Acessibilidade / Reportar erro

Habitando uma vitrine-membrana: entre dentro e fora

Inhabiting a glass-membrane: between inside and outside

Habitar en una vitrina membrana: entre el interno y el externo

CRIAÇÃO

Habitar en una vitrina membrana: entre el interno y el externo

Juliana Araújo SilvaI; Elizabeth Maria Freire de Araújo LimaII

ICAPS Infantil II, Brasilândia. Rua Manoel Madruga, 129, Freguesia do Ó. São Paulo, SP, Brasil. 02.960-020. juliana.arsi@gmail.com

IICurso de Graduação em Terapia Ocupacional, Universidade de São Paulo

Quem habita?

O Projeto Cidadãos Cantantes existe há vinte anos e é formado por duas oficinas: um coral cênico e uma oficina de dança e expressão corporal. Este projeto, que transita entre os campos da cultura e da saúde, acontece num espaço público de cultura no centro de São Paulo e é aberto a todos que queiram experimentarem-se nestas linguagens. Ele surgiu propulsionado pelo movimento da luta antimanicomial, com a proposta de fomentar espaços de experimentação artísticas para todos, para pessoas quaisquer, independentemente de suas condições sociais ou de saúde. O projeto questiona a possibilidade de as pessoas ocuparem lugares de experimentação e produção de cultura, de modo que suas singularidades, incluindo o sofrimento psíquico, não sejam barreiras para a produção coletiva, mas, sim, um motor, uma matéria potente de trabalho tanto para a arte como para a produção de saúde.

Dentro e fora

Fora da sala, a vida urbana. Dentro da sala, mundos possíveis inventados por aqueles que a ocupam, atravessados pelos acontecimentos do lado de fora. Quando dentro, vemos todo um mundo fora: pessoas que passam rapidamente, de um lado para o outro, a todo momento, talvez a trabalho ou a passeio, com carroças, de terno, fazendo barulho, sozinhas, em grupos, fugindo da polícia com suas peças à venda ou utilizando-se da rua para dormir. O centro da cidade em toda a sua complexidade. O que podemos produzir no centro da cidade, quase na esquina da Ipiranga com a Avenida São João? Ocupamos um pedaço do centro, com seus movimentos, multiplicidade, velocidades, violência. Com sua história ligada à produção artística, às vezes esquecida. O que podemos produzir no centro da cidade, quase na esquina da Ipiranga com a Avenida São João?

As ruas do centro da cidade exercem diferentes funções durante as oficinas do Projeto Cidadãos Cantantes. Por elas, chegamos, e, também, nelas, avistamos, através das paredes da vitrine, algum outro participante chegar, vemos o comércio, e todos os movimentos que compõem aquela dinâmica paisagem. De dentro da sala, assistimos, pela vitrine, cenas que disparam reflexões nos participantes acerca do funcionamento da cidade.

Espanto, diversão, estranhamento..., o que acontece dentro da sala também provoca olhares de fora para dentro, interrompe as passagens apressadas pelo centro. Das paradas mais rápidas, que estabelecem pouco contato, aos encontros mais sutis, delicados e marcantes, a vitrine exerce sua permeabilidade, ela pulsa, produzindo um fluxo que ora conecta mais o dentro com o fora e ora menos. Os ensaios duram, em média, duas horas, em que se alternam momentos nos quais a vitrine fica vazia de olhares, momentos em que vira uma parede de observadores, e momentos em que as trocas acontecem, por meio de falas, aproximações físicas, sorrisos...

Certa vez, após muito tempo olhando o ensaio da oficina de dança pela vitrine, uma mulher foi até a porta da galeria para perguntar o que acontecia ali. Quando convidada a entrar, perguntou: "Mas não é para pessoas doentes?" E foi embora. A vitrine funciona de forma similar a uma membrana, como a membrana celular, que separa o ambiente interno da célula do ambiente de fora, mas que permite e controla um fluxo de trocas entre os dois: proteção e permeabilidade; separação e contato. No nosso caso, a vitrine-membrana, com sua parede de vidro, separa, do lado de fora, a cidade, em suas formas majoritárias, fervilhando em movimentações, e, do lado de dentro, espaços de lentificação, povoados de experimentações e de procedimentos de minoração.

