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Hermenêutica e humanização das práticas de saúde

Hermeneutics and humanization of the health practices

Resumos

O conceito de humanização tem ocupado um lugar de destaque nas atuais propostas de reconstrução das práticas de saúde no Brasil, no sentido de sua maior integralidade, efetividade e acesso. Embora muito já tenha sido feito em termos da discussão e reestruturação das tecnologias e do planejamento dos serviços, há, comparativamente, ainda escassos trabalhos sobre as bases teóricas e filosóficas para as mudanças propostas. Este ensaio reflexivo busca explorar o potencial da hermenêutica para responder a esta tarefa essencial, se buscamos uma revisão verdadeiramente radical do significado e organização das práticas de saúde. Nesse sentido, a hermenêutica contemporânea é aqui revisitada em relação a alguns dos desafios éticos e epistemológicos relacionados aos ideais de humanização das práticas de saúde.

Humanização; Hermenêutica; Práticas de saúde; Filosofia; Gadamer; Habermas


Humanization is a key concept in recent proposals for the reconstruction of health practices toward a more comprehensive, effective and accessible care in Brazil. Although much effort has already been made to discuss and rebuild technologies and services planning, there is a comparatively scarce work upon theoretical and philosophical bases for these changes. This reflexive essay aims to explore the potential of Hermeneutics to respond to this essential task, if we are to a truly radical review of health practices meaning and organization. Contemporary hermeneutics is then revisited with regard to some of the ethical and epistemological challenges related to health practices humanization goals.

Humanization; Hermeneutics; Health practices; Philosophy; Gadamer; Habermas


ARTIGO ARTICLE

Hermenêutica e humanização das práticas de saúde

Hermeneutics and humanization of the health practices

José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres

Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo 455, sala 2.222, Cerqueira César, 01246-903, São Paulo SP. jrcayres@usp.br

RESUMO

O conceito de humanização tem ocupado um lugar de destaque nas atuais propostas de reconstrução das práticas de saúde no Brasil, no sentido de sua maior integralidade, efetividade e acesso. Embora muito já tenha sido feito em termos da discussão e reestruturação das tecnologias e do planejamento dos serviços, há, comparativamente, ainda escassos trabalhos sobre as bases teóricas e filosóficas para as mudanças propostas. Este ensaio reflexivo busca explorar o potencial da hermenêutica para responder a esta tarefa essencial, se buscamos uma revisão verdadeiramente radical do significado e organização das práticas de saúde. Nesse sentido, a hermenêutica contemporânea é aqui revisitada em relação a alguns dos desafios éticos e epistemológicos relacionados aos ideais de humanização das práticas de saúde.

Palavras-chave: Humanização, Hermenêutica, Práticas de saúde, Filosofia, Gadamer, Habermas

ABSTRACT

Humanization is a key concept in recent proposals for the reconstruction of health practices toward a more comprehensive, effective and accessible care in Brazil. Although much effort has already been made to discuss and rebuild technologies and services planning, there is a comparatively scarce work upon theoretical and philosophical bases for these changes. This reflexive essay aims to explore the potential of Hermeneutics to respond to this essential task, if we are to a truly radical review of health practices meaning and organization. Contemporary hermeneutics is then revisited with regard to some of the ethical and epistemological challenges related to health practices humanization goals.

Key words: Humanization, Hermeneutics, Health practices, Philosophy, Gadamer, Habermas

A possibilidade de o outro ter direito é a alma da hermenêutica

Hans Georg Gadamer

Qual humanização?

Observa-se no Brasil fecundos e relevantes debates e iniciativas em torno da noção de humanização, relativos à organização da atenção à saúde em diferentes aspectos e dimensões. Em recente artigo, Deslandes (2004a) identificou e discutiu diversos sentidos assumidos por esta noção em documentos veiculados pelo Ministério da Saúde, tais como: oposição à violência institucional; qualidade do atendimento, associando excelência técnica com capacidade de acolhimento e resposta; cuidado com as condições de trabalho dos profissionais; e ampliação da capacidade de comunicação entre usuários e serviços. São, portanto, bastante amplas e diversas as possíveis aproximações à questão.

A perspectiva que se busca assumir no presente estudo considera a humanização em um sentido genérico, que atravessa, na verdade, as diferentes dimensões tratadas por Deslandes. Diz respeito, fundamentalmente, a uma perspectiva filosófica, a partir da qual o ideal de humanização pode ser genericamente definido como um compromisso das tecnociências da saúde, em seus meios e fins, com a realização de valores contrafaticamente relacionados à felicidade humana e democraticamente validados como Bem comum.

Há, na definição acima, elementos que precisam ser elucidados, não só para se compreendê-la melhor, como também para que fique mais clara a contribuição que se pretende trazer com este ensaio. Antes de mais nada, trata-se de situar seu horizonte normativo, entendido como uma inescapável referência ética e moral que orienta qualquer formação discursiva, e que, especialmente nos discursos que visam à regulação da vida social, é elevada à condição problemática, isto é, reclama ativamente processos de validação intersubjetiva, de legitimação social (Habermas, 1988). Destaque-se, nesse sentido, a ampliação do horizonte normativo proposta pela definição acima, expandindo-o da referência à normalidade morfofuncional, própria ao plano tecnocientífico que caracteriza a medicina desde a Modernidade (Luz, 1988), até a idéia mais ampla de felicidade.

