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Negociações coletivas e legislação estatal: uma análise comparada da regulação da relação de emprego de fins dos anos de 1970 ao plano Real

Resumos

Este artigo apresenta uma análise do conteúdo normativo de acordos coletivos em comparação com a legislação estatal, com o objetivo de verificar se, e em que medida, as negociações coletivas de trabalho criaram regras não previstas no amplo conjunto de normas estatais que caracteriza o sistema brasileiro de relações de trabalho. Trata-se de um estudo empírico com base em dados de unidades de negociação da indústria do Rio Grande do Sul, no período entre 1978 e 1995. A evidência sugere que as negociações coletivas fortaleceram-se na sua função regulatória, fazendo crescer o conjunto de direitos dos empregados, ao mesmo tempo em que também propiciaram o ajuste de regras de interesse dos empregadores.

Relações de trabalho; Negociação coletiva de trabalho; Sindicatos; Indústria


This paper analyses normative contents of collective agreements vis-à-vis brazilian labour legislation in order to assess whether collective bargaining stipulated rules which had not been already fixed in the vast set of statutory rules that characterises the brazilian industrial relations system. This analysis has been carried out through an empirical study of 17 bargaining units in manufacturing in the state of Rio Grande do Sul between 1978 and 1995. Evidence suggests that collective bargaining increased its importance in job regulation by both enlarging employee rights and setting down some rules of employers' interest.

Industrial relations; Collective bargaining; Trade unions; Manufacturing


ARTIGOS

Negociações coletivas e legislação estatal: uma análise comparada da regulação da relação de emprego de fins dos anos de 1970 ao plano Real* [* ] Este artigo é uma versão revisada do trabalho apresentado no VIII Encontro Nacional de Estudos do Trabalho da ABET, em São Paulo, em outubro de 2003. Consiste, em sua maior parte, do capítulo 5 da tese de doutorado do autor, Collective bargaining in Brazilian manufacturing, 1978-95, que resultou de pesquisa sob a supervisão do professor Stephen Wood, e que foi submetida a London School of Economics and Political Science (Universidade de Londres) em janeiro de 2003. Para realizar a pesquisa, o autor contou com o apoio de bolsa de estudo do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. O autor agradece os comentários do professor José Dari Krein, da professora Rosana Ribeiro e da Dra. Raquel Paese, que, como de praxe, ficam eximidos dos equívocos do artigo.

Carlos Henrique Horn

RESUMO

Este artigo apresenta uma análise do conteúdo normativo de acordos coletivos em comparação com a legislação estatal, com o objetivo de verificar se, e em que medida, as negociações coletivas de trabalho criaram regras não previstas no amplo conjunto de normas estatais que caracteriza o sistema brasileiro de relações de trabalho. Trata-se de um estudo empírico com base em dados de unidades de negociação da indústria do Rio Grande do Sul, no período entre 1978 e 1995. A evidência sugere que as negociações coletivas fortaleceram-se na sua função regulatória, fazendo crescer o conjunto de direitos dos empregados, ao mesmo tempo em que também propiciaram o ajuste de regras de interesse dos empregadores.

Palavras chave: Relações de trabalho; Negociação coletiva de trabalho; Sindicatos; Indústria.

ABSTRACT

This paper analyses normative contents of collective agreements vis-à-vis brazilian labour legislation in order to assess whether collective bargaining stipulated rules which had not been already fixed in the vast set of statutory rules that characterises the brazilian industrial relations system. This analysis has been carried out through an empirical study of 17 bargaining units in manufacturing in the state of Rio Grande do Sul between 1978 and 1995. Evidence suggests that collective bargaining increased its importance in job regulation by both enlarging employee rights and setting down some rules of employers' interest.

Keywords: Industrial relations; Collective bargaining; Trade unions; Manufacturing.