A construção de um dentro

No caminho em direção à entrada da Oficina de Dança, no corredor da galeria, encontro o que parecia ser uma excursão de jovens, saindo em bando da direção do cinema. No caminho do bando, a sala, com participantes que já estavam há algum tempo a dançar. Percebo os jovens amontoarem-se em frente à entrada da sala, observando, rindo, comentando... Sem olhá-los nos olhos, ou me atentar a algum detalhe do que conversam, entro na sala. Cumprimento algumas pessoas, tiro o sapato, ouço a música e tento limpar a exposição. Fecho os olhos. Não há vontade de abri-los. Caminho a passos lentos, por partes frias e quentes do chão. As quentes são as partes aquecidas pelo sol na vitrine, me localizo. Ainda não há vontade de abrir os olhos, ou será coragem? Com os olhos fechados, percebo nuances de cores, serão efeitos das passagens das pessoas? Experimento a minha mão sob os olhos, escurecendo ainda mais a visão. Girando o corpo lentamente, percebo a direção do vento do ventilador, ouço os passos na sala, algumas corridas que vêm por trás de mim. Estendo os braços, nada. Caminho e estendo novamente, nada. Novamente, e um toque rápido e suado. Minha mão levemente molhada, procura de onde veio, mais um passo à frente. Mas é no outro braço que percebo um toque, que me lembra de um cotovelo. De quem será? Toques de cotovelos, antebraços, dedos, costas. Aos poucos, ainda sem ver, sinto outro corpo, quente e suado, que vai a me guiar. Agora, enroscados, estamos no chão. Pés com pés, depois só um, os dedos se encaixam, os peitos dos pés também. O outro pé está áspero e o corpo treme. Quem será? Por que treme? Encaixamos joelhos, e os movimentos parecem estar tão sintonizados, percebo que o outro corpo vai para debaixo de mim, subo, meus pés sentem a aspereza de uma calça jeans. Será que a pessoa me vê? Será que também está com olhos fechados? Sinto então vontade de abri-los, mas não abro. Vamos juntos subindo, na sala já silenciosa, num longo intervalo entre músicas. Em pé, volto ao chão. Tocamos somente as mãos, elas deslizam uma sobre a outra, os dedos e .... foi. Distanciamo-nos. Não há mais vontade de abrir os olhos.

Silêncio por um instante.

Pronto.

Já é possível abri-los e ver o dentro e o fora da sala.

A construção do dentro exige uma concentração da atenção e da presença das pessoas ligadas entre si, reforçando a vitrine, ou toda a sala como elementos de separação da rua. Não é somente o vidro que expõe o que acontece dentro, mas a porta da sala de ensaio, que fica sempre aberta. Construir um dentro é também fortalecer a vitrine como membrana, em sua função de filtragem do ambiente externo e seleção do que deve e do que não deve passar, possibilitando um contorno para os espaços das Oficinas.

No dia da despedida das estagiárias da Oficina do Coral, em meio ao clima intenso, frágil, entrou na sala um homem cujos passos batiam na madeira nos dando um susto. O barulho de seu andar tomou a sala e só foi interrompido pelo som de sua própria voz, que disse: "eu quero saber por que minha amiga está chorando". Desconcerto geral, ninguém parecia saber do que se tratava e nem o que dizer..., quando alguns começaram a balbuciar umas palavras, ele repetiu: "eu quero saber por que a minha amiga está chorando"..., novamente alguns tentaram começar falas que pareciam tomar a direção de negar que havia uma amiga chorando, quando então ele se dirigiu a outra parte da sala vitrine, que é em formato de L, onde não podíamos ver. Alguns participantes rapidamente levantaram e foram ver aonde ele ia, quando encontraram uma participante chorando, escondida num canto que não conseguíamos ver. Ele falou com a participante que chorava e se retirou da sala, desculpando-se. Permaneceu entre os participantes um misto de surpresa, espanto e preocupação com quem chorava.

