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Trauma, memória e justiça em "A Morte e a Donzela", de Roman Polanski

Trauma, memory and justice in "Death and the Maiden, by Roman Polanski

Trauma, mémoire et justice dans "La mort et la Demoiselle", de Roman Polanski

Trauma, memoria y justicia en "La Muerte y la Doncella", de Roman Polanski

Resumos

O presente artigo analisa um filme inspirado em uma peça teatral de Ariel Dorfman, traduzida para o português como "A Morte e a Donzela". A película, que leva o mesmo título, foi lançada em 1994 sob direção de Roman Polanski. Trata-se de um suspense psicológico que conta com a participação de apenas três personagens: Paulina, Miranda e Escobar, interpretados por Sigorney Weaver, Ben Kingsley e Stuart Wilson, respectivamente. Colocando em pauta discussões de grande relevância para a Psicologia - como a questão da memória de um trauma, da elaboração psíquica e do potencial restaurador da justiça - este filme, juntamente com algumas contribuições de teóricos da atualidade, suscita reflexões de grande valia ao enfrentamento de impasses ligados à rememoração de catástrofes sociais em âmbito intersubjetivo e comunitário.

Cinema; Memória; Trauma; Justiça


This article analyses a film based on a play by Ariel Dorfman called "Death and the Maiden". The film, which carries the same title, was released in 1994 and directed by Roman Polanski. It is a psychological thriller featuring only three characters: Paulina, Miranda and Escobar, played by Sigorney Weaver, Ben Kingsley and Stuart Wilson, respectively. As it deals with themes highly relevant to Psychology - such as the memory of trauma, psychological elaboration and the restorative potential of justice - this film, along with some contributions from today's theorists, gives rise to considerations of great worth when dealing with issues related to the recollection of social catastrophes both intersubjectively and communally.

Cinema; Memory; Trauma; Justice


Ce texte présente le commentaire d'um film inspiré par une oeuvre théatrale d' Ariel Dorfman, qui s´appelle La mort et la demoiselle. Le film, qui a le même titre, est paru en 1994 dirigé par Roman Polanski. Il s'agit d'un thriller psychologique qui présente trois caractères: Paulina, Escobar et Miranda, joués par Sigourney Weaver, Ben Kingsley et Stuart Wilson, respectivement. Ce film met en jeu quelques thèmes très importants pour la Psychologie - comment la mémoire d'un trauma, l'élaboration psychique et le potentiel de la justice réparatrice -, complementés par les contributions de théoriciens contemporains, provoquent des refléxions importantes pour faire face aux impasses liés aux catastrophes sociales, soit intersubjectivement, soit collectivement.

Cinéma; Mémoire; Trauma; Justice


El presente artículo analiza una película inspirada en una pieza teatral de Ariel Dorfman, traducida al portugués como "A Morte e a Donzela". La película, que lleva el mismo título, fue lanzada en 1994 bajo la dirección de Roman Polanski. Se trata de un suspense sicológico que cuenta con la participación de apenas tres personajes: Paulina, Miranda y Escobar, interpretados por Sigourney Weaver, Ben Kingsley y Stuart Wilson, respectivamente. Poniendo en pauta discusiones de gran relevancia para la Sicología - como el problema de la memoria de un trauma, de la elaboración síquica y del potencial restaurador de la justicia -, esta película, junto a algunas contribuciones de teóricos actuales, suscita reflexiones de gran valor para el enfrentamiento de impases vinculados a la rememoración de catástrofes sociales en el ámbito intersubjetivo y comunitario.

Cine; Memoria; Trauma; Justicia


ARTIGOS ORIGINAIS

Trauma, memória e justiça em "A Morte e a Donzela", de Roman Polanski1 1 Este trabalho, em versão anterior, foi apresentado no Evento "Cine-Debate", em 5/9/2012, como parte da programação da Semana de Psicologia do Centro Universitário São Camilo.

Trauma, memory and justice in "Death and the Maiden, by Roman Polanski

Trauma, mémoire et justice dans "La mort et la Demoiselle", de Roman Polanski

Trauma, memoria y justicia en "La Muerte y la Doncella", de Roman Polanski

Thaís Seltzer Goldstein* * E-mail para correspondência: gold.thais@gmail.com

Centro Universitário São Camilo, São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

O presente artigo analisa um filme inspirado em uma peça teatral de Ariel Dorfman, traduzida para o português como "A Morte e a Donzela". A película, que leva o mesmo título, foi lançada em 1994 sob direção de Roman Polanski. Trata-se de um suspense psicológico que conta com a participação de apenas três personagens: Paulina, Miranda e Escobar, interpretados por Sigorney Weaver, Ben Kingsley e Stuart Wilson, respectivamente. Colocando em pauta discussões de grande relevância para a Psicologia - como a questão da memória de um trauma, da elaboração psíquica e do potencial restaurador da justiça - este filme, juntamente com algumas contribuições de teóricos da atualidade, suscita reflexões de grande valia ao enfrentamento de impasses ligados à rememoração de catástrofes sociais em âmbito intersubjetivo e comunitário.

Palavras-chave: Cinema. Memória. Trauma. Justiça.

ABSTRACT

This article analyses a film based on a play by Ariel Dorfman called "Death and the Maiden". The film, which carries the same title, was released in 1994 and directed by Roman Polanski. It is a psychological thriller featuring only three characters: Paulina, Miranda and Escobar, played by Sigorney Weaver, Ben Kingsley and Stuart Wilson, respectively. As it deals with themes highly relevant to Psychology - such as the memory of trauma, psychological elaboration and the restorative potential of justice - this film, along with some contributions from today's theorists, gives rise to considerations of great worth when dealing with issues related to the recollection of social catastrophes both intersubjectively and communally.

Keywords: Cinema. Memory. Trauma. Justice.

RÉSUMÉ

Ce texte présente le commentaire d'um film inspiré par une oeuvre théatrale d' Ariel Dorfman, qui s´appelle La mort et la demoiselle. Le film, qui a le même titre, est paru en 1994 dirigé par Roman Polanski. Il s'agit d'un thriller psychologique qui présente trois caractères: Paulina, Escobar et Miranda, joués par Sigourney Weaver, Ben Kingsley et Stuart Wilson, respectivement. Ce film met en jeu quelques thèmes très importants pour la Psychologie - comment la mémoire d'un trauma, l'élaboration psychique et le potentiel de la justice réparatrice -, complementés par les contributions de théoriciens contemporains, provoquent des refléxions importantes pour faire face aux impasses liés aux catastrophes sociales, soit intersubjectivement, soit collectivement.

