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Ao sul da teoria: a atualidade teórica do pensamento social brasileiro

Resumos

Neste artigo, procuro responder à seguinte pergunta: como é possível produzir discussão teórica atual a partir dos estudos do pensamento social brasileiro? Para isso, sustento que é necessário articular os estudos do pensamento social brasileiro a debates contemporâneos que criticam o eurocentrismo e defendem a necessidade de discursos alternativos vindos do Sul Global. Também argumento que é importante inserir a história do pensamento brasileiro em uma história transnacional mais ampla do pensamento periférico. Apresento o caso do sociólogo Guerreiro Ramos como exemplo ilustrativo desse procedimento.

Pensamento social brasileiro; teoria social; Sul Global; Guerreiro Ramos


The question that I address in this article is the following: how does one engage in contemporary theoretical debates departing from studies of the so-called Brazilian social thought? In order to answer this question, I argue that it is necessary to articulate Brazilian social thought scholarship to current debates which criticize eurocentrism and sustain the need for alternative discourses from the Global South as well. I also argue that it is important to put the history of Brazilian social thought into the wider context of a transnational history of the peripheral thought. I analyze Brazilian sociologist Guerreiro Ramos as a case-study in order to expand on this thread.

Brazilian social thought; social theory; Global South; Guerreiro Ramos


DOSSIÊ PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO E LATINOAMERICANO

Ao sul da teoria: a atualidade teórica do pensamento social brasileiro

João Marcelo E. Maia

João Marcelo Maia é professor associado do CPDOC/ Escola Superior de Ciencias Sociais da FGV-RJ. Entre suas publicações mais recentes, pode-se citar "Space, social theory and peripheral imagination: Brazilian intellectual history and de-colonial debates" (International Sociology, v. 26, n.3, 2011), joao.maia@fgv.br

RESUMO

Neste artigo, procuro responder à seguinte pergunta: como é possível produzir discussão teórica atual a partir dos estudos do pensamento social brasileiro? Para isso, sustento que é necessário articular os estudos do pensamento social brasileiro a debates contemporâneos que criticam o eurocentrismo e defendem a necessidade de discursos alternativos vindos do Sul Global. Também argumento que é importante inserir a história do pensamento brasileiro em uma história transnacional mais ampla do pensamento periférico. Apresento o caso do sociólogo Guerreiro Ramos como exemplo ilustrativo desse procedimento.

Palavras-chave: Pensamento social brasileiro; teoria social; Sul Global; Guerreiro Ramos

ABSTRACT

The question that I address in this article is the following: how does one engage in contemporary theoretical debates departing from studies of the so-called Brazilian social thought? In order to answer this question, I argue that it is necessary to articulate Brazilian social thought scholarship to current debates which criticize eurocentrism and sustain the need for alternative discourses from the Global South as well. I also argue that it is important to put the history of Brazilian social thought into the wider context of a transnational history of the peripheral thought. I analyze Brazilian sociologist Guerreiro Ramos as a case-study in order to expand on this thread.

Keywords: Brazilian social thought; social theory; Global South; Guerreiro Ramos

Este texto procura discutir o estatuto do pensamento social brasileiro no contexto atual da sociologia global. A pergunta que motiva essa discussão é a seguinte: como produzir discussão teórica a partir dos estudos de pensamento social? Essa questão, longe de ser idiossincrática, relaciona-se com uma preocupação maior relativa à própria natureza dos estudos contemporâneos de pensamento brasileiro. Área tradicional de pesquisa nas ciências sociais brasileiras (OLIVEIRA, 1999), o pensamento brasileiro constituiu-se historicamente como um campo eclético, que acolhe sociólogos, cientistas políticos e historiadores interessados em investigar as matrizes clássicas da imaginação ilustrada brasileira, seja através da análise de discursos políticos, do estudo social das artes plásticas, da investigação interna de textos ensaísticos ou do exame das condições sociais de produção intelectual no Brasil. Mesmo tendo notável regularidade entre os grupos de trabalho da ANPOCS e sendo composto por alguns dos mais prestigiosos cientistas sociais do país, é comum a acusação de que este campo padeceria de "antiquarismo", pois seus trabalhos não escapariam ao registro da História das Ideias, prescindindo de maior interesse sociológico para outras comunidades especializadas.

Responder a pergunta acima implica, portanto, estabelecer o potencial de diálogo teórico contido nesta área, o que explica o recurso à sociologia global. Afinal, se a teoria social refere-se a enunciados gerais, que visam explicar os fundamentos da ação e da ordem, não faria sentido imaginar que ela se pulverize em tradições nacionais, circunscritas a um vocabulário idiossincrático e/ou paroquial. Ou seja, extrair dos estudos de pensamento brasileiro ferramentas teóricas relevantes demanda que se inscrevam esses estudos num campo mais amplo, relativizando seus limites exclusivamente nacionais.