Existe um fora turbulento e borbulhante em acontecimentos. O centro da cidade de São Paulo em suas contradições, precariedade, movimento e força. O Projeto acompanhou, nos últimos anos, semanalmente, os movimentos da região do Largo do Paissandu. Era possível perceber um clima apreensivo ao caminhar pela região, um pouco produzido pelo aumento do policiamento e pela diminuição das pessoas em situação de rua. Como se pudéssemos perceber, a cada dia, o investimento na mudança daquela paisagem.

Em um dia de ensaio, na Oficina de dança, quando fomos, em muitos, dançar pelo espaço da rua; uma alegria contagiava a maior parte do grupo, sair da vitrine em muitos, produzir vídeos, fotografias das experiências que aconteciam. Turbilhão de ideias, afetações durante o ensaio. Com o seu término, despedimo-nos e saímos da galeria em direção ao metrô. Tomada de alegria por tudo que acabara de acontecer naquela manhã de oficina, cruzo a São João entre viaturas, homens com walk-talkie, policiais, trabalhadores da Eletropaulo, faixas de isolamento. Naquele quarteirão, dois prédios estavam sendo ocupados há um ano. Nas janelas, os "moradores-ocupantes" olhavam todo aquele 'exército' prestes a retirá-los dali. Despejo. Desocupação. Tensões da cidade. Esta cena repetiu-se por mais algumas poucas vezes, até que a retirada, de fato, aconteceu, em um dia outro que não o do ensaio. Os moradores, então, se organizaram na calçada e, por cerca de duas semanas, os acompanhamos: cozinhando, conversando, suando ao sol, armando lonas, banhando seus filhos, tudo a céu aberto, expostos a todos. As pessoas, quando chegavam aos ensaios, comentavam de arrepio pela cena, por admiração do ato de resistência daquelas pessoas, ou por repulsa, por acreditar que o que acontecia bagunçava a cidade. Por alguns ensaios, bem em frente à vitrine, fomos acompanhados por aquelas pessoas, que então desapareceram.

Retiradas à forca? Negociações? Não acompanhamos. Numa sexta-feira, eles já não estavam mais lá. Houve boatos de que o prédio, cuja calçada ocuparam, viraria um local de moradia para famílias de artistas sem recursos financeiros. Os participantes que escutaram esse boato revoltaram-se e levantaram a questão deste recorte: por que famílias de artistas?

Apesar do sumiço das pessoas, alguém colocou fotografias nas paredes do prédio, provavelmente feitas quando as pessoas estavam ali. Fotografias das crianças brincando naquelas calcadas e ruas, e de jovens, possivelmente de participantes da ocupação.

Diante deste panorama, em um território fervilhando em contradições, convivemos com diferentes concepções sobre o valor da vida, a produção de saúde e de cultura, o uso do espaço público, o direito de ir e vir. No cotidiano apressado da cidade, tecem-se poucas possibilidades de se construírem fendas no tempo para refletir sobre os acontecimentos que envolvem o espaço urbano. Seria já uma ação de resistência manter este projeto aberto a todo e qualquer um que se interesse por um espaço público de cultura e manter uma porta aberta e desejante de novas entradas, em um contexto no qual se repetem, incessantemente, tentativas de segregar, esconder, extinguir ou eliminar certos modos de vida? Criar rupturas em processos que ora parecem ser impossíveis de frear, ou, mesmo, transformar coletivamente. Mesmo que essas intervenções sejam mínimas, sutis, marcam outra forma de convivência, de relação política, de pensar a vida e a existência, de produzir resistência no contexto biopolítico.