Mots-clés: Cinéma. Mémoire. Trauma. Justice.

RESUMEN

El presente artículo analiza una película inspirada en una pieza teatral de Ariel Dorfman, traducida al portugués como "A Morte e a Donzela". La película, que lleva el mismo título, fue lanzada en 1994 bajo la dirección de Roman Polanski. Se trata de un suspense sicológico que cuenta con la participación de apenas tres personajes: Paulina, Miranda y Escobar, interpretados por Sigourney Weaver, Ben Kingsley y Stuart Wilson, respectivamente. Poniendo en pauta discusiones de gran relevancia para la Sicología – como el problema de la memoria de un trauma, de la elaboración síquica y del potencial restaurador de la justicia –, esta película, junto a algunas contribuciones de teóricos actuales, suscita reflexiones de gran valor para el enfrentamiento de impases vinculados a la rememoración de catástrofes sociales en el ámbito intersubjetivo y comunitario.

Palabras clave: Cine. Memoria. Trauma. Justicia.

Apresentação

Vertentes socioantropológicas da Psicanálise de família e grupos, bem como da Psicologia Social, sustentam que um trauma silenciado e repetido, quando não é socialmente reconhecido, deixa velada uma verdade sobre a violência impensável e repudiável no ser humano, que tende a se perpetuar por vezes de modo inconsciente e deslocado. Assim, operam-se efeitos não somente sobre suas vítimas diretas, mas também sobre seus pares, sobre o grupo e até sobre os descendentes não nascidos.

Para quem não viu o filme "A Morte e a Donzela", a história se passa na década de 1980, em uma casa isolada, situada na península de um país indefinido que parece ser o Chile, mas que poderia ser qualquer outro que tenha sido vitimado por um golpe de estado instaurador de uma ditadura militar. Nessa casa, o casal de moradores recebe a visita de um homem, de maneira que os três personagens vivem uma noite repleta de surpresas, confrontos e negociações. Isso porque, na época da ditadura, a mulher fora presa e vitimada pela tortura. Anos mais tarde, o acaso permite que ela reconheça o tal visitante como sendo o médico que a violentou repetidas vezes no passado, física e psicologicamente. O reencontro inesperado entre o torturador e a torturada desperta nela sentimentos que misturam ódio, raiva, sede de vingança, nojo e vontade de se libertar do passado terrível. Mas o que poderia ela querer? O que, a essas alturas, poderia redimir a dor física e psicológica da tortura vivida, os golpes de rebaixamento e a lembrança do rechaço à sua dignidade, que habitaram seus dias desde então? Esse encontro é matizado pela presença do marido, advogado e defensor dos direitos humanos, que traz importantes contribuições às lutas argumentativas e com quem os outros dois personagens buscarão cumplicidade.

Está em jogo a questão da rememoração, individual e compartilhada, dos crimes ocorridos durante o período da ditadura militar naquele país. Também se levantam questionamentos a respeito das possíveis formas de se elaborar um trauma dessa ordem e se buscar fazer justiça, considerando a importância do reconhecimento público das violências praticadas pelo Estado que, por anos, permaneceram silenciadas e mais recentemente vêm sendo apuradas por "Comissões da Verdade" nomeadas por governos democráticos de países sul americanos, inclusive, mais recentemente, pelo Brasil.

Certamente a leitura do presente artigo será mais frutífera àqueles que viram o filme. E ainda mais aos que o reviram, conforme buscarei mostrar a seguir.

Sobre a experiência de rever

Da primeira vez que vi o filme, fiquei tão capturada pelo mistério central da trama, para saber se Roberto Miranda era, ou não, o torturador de Paulina, que fiquei distraída para outros elementos menos evidentes, mas não menos importantes.

Por exemplo, apesar de serem fragmentos de uma mesma cena (o concerto no teatro), a maneira como o início do filme dialoga com seu final parece sintetizar o percurso da narrativa por meio da troca de olhares. Ao rever, tive a impressão de que alguma reparação foi possível, apesar de o algoz seguir livre. Também a maneira como Polanski utiliza trechos contundentes da bela peça de Schubert me fez pensar que ainda se pode ter alguma fé no potencial civilizatório humano: como se fôssemos capazes de reconhecer e ir além de nossas facetas sombrias e violentas, por exemplo, expressando-as através da música. Espécie de sublimação da pulsão de morte? Retomarei em detalhes o desfecho ao encerrar o presente artigo.

Outro aspecto interessante a se observar é o modo como Polanski utiliza a luz e a sombra: além de compor uma fotografia propícia à atmosfera psíquica da trama, que é bastante tensa, a penumbra metaforiza a luminosidade possível – e limitada – do que se pode reconhecer publicamente como vergonhoso e violento na história de uma pessoa, e de uma nação. A luz, em dado momento cortada por completo, permite que a visão para o que é humanamente sombrio venha a se exercer na penumbra, estimulando outros sentidos. Nuances de um passado traumático e silenciado vão se revelando no jogo de luz e sombra, entre o que se nega e o que se afirma. Interessante também perceber que a verdade detalhada pelo torturador finalmente vem à tona juntamente com a luminosidade do amanhecer, sugerindo que este jogo de luz e sombras não é meramente um recurso estético e/ou narrativo, mas também uma metáfora da matéria social que está além da ficção. Ao analisar um conto de Machado de Assis2 2 Machado de Assis. (1987). O caso da vara. In Contos (pp. 49-53). São Paulo, SP: Ática. (sobre relações de dominação), o psicólogo social José Moura Gonçalves Filho atenta para esta mesma questão do jogo de luz e sombras.