Nessa ampliação, por si só, já começam os conteúdos propositivos deste ensaio. De fato, acredita-se que não é possível querer transformar nossas práticas de saúde se não tirarmos de uma, já desconfortável, estabilidade acrítica os critérios que tomamos para avaliar e validar a correção ética e moral de nossas ações na saúde. Quando tomamos os conteúdos estritamente tecnocientíficos das práticas de saúde, sabemos que contamos com critérios bastante bem definidos e validados, com alto grau de objetivação e formalização sobre o que e como fazer – quais formas, funções e riscos devemos preservar, favorecer ou controlar no manejo biomédico dos organismos. Mas entendemos aqui que o debate sobre a humanização trata, justamente, de expandir as preocupações das práticas de saúde desde este seu núcleo mais instrumental até o seu conteúdo relacional e formativo (Bildung) (Gadamer, 1996), sempre presente de alguma forma, mas relativamente pouco discutido em tempos recentes. Isto é, a humanização, como valor, aponta para a dimensão em que o cuidar da saúde implica reiterados encontros entre subjetividades socialmente conformadas, os quais vão, progressiva e simultaneamente, esclarecendo e (re)construindo não apenas as necessidades de saúde mas aquilo mesmo que se entende ser a Boa vida e o modo moralmente aceitável de buscá-la (Ayres, 2004). Quanto mais formos capazes de identificar e trabalhar esses aspectos, tanto mais seremos capazes de reconstruí-los.

A humanização, nos termos da definição acima elaborada, aspira, assim, a uma ampliação de horizontes normativos capaz de escapar à restrição da conceituação de saúde ao problema tecnocientífico estrito dos riscos, disfunções e dismorfias. Mas também quer fugir, de outro lado, a uma ampliação excessivamente abstrata desse horizonte, tal como vimos acontecer na clássica definição da saúde como "estado de completo bem-estar físico, mental e social" difundida pela Organização Mundial de Saúde no final dos anos 70 (Alma-Ata, 2001). Com efeito, sem desconsiderar a importância política que esta definição teve e continua a ter no cenário da saúde pública mundial, é preciso reconhecer que a concepção de saúde como um "estado" de coisas, e "completo", imprime uma tendência naturalizante, uma visão essencialista ao conceito de saúde. Obstaculiza-se, sob essa visão, a identificação clara dos horizontes normativos dessas práticas, já que estes, como quaisquer horizontes, devem mover-se continuamente, conforme nós próprios, seus sujeitos, nos movemos – não é um estado, portanto, mas um devir. Da mesma forma, não podem nunca estar completos, pois as normas socialmente associadas à saúde, ao se deslocarem os horizontes, precisarão ser reconstruídas constantemente – é incompleto, portanto, é sempre um projeto em curso.

A felicidade como horizonte normativo da humanização

A noção de "projetos de felicidade" (Ayres, 2001) aproxima-se desse horizonte normativo expandido que a discussão da humanização quer trazer. Ela remete a experiências vividas, valoradas positivamente, experiências estas que, freqüentemente, independem de um estado de completo bem-estar ou de perfeita normalidade morfofuncional. É justamente essa referência à estreita relação entre experiência vivida, valor e aspirações – implícita na idéia existencial de projeto (Heidegger, 1995) – e às relações entre os diversos valores que nos orientam e os processos de adoecimento e seu cuidado e prevenção, que parece ser o núcleo mais essencial das propostas de humanização e seu ideal de transformação.

É preciso, porém, assumir a noção de "projeto de felicidade" como uma construção de caráter contrafático. Esse neologismo, de caráter conceitual, deriva da filosofia de Habermas (1990), que lança mão da expressão sempre que busca referir-se a "valores quase-transcendentais", isto é, a idéias ética e moralmente norteadoras, de aspirações universais, mas construídas a partir da percepção do valor para a vida humana de determinadas idéias ou práticas a partir do momento, e na exata medida, em que estas são obstaculizadas, negadas por alguma experiência concreta. Isto é, elas são percebidas justamente porque foram negadas e, ao o serem, mostraram-se fundamentais. O que queremos dizer ao afirmar que a noção de projeto de felicidade deve ser sempre entendida como uma construção contrafática, portanto, é que julgamos que se deve recusar qualquer tentativa de definição a priori de seus conteúdos. Projetos de felicidade serão acessíveis apenas e sempre a partir de obstáculos concretos à realização dos valores associados à experiência dos indivíduos e comunidades. Isto é fundamental, se queremos evitar qualquer um de dois tipos igualmente indesejáveis de fundamentalismo. O primeiro deles seria o de querer determinar de modo objetivo e universalista o que seja a felicidade. Num outro extremo, estaria um idealismo excessivamente abstrato, descolado das experiências vividas, que criticamos na definição da OMS. A felicidade não pode ser vista, enfim, como um bem concreto, uma entidade. Mas ela tampouco é utopia. A experiência da felicidade, ou de sua falta, é uma vivência bastante concreta. Mas ela é índice de si mesma, isto é, não se deixa medir por nada fora dela, e ao mesmo tempo está em estreita relação com tudo aquilo pelo qual buscamos dimensioná-la, como uma espécie de "bússola existencial", que nos dá o norte sem ser o norte. A felicidade nunca deixa de fazer notar sua falta e, pela sua ausência, algo que nos está faltando.