Criar rupturas: uma quase-performance

Quase-performance, um fluxo da membrana entre o centro e o fora. Uma outra relação com a vitrine. Um pulso que alimenta tanto os ensaios como o movimento na rua. Diferentemente das interrupções do fora da sala que dificulta a construção de um dentro, a permeabilidade exercida neste fluxo, de alguma forma, constrói outra relação entre o dentro e o fora da sala, abrindo, aos olhos da cidade, o trabalho em gestação que, ao ser exposto, assume uma forma já artística. O que acontece nos ensaios chama a atenção de muitos passantes e chega até a formar um público por um tempo razoável.

Certo dia, a proposta do início de ensaio da Oficina do Coral Cênico era que cada um bolasse um movimento Pirex. Pirex é o nome de uma música cantada pelo grupo há alguns anos. Realizamos uma roda e cada um foi mostrando o seu ser pirex: pulos, movimentos amplos com os braços, olhos bem abertos, barulhos agudos, chacoalhões. Em um círculo, observávamos uns aos outros, mas, aos poucos, fomos sendo observados por muitas pessoas do lado de fora da vitrine. Ao continuarmos o exercício, algumas pessoas foram entrando e sentaram-se para assistir ao que acontecia. Assim, o que partilhávamos entre nós ganhou outra dimensão ao chamar a atenção de quem passava no centro...

Esta abertura, para o público, de um trabalho que ainda se encontra em gestação configura-se como uma quase-performance. Quase-performance como um termo que sustenta uma dimensão de tangência, de aproximação com a performance e com elementos que a constituem, sustentada pela palavra quase. Quase: uma palavra que diz de uma aproximação, de algo que está por um triz para acontecer... Para Renato Cohen, a performance é uma expressão cênica e uma função do espaço e do tempo, "algo precisa estar acontecendo naquele instante, naquele local" (Cohen, 2009, p.28). É uma linguagem de experimentação. Para Marina Abramovic (2010), a performance poderia ser descrita de diferentes modos, mas, na experiência de seus trabalhos, ela se torna uma construção física e mental, em frente a um público, que acontece em um determinado espaço e tempo. O instante, em ambos os pensamentos, aparece como essencial na performance: o encontro entre o performer e um público.

Cohen (2009) escreve que a performance coloca, em xeque, diversos elementos, entre eles a representação e a realidade. Ele coloca que há uma ambivalência presente na prática da performance relativa ao nível de representação e de realidade que envolve o performer, que é, ao mesmo tempo, ele e um personagem. Ao mesmo tempo somos nós mesmos nos experimentando, no canto e na dança, no contato com o corpo do outro, em nossos próprios movimentos; com os olhares de fora somos também personagens. Para quem olha de fora, somos atores, cantores, bailarinos etc. Há pessoas que olham e voltam a andar, outras já chegaram a bater palmas, outras pessoas apontam e comentam com quem mais está diante da vitrine, e algumas tentam estabelecer contato, como um grupo de homens jovens que, certa vez, parou em frente à vitrine e por lá ficou um tempo, pedindo que cada pessoa do ensaio dançasse, escrevendo notas em um papel e, depois, dançando do lado de fora. Pausar e/ou lentificar o andar dos transeuntes, provocar uma outra cena naquela paisagem, seriam esses os componentes da intervenção dos ensaios?

Na exposição do trabalho em processo pela vitrine, expomos nossa singularidade de funcionamento, composta, também, por esta exposição, que se torna, assim, um tipo de marca das oficinas. Na performance, para Cohen (2009, p. 103), "o que interessa é uma marca pessoal ou uma marca de grupo, em caso de mais pessoas. É a definição de um estilo, de uma linguagem própria".

A quase-performance que flui entre o dentro e o fora. Habitar a exposição, expondo-se.

Poéticas menores: o que se quer das linguagens e das artes, nessas experiências?