A distribuição da luz e das sombras sobre os objetos, ambientes e corpos, não é coisa que deveríamos tomar meramente como coisa física, o corriqueiro espetáculo de como o sol ou a lâmpada faz figurar certos lados, deixando outros sob penumbra, arquitetando o que vai brilhar e o que focará no escuro. A iluminação é também coisa social. O que vemos e o que deixamos de ver, o regime de nossa atenção, é decidido segundo o modo como fomos colocados em companhia dos outros, segundo o modo como também nos colocamos e como eventualmente nos recolocamos em companhia. (Gonçalves Filho, 2004, p. 18)

Da primeira vez que vi o filme, tive a impressão de que a visita de Roberto Miranda a Escobar tinha ocorrido por acaso. Mas, ao revê-lo, esta percepção caiu por terra e outra ganhou luz. Isso porque somente da segunda vez, pude questionar a pouca probabilidade de uma vítima reencontrar o seu algoz dentro da sua própria casa como um visitante ingênuo que retorna desinteressadamente. Não que não haja acaso na história: a carona que Escobar recebe de Roberto Miranda parece ter sido ao acaso, afinal, pelo diálogo entre eles, o médico não sabia que se tratava de Escobar, ao menos não até ele se identificar ao descer do carro. Provavelmente também não sabia que o famoso jurista era casado com sua ex-prisioneira. Mas penso que o retorno de Miranda à casa de Escobar foi uma ação dotada de segundas intenções. Esta hipótese será retomada e fundamentada no decorrer do texto.

Notemos ainda que, assim como ocorre na vida real, não há qualquer incoerência no fato de que Miranda, mesmo tendo se deliciado com a prática da tortura, seja capaz de ler Nietzsche, gostar de música erudita, ser bom marido e pai de família e, ainda, ter gestos solidários, como prestar auxílio a um motorista desconhecido em situação de apuro.

Rever o filme significa saber, desde o princípio, que Roberto Miranda foi, de fato, o algoz de Paulina. Ou seja, significa poder suspender a inquietação acerca do suspense da trama e aproveitar a sua ambiguidade para perceber que, mesmo tendo sido torturador, Miranda não era um monstro, mas um homem. Por outro lado, essa mesma ambiguidade permite saber que o gentil personagem, além de cúmplice e conivente com a tortura (já que os médicos eram contratados para minimizar os danos e apagar os rastros) foi além: descobriu em si, por meio da influência do grupo, um gosto perverso na prática da violência psicológica e sexual.

Note-se que a violência aplicada afetou não apenas o corpo e o psiquismo daquela mulher, o que por si só já seria dramático. Trata-se de um tipo de golpe que reverbera para além, afetando os vínculos dela com seus pares, com o marido, e até com o filho que ela um dia esperava ter. Seus efeitos alcançam também as relações com os significados da vida passada, presente e futura, colocando em xeque a própria capacidade de se produzir e reconhecer sentidos existenciais para si e à civilização. Trata-se, portanto, de um tipo de violência que ataca radicalmente a dinâmica de um sistema, abalando a confiança na memória e no pensamento. Isso pode se dar a tal ponto, que a própria vítima – tendo suportado a violência e o desrespeito por muito tempo – venha a reagir de maneira agressiva, podendo até empreender atos que Gonçalves Filho (2004) chama de "contraviolência". Paulina não chegou a esse ponto, embora se dirigisse a Miranda, muitas vezes, com agressividade e desdém. Mas poderíamos nos perguntar quão comuns são, na vida real, os crimes ou golpes movidos por raiva ruminada e anseio de vingança. Vejamos como o autor aborda esta questão.

A violência dos oprimidos pode enganar: no mais das vezes é resposta desajeitada, mas inadiável, contra o que não se pode aguentar mais e em favor do irresistível anseio sempre frustrado. Contraviolência, isto sim, é o nome certo dessas ações loucas que parecem apenas violência. E que se comutam em revelação quando há conversa." (Gonçalves Filho, 2004, p. 32)

A violência, assim, tende a se inserir e se perpetuar em ciclos que propagam a irreflexão e impulsividade no ser humano, sobretudo quando impedido do trabalho da memória, do pensamento e da reparação, em companhia dos outros.

Julgo oportuno retomar a aproximação que esse mesmo autor faz entre o trabalho de memória (que conjuga pensamento e sentimento, em companhia) e o que Freud chama de "transferência", espécie de elaboração psíquica que acontece em presença de um outro humano, por meio da qual se reatualizam, no tempo presente, angústias, expectativas e golpes não elaborados provenientes de relações passadas. Afirma Gonçalves Filho (2004):

A amargura vivida com alguém, aqui e agora, pode devolver para o que foi vivido antes e ficou sem digestão. Transferência. É quando sofremos demais. Um sofrimento que a situação atual admite e que, todavia, parece desproporcional, parece exagerado. Mas não há exagero nisso. É ofensivo e falso sugerir que o que amargamos ali não está ali. É igualmente falso sugerir que está perfeitamente ali. Está ali e está antes dali: comunica-se com um golpe atual e comunica-se com golpes atrás, os primeiros golpes, os golpes originários. O sofrimento transferencial é sofrimento sobrecarregado. É o sofrimento revivido e misturado ao que agora vivemos de novo. Não é sofrimento que está no presente e tampouco está no passado. Está no intervalo do passado e do presente, na mistura entre agora e antes. (p. 29)

Ora, se consideramos as ditaduras militares ocorridas durante o século XX em diferentes países latino-americanos (e, infelizmente, em outros tantos, ainda hoje) como golpes de difícil elaboração (afinal, como imaginar que um Estado possa perseguir e matar seus cidadãos, ou mesmo um grupo deles!), somos levados a nos indagar sobre os efeitos desta violência não elaborada, não só em termos individuais, como também comunitários, ainda que décadas de abertura política rumo à democratização tenham se passado.

Sobre esse tema, vale conhecer as teorizações do psicanalista Pierre Benghozi, que também vem se debruçando sobre os efeitos daquilo que nomeia como "ruptura do continente psíquico genealógico" individual e grupal. Para o autor, um trauma dessa ordem atinge não somente o sujeito diretamente envolvido, mas toda uma rede de vínculos que dão continência intra e intersubjetiva, desmalhando também as redes do psiquismo familiar e comunitário, ao longo de gerações. Nesse sentido, um evento traumático é potencialmente simbolicida, pois ataca a capacidade de elaboração simbólica de um grupo humano, uma vez que afeta os vínculos sociais e afetivos da vítima com seus pares, com a comunidade, e com os seus descendentes, mesmo os não nascidos.

Paulina foi repetidamente violentada por Miranda. Considerando que este era um médico, homem de vasta cultura, capaz de ritualizar a violência com a utilização de referências simbólicas coletivas (como a música e a filosofia), esse fato abala a própria fé na civilização. Sentidos eticamente assentados na cultura vão desabando, como o fato de que à Medicina cabe salvar vidas e tratar pessoas enfermas, e não, aprimorar técnicas de tortura para eliminar rastros de crimes hediondos. Lembremos que ela teria seguido essa profissão, se não fosse capturada no meio do curso. A perversão do médico alude, portanto, à perversão do próprio papel da medicina durante o regime militar; e esta remete à perversão do próprio pacto civilizatório, que se torna mera aparência quando varre pra debaixo do tapete a sua animosidade violenta.