Na mesma linha acima indicada, parece claro hoje que, embora se aceite que a felicidade humana é, em essência, uma experiência de caráter singular e pessoal, a referência à validação democrática de valores que possam ser publicamente aceitos como propiciadores dessa experiência é do que parece tratar-se quando se discute a humanização da atenção à saúde como uma proposta política – envolvendo as instituições do Estado, mas não necessariamente restrita a elas. Nisso não nos afastamos muito do que importantes tratamentos filosóficos da felicidade mostraram ser a indissociabilidade das idéias de felicidade, racionalidade e vida em sociedade, e isso em pensadores tão diversos, em seus caminhos e conclusões, como Kant e Espinosa. No seu racionalismo da imanência, Espinosa (1632-1677) associa a felicidade a uma experiência amorosa, de pertença produtiva a Deus, ao mundo, ao humano – o que não se confunde com uma experiência mística, mas sim com a "bem-aventurada" experiência intelectual de viver a potência criadora que se expressa num deliberado auto-refreamento das paixões (os maus afetos), decorrente da compreensão do Bem comum. "A felicidade não é o prêmio da virtude, mas a própria virtude, e não gozamos dela por refrearmos as paixões, mas ao contrário, gozamos dela por podermos refrear as paixões" (Espinosa, 1991). O iluminista Kant (1724-1804), com base na sua razão transcendental, vai ver na felicidade uma conquista (moral) da razão (prática), uma recompensa por esta conquista, e não uma condição para ela qual uma qualidade imanente da razão: "...a disposição moral é a condição que, antes de mais, torna possível a participação na felicidade e não ao contrário, a perspectiva da felicidade que torna possível a disposição moral" (Kant, 1994). De qualquer modo, em que pesem as diferenças entre o imanentismo de um e o transcendentalismo de outro, ambos situam a felicidade como um índice racionalmente inteligível de orientação prática a formas de vida que nos satisfazem desde uma perspectiva, simultaneamente, pessoal e compartilhada.

Embora não pretendamos levar mais longe aqui essa reflexão filosófica sobre a felicidade, é importante apontar essas referências mútuas. O racional é, entre outras potencialidades suas, uma forma de regulação das nossas relações intersubjetivas, da nossa vida em sociedade (Habermas, 2004). Ao mesmo tempo, é na felicidade, isto é, no sucesso prático dessa regulação que a razão obtém a certificação última de a estar promovendo. No mesmo sentido, podemos dizer que a vida em sociedade é que fornece para nós, seres racionais, as referências objetivas pelas quais orientamos nossos projetos de felicidade.

Daí a importância de entendermos a humanização em sua inexorável politicidade e socialidade e, por conseguinte, em suas importantes implicações institucionais. A problemática de que trata a humanização não se restringe ao plano das relações pessoais entre terapeutas e pacientes, embora chegue até ele. Não se detém em rearranjos técnicos ou gerenciais das instituições, embora dependa deles. Trata-se de um projeto existencial de caráter político, trata-se de uma proposta para a "polis".

Outro aspecto ainda a ser destacado nesse território onde situamos nossa compreensão filosófica sobre o assunto é o caráter contraditoriamente central das tecnociências na busca da humanização das práticas de saúde. Isto é, se as tecnociências biomédicas vêm construindo e se orientando por um horizonte normativo restrito e restritivo em relação ao que se quer entender hoje por saúde, e daí o movimento da humanização, é verdade também que são essas mesmas tecnociências que constroem a base substantiva das experiências (fatos) em relação às quais podem ser construídos (contrafaticamente) os horizontes de felicidade associados à saúde. Por isso, se não parecem fecundas as proposições que restringem o caminho para a superação dos limites atuais das práticas de saúde exclusivamente ao desenvolvimento e acesso científico-tecnológico, num messianismo cientificista insustentável, de nada servirá também migrar para seu oposto, num anticientificismo igualmente estéril, que ignora que os criadores e mantenedores das tecnociências são os próprios humanos e que esta capacidade tecnocientífica distingue ontologicamente o humano, tanto quanto abre para ele renovadas e infinitas possibilidades de relacionar-se com seu mundo (Teixeira, 2003).

Por isso, seja em relação às suas finalidades, seja no que se refere aos seus meios técnicos ou gerenciais, o que este ensaio toma como o norte e desafio central da humanização não pode ser equacionado como a necessidade de "mais tecnociência", nem tampouco de "menos tecnociência", mas sim como o interesse por um progressivo enriquecimento do reconhecimento e reconstrução das relações entre os fundamentos, procedimentos e resultados das tecnociências da saúde e os valores associados à felicidade a cada vez reclamados pelos projetos existenciais de indivíduos e comunidades.

Sendo assim, sustenta-se aqui que: (1) ao buscar recolocar ativamente sob regime de validação as dimensões normativas da saúde, buscando ver, através e para além dos seus conteúdos tecnocientíficos os seus significados relacional-formativos, as propostas de humanização das práticas de saúde reclamam critérios para a construção de consensos diversos daqueles exigidos para a validação dos saberes e ações mais restritos à instrumentalidade tecnocientífica; (2) os processos de construção dessa outra natureza de consenso exigem um esforço de renovação que se expande desde a esfera normativa, para outras, nas quais ela está também apoiada, reclamando novos conhecimentos objetivos e perspectivas subjetivas capazes de sustentar as novas interações desejadas.

A reconstrução dos consensos nas práticas de saúde

Sendo um projeto para a polis, como dizíamos acima, os processos de reconstrução orientados à humanização estendem-se por um amplo espectro de espaços onde são socialmente construídas as práticas de saúde, desde os fóruns de definição e pactuação das políticas até o espaço assistencial. Atravessando esses diversos planos, os discursos da humanização vão se plasmando e buscando produzir entendimento público acerca do que seja correto, verdadeiro e autêntico fazer em relação à saúde de indivíduos e comunidades, ou, em termos habermasianos, construindo suas pretensões de validade intersubjetiva nas esferas normativa, proposicional e expressiva, respectivamente (Habermas, 1988; 2004).

Embora em processos comunicativos concretos as três esferas acima sejam inseparáveis umas das outras, os discursos problematizadores de um certo regime de crenças tenderão a privilegiar sempre uma dessas esferas de validade, destacando-a do pano de fundo do "mundo da vida", embora sempre em relação com as demais esferas (Habermas, 1988). Assim, nos discursos que buscam alguma forma de problematização das normas que regulam as interações humanas, é a esfera normativa que se destacará sobre as demais. Nos discursos cognitivos, aqueles que buscam afirmar a possibilidade de aceitar algum fato ou dado objetivo como verdadeiro, como os discursos tecnocientíficos, é o plano proposicional que orientará a argumentação. Por fim, os discursos que buscam identificar ou afirmar que um sujeito se apresenta autenticamente frente a outro, ou que uma dada manifestação é autenticamente representativa de uma certa perspectiva subjetiva, será o plano expressivo que estará em processo de validação (Habermas, 1988).

