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Best-sellers em tradução: o substrato cultural internacional

Best-sellers em tradução: o substrato cultural internacional

Marie Helene Catherine Torres* * Doutora em Estudos da Tradução pela Katholieke Universiteit Leuven (Bélgica) desde 2001. Foi a primeira coordenadora da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde leciona desde 1996 no Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras. Coordena atualmente a Pós-Graduação em Formação de Professores de Tradução Literária a Distância UFSC-MEC. Publicou em 2004 a Antologia Bilíngue Francês Português Clássicos da Teoria da Tradução e o livro Variations sur l'étranger dans les lettres: cent ans de traductions françaises des lettres brésilienne; publicou em 2006, com Guerini e Costa, o primeiro Dicionário de Tradutores online (DITRA) e o livro Literatura Traduzida/Literatura Nacional em 2008. Traduziu recentemente com Furlan e Guerini A tradução e a letra ou o albergue do longínquo, do teórico francês Antoine Berman (2007).

RESUMO

Mostramos neste artigo, de um lado, como texto e metatexto são diferentemente tratados quando se trata de best-sellers internacionais, isto é, best-sellers construídos para serem best-sellers traduzidos e, do outro lado, como, a partir de características específicas, os best-sellers traduzidos seguem um modelo sistematizado até chegar ao que Venuti chama de efeito de transparência.

Palavras-chaves: tradução; best-sellers; Venuti; Casanova.

ABSTRACT

On one hand, we have shown in this article how text and meta-text are treated dissimilarly when referred to international best-sellers, that is to say, best-sellers which are made to be translated best-sellers; and, on the other hand, how, through specific features, translated best-sellers follow a systematized pat tern to achieve what Venuti calls effect of transparency.

Key words: translation; best-sellers; Venuti; Casanova.

RÉSUMÉ

Nous avons montré dans cet article, d'un côté, comment le texte et le métatexte sont différemment traités quand il s'agit de best-sellers internationaux, c'està-dire, de best-sellers construits pour être des best-sellers traduits, et, de l'autre, comment, à partir de caractéristiques spécifiques, les best-sellers traduits suivent un modèle systématisé jusqu'à ce que Venuti nomme l'effet de transparence.

Mots-clés: traduction; best-sellers; Venuti; Casanova.

Nosso interesse em relação ao best-seller em tradução manifestou-se quando analisamos romances best-sellers internacionais, ou seja, romances traduzidos, e atestamos que o estatuto dos tradutores e a inexistência do estrangeiro nas ficções eram características comprovadas.*1 *1 . (TORRES, Marie Helene C. Variations sur l'étranger dans les lettres. Cent ans de traductions françaises des lettres brésiliennes. Lilles: Artois Presse Université, 2004.) O fenômeno do best-seller em tradução pode ajudar os estudiosos de tradução a entender melhor o funcionamento das culturas nos mapas-mundi da literatura a partir das estratégias de apresentação dos textos traduzidos. Ademais, a análise dos best-sellers pode não somente permitir que se apreciem as variações estratégicas de tradução, mas também servir de teste para avaliar outras traduções de uma área cultural específica dentro de um sistema literário e cultural determinado. Certa sistematização de modelos parece aplicarse particularmente a publicações de best-sellers, muitas vezes pertencendo a uma única editora e traduzidos por um só tradutor.

O leitor pode verificar nas contracapas que esses textos foram traduzidos em várias línguas, o que lhes conferem credibilidade. É o que ocorreu, por exemplo, com os romances de um autor brasileiro de best-sellers, Paulo Coelho,*2 *2 . (COELHO, Paulo. L'alchimiste. Trad. Jean Orecchionni. Paris: Anne Carrière, 1994: 8.) que usamos para nosso propósito como parâmetro comparativo. A apresentação da tradução para o francês de L'Alchimiste revela que, além do resumo da obra, Coelho é um autor muito conhecido na América Latina e que seus livros estão entre os mais vendidos no mundo. Geralmente, os textos impressos na contracapa dos best-sellers se limitam mesmo a apresentar um resumo da obra, especificando o número de línguas nas quais foram traduzidos. Nada sobre a tradução ou o trabalho do tradutor. Outra regra geral para os best-sellers é que o discurso de acompanhamento, isto é, prefácios, introduções, notas do tradutor e outro pósfacio, é inexistente. A função do discurso de acompanhamento bem como a do metatexto (notas e glossários) é de informar um público leitor específico, e particularmente interessado em precisões culturais, intelectuais, literárias. Mas os leitores de best-sellers não têm o privilégio de uma apresentação do autor ou do tradutor pois o próprio do best-seller é ser acessível a um público vasto e heterogêneo, tanto social, intelectual, cultural e profissionalmente, quanto do ponto de vista da idade, do sexo, etc. - público que notas ou prefácios "incomodariam".