No filme, a eliminação dos rastros se dá pela dissimulação. Ora, com sua vida em risco, Roberto Miranda nega veementemente a autoria de seus crimes; ele busca se passar por homem justo e bondoso, incitando com isso, além de revolta em Paulina, a dúvida e a desavença entre o casal. Agir assim era seguir torturando.

Da primeira vez que vi o filme, fiquei tão sensibilizada com os apelos de Miranda, que cheguei a pensar que, ainda que ele não fosse inocente, havia certa paranoia e sarcasmo exagerados nas atitudes de Paulina. Ao rever, a suposta "paranoia", assim como a sua raiva e o sarcasmo pareceram-me mais que pertinentes. Isso porque somente quando revi, pude perceber que a divulgação precoce, pelo rádio, da notícia de que Escobar era o nome indicado pelo presidente para chefiar as investigações criminais do período da ditadura era um elemento chave para se compreender a trama.

Ora, se um criminoso volta à casa de alguém que, ao que tudo indica, vai ameaçar sua tranquilidade (garantida pela impunidade), nada mais coerente do que supor que a devolução do pneu não era exatamente um gesto de generosidade, como fora o primeiro, o da carona. Provavelmente fazia parte de um plano de aproximação que devia, sim, ter segundas intenções. Também a princípio passou despercebida a atitude ingênua de Escobar de se apresentar (com nome e sobrenome) ao gentil desconhecido. Mas vacilo mesmo seria se ele tivesse agido assim sabendo que seu nome fora exposto no rádio, e ele não sabia.

Aliás, a cena em que a notícia é divulgada situa-se na fronteira entre o claro e o escuro, pois neste preciso momento, cai a energia, obrigando Paulina a recorrer ao rádio de pilhas. A notícia de que o governo finalmente investigaria os crimes militares desse passado sombrio e atroz é divulgada em meio a outras de relevância menor. Interessante observar, nesse ponto, uma crítica sutil ao mundo midiático que, ao misturar assuntos importantes e irrelevantes, dilui a atenção que deveria ser dada a uma iniciativa política fundamental na história de um país: apurar seus crimes, combater a impunidade, inscrever o acontecimento na sua história, com o intuito de evitar a recorrência de violências semelhantes. Dito de outro modo, a importância de se resgatar o valor da justiça como fundamental à vida social civilizada não deveria ser sucedida de notícias banais sobre o trânsito ou propagandas de sabão em pó (ainda que este produto sirva para se "lavar a roupa suja").

A divulgação do nome de Escobar deixa Paulina bastante apreensiva; conhecendo o terror de perto, inscrito em seu corpo, em seus gestos, em seus pensamentos e pesadelos, Paulina sabe muito bem que a exposição do nome de Escobar lhes traz riscos: gente poderosa e perigosa passaria a ter bons motivos para matá-los, com o agravante de que eles estavam isolados.

Escobar parece bem menos preocupado: tenta convencer a esposa de que o desconhecido é inofensivo, como se o breve contato pudesse assegurá-lo disso. Expressa uma ingenuidade, ou idealismo, que só parece possível a alguém que foi poupado de sofrer, na própria pele, as atrocidades de que um ser humano é capaz. Ele acredita na justiça e sendo um humanista, tende a duvidar da maldade humana. Também nele se vê certa vaidade, uma vez que aceita o convite para coordenar os trabalhos de apuração da verdade sequer fazendo menção à esposa, que pagara o preço de ser torturada para que ele continuasse vivo. No início do filme, Escobar parece não ser capaz de reconhecer a fundo a grandeza desse gesto de Paulina. Talvez por isso, posicione-se junto ao presidente como se ela não existisse; esta omissão, se por um lado pode ser uma forma de proteção – é isso que ele defende – por outro, sugere certa vaidade e ingratidão.

Insatisfeita com a postura de Escobar, Paulina teme que a atuação dele no ministério da justiça venha a ser restrita. Acredita que a demanda do governo de apurar somente o caso dos mortos e desaparecidos é necessária, mas não suficiente. Isso porque deixaria impunes os criminosos que cometeram violações contra os sobreviventes, como ela. Assim, se a ação é meramente diplomática, melhor seria não mexer no vespeiro, pois isso somente traria à tona uma dor, inutilmente. Escobar tenta explicar-lhe sua posição. Com um discurso bastante coerente, pondera que esta segunda apuração estava em seu horizonte, mas que dependia de tempo. Isso a acalma. Eles então partilham sonhos de futuro: ele, de ver a justiça se cumprir e assim ter mais felicidade no casamento, assolado por sombras do passado; ela, de vir a ser mãe de um menino3 3 Interessante lembrar que o historiador e professor da UNICAMP Leandro Karnal, ao refletir sobre o ódio no Brasil durante um café filosófico, comenta que pessoas descrentes da condição humana, talvez porque esvaziadas de experiências de solidariedade, compaixão e justiça, caso ainda mantenham algum tipo de utopia, esta não se volta para o coletivo, mas para uma satisfação individual: no caso de Paulina, poder ter um filho. . Eles então se entendem e se amam.

Eu diria que aqui acaba o primeiro ato. Isso porque tal como a peça musical de Schubert, este filme parece estar dividido em quatro atos, sendo o primeiro deles, o que revela algo da relação do casal e prepara a entrada do algoz na trama. Passemos ao segundo, que se mantém com cenas nas quais há somente dois personagens em cena.

Segundo ato

Inicia-se com o retorno de Roberto Miranda à casa de Escobar. Paulina vê na atitude do marido - que convida o estranho para entrar - uma ingenuidade descabida, gesto no mínimo temerário. Recolhe-se atenta. Neste segundo ato, começa uma tensão crescente: Paulina, escondida no quarto, identifica a voz de seu algoz. Assim, articula um plano de fuga e retorno, enquanto o marido cria um campo de cumplicidade com o ex-torturador. Eles bebem, conversam, riem. Exaustos, decidirem dormir. Enquanto isso, ela retorna e consegue imobilizar seu agressor.