INTRODUÇÃO

Com as transformações institucionais por que passou o Brasil na década de 1930, a relação de emprego veio a ser predominantemente regulada pela legislação estatal. O ressurgimento do movimento sindical na segunda metade da década de 1970, entretanto, fez com que um amplo espectro das relações de trabalho passasse a ser normatizado também pelas negociações coletivas, expandindo-se o escopo temático dos acordos trabalhistas1 [1 ] Por acordo coletivo de trabalho, designamos o conjunto de regras, normalmente escritas, derivadas de um processo de negociação entre agentes de negociação ou de barganha coletiva (sindicatos de empregadores ou empregadores individuais, de um lado, e sindicatos de trabalhadores, de outro), com o objetivo de regulamentar a relação de emprego entre empregadores e empregados (as partes), bem como a relação entre os próprios agentes e entre os agentes e sua base constituinte. . Essa expansão foi vista como um sinal de fortalecimento das negociações coletivas. Considerando, todavia, o amplo marco regulatório previamente fixado na CLT e nas demais peças da legislação trabalhista, é preciso ter cautela quanto às conclusões que se extraem exclusivamente com base no crescimento do número de cláusulas coletivas. Uma questão central, a que o dado isolado sobre o aumento no número de cláusulas não oferece resposta, consiste em saber se, e em que extensão, os acordos coletivos vieram a criar regras adicionais às vigentes na legislação estatal2 [2 ] Por regras adicionais, entendemos tanto as regras sobre aspectos das relações de trabalho que não são cobertos pela legislação estatal, como as regras cujo conteúdo difere das normas estatais que tratam de idêntico objeto. . É exatamente esta a questão que orienta o presente artigo.

Analisamos em que medida as negociações coletivas de trabalho geraram regras adicionais à legislação estatal no período entre 1978 e 1995. A evidência empírica foi extraída de acordos coletivos da indústria do Rio Grande do Sul3 [3 ] As unidades de negociação coletiva analisadas correspondem aos seguintes setores de atividade: Laticínios, Panificação, Metal-Mecânica, Química, Adubos e Fertilizantes, Produtos Farmacêuticos, Gráfica, Artefatos de Couro, Calçados e Têxteis. . O período analisado cobre os anos entre o ressurgimento do movimento sindical no cenário político brasileiro, após virtual paralisia a que foi submetido durante o governo militar, e a implementação do Plano Real. O foco da análise concentra-se no conteúdo das cláusulas que regulamentam a relação de emprego, denominadas cláusulas substantivas, em comparação com a legislação estatal. As regras substantivas, quer provenham das negociações coletivas de trabalho, quer se originem da legislação estatal, têm como objetivo principal estabelecer direitos e obrigações mútuas das partes da relação de emprego. Posto que essas cláusulas consistem de proposições normativas, elas compõem-se de elementos abstratos comuns, o que permite que se comparem sistematicamente os acordos coletivos com as várias peças da legislação.

Os processos que registram um número crescente de regras adicionais nos acordos coletivos sugerem um fortalecimento das negociações coletivas de trabalho como método de regulação da relação de emprego. Ao contrário, se o alargamento do escopo temático das negociações caracteriza-se por uma alta proporção de cláusulas, digamos, cujo conteúdo já se encontra na legislação estatal, dificilmente se sustenta uma hipótese de fortalecimento das negociações coletivas. Isto porque nenhuma mudança real no lócus de regulação da relação de emprego ocorre quando os acordos coletivos meramente reproduzem ambos os temas e o conteúdo da legislação estatal.

O artigo está composto de quatro seções, às quais se acrescentam esta introdução e uma conclusão. A primeira apresenta uma metodologia para a mensuração das cláusulas substantivas dos acordos coletivos de trabalho em comparação com a legislação estatal. Nosso ponto de partida é a diferença entre dois tipos de normas jurídicas: normas de conduta e normas de organização4 [4 ] Reale, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 95-97. . As normas de conduta estabelecem os direitos e obrigações dos agentes sociais, sendo as cláusulas substantivas um exemplo dessas normas. Assim, na seqüência, os elementos abstratos que formam uma norma de conduta são enfocados com o objetivo de se detalharem as questões relevantes para a análise comparada do conteúdo das cláusulas coletivas. Essas questões constituem a base para a mensuração do conteúdo das cláusulas coletivas vis-à-vis a legislação estatal. Um esquema completo de classificação das cláusulas é apresentado ao final da primeira seção.