A ideia defendida é razoavelmente simples: sustento que o processo de descentramento teórico que vem ocorrendo ao longo das últimas décadas na sociologia fornece aos estudos de pensamento social brasileiro um instigante enquadramento analítico. Esse descentramento refere-se ao conjunto de textos e trabalhos que questionam o fundamento eurocêntrico da sociologia e afirmam a necessidade de se levar em conta lugares de discurso intelectual tidos como alternativos e/ou "periféricos"1 1 Uso o termo "periferia" para designar regiões do mundo localizadas fora do eixo do Atlântico Norte e que se constituíram de forma subordinada na divisão internacional do sistema-mundo capitalista. Em sua maioria, essas regiões foram objeto de processos colonizadores europeus a partir do século XV. O conceito de "periferia" foi consagrado nos estudos produzidos na CEPAL, em especial nas obras de Raul Prebisch e Celso Furtado, e não implica a homogeneidade cultural e política das regiões assim denominadas, mas tão somente a percepção de um lugar histórico subalterno na geopolítica global do conhecimento e da riqueza (que, aliás, vem sendo desafiado pela emergência dos chamados BRICS) . Esse debate contribuiu para dois procedimentos que encontram ressonância com o que é feito atualmente no campo do pensamento brasileiro: a) a crítica de conceitos sociológicos a partir de outros lugares de discurso; e b) a refutação ou retificação de teorias de médio alcance, levando-se em conta a falsa universalidade das mesmas. Argumento também que esse trabalho teórico deve ser complementado por uma abordagem que articule a história do pensamento social brasileiro e a história da sociologia global, evitando a separação desses campos em dois universos distintos. Para tanto, recorro a trabalhos recentes que adotam uma abordagem transnacional para o estudo da história das ciências sociais. Afirmo que essa é a melhor forma de incluir o estudo do pensamento social brasileiro numa história global da sociologia. Finalmente, apresento brevemente um estudo de caso como forma de ilustrar a fecundidade de uma abordagem transnacional da história do pensamento brasileiro.

Como se vê, o diálogo proposto é tanto "internalista" como "externalista": trata-se de um exercício analítico focado na substância das ideias, dos vocabulários, das linguagens e dos argumentos, mas também de uma análise objetiva das condições sociais de produção intelectual num contexto mais amplo do que aquele circunscrito pelo Estado-Nação.

O texto estrutura-se em três grandes seções. Na primeira, exponho o que entendo ser esse processo de descentramento que perpassa a sociologia contemporânea e apresento seus principais desdobramentos delineados acima. Para tanto, uso como fontes livro e textos que vêm tendo grande repercussão nos fóruns internacionais da disciplina pelo seu potencial provocador. Na segunda seção, mostro como trabalhos atuais no campo do pensamento social brasileiro podem dialogar diretamente com essas novas provocações. Na seção final, exponho os fundamentos da abordagem transnacional para o estudo do pensamento brasileiro e apresento, brevemente, um estudo de caso envolvendo a obra do sociólogo baiano Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) como forma de ilustrar o potencial dessa abordagem.

1. O processo de descentramento na teoria social hoje

O que queremos dizer quando falamos "teoria"? Em geral, um conjunto de enunciados sistemáticos e gerais, supostamente universalizáveis, dotados de alto grau de abstração, e que procuram responder as questões básicas que motivam o conhecimento sobre a sociedade. Mas, ao contrário das ciências ditas duras, a teoria social não comporta um grande paradigma teórico compartilhado pela comunidade científica, mas sim uma pluralidade deles. As razões para tal foram bem discutidas e justificadas (ALEXANDER, 1999) e não pretendo emitir juízos sobre o fato (como o fazem Freitas e Figueiredo, 2009). Gostaria de reter aqui apenas uma sugestão, extraída de sociólogos que defendem o estatuto eminentemente interpretativo da teoria social. Refiro-me à presença dos clássicos e de seus vocabulários no corpo das discussões teóricas contemporâneas. Conforme alerta Alexander (op. cit), esses clássicos permitem reduzir a complexidade discursiva do campo, produzindo um horizonte partilhado de referências, conceitos e categorias. Assim, conceitos altamente polissêmicos, tais como "classe social", podem ser debatidos dentro de um conjunto mais ou menos organizado de referências providenciado pelas releituras de trabalhos de autores como Karl Marx e Max Weber.

O que se depreende da sugestão de Alexander? A ideia de que não há uma clivagem tão sistemática entre teoria social e pensamento social. Se aceitarmos que os clássicos formam o chão sobre o qual se ergue a discussão teórica contemporânea, está mais do que justificado o exercício de releitura e interpretação desses trabalhos. Aliás, deve-se dizer que justamente esse exercício constitui um dos modos principais de produção de estudos teóricos na sociologia, dos quais são evidências os trabalhos de Anthony Giddens (GIDDENS, 1989) e Jürgen Habermas (HABERMAS, 1984), além do próprio Alexander (ALEXANDER, 2003).

Gostaria, contudo, de ir adiante e sugerir, com o auxílio de certa tradição filosófica (GOODMAN, 1978; LESSA, 1998), que todo corpo teórico sistemático traz consigo um mundo possível, composto de objetos, personagens, modos de relação entre coisas e fronteiras delimitadas. Mais do que um conjunto abstrato de enunciados sobre a ação e a estrutura, cada teoria social implica a absorção de um horizonte imaginativo específico, nem sempre articulado de forma explícita nos enunciados teóricos. Por exemplo, conceitos como esfera pública e sociedade civil trazem consigo o horizonte das grandes metrópoles urbanas europeias, transformando a cidade do Velho Continente na geografia por excelência sobre a qual se assentam os tipos de relação social e conflito privilegiados pela análise sociológica informada por esse vocabulário.

