma outra face da segurança nacional). O patrimônio fundiário indígena seria então fortemente pressionado, a altura da sangria dependendo em grande parte de até onde o Brasil seria disposto a enfrentar as pressões internacionais que tal movimento provocaria. Vários países, entre eles a Alemanha, a Noruega, a França..., protestarão veementemente, como já se viu em agosto de 2019 sobre as queimadas na Amazônia. Se as pressões começarem a adotar a forma de boicote às exportações de commodities pelo Brasil, é capaz que o desgaste seja limitado pois as maiores firmas do agronegócio protestarão perante o governo. Mas não há certeza que os países do Norte sejam prontos a iniciar uma guerra comercial sob este tema.

52Tal cenário também pode ter um custo político bastante forte no Brasil pelo governo Bolsonaro. Este só dispõe de uma diminuta fração das cadeiras no Congresso nacional (57/513 deputados e 4/81 senadores). Na medida em que uma revisão da Constituição requer vários votos com maioria de 3/5 nas duas Câmaras, o governo deveria mobilizar muito além dos seus simpatizantes. Membros da bancada ruralista e da bancada evangélica seriam provavelmente favoráveis, mais não seriam suficientes, como se viu nas derrotas de maio sobre a organização do governo. Para conseguir um voto tão simbólico, este deveria, portanto, oferecer compensações em termos de ministérios e funções de primeiro escalão a outros partidos. Não há certeza que o alto custo político (e eventualmente judicial) atrelado a tal operação seja compensado pela satisfação de derrubar o totem das terras indígenas... Nesse cenário, a divisão entre o executivo e o legislativo e as batalhas de poder ligadas a ela consistuiriam a garantia que sobraria para os Índios do Brasil.

Conclusão

53Seja qual for o cenário que prevalecerá (será provavelmente uma mistura dos três), os povos indígenas do Brasil enfrentarão nos próximos anos uma situação política bastante adversa. Tal fato não pode ser considerado uma surpresa. O contexto a respeito das Tis endureceu-se progressivamente desde o início dos anos 2000. O segundo governo do presidente Lula, mas também principalmente os governos da Dilma Roussef ou do Michel Temer já privilegiaram o imobilismo sobre este tema, quase congelando a demarcação de novas terras para não contrariar a bancada ruralista no Congresso e fazendo um serviço mínimo para a proteção das TIs existentes (não excluindo, no entanto, algumas ações de alta visibilidade de vez em quando). O vento vai soprar de frente para os povos indígenas e seus aliados, mais a sua direção já tinha mudado há tempo.

54A principal pergunta será de saber se o governo contentar-se-á de proferir declarações bombásticas e de paralisar o processo de reconhecimento de novas terras ou se, seguindo a sua ideologia, ele tentará emplacar todo o seu programa de revisão do patrimônio fundiário indígena. Neste caso, ásperas batalhas jurídicas estão a vir, com um resultado pouco previsível.

  • 19 Entrevista ao jornal Expresso, 18/10/2018.

55Para os Índios, que organizam há muitos anos protestos em Brasília para exigir o cumprimento das disposições da Constituição ou a demarcação das suas terras em regiões de conflito, a luta já começou séculos atrás. Com determinação, Ailton Krenak declarava em outubro de 2018: “Somos Índios, estamos resistindo há 500 anos. O que me preocupa é saber se os Brancos vão resistir...”19.

Haut de page

Bibliographie

Belleau JP, 2014, Le mouvement indien au Brésil , Presses universitaires de Rennes.

Cristosomo A.C., Alencar A., Mesquita I., Castro Silva I. et al., 2015, Terras indígenas na amazônia brasileira: reservas de carbono e barreiras ao desmatamento, Brasília: IPAM.

Gray E., Veit P., Altamirano J.C., Ding H. et al., 2015, The economic costs and benefits of securing community forest tenure: evidence from brazil and Guatemala, WRI Working paper, Washington:WRI.

Le Tourneau F.-M., (2010) Les Yanomami du Brésil, géographie d’un territoire amérindien. Belin : Paris, collection Mappemonde, 480 p.