Nas demais seções, analisamos o conteúdo das cláusulas substantivas em comparação com a legislação estatal. Assim, na segunda seção, verificamos se o conteúdo dessas cláusulas demonstra se, e em que extensão, as negociações coletivas teriam dado origem a regras adicionais às da legislação. Já na seção seguinte, enfocamos os resultados e as funções desempenhadas por cláusulas cujo escopo temático e conteúdo são encontrados na legislação estatal. E na quarta seção, analisamos as cláusulas cujos beneficiários reais são os empregadores, examinando-lhes o escopo temático e a magnitude. Uma síntese conclusiva encerra o artigo.

QUESTÕES METODOLÓGICAS SOBRE A MENSURAÇÃO DAS REGRAS DE ACORDOS COLETIVOS EM COMPARAÇÃO COM A LEGISLAÇÃO ESTATAL

Normas de conduta

As cláusulas substantivas dos acordos coletivos de trabalho consistem de regras que estabelecem direitos e obrigações mútuas das partes da relação de emprego5 [5 ] A expressão "cláusulas substantivas" baseia-se na tradicional dicotomia, utilizada para fins de classificação das regras que emergem de um sistema de relações de trabalho, entre regras substantivas e regras de procedimento. Essa distinção encontra-se na literatura de relações de trabalho ( industrial relations) pelo menos desde a obra seminal de Dunlop, John, Industrial Relations Systems. Edição revista. Boston: HBS Press, 1993 [1958], pp. 51 - 53. Flanders, em sua análise teórica sobre as negociações coletivas de trabalho, também faz uso da dicotomia entre regras substantivas e regras de procedimento (Flanders, Allan. "Collective bargaining: a theoretical analysis". In: Flanders. Management and unions: the theory and reform of industrial relations. Londres: Faber and Faber, 1970, pp. 213 - 40). Uma síntese conceitual nos marcos da rules school de relações de trabalho é oferecida por Wood, Stephen e outros. "Rules in industrial relations theory: a discussion". Industrial Relations Journal, vol. 6, nº 1, pp. 14 - 30, 1975. . Como tal, compartilham características comuns com um tipo de norma jurídica, qual seja, a norma de conduta. As cláusulas substantivas são, com efeito, proposições normativasde conduta. Maisainda: oselementosabstratoscomuns às normas de conduta fornecem um guia para a análise de conteúdo das cláusulas coletivas vis-à-vis a legislação estatal. Tendo isto em mente, abordamos aqui (i) quais são esses elementos abstratos comuns e (ii) quais são as questões relevantes para a análise de conteúdo das cláusulas substantivas, ao se individualizarem os elementos comuns às normas de conduta.

Para os propósitos deste artigo, é suficiente definir norma jurídica como "uma estrutura proposicional enunciativa de uma forma de organização ou de conduta, que deve ser seguida de maneira objetiva e obrigatória"6 [6 ] Reale, Miguel. Lições preliminares de Direito. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 95. . Essa definição discrimina entre dois tipos de normas. De um lado, as normas de conduta, ou seja, os comandos imperativos à conduta humana que estabelecem o tipo de comportamento que se espera observar sob condições determinadas. De outro, as normas jurídicas também compreendem normas de organização. Esse tipo de norma desempenha um papel instrumental em qualquer ordenamento jurídico, porquanto fixam requerimentos e conferem poderes a determinadas pessoas para a validação, aplicação e alteração das normas de conduta7 [7 ] Foge inteiramente aos objetivos deste artigo uma discussão mais aprofundada sobre as diferenças entre normas de conduta e normas de organização. Em especial, não pretendemos sequer sugerir uma hierarquização entre os dois tipos de normas, como se as primeiras fossem mais importantes do que as segundas. A menção ao papel instrumental das normas de organização, que poderia dar a entender, mesmo que involuntariamente, tal hierarquização, é retirada de Reale, que associa um "caráter instrumental" àquelas regras (op. cit. , p. 97). Não obstante, quando discute a divisão entre regras primárias e regras secundárias e considera as normas de organização, "de uma forma relativa", como secundárias, esse autor assinala que "essa qualificação não deve significar uma escala de importância [entre normas primárias e secundárias]" (op. cit. , p. 99). .