Ora, se a teoria social é constituída hermeneuticamente por intermédio das releituras de clássicos e se cada fabulação traz consigo um mundo imaginado que relaciona enunciados teóricos abstratos a objetos e a qualidades de espaços sociais delimitados, torna-se absolutamente crucial discutir a universalidade das teorias que consumimos. Não à toa, a questão do eurocentrismo converteu-se num dos temas principais da agenda sociológica contemporânea, mobilizando diferentes tentativas de reconstrução teórica a partir de outras perspectivas. Não cabe aqui recontar em termos histórico-cronológicos a história desse vasto processo de descentramento, normalmente identificados com a vaga de estudos pós-coloniais asiáticos, mas que na verdade tem um de seus pontos nodais na própria tradição do moderno pensamento latino-americano (ZEA, 1949; O'GORMAN, 1992).

Gostaria apenas de destacar dois procedimentos analíticos inspirados por essas discussões que me parecem ser de grande valia para a mediação teórica de nossos estudos no campo do pensamento brasileiro. São eles: a) a crítica conceitual, seja para refutar um conceito, seja para reabrir ou ampliar definições de outros; e b) a refutação de teorias de médio alcance por conta dos vieses de suas bases empíricas e horizontes imaginativos e/ou proposições de novas abordagens analíticas para fenômenos específicos.

No caso do trabalho de crítica conceitual, penso em dois exemplos que ilustram o argumento: os estudos de Syed Farid Alatas (ALATAS, 2006a, 2006b), que questionam a relevância e aplicabilidade de alguns conceitos sociológicos de origem europeia para outras realidades, e o de Said Arjomand (ARJOMAND, 2001), que empreendeu interessante trabalho de investigação histórica sobre o tema da esfera pública.

Farid Alatas é filho do sociólogo malaio Syed Hussein Alatas (1928-2007), que se notabilizou por uma produção que enfatizava a necessidade de se construir tradições sociológicas autônomas, que soubessem refletir criticamente sobre a produção europeia e evitassem mimetizar conceitos e teorias que teriam pouca relevância em contextos periféricos (ABAZA, 2002). Seu filho vem trilhando caminho semelhante e seu programa teórico concentra-se na ideia dos "discursos alternativos" (ALATAS, 2006a). Sua hipótese geral é a de que já se avançou muito na crítica ao eurocentrismo, mas pouco se progrediu na proposição de vocabulários e conceitos novos para a teoria social. Reconhecendo a relação de dependência entre conceitos e experiências culturais e históricas específicas, Farid Alatas sugere que incorporemos ao repertório sociológico conceitos que derivam da experiência de sociedades não-ocidentais. É assim, por exemplo, que seria possível renovar a sociologia da religião, desvinculando-a do conceito weberiano de religião, que terminaria por enquadrar de forma equivocada práticas espirituais que não se pautavam pelo ordenamento apresentado na obra de Weber a respeito do "Oriente".

Como se percebe, estamos distantes de quaisquer fabulações nativistas e, mais ainda, do debate em torno das indigenous sociologies. O projeto de autonomia intelectual não se orienta para a produção de teorias nacionais ou indígenas, mas sim para a investigação de tradições alternativas ao discurso hegemônico que possam ser incorporadas ao repertório compartilhado da sociologia como uma ciência verdadeiramente global. Assim, o método de trabalho de Farid Alatas baseia-se na arqueologia de pensadores e obras não-canônicas, em sua maioria oriundos países fora do eixo do Atlântico Norte, que lograram apresentar conceitos diferentes sobre temas clássicos das ciências sociais.

Alatas também discute o problema da mudança social - um dos temas caros à tradição da disciplina - a partir de outras marcações, anteriores à montagem do cânone weberiano que ainda informa parte significativa da sociologia histórica atual. Para tanto, analisa a obra de Ibn Khaldun (1332-1406), pensador árabe do século XIV que teria produzido uma explicação sobre a ascensão e queda de Estados árabes orientais (ALATAS, 2006b). Sua teoria enfatizava os conflitos entre tribos Beduínas nômades e elites governantes citadinas, mobilizando como variável explicativa os sentimentos tribais não exclusivamente étnicos. Alatas argumenta que esse tipo de sociologia histórica de formações estatais ditas pré-modernas ofereceria um ângulo analítico não disponível nas teorias marxistas ou weberianas sobre sociedades asiáticas, complementando, por exemplo, as teorias sobre modos de produção. A possibilidade de se utilizar dessas formulações teóricas foi explorada tanto por clássicos pensadores do nacionalismo, como Ernest Gellner (GELLNER, 1981), como por pesquisadores contemporâneos interessados no revivalismo religioso (cf. ALATAS, 2010).

Enquanto Alatas criticou a naturalização de alguns conceitos supostamente universais, Said Arjomand iluminou outras raízes históricas para o surgimento da ideia de esfera pública. Seu trabalho orienta-se para a história da imaginação política entre os persas, rastreando o cruzamento entre as heranças gregas e indianas relativas à arte do bom governo. No seu texto, Arjomand parte do conceito de esfera pública para mostrar como essa ideia pode ser localizada na tradição política persa, em especial nos seus lugares de institucionalização social, como os cafés. Nesse sentido, seu trabalho busca alargar o horizonte cultural associado a um conceito que sempre foi pensado tendo como cenário as modernas metrópoles europeias do século XIX e a burguesia como agente.