Fica evidente como Paulina e Escobar herdaram dos anos de chumbo aprendizados diferentes. Ela, talvez porque tenha conhecido o horror de perto, desenvolveu precauções, defesas e habilidades agressivas para sobreviver. Ele, que só conheceu a violência indiretamente, ignorando os horrores vividos que ela jamais lhe contara, dedicou-se ao exercício da palavra, tornou-se influente no campo do Direito: era o homem do presidente.

Um aspecto que chama a atenção é o erotismo que perpassa o reencontro entre vítima e algoz. A maneira como Paulina cheira Miranda, buscando reconhecê-lo; como se apresenta a ele, como fala com ele de pertinho e usa a boca para segurar as amarras, sentando no seu colo com as pernas abertas... A abordagem sedutora se insinua como uma espécie de sarcasmo, evocando a atmosfera das violações sexuais sofridas.

O filme sugere que a violência praticada pelo médico contra a prisioneira não apenas se restringia a usar seu corpo compulsoriamente como objeto de prazer, mas ia além: ele se excitava ao lhe impingir dor e humilhação. Eis uma clara expressão da perversão.

Habitada por sentimentos que misturam ódio, raiva, sede de vingança, nojo e vontade de se libertar do passado terrível, Paulina tem a rara oportunidade de reencontrar seu algoz invertendo o jogo de forças: agora ele é a presa. Uma vez aprisionado, o corpo do algoz, e tendo se apresentando ao carrasco, Paulina começa a sua reconciliação com Schubert, trilha sonora utilizada pelo médico durante as sessões de tortura. Ao longo do filme, esta mesma trilha passará a ser uma de reparação. Escobar desperta com a música, não entende o que se passa e vai até a sala. Aqui localizo o início do terceiro, no qual finalmente os três personagens estão juntos em cena.

Terceiro Ato

Chegando na sala, Escobar fica perplexo com o que vê: o visitante está amarrado, amordaçado, e sua mulher está com uma arma apontada para ele. A entrada de Escobar em cena traz à narrativa uma complexidade interessante, porque aponta para a coexistência de éticas distintas, por vezes contraditórias, que ora se afirmam, ora se calam (afirmando-se, assim, pela omissão), de modo a serem desveladas diferentes facetas dos personagens. Isso ocorre de acordo com o fluxo de desconhecimentos e revelações, estranhamentos e identificações, confiança e desconfiança, os quais atravessam as lutas argumentativas e corporais ao longo da noite.

Vejamos essas facetas, destacando três contornos mais visíveis: Escobar é, ao mesmo tempo, marido (cuja vida fora salva pela esposa); homem (que faz uma aliança rápida com o algoz, ligada à identidade de gênero, à camaradagem e gratidão do resgate, e à cumplicidade nas agruras da vida de casado); e, ainda, é um representante da Justiça, encarnando a ponderação, a racionalidade, a imparcialidade e a defesa de valores humanistas.

Estranhando a atitude da mulher, Escobar a princípio dá mais crédito à palavra de Miranda, que acuado, nega ser o autor da tortura. Ele suspeita de que a mulher não tenha sido capaz de reconhecer o agressor após tantos anos, simplesmente pela voz e pelo cheiro, já que tivera os olhos vendados durante as sessões de tortura.

Mas o anseio de vingança de Paulina era tamanho que, se preciso, ela estava disposta a atirar contra o marido, caso ele ajudasse o torturador a escapar. Contudo, mesmo em meio aos apelos psicológicos e mentirosos de Miranda que visavam desmoralizar Paulina, o casal consegue encontrar um espaço protegido para um diálogo franco.

Na varanda da casa, certas verdades veladas por anos finalmente vêm à tona (por exemplo, o fato de que Paulina havia sido estuprada quando presa, segredo este que ela guardara; ou, o teor do relacionamento que Escobar mantivera com uma mulher no período em que Paulina estivera presa, assunto nunca conversado). Encarando tais verdades, e rememorando juntos a origem e os sentidos do vínculo conjugal para cada um, a união e a confiança entre eles se fortalece: Paulina tem agora Escobar como seu aliado, e pretende contar com ele não mais para se vingar, mas para fazer justiça.

Para ela, alguma justiça seria possível se o seu agressor – agora seu prisioneiro – confessasse seus crimes, revelando suas motivações: não somente para ela e o marido, mas para o mundo, diante de uma câmera filmadora. Esta era a condição para libertá-lo vivo. Entretanto, a confissão não podia ser um mero instrumento de barganha pela própria vida. Por isso, de nada servia gravar Miranda em uma confissão na qual "fingia ter feito o que deveras fez". Diante de mais esta simulação, Paulina decide levá-lo até a beira do penhasco, com os olhos vendados. Paulina pretendia empurrá-lo ladeira abaixo, caso ele seguisse sustentando a mentira. Mas antes de matá-lo, decide retirar a venda dos olhos, permitindo que encarasse vertiginosamente de frente o abismo de sua própria escolha.

Aqui, sugere-se a ideia de que, às vezes, só se consegue enxergar a realidade de uma situação após um período de impedimento da visão, no caso, a visão da própria precariedade. Então, Paulina lhe oferece uma última chance, após fazê-lo mirar o abismo: se assumisse a verdade, escaparia da morte. Nesse momento, Paulina segura o rosto de Miranda e o encara fixamente nos olhos. Eis a última tentativa de obter a confissão do horror que ele lhe causou, um anseio de reconhecimento que não era só dela, mas, provavelmente, de muitos outros. A situação é limite, afinal, para que ainda fingir diante da morte?

Coagido a escolher entre a morte e a assunção de sua responsabilidade em vida, Roberto Miranda acaba escolhendo a vida e, com ela, a verdade. Confessa seus crimes sem qualquer dissimulação, contando detalhes do que fazia. Relata, por exemplo, como foi sendo influenciado pelo grupo4 4 Em 1955, Salomon Asch já demonstrava experimentalmente a poderosa influência que a pressão social pode exercer sobre os indivíduos. Sua pesquisa conclui que uma parcela expressiva (36,7%) dos sujeitos pesquisados - universitários que se ofereciam como voluntários de um experimento em grupo -, tendiam a se posicionar em concordância com a maioria, mesmo quando ela estava visivelmente equivocada. Asch demonstra que, em situações grupais / sociais, os indivíduos tendem a ignorar os dados da própria percepção, agindo de maneira a não destoar do padrão coletivo de comportamento. , e como acabou desenvolvendo um gosto especial pela tortura através de rituais eróticos. Reconhece-a como objeto de seu gozo perverso. Embora isso não signifique que a escolha pela verdade fosse sinal de ganho de consciência, ou mesmo de transformação subjetiva, fato é que a situação limite conduzida por Paulina fez com que o próprio Miranda lançasse luz, em presença dela e do marido, sobre a sua própria pequenez. Se ali fosse sustentada na forma de dissimulação, custaria sua vida.