As normas de conduta são usualmente expressas sob a forma de uma sentença lógica de direitos e obrigações que conectam entre si, sob condições determinadas, as partes de uma relação social: um dos pólos da relação beneficia-se de um conjunto de direitos, ao passo que o outro pólo obriga-se a cumprir certos deveres. Os elementos abstratos comuns das normas de conduta podem ser assim expressos: "Se A é, B deve ser".

Articulam-se, pois, dois elementos na estrutura de uma norma de conduta. O elemento "A" consiste de uma condição hipotética que deve ser observada na realidade a fim de tornar válido, em sentido obrigatório, o elemento "B", isto é, um direito ou uma obrigação. O elemento "B" é o núcleo de um vínculo social entre dois entes, posto que, estando satisfeitas as condições estipuladas no elemento "A", ele prescreve as obrigações de um ente qualquer como a contraparte dos direitos de outro ente, e vice - versa. A conduta simbolizada por "B" pode ser uma proibição, isto é, uma obrigação negativa, tal como na legislação sobre a jornada máxima de trabalho ou o emprego de crianças, ou uma obrigação positiva, tal como na legislação sobre salários mínimos8 [8 ] Kahn-Freund, Otto. Labour and the law. 2 ed. Londres: Stevens, 1977, pp. 27-28. .

Os vínculos lógicos de uma norma de conduta não significam uma conexão causal inevitável, segundo a qual "B" é a conseqüência necessária de "A". A sentença "se A é, B deve ser" não é uma proposição de facto. Com efeito, "B" consiste do comportamento que o sistema jurídico espera que uma pessoa observe sob as condições estabelecidas em "A". Posto que "B" é uma conduta normativa, esse elemento incorpora ambas as premissas de ser seguido e de não ser seguido por quem tem que levar uma obrigação a seu termo. Nas normas jurídicas de conduta, a conseqüência "B" é o produto esperado de um vínculo lógico que subsume a conduta "B" ao fato "A".

Quando um ente não cumpre o comando de uma norma jurídica, coloca-se, todavia, sob o risco de sanção. Nesse caso, os servidores do Estado responsáveis por fazer cumprir as normas jurídicas devem impor algum tipo de penalidade ao agente social cujo comportamento difere do esperado na regra. Por conseguinte, uma segunda sentença deve ser adicionada à estrutura das normas jurídicas de conduta: "Se A é, B deve ser"; "Se não-B, S deve ser".

Essa fórmula lógica mostra que uma sanção "S" deve ser imposta quando a conduta "B" não é observada. O elemento "B" é o comportamento esperado a que uma pessoa deve se conformar sob as condições descritas no elemento "A". Se "B" não é corretamente observado, ou seja, no caso de uma quebra da norma, uma sanção "S" deve ser aplicada ao agente social que desobedece ao que está previsto em "B" como sua obrigação.

Os elementos comuns da estrutura das normas de conduta fornecem um roteiro para a análise de conteúdo das cláusulas substantivas vis-à-vis a legislação estatal. Três questões são de especial relevância. A primeira refere-se à natureza imperativa das regras. As normas jurídicas de conduta não consistem de meras declarações de intenção, em cujo caso a regra deveria ser alternativamente escrita como "se A é, recomenda-se que B seja". Quanto mais os acordos coletivos estabeleçam cláusulas imperativas, menos os empregadores individuais mostrarão qualquer disposição para esquivar-se ao que foi convencionado entre os sindicatos. Cláusulas obrigatórias de acordos coletivos devem ser cumpridas como qualquer norma jurídica.

A segunda questão refere-se às partes para as quais direitos e obrigações são estipulados em acordos coletivos de trabalho. Determinar que parte realmente se beneficia de um direito e que parte deve observar uma obrigação é um ponto-chave da análise. Os sindicatos de trabalhadores e de empregadores (agentes da negociação coletiva) negociam em nome de empregados e empregadores individuais (partes). Esses agentes ajustam entre si cláusulas que regulam (i) a relação de emprego, (ii) as relações entre os próprios agentes, e (iii) as relações entre agentes específicos e partes específicas. Qualquer combinação entre empregados, empregadores, sindicatos de trabalhadores e sindicatos de empregadores pode, em tese, resultar em um par de sujeitos de direitos e de obrigações. Ao se analisarem as cláusulas substantivas, todavia, o que interessa identificar é a parte beneficiária da regulamentação da relação de emprego, se empregado ou empregador.