Os trabalhos de Alatas e Arjomand destacam a desigualdade no trânsito intelectual entre produção teórica metropolitana e trabalho intelectual nas periferias, mas de modo algum se orientam para qualquer fantasia nativista ou essencialista. Suas críticas dirigem-se para a unilateralidade das construções conceituais e para a necessidade de alargar o repertório conceitual das ciências sociais.

No caso da refutação de teorias específicas ou proposição de abordagens analíticas alternativas, penso no trabalho da socióloga australiana Raewyn Connell (CONNELL, 2007), que, em seu livro sobre teoria social no Sul Global, apontou as fraquezas das teorias sobre globalização. Segundo Connell, autores como Ulrich Beck e Anthony Giddens construiriam grandes narrativas teóricas a partir de um corpo empírico limitado, transformando uma perspectiva local num ponto de observação universal. As teorias sobre globalização ou cosmopolitismo basear-se-iam na suposição de uma experiência social nova globalmente compartilhada, esvanecendo, portanto, cruciais diferenças entre classes e países. Tratar-se-ia, portanto, de um problema de falso universalismo, causado pela facilidade com que a sociologia europeia opera esse deslizamento entre os casos específicos e uma suposta condição global.

Mais recentemente, Sérgio Costa e Manuela Boatcã (COSTA & BOATCÃ, 2010) partiram dessa crítica para sugerir que as perspectivas pós-coloniais poderiam ajudar a sociologia global a construir abordagens analíticas que descentrassem o conceito de modernidade, desvinculando-o do seu exclusivismo europeu e enfatizando as dinâmicas transcontinentais que presidiram sua complexa formação. Num nível mais operacional, Costa e Boatcã mostram como insights pós-coloniais poderiam ajudar a deslocar hipóteses clássicas das teorias de democratização na América Latina, que, em geral, se concentrariam nas explicações institucionais dos problemas da "transição". Os autores argumentam que abordagens inspiradas pelo paradigma pós-colonial jogaram luz sobre atores e práticas sociais que não eram usualmente considerados locus de potencial democrático, tal como preconizava a teoria construída a partir da Europa Ocidental, como os movimentos de afirmação étnica. Nesse sentido, o trabalho de Costa e Boatcã é um bom exemplo de como o processo de descentramento teórico pode operar não apenas no nível da critica conceitual, mas também no próprio questionamento de teorias de médio alcance de grande circulação.

Como se vê, a sociologia contemporânea vem sendo desafiada por diferentes vozes tidas como periféricas, que buscam rediscutir o seu aparato conceitual e teórico, como forma de construir uma disciplina realmente global. Delimitei nesta seção alguns dos procedimentos mais comuns apresentados nesses trabalhos e creio que podemos encontrar perspectivas similares no campo contemporâneo do pensamento brasileiro.

2. O pensamento brasileiro e a teoria social

O que é, afinal, o campo do pensamento social brasileiro? Vejo-o como o campo de estudos contemporâneo voltado para a investigação da nossa tradição intelectual erudita, pensada enquanto um conjunto de textos, autores, temas, obras, linhagens ou famílias intelectuais, movimentos culturais e espaços de sociabilidade. Não tendo um paradigma metodológico específico ou mesmo uma definição disciplinar precisa, esse campo comporta trabalhos de crítica literária, história da ciência, história intelectual e sociologia da cultura, abrigando também estudos que buscam produzir reflexões teóricas a partir da investigação contemporânea de objetos clássicos. Essa busca organiza-se em torno de uma linguagem que se constitui a partir da própria reconstrução dos objetos clássicos da tradição intelectual, o que confere às pesquisas de nossa área uma maior sensibilidade para problemas de repertório conceitual e horizontes cognitivos. Assim, procuro, nesta seção, apontar brevemente como alguns trabalhos de nosso campo se encaixam nas estratégias analíticas acima elencadas, atestando seu potencial teórico e a fertilidade do cruzamento proposto entre pensamento brasileiro e teoria social.

No caso da discussão de teorias de médio alcance restritas a fenômenos específicos, penso, por exemplo, em todos os estudos inspirados pela discussão feita por Luiz Werneck Vianna (WERNECK VIANNA, 1997) sobre o iberismo (BARBOZA FILHO, 2000; CARVALHO, 1998). Essa discussão empreendeu vigoroso mergulho num certo ramo da tradição intelectual brasileira, incrementando o repertório conceitual disponível na sociologia política para explicar processos de nation-building na periferia do capitalismo. Isso explica como uma palavra que parece ter sabor nativo, como iberismo, transformou-se num conceito que visa explicar a forma de articulação entre Estado e sociedade num país como o Brasil, marcada pelo predomínio do Estado como agente organizador da modernização. Embora o conceito ainda precise ser testado em outras sociedades ibero-americanas, parece-me claro que ele pode ser incorporado ao repertório da sociologia política, sendo sua fatura final o resultado de pesquisas típicas do campo de "pensamento social brasileiro". Nesse sentido, o debate sobre iberismo encontra semelhança analítica com o trabalho teórico atual centrado na construção de hipóteses alternativas sobre fenômenos específicos. A ressonância desse debate no Brasil diz respeito à insatisfação com as teorias disponíveis para explicar processos de construção nacional que escapam ao horizonte imaginativo das teorias clássicas sobre Estado e sociedade.