Assim, também no caso da humanização das práticas de saúde, os discursos reconstrutivos admitem essas três diferentes pretensões de validade – normativa, proposicional e expressiva. Conforme sustentamos acima, entendemos ser constitutivo do processo de discussão da humanização das práticas de saúde no Brasil a convicção de que a tarefa reconstrutiva não se restringe à esfera proposicional das tecnociências da saúde, mas estende-se ativamente aos planos normativos e, até mesmo, expressivos, como apontado por Deslandes (2004b) e Onocko-Campos (2004). Há que se atentar, entretanto, para o fato de que, no caso das práticas de saúde, sem ser exclusividade delas, mas sendo especialmente marcante nelas, a esfera proposicional das tecnociências ocupa um lugar de extraordinária importância na mediação entre interesses subjetivos e regulação moral da vida (Gadamer, 1997b; Schraiber, 1997). Os sujeitos que participam dos encontros efetivados nos espaços da saúde tendem a se reduzir à unidimensionalidade conformada por uma leitura tecnocientífica, construtora de objetos, onde um é o próprio substrato dos recortes objetivos (o paciente) e o outro aquele que produz e maneja esses recortes (o profissional). Não se trata, portanto, de uma mediação qualquer, na qual sujeitos entendem-se acerca de um objeto, ou por meio de um objeto, mas uma mediação em que o manejo de objetos tende a substituir a interação dialógica por uma intervenção monológica, cujas finalidades e meios já se encontram definidas a priori, antes e para além dos seus participantes, tanto usuários quanto profissionais (Gadamer, 1997a). Esse "paroxismo instrumental" de uma racionalidade tecnocientificamente monopolizada (Habermas, 1987c), que coloniza de forma tão paralisante os processos interativo-formativos relacionados à saúde (Ayres, 2002a), talvez ajude a compreender por que uma das mais expressivas expressões do modo de ser do humano, o cuidado, esteja buscando... humanizar-se!

Ora, se as tecnociências biomédicas interferem sistematicamente nas possibilidades de expressão subjetiva e de regulação das interações nos processos de atenção à saúde, então será forçoso admitir que mesmo as reconstruções voltadas aos campos expressivo e normativo desses processos dependerão de um esforço dirigido à esfera proposicional. Em outras palavras, se as pretensões de validação intersubjetiva de proposições acerca da verdade sobre os fenômenos da saúde e da doença determinam tão fortemente as possibilidades (e impossibilidades) de construir consensos sobre o que é correto fazer na saúde e de pôr em cena os legítimos sujeitos dessas escolhas, então as propostas de humanização, em quaisquer dos campos e esferas sobre as quais se debrucem, precisarão se ocupar da questão do conhecimento na saúde. Mais que isso, sustentamos que nesse ocupar-se há uma tarefa de caráter essencialmente hermenêutico, no sentido crítico, próprio da síntese dialética que caracteriza a hermenêutica contemporânea (Minayo, 2002).

A dupla tarefa hermenêutica da humanização

Ainda que sem aderir às últimas conseqüências à tradicional partição de Dilthey (1980) entre ciências naturais e ciências do espírito, ou histórico-sociais, parece claro que existem diferenças significativas entre os discursos científicos. A natureza das exigências de validade que se colocam para a produção de discursos de verdade admitem uma grande variedade e que, grosso modo, podem ser agrupadas em dois grupos polares (Habermas, 1987a). Na direção de um pólo empírico-analítico estão aquelas ciências cujos juízos são validados com base em relações de necessidade, analítica e/ou empiricamente estabelecidas, que associam de modo vinculante seus conteúdos proposicionais, de modo completa ou incompletamente determinado – neste último caso, através de controles probabilísticos. Implicam regularidade e predição, configuram um saber explicativo, orientado para relações meios-fins e instruído pelo controle técnico. Nele situam-se as ciências que Dilthey chamava de ciências da natureza, ou o que se costuma chamar de ciências duras. No pólo inverso, sem que isso signifique necessariamente oposição, estão as chamadas ciências hermenêuticas, ou ciências do espírito, aquelas cujos juízos são validados pelo acordo logrado entre os sujeitos acerca da inteligibilidade e sentido de proposições que têm como origem e aplicação seu próprio auto-entendimento como sujeitos. Implicam significado e interpretação, configuram um saber compreensivo, orientado pelas relações parte-todo e motivado por interesses práticos, no sentido relacional-formativo acima discutido.

É preciso ter claro, em primeiro lugar, que não se trata aqui de uma taxonomia, de uma rígida classificação, mas sim da identificação de um eixo ao longo do qual os discursos científicos podem ser distinguidos em termos do tipo de evidência de que se querem fazer portadores e dos processos de validação que reclamam. Certamente uma série de senões cabe aqui. O primeiro deles diz respeito à artificialidade desta polarização, considerando-se o tanto de interpretação e auto-entendimento que sempre há em qualquer saber empírico-analítico, ou, na direção inversa, os diversos argumentos de base empírico-analítica envolvidos em qualquer hermenêutica, tal como apontado por filósofos de linhagens tão diversas quanto Quine (1962); Rorty (1988) e Ricoeur (1987). É de fato um artifício. Como um recurso analítico, porém, a polarização só quer indicar que, apesar de inescapáveis elementos hermenêuticos e empírico-analíticos em qualquer saber contemporâneo com pretensões de verdade, o aspecto nos quais esses discursos põem o acento de suas pretensões de validade, isto é, o tipo de argumento que se lhes é exigido para aceitação intersubjetiva, é de caráter bastante diverso (Granger, 1994). Uma evidência dessa diversidade é o fato mesmo de que, apesar de unidas por um sentido comum de busca de conhecimento verdadeiro, esses diferentes conteúdos e formas cognitivas vão conformar comunidades lingüísticas bastante distintas e institucionalizar-se de modo bastante independente, numa multiplicidade de disciplinas científicas, cada qual com todo um aparato institucional em que se apóiam a formação de seus pesquisadores, sua produção, seus veículos de divulgação, suas instâncias reguladoras, etc.