Mais algumas contribuições teóricas

Considerar a pequenez de Miranda é, em sentido amplo, aludir à própria pequenez humana, já que a prática da violência poderia ser perpetrada e cultivada por muitos outros seres humanos que, porventura, ocupassem o mesmo lugar. Nesse sentido, julgo oportuno lembrar um experimento mencionado por Bosi (2003b), realizado por Milgram (1974), no Laboratório de Interação da Universidade de Yale, o qual revelou que pessoas de várias profissões, inclusive de natureza humanitária, transformavam-se em torturadores quando instruídas pelo pesquisador a testar os efeitos da punição sobre o aprendizado de um sujeito desconhecido. A cada erro por ele cometido, deviam mover uma alavanca no painel que disparava um choque elétrico na pessoa supostamente testada. O que não era dito a essas pessoas é que a suposta "vítima" dos choques era cúmplice do pesquisador, e estava apenas simulando dor, pois não recebia choque algum.

Cada vez que o voluntário hesitava, o cientista o exortava a continuar. A princípio os choques causavam gemidos que iam num crescendo até gritos de agonia e afinal o silêncio. 62,5% dos ‘experimentadores' vão até a última voltagem.... Os voluntários foram esclarecidos depois que o que se estava avaliando era a possibilidade de infligir tortura num desconhecido em nome da ciência. (Bosi, 2003b, p. 129)

Bosi conclui que, ao se examinar a História e se reconhecer a ocorrência de barbáries (como o nazismo, as ditaduras militares latino-americanas etc.), fica evidente que a obediência já causou males maiores que a rebeldia, e que pessoas comuns, cumprindo suas tarefas, podem se tornar agentes de um processo atroz de aniquilação por não terem força, ou mesmo recursos psíquicos, para resistir e questionar a ordem vigente. Ao contrário, prevalecem comportamentos conformistas que, na maioria das vezes, justificam-se ora pelo apoio do grupo, ora pela atribuição da responsabilidade a outrem (por exemplo, ao superior, ou ao "sistema"), ou mesmo pela desqualificação da vítima, que passa a ser concebida como uma ameaça à coletividade.

A leitura de antropólogos como Marcel Mauss e Levy Strauss permite pensar que, mesmo em situações não catastróficas, sempre existirão contradições e lacunas sociais que não conseguem abarcar todas as nuances do humano, deflagrando manifestações individuais e/ou grupais que podem ser vistas como rebeldia, demência ou até excentricidade criativa que enriquece a cultura. Contudo, quando prevalece um regime totalitário e violento, a lida com a diferença é cortante e contumaz: esta deve ser banida. Respaldando tal atitude, está o comportamento de conformismo, considerado por Bosi (2003b) como traço mais comum da organização do mal no mundo moderno.

Ao contrário disso, Paulina e os reais presos políticos representam uma força de resistência. Custou-lhes muito resistir: alguns morreram no caminho, outros conseguiram escapar da morte física, mas podem ter morrido psiquicamente. Paulina estava perto disso antes desta noite. Mas, após a confissão de Miranda diante do marido, mesmo exaurida, ela pôde virar as costas e, de algum modo, deixar esse passado para trás, possivelmente libertando-a de um peso.

O filme sugere que, sem o reconhecimento público da barbárie, a oportunidade de vingança pessoal não é por si só suficiente. A dor da vítima, ao contrário, só pode vir a ser atenuada e permitir que a vida siga seu curso, por meio da revelação da verdade. E, se possível, a partir de um franco diálogo com o agressor na presença de um terceiro - a família, a comunidade, a cultura – como testemunha do que foi humanamente vergonhoso, impensável, inominável. Só assim podem ser apuradas as contingências do crime, suas motivações, efeitos, e se considerar as necessidades da vítima. Esse parece ser o cenário propício a uma possível reparação, mesmo que limitada, dos danos causados. E, ainda, a condição indispensável para que se possam prevenir e evitar episódios semelhantes na vida futura de uma nação.

Essa questão é da maior relevância à Psicologia. Pertinente também, porque no mundo em que vivemos, somos vítimas e testemunhas de violências múltiplas, das explícitas às sutis, que cotidianamente golpeiam o pensamento, a memória e a dignidade humana de variadas formas, inclusive disfarçadas de outras coisas, chamadas com outros nomes, disseminadas como coisas inevitáveis e/ou naturais. Contudo, quando surgem iniciativas de se investigar o que não vai bem e transformar o estado das coisas, rapidamente elas tendem a ser impedidas, desvirtuadas ou mesmo criminalizadas, sem que verdadeiramente se apurem os reais acontecimentos, responsabilidades e se punam os culpados. Nesse sentido, apesar de parecer algo desconfortável, o trabalho da memória da dor e da violência é de fundamental importância para que possamos também lembrar que as coisas podem e devem ser diferentes.

Quando Escobar, que personifica a justiça, fica sabendo sobre os sucessivos estupros cometidos contra a esposa, passa a perceber e redimensionar também a sua responsabilidade no que se passou: afinal, se ele não tivesse se mantido escondido, editando um grande jornal de oposição na época, ela não teria sido tão torturada. A vida dele, portanto, estava atrelada à dor vivida e suportada em silêncio por ela. Somente quando soube a verdade, ele pôde reconhecer mais profundamente a grandeza da resistência de Paulina. A força dela era o amor de uma mulher por um homem, mas não somente isso; era também o amor de um ser humano por valores como a liberdade política e a dignidade humana.

Para muitos, o distanciamento do fato traumático pode aliviar, sobretudo, se uma punição recair sobre o agressor, mesmo que se testemunhe isso a distância. No filme, as condições para o trabalho da memória que permitem a elaboração do ódio, da raiva e da desesperança, só acontecem por meio da revisitação do trauma em presença da vítima, do algoz e da testemunha.