A terceira questão enfoca o núcleo da regra, isto é, quais são os direitos ou as obrigações ajustados nas cláusulas dos acordos coletivos (elemento "B") e sob que condições esses direitos e obrigações são exigíveis (elemento "A"). Uma resposta a essa questão, considerada cada cláusula individualmente, requer a decomposição do conteúdo da cláusula em seus elementos constitutivos conforme a estrutura das normas de conduta. Ao se contrastar o conteúdo desses elementos com o conteúdo de elementos similares na legislação estatal, é possível formular uma tipologia das cláusulas substantivas dos acordos coletivos de trabalho. As categorias para classificar tais cláusulas com base nas diferentes combinações entre seu conteúdo e o conteúdo da legislação estatal são apresentadas a seguir.

Dimensões da análise das cláusulas substantivas em comparação com a legislação estatal

Há três dimensões básicas para a análise de conteúdo das cláusulas substantivas em comparação com a legislação estatal. Essas três dimensões podem ser formuladas como perguntas, a saber:

I. A cláusula substantiva do acordo coletivo estabelece uma norma imperativa?

A resposta será "sim", no caso das cláusulas que fixam regras de cumprimento obrigatório, ou "não", no caso das cláusulas que consistem de meras declarações de intenção.

II. Qual das partes da relação de emprego se beneficia da cláusula substantiva?

Uma resposta à pergunta pode ser obtida diretamente na ordem das palavras que compõem a cláusula. Se a cláusula estabelece que os empregados têm um direito, a resposta correta mais provável é que esses mesmos empregados se beneficiam da regra ajustada. Alternativamente, a regra pode ser escrita como uma obrigação que uma das partes deve cumprir, e isto ocorre num grande número de vezes. Nesse caso, o beneficiário raramente é a parte identificada antes do verbo "dever", ou seja, a parte obrigada a agir conforme as instruções da regra, mas sim a parte que aparece depois do verbo, na condição de objeto da sentença.

Um aspecto problemático e de grande relevância refere-se aos casos em que os direitos dos empregados fixados em cláusulas coletivas são mais restritos do que aqueles já assentados na legislação estatal. Consideradas essas cláusulas por si mesmas e em sentido literal, os empregados seriam apontados como beneficiários das regras. Essa conclusão, entretanto, está sujeita a forte refutação ao se examinarem as cláusulas não isoladamente, mas como parte de um sistema de normas. Com efeito, as cláusulas dos acordos coletivos de trabalho devem ser analisadas como partículas desse sistema. No contexto do sistema brasileiro de relações de trabalho, a conclusão mais aceita sobre o caso é que são os empregadores individuais, e não os empregados, que se beneficiam daquelas regras. Assim, passaremos a distinguir, sempre que necessário, entre a parte que figura como beneficiária nominal da regra (no caso em questão, os empregados) e a parte que é, efetivamente, a beneficiária real da regra (no caso, os empregadores).

O axioma fundamental para se deduzir que os empregadores são os beneficiários reais de certas cláusulas que identificam os empregados como seus beneficiários nominais reside no princípio da proteção, que está localizado nas fundações de vários sistemas de direito codificado. Esse princípio decorre da noção de que o direito do trabalho tem como objetivo proteger os empregados em vista do desequilíbrio intrínseco que caracteriza a relação de emprego9 [9 ] Rodríguez, Américo Plá. Princípios de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1996, p. 28. . De acordo com Rodríguez, há três critérios principais para a aplicação do princípio da proteção. O primeiro é o critério in dubio, pro operario, segundo o qual se alguma dúvida houver quanto à interpretação de uma regra, a decisão deve considerar o resultado mais favorável do ponto de vista dos empregados. O segundo critério é o da "regra mais favorável". Tal critério determina que, se existir mais de uma regra aplicável a um mesmo aspecto da relação de emprego, a decisão deve seguir a regra mais favorável do ponto de vista dos empregados. O terceiro é o da "condição mais favorável". Sua conseqüência é que se uma nova regra passa a vigorar e modifica uma condição legal previamente existente, a condição prévia deve permanecer aplicável àqueles empregados que já vinham sendo por ela afetados, desde que mais favorável do que a condição resultante da nova regra10 [10 ] Ibidem, p. 42 - 43. .