Outra natureza de senões diz respeito às distinções entre saberes tecnológicos e saberes científicos, entre ciências empíricas e ciências formais, entre os próprios saberes científicos e os de natureza filosófica. As fronteiras entre eles são tênues em algumas situações. Não cabe nos limites deste ensaio, contudo, entrarmos nesse tipo de discussão, até porque a tarefa hermenêutica implicada na humanização das práticas de saúde situa-se em um plano filosófico anterior a essas delimitações, e pode se desdobrar tanto em outros procedimentos propriamente filosóficos quanto científicos, de diversos matizes, e até mesmo tecnológicos. O problema de que nos ocupamos é a necessidade de revisitar os regimes de verdade que regem os saberes envolvidos nas práticas de saúde.

No presente ensaio fazemos nós mesmos essa revisita ao modo de uma reflexão filosófica, mas no campo concreto da reconstrução das práticas de saúde será preciso seguir construindo pesquisas empíricas, recuperações históricas, análises sociológicas, antropológicas, psicossociais, etc., desenvolvimento de tecnologias, enfim, um amplo conjunto de investigações que compreendam o que está sendo indesejavelmente "negado" na atual configuração da atenção à saúde e ajudem a reconstruí-la na direção dos valores da humanização.

Por isso dizíamos acima que há desafios reconstrutivos importantes no campo dos conhecimentos em saúde, e que frente a eles há uma importante tarefa hermenêutica. Se a necessidade de uma revisita foi suscitada pela compreensão das implicações da configuração atual dos saberes em saúde para a humanização (interesse prático), tendo como norte o diagnóstico de obstaculização instrumental de uma interação mais rica entre os sujeitos envolvidos nessas práticas (necessidade de auto-entendimento), então o pólo hermenêutico tem mesmo um relevante papel a cumprir aqui. E é uma dupla tarefa hermenêutica, como se vê. De um lado é preciso compreender os discursos tecnocientíficos hoje operantes na saúde; fazer sua hermenêutica para identificar onde e como propiciam ou obstaculizam a humanização. De outro lado, é preciso construir saberes que possam responder às novas necessidades de conhecimento e de tecnologias reclamadas pela expansão de horizontes normativos propostos com a humanização; fazer uma hermenêutica das relações entre saúde e os projetos de felicidade dos indivíduos e comunidades de que buscamos cuidar.

Elementos conceituais para uma hermenêutica da saúde

O termo hermenêutica designa genericamente "a arte e a ciência da interpretação" (Runes, 1985). Etimologicamente ligado a Hermes, deus grego que traduzia as mensagens do Olimpo para os mortais, o termo tem designado práticas e referenciais teóricos significativamente distintos, mas que têm em comum o sentido lato de interpretação e compreensão. É possível agrupar as diferentes linhas de produção em torno à hermenêutica em pelo menos três grandes grupos, que guardam entre si muitos pontos de contacto (Bleicher, 1992):

a) Teoria hermenêutica: originária dos movimentos do Renascimento e da Reforma, essa primeira acepção de hermenêutica referia-se a uma série de princípios e procedimentos metódicos para a interpretação de obras não contemporâneas. Estes conjuntos regionais de regras interpretativas organizavam-se, especialmente, em três grandes áreas: a exegese dos textos bíblicos, o trabalho filológico de interpretação de obras clássicas e a adequada interpretação e aplicação jurídica do espírito das leis (Schleiermacher, 1999). Schleiermacher (1768-1834), no ambiente acadêmico do romantismo alemão, unificou estas diversas hermenêuticas regionais em uma única ciência e arte da compreensão em geral. Este, na verdade, foi apenas o primeiro de três movimentos de ampliação do escopo da hermenêutica, que a conduziu da condição de simples técnicas interpretativas a uma filosofia, um modo de compreender a existência (Palmer, 1989). O segundo passo nessa direção foi dado por Dilthey (1833-1911). No contexto do historicismo, esse autor expandiu a teoria hermenêutica de um ramo do conhecimento à condição de fundamento epistemológico de todo conhecimento objetivo dos fenômenos humanos, ou Geisteswissenschaften (ciências do espírito). O que Dilthey sustentava é que, de modo diverso das ciências naturais, as ciências humanas seriam sempre reflexivas, isto é, o seu objeto de estudo incluía seu sujeito e, por isso mesmo, influenciava e era influenciado diretamente por ele, ao modo de um autoconhecimento. O que propôs, então, foi não lutar contra esta interferência, como acontecia nas ciências naturais, mas, ao contrário, tirar as conseqüências lógicas e metodológicas dessa inevitável circularidade histórica do conhecimento humanístico (que identifica e atribui significados a experiências das quais derivam suas possibilidades mesmas de identificar e significar). Confere, assim, consistência e validade epistêmica para os processos (auto)compreensivos que dão "objetividade" aos fenômenos humanos (Dilthey, 1980).