Do mesmo modo, o trabalho de André Botelho (BOTELHO, 2007) sobre as sequências da sociologia política brasileira também introduz importantes elementos analíticos e cognitivos para uma teoria sobre a formação do Estado em contextos nos quais a questão agrária foi tema absolutamente central. Ao reler a obra de Oliveira Vianna e de autores posteriores, como Maria Sylvia de Carvalho Franco, Botelho enfatiza a dimensão constitutiva da violência no processo de construção nacional e aproxima-se de discussões da sociologia política, nas quais se questiona a tese do monopólio estatal da violência como variável crucial para a formação de Estados (COSTA, 2010). Nesse sentido, sua releitura de autores brasileiros fornece um horizonte cognitivo alternativo para tratar um tema central da teoria social contemporânea.

No campo da crítica conceitual, encontra-se o recente trabalho de Rogério Dultra dos Santos (SANTOS, 2010), no qual a história do conceito de totalitarismo é reconstituída por intermédio de uma releitura das obras de Azevedo Amaral. Ao evidenciar a precocidade da contribuição de um pensador dito periférico, Dultra mostra como o horizonte liberal que preside o cânone do conceito pode ser desafiado a partir de outros lugares de discurso. Assemelha-se, portanto, ao exercício proposto por Arjomand, que reabre a discussão sobre esfera pública a partir de uma tradição político-intelectual alternativa àquela que informou a análise habermasiana.

Mais recentemente, João Maia (MAIA, 2011) procurou apontar como uma releitura crítica da nossa imaginação sobre terra e sertões poderia ajudar a produzir outros horizontes cognitivos sobre espaço e territorialidade, tema que está no centro de parte da discussão teórica contemporânea. Nesse artigo, Maia partiu de uma releitura da obra de Euclides da Cunha, seguindo por outros trabalhos que também investigam o lugar do espaço no pensamento brasileiro (LIMA, 1999), para argumentar que a chamada "virada espacial" (spatial turn) na teoria social é feita a partir de um universo cognitivo organizado, ainda em grande medida, em torno da imagem da metrópole moderna. Sugere que esse viés implica limitações ao modo como a sociologia trabalha imagens espaciais e explora temas contemporâneos a partir de uma reflexão sobre a espacialidade em formações sociais tidas como periféricas. Maia sustenta, por exemplo, a rentabilidade de se retomar as imagens das fronteiras e do sertão para uma análise das dinâmicas espaciais do capitalismo a partir das sociedades periféricas.

Estes são apenas alguns exemplos de como o trabalho de pesquisa em nossa área pode iluminar a discussão teórica contemporânea, seja por intermédio da crítica conceitual, seja pela ampliação do universo cognitivo ou empírico que fundamenta teorias de médio alcance de grande circulação no campo sociológico. Resta, contudo, inquirir o problema do estatuto supostamente local do pensamento brasileiro, que em geral é visto como sendo desvinculado das discussões teóricas globais.

3. A história do pensamento brasileiro como parte de uma história transnacional do pensamento social

A proposta de articular pensamento brasileiro e teoria social exige que descentremos o primeiro, inserindo-o num contexto mais amplo que aquele marcado pelos limites do Estado-Nação. Ou seja, a possibilidade de tratar o pensamento brasileiro como uma fonte possível de animação teórica demanda um primeiro exercício de recontar a história social de seus intelectuais e de suas ideias. Sustento que esse movimento é condição básica para que a discussão sobre vocabulários e linguagens clássicos da imaginação brasileira não seja feita de forma abstrata e desencarnada, mas sim, tomando por base as dinâmicas sociais concretas que nos permitem aquilatá-las. Mas como fazer isso?

As tradicionais histórias das sociologias ou do pensamento social costumam concentrar-se ou nos grandes nomes da teoria social (COSER, 1965), ou na análise de tradições nacionais (LEVINE, 1997; LEPENIES, 1996), em geral restritas a alguns países europeus (França, Inglaterra e Alemanha, em especial) e aos Estados Unidos, que dominaram a produção sociológica no pós-Segunda Guerra e exportaram o paradigma estrutural-funcionalista parsoniano para as periferias (JOAS, KNOBL, 2009). Pouco conhecemos sobre a imaginação sociológica em países situados fora do Atlântico Norte, que têm suas histórias contadas em coletâneas nacionais, mas não nos grandes tratados. Também são raras as abordagens que contemplem uma perspectiva verdadeiramente global da sociologia, analisando os fluxos institucionais, intelectuais e financeiros que marcaram a construção do pensamento social na segunda metade do século XX. Exceção pode ser encontrada no trabalho de Johan Heilbron, Nicolas Guilhot e Laurent Jeanpierre (HEILBRON, GUILHOT, JEANPIERRE, 2008), no qual os autores propõem uma história transnacional da disciplina, criticando abordagens excessivamente limitadas ao Estado-Nação. Ao enfatizarem os três principais mecanismos que explicariam a constituição global das ciências sociais - papel de instituições e agências internacionais; circulação forçada ou voluntária de intelectuais; trocas entre instituições não-acadêmicas -, os autores logram estabelecer as bases para a explicação de dinâmicas intelectuais extranacionais. Entretanto, ainda estão por demais presos aos circuitos que emanam do centro para as periferias. É certo que essa foi a direção tomada pela circulação hegemônica de ideias e redes intelectuais, explicando boa parte da constituição da própria sociologia no Brasil, mas há significativas trocas a serem investigadas e estudadas entre países do Sul. Dois exemplos estão nos trabalhos de Raewyn Connell (CONNELL, 2007) e Fernanda Beigel (BEIGEL, 2010).