Por conseguinte, a identificação da parte beneficiária de uma cláusula coletiva não se resume à ordem das palavras na sentença, nem ao desejo individual das partes, nem tampouco à valoração subjetiva que as partes atribuem à regra. Há que se analisar a questão contra o pano de fundo do sistema legal em que as negociações coletivas são conduzidas. Nos casos em que um sistema codificado de regras emanadas do Estado é a principal fonte do direito do trabalho, as cláusulas que alargam os direitos dos empregados em comparação com a legislação estatal (e, em conseqüência, reduzem o poder discricionário dos empregadores), são consideradas como de benefício dos empregados. Ao contrário, as cláusulas que aumentam o poder discricionário dos empregadores vis-à-vis a legislação estatal são classificadas como benéficas aos empregadores.

Segundo Castillo,

[... ]

no direito do trabalho nem sempre a ordem hierárquica entre as diversas fontes se mantém da mesma forma que em outros ramos jurídicos. A razão disso está nas disposições normativas específicas que há em muito países ou nos princípios emanados de uma elaboração doutrinária que a jurisprudência acolhe e aplica e que parte da mesma razão de ser do Direito do Trabalho como disciplina autônoma

11 [11 ] Castillo, Santiago Pérez del. "Hierarquia das fontes no direito do trabalho". In: Rodríguez, Américo Plá (coord. ). Estudos sobre as fontes do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1998, pp. 30-31).

.

A metodologia do esquema de classificação de cláusulas deste artigo assume o princípio da proteção como sua premissa fundamental. Mais exatamente, podemos afirmar que, salvo as exceções explicitamente previstas em lei e no que couber, o método segue as três premissas enunciadas por Castillo em sua análise da hierarquia das fontes do direito do trabalho:

1º A norma de maior categoria tem, em geral, uma função de normatizar e é, ao mesmo tempo, controle das inferiores. 2º Como princípio, no direito do trabalho aplica-se a norma mais favorável mesmo se de categoria inferior. 3º A lei trabalhista impõe mínimos e não máximos e, por isso, pode ser superada, sobrepujada, mas nunca reduzida

12 [12 ] Ibidem, p. 40.

.

III. Qual a relação entre os vínculos lógicos que estabelecem direitos e obrigações em uma cláusula coletiva e na norma estatal relacionada?

O vínculo lógico de direitos e obrigações (elementos "A" e "B") nas cláusulas coletivas e nas normas estatais a elas relacionadas é o núcleo e a dimensão mais complexa da análise das cláusulas substantivas. Chegamos a uma tipologia composta de cinco categorias com o intuito de dar uma resposta compreensiva à essa pergunta. As categorias são as seguintes:

(a) Categoria cláusula sem norma estatal comparável (ou categoria "sem norma estatal"). A categoria compreende as cláusulas substantivas que convencionam regras cujo objeto temático não é regulado na legislação estatal.

Nas demais categorias, de modo diferente da categoria "sem norma estatal", há pelo menos uma norma estatal sobre o objeto de que trata a cláusula do acordo coletivo. A diferença (ou ausência de diferença) entre o conteúdo da norma estatal e o da norma coletiva dá origem a quatro outras categorias de cláusulas.

(b) Categoria cláusula mais ampla (ou categoria "mais ampla"). Essa categoria abrange as cláusulas coletivas que são mais favoráveis aos empregados do que as previstas na legislação estatal. Seguindo os critérios do princípio da proteção, em especial o critério da "norma mais favorável", aplicamos a categoria "mais ampla" exclusivamente às cláusulas que beneficiam os empregados. Assim, não obstante os acordos coletivos se situarem abaixo da lei estatal na hierarquia das fontes do direito, as cláusulas dos acordos predominam sobre as normas estatais sempre que representem um alargamento dos direitos dos empregados. Uma exceção ocorre quando a legislação estatal proíbe, sem deixar margem para dúvidas, que os agentes de negociação ajustem cláusulas que extrapolem as normas estatais.