b) Filosofia hermenêutica: o terceiro movimento de ampliação da hermenêutica, e que a conduziu a suas feições contemporâneas, consiste numa reflexão metadiscursiva que funda na linguagem a compreensão não apenas das obras humanas, mas das próprias realidades humanas. Essa ampliação vai ter por base a proposição de Heidegger (1995) de que a compreensão, em sua circularidade e reflexividade, não é apenas um modo de se conhecer o humano, mas o próprio modo de ser humano. Ser é compreender-se. Assim, a hermenêutica filosófica incorpora uma série de princípios, conceitos e procedimentos oriundos da teoria hermenêutica, mas rompe radicalmente com sua aspiração objetivista, expandindo suas pretensões de universalidade do campo epistemológico, onde Dilthey originalmente a circunscrevera, até uma dimensão ontológica (Gadamer, 1996). Por isso, embora Gadamer (1900-2002), principal teórico da hermenêutica filosófica, indique claramente suas implicações para a epistemologia e o método científico, especialmente para as ciências humanas, ele não trata a hermenêutica como uma metodologia. Ele a entende como uma atitude filosófica, uma compreensão que conforma e sustenta procedimentos cognitivos de modo geral (Bernstein, 1983).

c) Hermenêutica Crítica: também chamada de crítica dialético-hermenêutica, designa proposições que atribuem à hermenêutica essa tarefa compreensiva fundamental, mas que enxergam limites na positividade lingüística para fundamentar uma interpretação efetivamente emancipadora dos fatos humanos, reclamando o movimento negador da crítica como elemento reconstrutivo dos discursos e de seu sentido prático (Habermas, 1987b; Apel 1985). Ou seja, compartilham com a hermenêutica filosófica, nos seus traços mais fundamentais, o modo como esta entende a possibilidade de acesso cognitivo aos fenômenos humanos – o círculo da compreensão, a reflexividade, a conexão entre interpretado e intérprete –, mas divergem no modo como enxergam as vocações e meios da hermenêutica nos processos concretos de conhecimento. Conforme detalharemos a seguir.

Hermenêutica filosófica e hermenêutica crítica não são, como já indicado, excludentes entre si (Minayo, 2002). Quando se trata de refletir sobre as tecnociências, seus pontos de convergência são, aliás, mais expressivos do que os de divergência. O que suas proposições têm de mais essencial é caracterizar-se como uma profunda rejeição da redução instrumental da racionalidade contemporânea, buscando resistir ao caráter fragmentário e auto-regulado a ela impresso pelo tecnicismo e reconciliar o conhecimento com seu sentido ético, moral e político (Stein, 1987). Em suma, a mais marcante contribuição de ambas, e alvo do seu interesse para os ideais da humanização, é seu compromisso com o resgate crítico do caráter histórico e social de qualquer conhecimento, inclusive o tecnocientífico.

Derivadas mais das trajetórias que levaram cada uma das escolas à hermenêutica do que a conflitos substantivos entre seus horizontes éticos, as diferenças entre filosofia hermenêutica e hermenêutica crítica residem na esfera onde suas interpretações buscam o significado histórico e social do seu interpretandum. A hermenêutica filosófica vai procurá-la na própria tradição discursiva que busca compreender. O procedimento hermenêutico fará "falar de novo" essa tradução desde uma possibilidade aberta pela própria inscrição do intérprete no caudal dos efeitos dessa tradição, ou na sua "história efeitual" (Gadamer, 1996). A hermenêutica crítica baseia-se em um distanciamento crítico que, a partir dos interesses práticos de reconstrução da vida social, explora dialeticamente os valores negados nos processos de comunicação que geraram, ou geram, os discursos interpretados.

Embora a questão central da filosofia hermenêutica, tal como desenvolvida por Gadamer, não tome como seu objeto de investigação a ação social, em si mesma, parece claro que também faz parte dos fundamentos de sua proposta filosófica um compromisso prático de transformação que gera a necessidade de distanciamento crítico. O princípio de applicatio, por exemplo, segundo o qual o "fazer falar de novo" hermenêutico depende das motivações práticas de um sujeito intérprete situado politicamente, e a assunção de que o modo de proceder hermenêutico é o de uma contínua conversação, em que a "dialética de pergunta e resposta" vincula toda interpretação às perguntas que movem o intérprete, nos dão conta da inexorável presença da crítica na filosofia hermenêutica, ainda que por caminhos diversos das formulações habermasianas (Grondin, 1999). É o próprio Gadamer quem o diz: Habermas sente falta em mim de uma intenção crítica e do pathos da emancipação que se encontra na idéia da razão tal como é apresentada pela filosofa das Luzes. Eu diria, neste ponto, duas coisas: antes de mais nada, é verdade que a nossa cultura se apóia na concepção unilateral da Razão herdada das Luzes, mas também naquilo que corrige essa unilateralidade... nossa herança romântica não devia opor-se ao pensamento inspirado pela tradição das Luzes. Ela mostra o contorno desta última e, a meu ver, é esse jogo de interações que abrirá caminho para um pensamento produtivo. Quanto à questão de saber se um pensamento ancorado na tradição pode ocultar uma dimensão crítica, responderei claramente: a crítica se encontra em todo o pensamento verdadeiro; não existe pensamento sem a distância que se manifesta em toda atitude de questionamento. E não existe pergunta sem a consciência de que para qualquer pergunta existem diversas respostas possíveis (Gadamer, 1990).

É possível dizer mesmo que as hermenêuticas de Gadamer e de Habermas são necessárias uma à outra na radicalidade de seus projetos. A filosofia hermenêutica revela-se de fato como uma parte, mais ainda, como a condição positiva de uma abertura dialética e substancial de sentido da história enquanto diálogo contínuo, só que, por suposto, se deixa mediar por sua empresa complementar: a análise, como crítica da ideologia, da práxis material correspondente a esse diálogo (Apel, 1985/II). A mesma posição é defendida por Paul Ricoeur (1988): ... de forma alguma pretendo abolir a diferença entre uma hermenêutica e uma crítica das ideologias. Cada uma, repito, possui um lugar privilegiado e, diria mesmo, preferências regionais diferentes: aqui, uma atenção às heranças culturais, talvez particularizada de modo mais decidido na teoria do texto; ali, uma teoria das instituições e dos fenômenos de dominação, polarizada na análise das reificações e das alienações. Na medida em que ambas têm necessidade de sempre se regionalizar para se assegurarem o caráter concreto de suas reivindicações de universalidade, suas diferenças devem ser preservadas contra todo confusionismo. Mas é a tarefa da reflexão filosófica colocar ao abrigo das oposições enganadoras o interesse pela emancipação das heranças culturais recebidas do passado e o interesse pelas projeções futuras de uma humanidade libertada. Se esses interesses se separarem radicalmente, a hermenêutica e a crítica ficarão reduzidas a meras... ideologias!.