Franco Berardi (2011) acredita que o atual campo de batalha político seja a sensibilidade. Em sua concepção, o modo como o capitalismo utiliza-se dos cérebros tem precarizado a vida, fragmentado os salários e a vida social, provocando agressividade, isolamento, e produzindo efeitos devastadores sobre a sensibilidade. Ele diz que

a sensibilidade é a capacidade de entender sinais que não são verbais, nem verbalizáveis. É a faculdade de discernir o indiscernível, aquilo que é demasiado sutil para ser digitalizado. Tem sido sempre o fator primário da empatia: a compreensão entre os seres humanos sempre se dá, em primeiro lugar, no nível epidérmico. (Berardi, 2011, s/p)

Neste campo de batalha, o sensível, matéria das artes e das experimentações do Projeto, está implicado nos processos de produção de subjetividade, como instrumento de modelização do sistema capitalista, e, ao mesmo tempo, como ferramenta de resistência que articula o coletivo a processos de singularização. Esta dupla implicação nos exige a produção de uma diferenciação no uso das linguagens: produzir um modo de fazer variar as linguagens de forma que sirva para produzir a diferença e sair da repetição.

Deleuze (2008) pergunta: como poderia um povo criar para si e criar-se em meio a abomináveis sofrimentos? Para o filósofo, a arte é o que resiste à morte, à servidão e à vergonha. Esta resistência acontece quando um povo reencontra algo da arte, que o faz criar a si mesmo por seus próprios meios. Pensamos que a Oficina de Coral Cênico e a Oficina de Dança aproximam-se de repertórios da arte o suficiente para produzir com eles poiesis singulares. A palavra grega poiesis é traduzida por fabricação, confecção, produção. Fabricação que culmina em uma forma, criação que engendra e organiza novas realidades. "Criação não no sentido hebraico de fazer algo a partir do nada, mas no sentido grego de gerar e produzir dando forma a partir de uma matéria preexistente e ao mesmo tempo prenhe de potencialidades" (Souza, 2007, p.86).

A poiesis efetuada por uma operação de minoração permite que as experiências das oficinas do Projeto aconteçam de formas distintas entre elas. No Coral Cênico, o uso da linguagem musical procura construir um plano de compartilhamento de enunciados comuns e provocar, nos participantes, processos de construção de si dentro do trabalho coletivo, a fim de poder construir este plano. A afinação, elemento importante no trabalho musical, é buscada pelos participantes e pela coordenação, mas não é o essencial, e, nas músicas apresentadas pelo grupo, a desafinação surge. Na Oficina de Dança, a construção de poéticas acontece em um forçamento que se faz da linguagem. Na pouca procura por técnicas de dança e na grande exploração do contato e do movimento que surge pelas sensações, o grupo tensiona os limites da linguagem, fazendo com que as experimentações caibam em uma fragilidade sustentada pelas intensidades que constituem o que se vê.

Operar coletivamente um fluxo de criação ao questionar o que pode a dança, ao invés de buscar encaixar a poética/o trabalho em um estilo de dança ou se perguntar se é dança ou não aquilo que é feito. Passos marcados, técnicas reconhecidas, perfis corpóreos, graus de elasticidade, precisão de movimentos..., nada disso importa. Importam, sim, elementos que colaborarem com a fruição da criação do grupo. Acontece que, em determinados momentos, para permitir que o movimento ganhe em expressividade, sente-se a necessidade de conhecer esta ou aquela técnica de suspender outro corpo, por exemplo, e alguém resgata um conhecimento que tem, ou o grupo bola um modo desta suspensão acontecer, ou planeja-se fazer uma oficina de uma técnica específica. Poieses são atos de tecer sentidos e formar poéticas com matérias diversas, com elementos de um campo coletivo. É também um ato político.