Decorre, ainda, do princípio da proteção que a categoria "mais ampla" não é consistente com as cláusulas que beneficiam os empregadores. Cláusulas de que resulte uma redução nos direitos dos empregados, as quais poderiam ser intituladas "mais amplas" do ponto de vista dos empregadores, contradizem o critério da "norma mais favorável". Em conseqüência, nenhuma cláusula que beneficie os empregadores e se enquadre no caso deve ser classificada como "mais ampla", sendo, por outra, objeto de categorias específicas que examinamos a seguir.

(c) Categoria cláusula operacional (ou categoria "operacional"). Essa categoria compreende as cláusulas relacionadas às normas estatais que não são plenamente operacionais e que requerem ou permitem um complemento normativo para sua plena eficácia. Nesse caso, a função básica das cláusulas "operacionais" é a de permitir a aplicação de normas estatais. Identificamos três classes de norma estatal "não - operacional": (i) normas estatais que proíbem determinadas condutas, a não ser que essas condutas sejam permitidas em regra coletiva; (ii) normas estatais de enunciado impreciso. A imprecisão pode ocasionar disputas de direito acerca das conseqüências da legislação. Os agentes da negociação podem evitar essas disputas pelo ajuste de cláusulas que fixem os meios de aplicação da norma estatal; e (iii) normas estatais que prevêem mais de uma alternativa de aplicação, em cujo caso os acordos coletivos podem elucidar qual alternativa deverá prevalecer, seja obrigando as partes a uma das alternativas, seja fixando requisitos para o emprego de cada alternativa.

Há uma quarta classe de cláusulas coletivas que também desempenha a função de atribuir a certas condutas empresariais o selo de legalidade, mas que, diferentemente das três classes anteriores, não está relacionada com normas estatais que requeiram necessariamente ou permitam explicitamente um complemento para se tornarem operacionais. Este é o caso em que a proibição ou a obrigação de uma conduta particular pode ser inferida de normas genéricas, ainda que essas normas não tratem explicitamente da conduta em questão. Este tipo de norma estatal poderia ser considerado prontamente operacional, porquanto a conduta (ou a proibição da conduta) não exige um complemento normativo, por exemplo, mediante acordos coletivos. Não obstante, uma vez que sua aplicação requer mais do que simples interpretação literal, pois a conduta particular é inferida de normas genéricas, pode ocorrer um conflito de direitos e, possivelmente, disputas nas cortes trabalhistas. Dessa forma, se as cláusulas coletivas estabelecem normas que já podem ser consideradas válidas com base em dispositivos genéricos da legislação estatal, essas cláusulas são classificadas como "operacionais", porque cumprem a função de remover dúvidas quanto à correta aplicação da legislação.

(d) Categoria cláusula que reproduz a norma estatal (ou categoria "igual à lei"). Essa categoria reúne as cláusulas que meramente reproduzem o conteúdo da legislação estatal. É o caso em que ou as cláusulas simplesmente repetem a frase da lei, ou exprimem com diferentes palavras direitos e obrigações que já estão claramente determinados na legislação estatal.

Não obstante suas aparentes similaridades, as categorias "igual à lei" e "operacional" não tratam do mesmo caso. A categoria "operacional" enquadra as cláusulas cujas normas estatais ou são claramente não - operacionais por si mesmas, ou levantam dúvidas quanto à legalidade de sua aplicação sem que regras coletivas as suportem. Assim, tornar operacional a legislação estatal é sua função precípua. Já as cláusulas classificadas como "igual à lei" não cumprem essa função, porquanto a legislação estatal é plenamente operacional sem a necessidade de um complemento normativo. Essas cláusulas apenas estabelecem regras já expressamente previstas na legislação estatal.