A posição habermasiana toma a linguagem na perspectiva da ação dos sujeitos; seu objeto central é a ação social. De acordo com Habermas (1988), a estruturação lingüística da experiência (ou o conteúdo de experiência da linguagem) já carreia consigo determinados interesses e competências discursivas que se tornam a origem de distorções sistemáticas da comunicação, isto é, de assimetrias entre os diversos sujeitos que interagem pela linguagem na conformação dos discursos, as quais reproduzem e legitimam situações de iniqüidade, opressão, limitação, situações negadoras dos ideais de emancipação humana. Uma hermenêutica que não tome por tema a própria linguagem, isto é, que não se distancie dialeticamente dela para compreendê-la, terá, segundo Habermas, seu horizonte interpretativo predeterminado por essas assimetrias inscritas na linguagem e nas suas conformações discursivas. Assim, instruído pela idéia reguladora de um diálogo livre de dominação, pedra angular de sua filosofia, Habermas postula que uma hermenêutica crítica deve buscar identificar e superar os obstáculos comunicacionais à livre e democrática expressão discursiva dos diversos sujeitos em interação.

Na obra de Gadamer (1996) serão encontradas valiosas contribuições para a realização dessa hermenêutica profunda, proposta por Habermas. O leitmotiv da obra de Gadamer é a superação da dicotomia sujeito-objeto na compreensão dos fatos e obras humanos. Aquilo que para concepções positivistas do fato humano constitui um vício e um obstáculo – o círculo lógico em que se vê a compreensão, uma vez que quem compreende está incluído no que quer compreender –, para Gadamer, ao contrário, constitui a essência mesma do compreender. Essa coincidência entre conhecedor e conhecido é o que, desde Dilthey, é visto como a base de validação dos procedimentos interpretativos. É a totalidade vivida que, como pano de fundo, faz distinguir a forma particular do fenômeno humano, configurando o "círculo hermenêutico". Só a experiência de pertença em relação a tudo o que é humano permite compreender o fato ou a obra particulares, distinguir as experiências pretéritas e alheias das próprias, identificar, a um só tempo, o si mesmo e o outro.

Mas se Dilthey e a hermenêutica teórica, ao reconhecer essa pertença, buscavam através dela chegar a conhecer objetivamente o outro, seu horizonte histórico, colocar-se no seu lugar, Gadamer encara esse acesso ao outro não como um resgate de seu horizonte e sim como uma fusão de horizontes. Aquele que interpreta não decodifica uma experiência externa a si, a seu horizonte lingüístico, mas decodifica a sua própria experiência a partir de necessidades e possibilidades trazidas pelo horizonte lingüístico do outro. Na hermenêutica de Gadamer o interpretado suscita questões para o intérprete, mas é o intérprete que possibilita ao interpretado a proposição dessas questões. Através desta complexa dialética de pergunta e resposta, realiza-se, segundo Gadamer, o compreender incessante com o qual vamos, simultaneamente, decifrando e instaurando nosso mundo.

Em meio às duas formulações contemporâneas da hermenêutica acima destacadas, há uma série de outras posições e autores, tais como Betti, Bultmann, Hirsch etc. Dentre estes diversos autores, cabe ao menos uma menção a Paul Ricoeur (1987; 1988). Numa posição de certa forma intermediária entre Gadamer e Habermas, a hermenêutica de Ricoeur não se ocupa tanto da elucidação das tradições discursivas e dos fundamentos do compreender, como a filosofia hermenêutica, nem da crítica às deformações ideológicas que determinadas configurações discursivas reproduzem nas interações sociais e dos pressupostos comunicacionais dessas interações. A hermenêutica fenomenológica de Ricoeur ocupa-se, fundamentalmente, do modo como sistemas interpretativos elucidam-se mutuamente ao colocar-se em conflito na sua atualidade. Ricoeur confere à análise estrutural de um discurso um acesso importante a um sistema interpretativo que, segundo ele, só se deixa elucidar por essa via. A análise estrutural dos discursos, inspirada pela fenomenologia de Husserl, é que permite a uma tradição autenticamente "falar de novo". Mas é o olhar para o futuro, desde os sistemas lingüísticos que buscam responder a interesses emancipatórios de aqui e agora, que permite a apropriação hermenêutica de uma tradição, numa legítima fusão de horizontes. Sobre uma base hermenêutica, Ricoeur produz, portanto, uma produtiva síntese entre estruturalismo e fenomenologia, entre explicação e compreensão, entre mergulho numa tradição discursiva e sua apropriação crítica. Se a análise estrutural é que faz autenticamente ouvir uma tradição, é a compreensão hermenêutica que dá inteligibilidade ao que ela diz, fazendo com que fale "para nós", e permitindo reconstruir interpretações, linguagens, formas de ser e de interagir.

Do conceito à palavra, e de volta

Entendendo-se a humanização sob a perspectiva filosófica acima discutida, podemos traduzi-la como um ideal de construção de uma livre e inclusiva manifestação dos diversos sujeitos no contexto da organização das práticas de atenção à saúde, promovida por interações sempre mais simétricas, que permitam uma compreensão mútua entre seus participantes e a construção consensual dos seus valores e verdades.