No seu livro Southern Theory, Connell argumenta que a história canônica da sociologia associa essa forma de imaginação a uma espécie de autorreflexão da modernidade europeia. Essa história veria a sociologia como emanando da Europa para outras regiões, o que configura um quadro excessivamente restritivo de pais fundadores e correntes intelectuais. Connell contra-argumenta que, em sua origem, a sociologia foi um empreendimento marcado pelo contexto do imperialismo e do colonialismo. Pensadores como Comte e Spencer tomavam a humanidade ou o mundo como empiria a ser desbravada e valiam-se muito de informações e dados extraídos de povos não-europeus. A transformação da sociologia numa ciência metodologicamente sofisticada e abstrata se deu, basicamente, no pós-Segunda Guerra, com o deslocamento do eixo intelectual da Europa para os Estados Unidos.

Connell sustenta que essa história da sociologia ofuscou outros vocabulários e pensadores, que poderiam alimentar uma sociologia realmente global. Ao propor uma forma alternativa de inventariar a teoria social, ela busca tradições intelectuais em contextos tão díspares como o Irã, a América Latina e a África do Sul. Seu livro compõe-se como um conjunto de narrativas intelectuais periféricas e Connell busca extrair, de cada uma, o potencial para o diálogo sociológico contemporâneo. Além disso, seu trabalho abre possibilidade para se pensar uma forma mais descentrada de se estudar a história social das ideias e dos intelectuais.

Se o livro de Connell foca um objeto por demais extenso, o trabalho de Fernanda Beiguel tem o mérito de extrair muito de um material empírico consideravelmente menor. Em seu texto, Beiguel toma como objeto a teoria da dependência latino-americana e tenta explicar sua originalidade em função das dinâmicas histórico-sociais que conformaram a circulação de intelectuais do Cone Sul na cidade de Santiago. No Chile, a existência de organismos regionais de ciências sociais como a FLACSO era resultado de políticas transnacionais da UNESCO, das quais também é resultado a criação do CLAPCS no Rio de Janeiro, em 1958. O que me parece relevante na pesquisa de Beiguel é a forma como ela consegue construir uma sociologia da vida intelectual em contextos periféricos que enfatiza a dimensão transnacional dos eventos e a circulação de ideias na direção periferias-periferias e não apenas centros-periferia.

Tanto o trabalho de Connell como o de Beiguel apontam para duas possíveis estratégias na abordagem transnacional do pensamento social. A primeira implicaria a produção de estudos comparados de recepção e recriação de teorias, levando-se em conta a dinâmica centros-periferia. A pergunta central seria: "como tradições intelectuais não-europeias leram e reinventaram teorias produzidas no mundo europeu?". Assim fez, por exemplo, Sérgio Miceli (MICELI, 2003), em seu livro sobre o modernismo plástico paulista, no qual a produção de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Lasar Segall, entre outros, é analisada a partir das formas autóctones de consumo cultural típicas de uma sociedade periférica, que ainda absorve as vanguardas europeias num mundo marcado pelos constrangimentos do mecenato privado. Outro exemplo foi o trabalho de Gláucia Villas-Bôas (VILLAS-BÔAS, 2006) sobre a recepção da obra de Karl Mannheim no Brasil, que consegue situar o pensamento brasileiro como uma parte integrante da história do pensamento sociológico global. Pode-se dizer, aliás, que essa questão funda algumas importantes linhagens de nosso campo, como aquela inspirada pela conhecida tese de Roberto Schwarz sobre as "ideias fora de lugar" (SCHWARZ, 1981).

A outra estratégia seria a produção de estudos baseados em afinidades eletivas entre pensadores periféricos, buscando rastrear vocabulários compartilhados. Isso implicaria situar textos e autores clássicos de nossa imaginação em relação com outros pensadores e escritos de contextos diversos, nos quais o problema da relação entre teoria central e realidades locais também foi determinante. O caso de Guerreiro Ramos, que passo a apresentar agora, é exemplar dessa perspectiva.

Depois de um período em que foi estigmatizado como parte integrante da fábrica de ideologias isebiana (TOLEDO, 1978), novas abordagens buscaram entender seu discurso sociológico (OLIVEIRA, 1995), relacionando-o às transformações do capitalismo brasileiro (BARIANI JUNIOR, 2008) ou localizando suas polêmicas com outros cientistas sociais brasileiros (MAIO, 1997). Outros pesquisadores também estudaram mais detidamente suas teorias da administração, enfatizando a originalidade dessa obra e sua conexão com tendências contemporâneas (AZEVEDO, 2006; SOARES, 1993). Mais recentemente, foi explorado o estatuto teórico da interpretação de Guerreiro sobre o tema da negritude e do personalismo negro, enfatizando-se seu diálogo com o pós-colonialismo (BARBOSA, 2006).

Entretanto, pouco avançamos na localização de Guerreiro Ramos numa história intelectual menos nacional. É certo que boa parte dos intérpretes aproximou o autor de pensadores do mundo pós-colonial, em especial de intelectuais como Franz Fanon e George Balandier (ORTIZ, 1994). Creio, porém, que ainda há muito a ser feito para entendermos essa complexa geopolítica do conhecimento sociológico, do qual Guerreiro Ramos fazia parte.