Le Tourneau F.-M., “En marge ou à la marge : les populations amérindiennes dans le Brésil contemporain”, Espaces, Populations et Sociétés, 2014/2-3 | 2015, doi :10.4000/cybergeo.27325

Le Tourneau F.-M., 2015, “The Sustainability Challenges of Indigenous territories in Brazil’s Amazonia”, Current Opinons on Sustainability, 14:213-220, DOI: 10.1016/j.cosust.2015.07.017

Le Tourneau F.-M., 2016, « Quelle durabilité pour les territoires amérindiens d’Amazonie brésilienne ? », Journal de la société des américanistes, 102-1 | 2016, 167-193. URL : http://jsa.revues.org/14673

Le Tourneau F.-M., 2017, « Le Brésil et ses Indiens : une réconciliation impossible ? », EchoGéo, 41, article 15027, http://journals.openedition.org/echogeo/15027 ; DOI : 10.4000/echogeo.15027

Nepstad, D., S. Schwartzman, B. Bamberger, M. Santilli, D. Ray, P. Schlesinger, P. Lefebvre, A. Alencar, E. Prinz, G. Fiske, and A. Rolla. 2006. “Inhibition of Amazon Deforestation and Fire by Parks and Indigenous Lands.” Conservation Biology 20(1): 65–73.

Ramos A., 1998, Indigenism Ethnic Politics in Brazil, Madison: University of Wisconsin Press, 336 p.

Walker, W., Baccini, A., Schwartzman, S., Ríos, S., Oliveira-Miranda, M., Augusto, C., Ruiz, M. R., Arrasco,C.S., Ricardo, B., Smith, R., Meyer, C., Jintiach, J.C., Campos, E.V. (2014). Forest carbon in Amazonia: the unrecognized contribution of indigenous territories and protected natural areas. Carbon Management. DOI: 10.1080/17583004.2014.990680.

Haut de page

Notes

1 Título VIII, artigos 231 et 232.

2 Veremos adiante a questão da competência sobre o reconhecimento das TI.

3 Os territórios em estudo não têm uma área fixa pois são precisamente em análise pela FUNAI para determinar a sua forma final. No entanto a FUNAI divulgou em outubro de 2018 que tais áreas somariam pelo menos 12 milhões de hectares por uma população indígena de 120 000 pessoas.

4 Fonte CIMI.

5 A área cumulada é derivada de uma fonte diferente da área apontada para cada governo. Alguns territórios foram reconhecidos várias vezes, com áreas iguais ou modificadas, o que faz com que a área cumulada não é igual à soma da área reconhecida por governo. Por isso derivamos a área cumulada do banco de dados de terras homologadas, usando a data de homologação como referência.

6 Decreto nº 5758/2006, que institui o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP).

7 Política nacional de gestão ambiental das terras indígenas – PNGATI, 06/05/2012, décret nº 7.747.

8 Declaração do presidente Bolsonaro, 30/11/2018.

9 Ou “Frente parlamentar mista da agropecuária”.

10 Curiosamente, os mesmos não qualificam da mesma forma a área total possuída pelos 1 % dos fazendeiros que têm mais terra. Haveria talvez também “muita terra para pouco fazendeiro”…

11 Tal teoria foi enunciada pelo presidente Bolsonara durante uma entrevista dia 30/11/2018.

12 MP 889/2019.

13 Ela foi notadamente uma das pessoas que fizeram campanha sobre o tema do infanticídio nos povos indígenas, propondo um projeto de lei criminalizando-o.

14 http://caci.cimi.org.br

15 Relatório para o Conselho dos Direitos Humanos, 2018.

16 Notadamente os PL 490/2007 e PL 6818/2013.

17 Alguns desses últimos fecharam a BR-163 em agosto de 2019 para reivindicar a abertura das TIs ao garimpo...

18 PEC 215 proposta em 2000 dando ao Congresso o poder de aprovar as homologações das TI.

19 Entrevista ao jornal Expresso, 18/10/2018.

Haut de page

Table des illustrations

Titre Figura 1: reconhecimento de terras indígenas em função dos governos
Crédits Fonte Instituto Socioambiental et FUNAI)5
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/22413/img-1.jpg
Fichier image/jpeg, 160k
Titre Figura 2: a TI 7 de Setembro, uma ilha verde em Rondônia
Crédits Fonte site do Instituto Socioambiental: http://ti.socioambiental.org
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/22413/img-2.jpg
Fichier image/jpeg, 75k
Haut de page

Pour citer cet article

Référence électronique

François-Michel Le Tourneau, « O governo Bolsonaro contra os Povos Indígenas: as garantias constitucionais postas à prova »Confins [En ligne], 501 | 2019, mis en ligne le 29 septembre 2019, consulté le 16 avril 2024. URL : http://journals.openedition.org/confins/22413 ; DOI : https://doi.org/10.4000/confins.22413

Haut de page

Auteur

François-Michel Le Tourneau

Directeur de recherche au CNRS, UMI 3157 - iGLOBES CNRS-University of Arizona, fmlt@fmlt.net

Articles du même auteur

Haut de page

Droits d’auteur

CC-BY-NC-SA-4.0

Le texte seul est utilisable sous licence CC BY-NC-SA 4.0. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.

Haut de page
Search OpenEdition Search

You will be redirected to OpenEdition Search