A partir desta perspectiva, vê-se a importância de uma hermenêutica dos discursos científicos, estes que instruem de modo tão decisivo as práticas de saúde, para identificar a presença de aspectos de interdição desse ideal e localizar as lacunas que reclamam novos conceitos ou conhecimentos para serem preenchidos.

Com efeito, é necessário rever a impressionante penetração de conceitos e métodos das ciências empírico-analíticas e das tecnologias no campo da saúde ao longo do século 20 (Reiser, 1990), dando especial atenção ao impacto dessas tecnociências sobre os espaços de interação, diálogo e tomada de decisão. Toda uma vasta literatura nacional e estrangeira vem tratando, ao menos desde a segunda metade do século 20, dos limites práticos que sobrevieram aos êxitos impressionantes alcançados por uma leitura mecanicista e positivista do corpo e do adoecimento humanos e de propedêuticas e terapêuticas cada vez mais guiadas pelos aparatos tecnológicos de alta complexidade (Caprara & Franco, 1999). Aproximações hermenêuticas à questão talvez permitam avançar mais efetivamente do momento negador destas críticas a posturas mais ativamente reconstrutivas. Ao vincular-se à identificação, em contextos concretos de práticas, das perspectivas subjetivas e dos critérios reguladores envolvidos na positividade sócio-histórica de um dado discurso tecnocientífico, uma aproximação hermenêutica coloca-se em condições de reconhecer diversos interesses e resistências que se colocam naquele campo determinado de interações, estabelecendo novas possibilidades para sua ressignificação e reconstrução (Ayres, 2002b).

Não menos importante, contudo, é a segunda tarefa reconstrutiva da hermenêutica, e que diz respeito à sua aplicação não como um recurso metadiscursivo, isto é, uma reflexão que se debruça sobre os discursos já operantes na saúde, mas como princípio e atitude propiciadores da construção de novos discursos.

Se, como Habermas, Gadamer e Ricoeur nos permitem pensar, todo projeto de felicidade obstaculizado sugere a problematização de algum aspecto do mundo da vida dado até então como aceito e aceitável, então parece fundamental colocarmos todos os recursos que nos fornecem a hermenêutica para estimularmos e otimizarmos a emergência de novas discursividades e novas tecnologias com vistas à humanização. Essas possibilidades reconstrutivas se abrem a um campo bastante vasto de aplicações, já desde a compreensão dos processos de saúde-doença no âmbito da interação intersubjetiva no processo terapêutico (Caprara, 2003), até os planos mais abrangentes da gestão dos serviços e das políticas de saúde (Onocko-Campos, 2003).

Aqui, mais do que fazer falar de novo, trata-se de trazer novas vozes ao campo da saúde, seja de outras áreas científicas pouco ouvidas aí, seja de áreas não científicas que raramente se fazem ouvir, como a filosofia, a arte, o direito, as sabedorias tradicionais, os saberes populares, os saberes práticos. Aliás, esse trânsito entre os conceitos e entre estes e as linguagens não conceituais – as palavras altamente significativas de nossa linguagem cotidiana – é que, segundo a hermenêutica, faz a razão humana manifestar-se mais plenamente na sua condição emancipadora. Segundo Gadamer, a vocação mais própria da hermenêutica é alertar para a necessidade e as possibilidades desse trânsito: ... a hermenêutica, enquanto filosofia, não é qualquer disputa de métodos com outras ciências, teorias das ciências ou coisas que tais, senão um modo de mostrar que – e isso ninguém pode negar – em cada momento que pomos nossa razão a trabalhar, não fazemos apenas ciência. Sem levar a falar os conceitos, sem uma língua comum, não podemos encontrar palavras que alcancem o outro. O caminho vai da palavra ao conceito – mas precisamos chegar do conceito à palavra, se quisermos alcançar o outro (Gadamer, 2000).

Diversos conceitos filosóficos que levantamos aqui podem nos ajudar a adotar essa atitude, como a compreensão mesma de "ação comunicativa", ou os conceitos de "aplicatio", "história efeitual", "dialética de pergunta-resposta" e "fusão de horizontes". Tais conceitos mostram potenciais produtivos na dupla tarefa hermenêutica indicada – a metadiscursiva, de compreensão crítica das tecnociências da saúde (do conceito à palavra), e aquela que podemos chamar interdiscursiva, no sentido de uma abertura à interpenetração e recriação de saberes relevantes para a humanização da saúde (da palavra ao conceito).

Não se trata aqui, porém, apenas da disponibilidade técnica ou epistemológica de uma metodologia. Conforme apontado acima, a hermenêutica refere-se a uma espécie de ponto de partida filosófico. Trata-se mesmo do convite a uma aposta conseqüente e responsável na construção de interações progressivamente mais inclusivas e ricas no campo da saúde. Interações nas quais o horizonte normativo da normalidade morfofuncional seja ampliado à escala de uma felicidade existencial mais abrangente. Interações nas quais o conhecimento dos fatos que interessam à nossa saúde não se restrinja à positividade construída pelas ciências biomédicas, mas incluam de modo substantivo a reflexividade dos saberes humanísticos. Interações nas quais o sentido monológico de quaisquer desses discursos cognitivos seja substituído por um aproveitamento dialógico de seus conteúdos nas interações entre profissionais e serviços, de um lado, e usuários e comunidades, de outro. Enfim, interações nas quais os dois pólos encontrem canais sempre mais ricos para sua expressão como sujeitos, em sua multiplicidade de feições e aspirações, sem receio de se colocarem, um frente ao outro, como co-construtores de uma humanização que, afinal, é de interesse de ambos.

Artigo apresentado em 23/04/2005

Aprovado em 4/05/2005

Versão final apresentada em 9/05/2005

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Set 2005

Histórico

  • Aceito
    09 Maio 2005
  • Revisado
    04 Maio 2005
  • Recebido
    23 Abr 2005
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