Sustento que entre os anos de 1950 e 1970 é possível localizar um vasto e descentrado campo intelectual transnacional, que abrigava sociólogos, economistas e demais cientistas sociais que buscavam questionar o estatuto eurocêntrico das ciências sociais tal como praticadas nos países do Atlântico Norte. Assim, localizo a obra de Guerreiro Ramos ao lado da produção de intelectuais como o malaio Syed Hussein Alatas e o argelino Anouar Abdel-Malek, que no período citado preocupavam-se em participar do debate global da sociologia de um ponto de vista que reconhecia a condição periférica e a tomava como ponto de enunciação de um discurso crítico aos limites da disciplina. Conceitos como "mente cativa" (ALATAS, 1972a), "Orientalismo" (ABDEL-MALEK, 1963) e "sociologia consular" (RAMOS, 1954) juntavam-se a outros, tais como dependência, imperialismo acadêmico, desenvolvimento, alienação e situação colonial, compondo um capítulo da história global da sociologia pouco estudado.

Tome-se como exemplo das linguagens sociológicas deste campo o trabalho do sociólogo Hussein Alatas. Após um primeiro momento de sua trajetória, em que buscava, no pensamento histórico alemão (Weber, Rickert, Dilthey), fontes seguras para construir uma sociologia da civilização do Sudeste Asiático, Alatas partiu para investigações mais focadas nos problemas do desenvolvimento no contexto pós-colonial. Ao mesmo tempo, buscava traduzir a sociologia como um saber crítico e prático, orientado para a resolução criativa de problemas do desenvolvimento e da organização nacional. São desse período obras como Thomas Stamford Raffles: Schemer or Reformer (ALATAS, 1972b), Modernization and Social Change in Southeast Asia (ALATAS, 1972c), Intellectuals in Developing Societies (ALATAS, 1977a) e The Myth of the Lazy Native (ALATAS, 1977b).

Embora seja impossível fazer aqui uma análise detida da produção intelectual desse autor, é factível apontar algumas das principais características do fazer sociológico de Alatas. Entre elas, gostaria de ressaltar a preocupação teórica com o estatuto da sociologia em contextos não centrais. Essa preocupação traduzia-se de duas formas no discurso de Alatas: por um lado, esse discurso centrava-se na crítica à ausência de relevância dos estudos sociológicos feitos no Sudeste Asiático, por conta da importação acrítica de modelos, conceitos e problemas de investigação. Por outro lado, o próprio estilo de escrita do autor escapava ao cânone disciplinar, conformando-se como uma prosa sarcástica e virulenta, que elegia como interlocutor as próprias elites dirigentes de seu país. A admiração de Alatas pela cultura russa fazia com que não apenas mobilizasse imagens clássicas da literatura desse país para transformar em conceitos ("homens supérfluos", "sociologia do tolo"), como também conferisse enorme importância ao tema dos intelectuais, atribuindo à capacidade de liderança moral e política desses personagens um poder de agência desconhecido nas teorias sociológicas então em voga na sociologia global.

Como se vê, é possível localizar nesse fazer sociológico características similares à que costumamos atribuir ao pensamento de Guerreiro Ramos, em especial quando nos fixamos na fase mais conhecida do autor, iniciada com a publicação de O Processo da Sociologia no Brasil (RAMOS, 1953). Nesse breve texto, já estão presentes algumas das principais características de sua persona sociológica: o tom polêmico e insubordinado ao cânone disciplinar, a crítica feroz à dimensão alienada do fazer sociológico no Brasil e a busca por um acerto de contas com a vida intelectual nacional. Essa perspectiva se desdobrou em um texto produzido no ano seguinte, intitulado Notas para um estudo crítico da Sociologia no Brasil, em que o autor se concentrou mais detidamente na análise teórica do discurso sociológico brasileiro, destacando a sua relação com a "situação colonial". Assim, Guerreiro enumerava o sincretismo, o dogmatismo, o dedutivismo, a alienação e a inautenticidade como principais formas do fazer sociológico nativo. Interessante notar como, nessa obra, o sociólogo baiano já enfatiza o problema do colonialismo nas atitudes intelectuais, inspirado pelos trabalhos de Georges Balandier e Octave Mannoni. Mais explicitamente do que no texto anterior, Guerreiro defende uma "sociologia nacional", pautada pelo engajamento na autodeterminação brasileira e pela eleição de temas e problemas próprios, condizentes com a própria dinâmica histórica nacional.

Essa teorização iria desaguar no clássico livro sobre a redução sociológica (RAMOS, 1958), em que Guerreiro conseguia traduzir suas preocupações com o estatuto da reflexão em contextos periféricos num procedimento metodológico controlado. Esse procedimento implicava uma atitude fenomenológica crítica, que permitia historicizar os conceitos da disciplina e localizar seus pressupostos culturais e políticos. Em última instância, a redução era um instrumento ativo de crítica ao trânsito unilateral de conceitos das metrópoles para as periferias do sistema. Nos anos 1960, esse discurso ganhou um sentido cada vez mais político, à medida que o sociólogo baiano enfronhava-se nas lutas políticas do período e na causa nacionalista.