Algo que me parece fundamental é a percepção de que os atos e sofrimentos de um, estão imbricados nos atos e sofrimentos do(s) outro(s), e que quando esse reconhecimento se perde, estamos provavelmente diante de um fenômeno que Simone Weil (1996, citado por Bosi, 2003a) nomeou como "desenraizamento", considerando-o a mais perigosa doença que atinge não apenas o indivíduo, mas a cultura. Desenraizamento, para a filósofa, pode se dar de muitas formas, cujo denominador comum é a experiência de submissão/domínio. Dentre as modalidades de desenraizamento, existem aquelas mais explícitas (como conquistas de territórios, expulsão/escravização de povos nativos, capturas, torturas e assassinatos,) até as menos visíveis, amortecidas pela ideologia dominante e marcadas por algum traço de alienação (trabalho mecânico, desemprego, etc.). O trauma, aqui, vai corroendo o sujeito e seu grupo de pertença silenciosamente, diluindo-se no cotidiano.

Para Simone Weil (1996, citado por Bosi, 2003a), o ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na comunidade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Se esta participação real e ativa é impedida pela dominação (que pode se dar pela recusa da verdade quando se queimam arquivos), o sujeito passa a viver num eterno presente esvaziado de sentido, que não vislumbra mais um futuro melhor, nem acessa os tesouros do passado.

Por "tesouros do passado", identifico uma sabedoria, por vezes tácita, sobre os costumes, tradições, valores, mitos, modos de produção da vida material e os rituais marcantes (ligados ao nascimento, às transformações da vida e à morte); residem também aí as produções artísticas e científicas de um povo. Por "pressentimentos do futuro", situo os anseios de um povo relativos a um melhor devir para si e para o coletivo, com a superação dos problemas presentes.

Segundo Bosi (2003a), quando duas culturas se defrontam, raramente isso ocorre como uma experiência de revelação, ou seja, como um encontro de duas formas distintas de existir. Mais comum é que ocorra uma experiência de dominação, na qual há um predador e uma presa. Posto isso, concluímos que as formas de luta e resistência de um povo não servem apenas para preservar esse tesouro, mas compõem precisamente parte preciosa dele.

Safra (2006), no campo da psicanálise, também discorre sobre o fenômeno do desenraizamento como produtor de adoecimento no mundo contemporâneo. Para ele, existem três tipos de desenraizamento mais evidentes: o étnico (perda de referências ancestrais); o ético (perda do senso de solidariedade e responsabilidade mútua no campo das relações humanas); e o estético (perdas vividas no eixo do Tempo e do Espaço, marcados por vivências aceleradas, fugazes, encolhidas, pouco acolhedoras às necessidades humanas e, muitas vezes, impeditivas da experiência de duração, partilha e elaboração de sentidos para o que se vive). Para Safra, essas formas de desenraizamento se dão a ver na clínica contemporânea por meio de sofrimentos ligados a modos peculiares de solidão, pelo sentimento de não pertencimento, por um mal-estar infinito, pelo pânico, e pelo anseio de encontro com o Outro – grafado em maiúscula por representar a Comunidade, a Cultura, a História e o elo que singulariza, por meio de uma existência individual, aspectos concernentes à condição humana.

Note-se que, ao deslizar esta discussão do campo da tortura – e das possibilidades de superação de seus efeitos – para o campo dos traumas da vida cotidiana na atualidade e para o adoecimento – estamos reconhecendo a necessidade de a Psicologia debruçar-se sobre as formas menos visíveis, embora não menos nefastas, de violências e desenraizamentos contemporâneos.

Com relação às práticas de violência explícitas e pontuais (sejam elas físicas e/ou psicológicas), bom seria se pudéssemos retirá-las de seus recônditos sombrios e silenciados, para serem rememoradas e elaboradas na presença da vítima, do agressor e da comunidade, empreendendo, assim, uma justiça que não fosse focada na punição ("justiça retributiva"), mas no reconhecimento das necessidades das vítimas e possíveis modos de restauração das dignidades perdidas ("justiça restaurativa")5 5 Há um campo de práticas desse tipo, em setores da justiça, crescendo em alguns países, inclusive no Brasil, orientadas por essa perspectiva: chama-se "Justiça Restaurativa". Uma obra de referência é Zehr (2008). .

Com este filme, somos levados a pensar que, ainda que não haja a erradicação da violência entre os humanos e a justa pena aos criminosos, há, ao menos, a possibilidade de que venhamos a reconhecer e legitimar a dor das vítimas, reparar os danos possíveis, e, ainda, elaborar no psiquismo individual e comunitário, algo do horror que também habita os desejos e os atos humanos. A experiência de rememorar e partilhar uma violência praticada, quando pode ser inscrita na história coletiva, confere ao sofrimento um selo de autenticidade que o legitima como exemplo de luta e resistência para a posteridade.

Quarto e último ato

Para encerrar, analisemos o quarto e último ato. Estamos de novo no interior do teatro, de volta à cena inicial. A orquestra de câmara interpreta "A Morte e a Donzela". Além da presença dos três personagens, vê-se o público (composto por pessoas desconhecidas, dentre as quais, a família de Miranda) e os músicos (representando os tesouros da cultura). A sequência desta cena poderia ser desenhada por meio do uso vetores que se sucedem, um a um, seguindo o percurso da troca de olhares entre os personagens.

Minha hipótese, e muitos poderão dela discordar, é a de que há algum otimismo nesse desfecho. Apesar de o torturador seguir solto, e ainda estar sentado com sua família no balcão superior do teatro (sugerindo a continuidade de uma injusta superioridade), outros elementos fazem pensar que, em termos psicológicos, avanços importantes na direção da elaboração do trauma e do exercício da justiça puderam acontecer. Talvez, Polanski tenha optado por sustentar o fio da navalha desta ambiguidade, pois assim como no desfecho é possível entrever um final feliz, pode-se também pensar o contrário. Explico.