Ligada à potência criativa dos corpos e da vida acontece uma certa produção de saúde. É um investimento na dimensão de criação do homem, para que ele possa ser - como escreveu Deleuze (2008), a respeito do escritor - um médico de si e do mundo. Nesta aliança, busca-se uma possibilidade de ir além da vida, que se expressa pelo mero fato de viver para que a vida, como o verbo, possa "pegar delírio", pois, como diz Manoel de Barros,

No começo era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. Em poesia que é a voz do poeta, que é a voz de fazer nascimentos - o verbo tem que pegar delírio. (Barros, 1997, p.17)

Aqui, afirmamos que a vida deve ser ultrapassada em sua dimensão de naturalidade, de organicidade, e deve pegar delírio ao embarcar em sua potência de invenção. Deleuze (2006, p.14) indaga "qual saúde bastaria para liberar a vida em toda parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior dele?" Pensamos que seria aquela saúde que permita a tudo aquilo que é vivo fabricar e variar conforme os diferentes momentos da vida, que seja a saúde que proporcionaria sustentação aos delírios necessários para viver. Delírios como momentos intensivos, momentos de encontros, momentos de conexão com o mundo, momentos de criação. Esta saúde não visa estabilidades, bem-estar, ausência de doenças, de conflitos, não teme a fragilidade do corpo em sua organicidade, não teme o perecimento do corpo. Talvez esta seja a saúde necessária para o exercício de resistência contemporâneo. Com prudência, interessa a esta produção de saúde que os corpos possam experimentar-se e estar abertos, a cada vez, para os encontros que produzem afetos alegres que os tornam potentes, proporcionando o conhecimento necessário para que possam continuar no exercício de estarem juntos, em comum, em composição, colaborando para a inventividade coletiva.

Desta forma, ao buscarmos esta saúde no Projeto, talvez possamos permanecer cantantes e dançantes, contagiando os passantes da cidade, bebendo do ambiente da cidade, tocando uns aos outros e nos olhando. Amizade? Camaradagem?

O importante talvez seja buscar uma saúde suficientemente forte, que afirme a fragilidade do corpo e das relações com o mundo, e sustente que não tememos a morte orgânica, e que nos permita compreender o que nos faz viver. Que sustente os encontros delicados e duradouros deste Projeto. Camaradagem de criação, possivelmente, pois afinal

criar não é comunicar mas resistir. [...] É a potência de uma vida não orgânica, a que pode existir numa linha de desenho, de escrita ou de música. São os organismos que morrem, não a vida. Não há obra que não indique uma saída para a vida, que não trace um caminho entre as pedras. (Deleuze, 2008, p.179)

Então, tratemos de seguir criando para que, eventualmente, possamos experimentar um pouco da liberdade vital.

Alguém vem junto?

Recebido em 18/11/12

Aprovado em 17/03/13

  • ABRAMOVIC, M. The artist is present New York: The Museum of Modern Arts, 2010.
  • BARROS, M. O livro sobre o nada Rio de Janeiro: Record, 1997.
  • BERARDI, F. A sensibilidade é hoje o campo de batalha político Entrevista ao site Boca do Mangue. Disponível em: <http://bocadomangue.wordpress.com/2011/01/30/"a-sensibilidade-e-hoje-o-campo-de-batalha-politico"/>. Acesso em: 15 jan. 2012.
  • COHEN, R. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2009.
  • DELEUZE, G. Conversações Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2008.
  • ______. Crítica e clínica Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2006.
  • SILVA, J.A. Poéticas e marginalidade: experiências no Projeto Cidadãos Cantantes. 2012. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis. 2012.
  • SOUZA, J.M.R. As origens da noção de poieses. Hypnos, v.13, n.19, p.85-96, 2007.
  • Habitando uma vitrine-membrana: entre dentro e fora

    Inhabiting a glass-membrane: between inside and outside
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
    UNESP Distrito de Rubião Jr, s/nº, 18618-000 Campus da UNESP- Botucatu - SP - Brasil, Caixa Postal 592, Tel.: (55 14) 3880-1927 - Botucatu - SP - Brazil
    E-mail: intface@fmb.unesp.br