É comum a vinculação desse fazer sociológico a uma linhagem clássica do pensamento brasileiro, caracterizada pela crítica à importação de teorias e doutrinas supostamente universais e pela defesa de um realismo sociológico pragmático, que se recusava a pensar as instituições descoladas das formas de vida social do Brasil. Esse tipo de argumento - que está na própria genealogia traçada por Guerreiro Ramos nos seus acertos de conta com a tradição nacional - pode ser encontrado no clássico livro de Wanderley Guilherme dos Santos (SANTOS, 1978) e, mais recentemente, no trabalho de Gildo Marçal Brandão sobre o pensamento político brasileiro (BRANDÃO, 2005). Reputo esse tipo de interpretação como fundamentalmente correta, mas creio que ela não incorpora essa importante dimensão transnacional, que sustento nesta seção do artigo.

Afinal, difícil não notar as semelhanças entre Guerreiro e Alatas, não apenas de vocabulário, mas de fazer sociológico. O próprio estilo de escrita dos autores converge para uma prosa indisciplinada, marcada por uma interlocução constante com as elites dirigentes nacionais e por um forte senso crítico diante de suas respectivas tradições intelectuais nativas. Notável também a semelhança das fontes intelectuais e das referências culturais mais amplas, que passam pelo culturalismo alemão crítico ao ordenamento liberal e pela sociologia do conhecimento de Mannheim. Ao mesmo tempo, ambos recorreram aos trabalhos de economistas do desenvolvimento, que pensavam o planejamento a partir das necessidades de organização nacional das sociedades periféricas. Gunnar Myrdal e Celso Furtado seriam referências constantes tanto de Alatas, como de Guerreiro Ramos.

Essas semelhanças indicam que uma história transnacional do pensamento periférico pode ajudar a situar o pensamento brasileiro numa perspectiva descentrada, menos vinculada à sua própria lógica interna, tida como supostamente autônoma. Além disso, esse enquadramento é procedimento fundamental para permitir a atualização teórica do pensamento brasileiro. Afinal, se continuarmos encarando o nosso pensamento social dentro dos limites do Estado-Nação, será difícil classificá-lo para além das fronteiras de uma História intelectual particular, relevante para os brasileiros, mas não necessariamente para o resto do mundo. Ora, e não há teoria que possa se contentar com um certificado de nacionalidade. Inscrever o pensamento brasileiro numa história transnacional do pensamento social implica situá-lo como parte integrante de um movimento de ideias global, que pode ter relevância e ressonância para estudiosos e pesquisadores das mais variadas regiões do mundo. O trabalho hermenêutico que Alexander destacava como fundamental para a produção teórica contemporânea passar a incluir autores brasileiros, não mais entendidos apenas como intérpretes da nacionalidade, mas como pensadores periféricos que, a partir dos problemas de um Estado-Nação pós-colonial, pensaram temas comuns a outros homens.

É o que acontece com a obra de Hussein Alatas. Seus artigos mais recentes (ALATAS, 2006) retomaram temas clássicos do seu pensamento e os relacionaram a discussões atuais na sociologia global, referentes ao dilema entre universalismo e particularismo na produção das ciências sociais. Não à toa, são lidos não como exemplo de "pensamento social malaio", mas sim como parte do acervo de uma sociologia feita no Sul Global, que pode oferecer contribuições alternativas para um debate que é compartilhado globalmente.

É claro que o uso do inglês como língua é um dos principais critérios para explicar por que Alatas tem um estatuto "teórico" desconhecido para pensadores com temáticas similares no caso brasileiro. Recentemente, Renato Ortiz vem explorando os efeitos cognitivos e epistemológicos produzidos pela hegemonia do inglês como língua oficial da sociologia global (ORTIZ, 2004). No seu trabalho, Ortiz mostra como a ideia de uma língua franca da ciência ignora a contextualização de conceitos e enunciações, bem como a própria dificuldade de traduzir argumentos em formulações abstratas e desencarnadas. O inglês como língua mundializada produz não apenas hierarquias e barreiras efetivas para publicação e circulação de ideias, como também tem o poder de pautar debates e organizar a agenda intelectual em função de certos problemas (como não pensar nas discussões sobre governance?). Portanto, é certo que a posição de Guerreiro Ramos como um "intérprete do Brasil" e de Hussein Alatas como um "sociólogo" não deriva apenas de questões internas ao nosso campo de estudos, mas traduz uma divisão entre local e universal que reflete hierarquias produzidas por hegemonia linguística.

Entretanto, nada impede que os estudiosos contemporâneos do pensamento brasileiro empreendam um movimento de releitura, inserindo nossa história intelectual numa chave menos autorreferida. Esse movimento não é apenas para fora, mas também para dentro. Não implica necessariamente "exportar" Guerreiro Ramos - embora essa tarefa seja importante e bem-vinda -, mas também ser capaz de traduzir o nosso lugar de discurso em termos mais abertos, não como forma de apagar sua singularidade, mas de revestir essa condição de propriedades mais universalizantes. Nesse sentido, poderíamos continuar pensando "com" e "a partir de" Guerreiro Ramos, mas mirando também problemas da disciplina para os quais acreditamos poder contribuir.

Essa é a condição para que nos apropriemos de nossa própria herança de forma a projetá-la para o mundo, seguindo um caminho que já está se dando, tanto na política externa, como na cultura brasileira entendida de forma mais ampla. Não há melhor momento que agora para provar a atualidade teórica do pensamento social brasileiro.

Recebido em 08/08/2011

Aprovado em 09/10/2011

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Fev 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Aceito
      09 Out 2011
    • Recebido
      08 Ago 2011
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