Venuti,*3 *3 . (VENUTI, Lawrence. The scandals of translations. Lon-don/New York: Routledge, 1998: 124.) que dedica um capítulo inteiro aos best-sellers no seu livro The scandals of translation, afirma que, para publicar um best-seller, a atenção dos editores em relação a textos estrangeiros se volta para os que já têm um sucesso comercial confirmado na sua cultura de origem, tendo em vista renovar e perpetuar performances similares. E Venuti*4 *4 . (Ibidem: 124.) acrescenta que "Translation is thus squeezed in a double bind, both commercial and cultural". O best-seller beneficia, com efeito, de uma grande difusão, de uma publicação com grande tiragem, podendo assim atingir um enorme leque de leitores. É a razão pela qual, nos diz Venuti,*5 *5 . (Ibidem: 124.) "The appeal of translations to a mass readership invites the cultural elite to dismiss them as 'popular' or 'middlebrow'". Este julgamento de valor provoca, em nossa opinião, na realidade dos programas escolares e universitários, uma exclusão das pesquisas envolvendo best-sellers dos estudos literários.

Na realidade, a abordagem do editor é em primeiro lugar comercial ou até imperialista, no sentido em que o que se espera na tradução de um best-seller é o reforço dos valores literários, morais, religiosos ou políticos do leitor potencial. De fato, o best-seller traduzido revela muito mais sobre a cultura que recebe a tradução do que a cultura estrangeira de origem. As traduções de best-sellers confirmam dessa forma o princípio da desterritorialização1 1 A expressão é de Deleuze e Guattari citados por Venuti em "Translation and Minority". The Translator, v. 4, n. 2. Manchester: St Jerome, 1998: 139-41. das traduções em geral, pois cada tradutor procede a uma apropriação do texto traduzido, isto é, ele permite que o texto de partida seja lido por outra cultura, em outra língua, ao traduzi-lo. Essa mobilidade, esse deslocamento, aumenta sem dúvida o volume das traduções e cria uma diversificação espácio-temporal delas. As literaturas nacionais não desapareceram, mas mantêm contatos mais assíduos com outros modelos e tradições, o que as enriquecem porque importam modelos que ou não existem no seu próprio sistema literário ou são ainda embrionários. A mobilidade das literaturas através das suas traduções significa que o texto traduzido é cortado do meio onde ele foi criado sob a forma do texto de partida para ser projetado em outra cultura, ou melhor, outro público leitor para o qual o texto não foi inicialmente concebido. É o que Anthony Pym*6 *6 . (PYM, Anthony. Method in Translation History. Manchester: St Jerome, 1998: 150.) chama de transferência espacial, pois a tradução para ele é um texto que muda em qualidade por deslocar-se no espaço e no tempo.

Portanto, sendo o público leitor de best-seller heterogêneo, o tradutor usa de estratégias discursivas específicas para atingir uma massa importante de leitores. O sucesso do best-seller depende da identificação do leitor com as personagens que evoluem numa problemática social contemporânea. O texto traduzido deve criar um mundo que o leitor reconhece. Outros critérios de sucesso do best-seller, tal como a simplicidade da linguagem, as imagens estereotipadas, a identificação clara das personagens, permitem que o leitor entre com facilidade no mundo imaginário do texto, porque os valores que as personagens representam e difundem são naturais e comuns para ele.