A possibilidade de Paulina estar ali significa, certamente, a conquista de uma libertação: a música já não está mais associada somente à tortura. Se a princípio a peça de Shubert suscitava em Paulina intensa agonia (seu olhar não tinha foco e expressava algo do horror por ela vivido), nesta cena final a questão é reposicionada: sua mão aperta a do marido e a aliança reluz, sugerindo que, agora, depois das devidas revelações e responsabilizações, uma verdadeira aliança pôde, enfim, se firmar entre o casal. A vítima, agora reconhecida pelo marido e pelo espectador como alguém com rara capacidade de amor e resistência, percebe a presença do algoz no teatro. Pode, então, mirá-lo nos olhos, e ser por ele vista, de maneira que a memória desse passado vergonhoso não pode mais ser negada ou escondida. Após alguns instantes, Miranda desvia o olhar de Paulina, pois nota que o filho o percebe olhando para ela. Ele, então, retorna o olhar para o menino. Esse olhar pode tanto ser interpretado como fruto de um processo de redenção (que lhe permitiria encarar o filho e o futuro de frente, sem fingimento e com ternura); mas também pode ser interpretado como mais um olhar de um pai cujas atitudes seguem sendo vergonhosas longe da família.

Tendo a apostar na primeira interpretação, uma vez que, em seguida, o ex-torturador deixa de olhar para o filho e olha para o advogado, que na trama representa a justiça; mas não aquela que pretende vingar, e sim, a do tipo que busca responsabilizar o autor de um ato hediondo sem, no entanto, confundir o ator com sua ação. Escobar encara seriamente Miranda para, em seguida, olhar de novo para o palco onde a orquestra segue com a beleza pungente desta peça de Schubert.

Mas, para que fique claro e evitar mal entendidos, não defendo a anistia aos torturadores. Ao contrário, posiciono-me junto àqueles que lutam pela apuração da verdade e pela condenação justa dos criminosos, ainda que possamos problematizar a eficácia do sistema penitenciário e suas contradições, como o fato de que nele se aprimoram práticas de violência. Apenas gostaria de lembrar que, em certa medida, os algozes também são efeito das piores expressões sociais que uma sociedade como a nossa pode produzir, e que muitos de nós, mesmo cientes disso, acabamos nos conformando com o estado de coisas, naturalizando e banalizando o mal, como já apontava Hannah Arendt (1999).

Problematizar a história oficial e resgatar outras versões para os fatos é fundamental. No Brasil, por muito tempo se evitou falar do horror que fez parte desses tempos. Ao contrário, o discurso ideológico reforçava os aspectos de desenvolvimento econômico desse período. Houve até monumento inaugurado recentemente em uma universidade pública do Estado de São Paulo, em homenagem aos que lutaram na "Revolução de 64". Ora, referir-se à ditadura militar como revolução é um assalto à nossa história. Por doloroso que seja o trabalho da memória do horror, ele é necessário: somente através dele, é que alguma elaboração psíquica e justiça restauradora são possíveis. É somente quando outras versões e sentidos para o que foi vivido vêm à tona, que se pode vislumbrar um futuro diferente.

Nesse sentido, celebremos a instauração da Comissão da Verdade no Brasil no ano de 2012 (demorou, mas veio), a qual conta, entre seus membros, com a participação de uma psicanalista.

Recentemente, durante uma mesa redonda promovida pelo Conselho Regional de Psicologia sobre o tema da memória dos crimes praticados durante a ditadura militar brasileira, ouvi a seguinte frase: "De fundamental importância é conhecer o passado, para entender o presente, e construir um futuro melhor para nós e para as gerações futuras". Façamos então do horror, a nossa memória; e não o nosso devir.

Recebido: 10/10/2012

Aceito: 30/08/2013

  • Arendt, H. (1999). Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Asch, S. (1955). Opinions and social pressure. Scientific American, 193(5), 31-35.
  • Benghozi, P. (2010). Cenário genealógico da violência, vergonha e clínica do vínculo. In P. Benghozi, Malhagem, filiação e afiliação (pp. 53-72). São Paulo, SP: Vetor.
  • Bosi, E. (2003a). O que é desenraizamento. In E. Bosi, O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social (pp. 175-183). São Paulo, SP: Ateliê Editorial.
  • Bosi, E. (2003b). Submissão e rebeldia em O capote de Gogol. In E. Bosi, O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social (pp. 127-150). São Paulo, SP: Ateliê Editorial.
  • Gonçalves Filho, J. M. (2004). A invisibilidade pública. In F. B. Da Costa, Homens invisíveis (pp. 9-47). São Paulo, SP: Globo.
  • Gonçalves Filho, J. M. (2007). Humilhação social, humilhação política. In B. P. Souza (Org.), Orientação à queixa escolar (pp. 187-221) São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
  • Karnal, L. (2012). O ódio no Brasil. In Café Filosófico São Paulo, SP: Café Filosófico. Recuperado de: http://www.youtube.com/watch?v=iG-OGc1bufs
  • Safra, G. (2006). Desvelando a memória do humano: o brincar, o narrar, o corpo, o sagrado, o silêncio. São Paulo, SP: Sobornost.
  • Zehr, H. (2008). Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça - Justiça restaurativa. São Paulo, SP: Palas Athena.
  • *
    E-mail para correspondência:
  • 1
    Este trabalho, em versão anterior, foi apresentado no Evento "Cine-Debate", em 5/9/2012, como parte da programação da Semana de Psicologia do Centro Universitário São Camilo.
  • 2
    Machado de Assis. (1987). O caso da vara. In
    Contos (pp. 49-53). São Paulo, SP: Ática.
  • 3
    Interessante lembrar que o historiador e professor da UNICAMP Leandro Karnal, ao refletir sobre o ódio no Brasil durante um café filosófico, comenta que pessoas descrentes da condição humana, talvez porque esvaziadas de experiências de solidariedade, compaixão e justiça, caso ainda mantenham algum tipo de utopia, esta não se volta para o coletivo, mas para uma satisfação individual: no caso de Paulina, poder ter um filho.
  • 4
    Em 1955, Salomon Asch já demonstrava experimentalmente a poderosa influência que a pressão social pode exercer sobre os indivíduos. Sua pesquisa conclui que uma parcela expressiva (36,7%) dos sujeitos pesquisados - universitários que se ofereciam como voluntários de um experimento em grupo -, tendiam a se posicionar em concordância com a maioria, mesmo quando ela estava visivelmente equivocada. Asch demonstra que, em situações grupais / sociais, os indivíduos tendem a ignorar os dados da própria percepção, agindo de maneira a não destoar do padrão coletivo de comportamento.
  • 5
    Há um campo de práticas desse tipo, em setores da justiça, crescendo em alguns países, inclusive no Brasil, orientadas por essa perspectiva: chama-se "Justiça Restaurativa". Uma obra de referência é Zehr (2008).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      10 Out 2012
    • Aceito
      30 Ago 2013
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