Casanova*7 *7 . (CASANOVA, Pascale. La république mondiale des lettres. Paris: Seuil, 1999: 173.) se refere também à importância do público-alvo, o "publico internacional". Para ela, os editores americanos desvendaram os segredos do novo best-seller internacional, ou seja, o respeito das normas estéticas em vigor (até do século passado) e uma visão do mundo ocidental. Esses são, segundo ela,*8 *8 . (Ibidem: 174.) os critérios comerciais mais divulgados. No intuito de tocar esse público internacional, o best-seller traduzido, sem suas referências originais, será interpretado e avaliado de maneira diferente do que foi no seu estado original. Venuti*9 *9 . (VENUTI, Lawrence. The scandals of translations: 125.) diz que para atingir um público tão diverso "the treatment offered by a bestselling translation must be intelligible whithin the different, potencially conflicting codes and ideologies that characterize the audience".

Venuti parte efetivamente da sensação de prazer que produz a identificação dos leitores às personagens e situações da narrativa. Para produzir esse prazer, ainda explicita que a narrativa deve ser imediatamente compreensível para que a linguagem fixe "precise meanings in simple, continuous syntax and most familiar lexicon".*10 *10 . (Ibidem: 126.) A simplicidade da linguagem, da sintaxe do léxico, levou Venuti a falar de "fluent translations", traduções nas quais é percebido o efeito de transparência em relação ao original. Para obter um texto fluente, Venuti*11 *11 . (Ibidem: 126.) afirma que os tradutores utilizam estratégias apropriadas como o sentido unívoco ou o uso comum do vocabulário. Os tradutores evitam sempre construções não idiomáticas, polissemias, arcaísmos, jargões, e até mesmo palavras que possam chamar a atenção do leitor. Essas traduções em "linguagem fluente"*12 *12 . (Ibidem: 127.) privilegiam a linguagem padrão, comum, ou seja, uma linguagem tão reconhecível que se torna invisível. A naturalização dessas traduções - o que Venuti chama de "domestication" - é considerável, a ponto de neutralizar, em nossa opinião, a cultura estrangeira até torná-la invisível. Os tradutores de best-sellers sempre tratam os diálogos das personagens de forma a descaracterizá-los de suas tipologias originais, assimilando-os antropofagicamente aos valores da cultura receptora. Coelho,*13 *13 . (COELHO, Paulo. Sur le bord de la rivière Piedra je me suis assise et j'ai pleuré. Trad. Jean Orecchioni. Paris: Anne Carrière, 1995.) por exemplo, constrói seus romances, a nosso ver, como best-sellers internacionais desde o princípio: sintaxe linear, vocabulário simples, nenhum arcaísmo ou vulgaridade que poderia chamar a atenção do leitor, pelo contrário um registro de língua "pasteurizado", ou seja, nem elevado nem padrão.

As traduções dos best-sellers reforçam sempre os valores existentes na sociedade na qual são traduzidos. Portanto, lembramos que os best-sellers apresentam valores da contemporaneidade, como por exemplo, a libertação da mulher, a crítica à igreja e à sociedade como um todo. O leitor destas traduções de best-seller se reconhece em uma ou outra das ideologias transmitidas pelos textos traduzidos. Ele não tem a sensação de ler uma tradução porque o texto lhe parece familiar, ou, segundo as palavras de Venuti,*14 *14 . (VENUTI, Lawrence. The scandals of translations: 155.) "the foreign text becomes a translated bestseller because it is not so foreign as to upset the domestic status quo". As traduções dos best-sellers de Coelho não são tão estrangeiras, não transgridem os valores ideológicos em vigor e seus sucessos parecem originar-se da forma pela qual os escritores de best-sellers constroem seus romances. Ademais, a maioria dos best-sellers internacionais do final do século XX ou início do século XXI tem conotação principalmente esotérica, verdadeiro fenômeno de sociedade - considerando o sucesso internacional -, é escrita com linguagem simples, não representa uma cultura específica, mas sim todas as culturas e apresenta temas comuns como o amor, a morte, a religião, a ajuda ao próximo. São textos que apresentam personagens simbólicas em busca de espiritualidade, sem cultura específica aparente, invisibilizada desde o texto original.

O que é certo é que a assimilação desses romances pelos sistemas literários estrangeiros constitui o que Casanova*15 *15 . (CASANOVA, Pascale. La république mondiale des lettres: 237.) chama de "literatura internacional" cujo conteúdo segundo ela é desnacionalizado por isso entendido e compreendido por qualquer cultura, sem risco de desentendimentos. Esses best-sellers traduzidos, beneficiando de circulação fácil e rápida no mundo inteiro, quase simultaneamente, caracterizam a invisibilidade do tradutor e a transparência da tradução. Concordamos, portanto, com o que Casanova*16 *16 . (Ibidem: 237.) diz ao afirmar que passamos da internacionalização à importaçãoexportação comercial da literatura.

Acreditamos que o estudo teórico e crítico dos best-sellers levará a academia a devolver-lhes a visibilidade que existe de fato no mercado dos bens culturais e que representa mais de 70% das traduções no mundo. Por consequência, no intuito de auxiliar as pesquisas dos estudiosos de best-sellers traduzidos, podemos formular questionamentos conforme o esquema que elaboramos a partir de hipóteses prévias, que orientarão as análises de best-sellers traduzidos:

Como aparece a naturalização dos textos?

Quais os registros de linguagem? A linguagem é padrão? informal?

Qual a identificação possível com o público leitor em estudo? Em qual situação os leitores se reconhecem?

O texto de partida se inscreve dentro dos códigos e ideologias do sistema receptor?

Alguma ideologia específica perpassa as traduções?

Há passagens textuais não traduzidos? Quais?

Como os tradutores reforçam os valores dominantes da cultura alvo?

A tradução ao ser transparente parece não ser uma tradução assumida?

Recebido em 18/05/2009

Aprovado em 20/07/2009

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    Doutora em Estudos da Tradução pela Katholieke Universiteit Leuven (Bélgica) desde 2001. Foi a primeira coordenadora da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde leciona desde 1996 no Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras. Coordena atualmente a Pós-Graduação em Formação de Professores de Tradução Literária a Distância UFSC-MEC. Publicou em 2004 a
    Antologia Bilíngue Francês Português Clássicos da Teoria da Tradução e o livro
    Variations sur l'étranger dans les lettres: cent ans de traductions françaises des lettres brésilienne; publicou em 2006, com Guerini e Costa, o primeiro
    Dicionário de Tradutores online (DITRA) e o livro
    Literatura Traduzida/Literatura Nacional em 2008. Traduziu recentemente com Furlan e Guerini
    A tradução e a letra ou o albergue do longínquo, do teórico francês Antoine Berman (2007).
  • *1
    . (TORRES, Marie Helene C.
    Variations sur l'étranger dans les lettres. Cent ans de traductions françaises des lettres brésiliennes. Lilles: Artois Presse Université, 2004.)
  • *2
    . (COELHO, Paulo.
    L'alchimiste. Trad. Jean Orecchionni. Paris: Anne Carrière, 1994: 8.)
  • *3
    . (VENUTI, Lawrence.
    The scandals of translations. Lon-don/New York: Routledge, 1998: 124.)
  • *4
    . (Ibidem: 124.)
  • *5
    . (Ibidem: 124.)
  • *6
    . (PYM, Anthony.
    Method in Translation History. Manchester: St Jerome, 1998: 150.)
  • *7
    . (CASANOVA, Pascale.
    La république mondiale des lettres. Paris: Seuil, 1999: 173.)
  • *8
    . (Ibidem: 174.)
  • *9
    . (VENUTI, Lawrence.
    The scandals of translations: 125.)
  • *10
    . (Ibidem: 126.)
  • *11
    . (Ibidem: 126.)
  • *12
    . (Ibidem: 127.)
  • *13
    . (COELHO, Paulo.
    Sur le bord de la rivière Piedra je me suis assise et j'ai pleuré. Trad. Jean Orecchioni. Paris: Anne Carrière, 1995.)
  • *14
    . (VENUTI, Lawrence.
    The scandals of translations: 155.)
  • *15
    . (CASANOVA, Pascale.
    La république mondiale des lettres: 237.)
  • *16
    . (Ibidem: 237.)
  • 1
    A expressão é de Deleuze e Guattari citados por Venuti em "Translation and Minority".
    The Translator, v. 4, n. 2. Manchester: St Jerome, 1998: 139-41.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009
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