(e) Categoria cláusula disputável (ou categoria "disputável"). Essa categoria agrupa as cláusulas que podem ser julgadas ilegais. Chamálas ilegais, entretanto, poderia induzir em erro a análise de seu conteúdo. O ponto está em que a maioria dessas cláusulas, senão a totalidade, provavelmente suscitaria reclamatórias individuais nas cortes trabalhistas, onde então devem receber o selo de legais ou ilegais. Por esse motivo, parece mais preciso designá-las cláusulas "disputáveis" em vez de cláusulas "ilegais".

Duas classes de regras coletivas compõem a categoria "disputável". A primeira classe consiste de direitos dos empregadores em conflito com direitos dos empregados previstos na legislação estatal. A segunda classe compreende direitos dos empregados com conteúdo normativo mais restrito do que o fixado na legislação estatal. Em ambos os casos, as cláusulas "disputáveis" produziriam uma redução nos direitos dos empregados já garantidos em lei, em favor de um aumento no poder discricionário dos empregadores. Essas cláusulas são inconsistentes com o critério da "norma mais favorável" (princípio da proteção).

Esquema de classificação das cláusulas substantivas

A combinação de possíveis respostas às perguntas abordadas anteriormente, que versam sobre dimensões da análise das cláusulas substantivas em comparação com a legislação estatal, dá origem a categorias para a classificação das cláusulas dos acordos coletivos. Essas categorias são apresentadas no Quadro 1. As categorias de 1 a 9 referem-se às cláusulas substantivas imperativas, ao passo que as categorias 10 e 11 referem-se às não - imperativas. As categorias são agrupadas de acordo com a parte (empregador ou empregado) que realmente se beneficia da regra convencionada. Assim, as categorias de 1 a 4 enquadram as cláusulas substantivas imperativas que beneficiam os empregados, e as categorias de 5 a 9, as cláusulas que beneficiam os empregadores. Uma distinção similar é encontrada nas categorias 10 e 11. Em cada grupo de cláusulas imperativas, as categorias foram definidas com base nos resultados possíveis para a comparação entre os direitos (ou obrigações) estipulados nas cláusulas coletivas e os direitos (ou obrigações) fixados na legislação estatal. Por exemplo, as cláusulas substantivas com normas inexistentes na legislação estatal comparável devem ser classificadas na categoria 1, se os empregados forem os beneficiários reais, ou na categoria 5, se os empregadores forem os beneficiários reais.


PADRÕES DE MUDANÇA NA MAGNITUDE DAS CLÁUSULAS SUBSTANTIVAS ADICIONAIS

Dado o contexto caracterizado por uma abrangente legislação estatal da relação de emprego, o aumento no número de cláusulas coletivas e a expansão do escopo temático dos acordos não podem ser considerados como evidência suficiente de um fortalecimento das negociações coletivas como método de regulação de relação de emprego. Devemos buscar evidência mais eloqüente da expansão do papel regulatório das negociações coletivas. Uma tal evidência pode estar no crescimento do número de cláusulas com normas inexistentes na legislação estatal, ou seja, no aumento no número de cláusulas adicionais.

Nos termos do Quadro 1, as cláusulas adicionais reúnem as cláusulas substantivas imperativas classificadas em uma das seguintes categorias: "sem norma estatal", beneficiando os empregados (categoria 1); "mais ampla" (categoria 2); "sem norma estatal", beneficiando os empregadores (categoria 5); "disputável" I (categoria 8); e "disputável" II (categoria 9). As cláusulas classificadas na categoria "igual à lei" e as cláusulas não-imperativas são casos manifestos de cláusulas não-adicionais. Já as cláusulas "operacionais" formam um caso limítrofe. Embora possam ser encontradas, em escopo e conteúdo, na legislação estatal, as normas inscritas nesse tipo de cláusula não consistem de mera cópia da lei, mas oferecem uma escolha entre alternativas de aplicação da legislação estatal. A Tabela 1 apresenta o número médio de cláusulas adicionais e sua variação anual, em acordos coletivos da indústria do Rio Grande do Sul, entre 1978 e 1995.

Os dados da Tabela 1 mostram um contínuo aumento no número médio de cláusulas adicionais a partir de fins dos anos de 1970. Em 1978, não mais do que duas cláusulas, em média, fixaram regras não encontradas na legislação estatal. As negociações coletivas desempenhavam um papel praticamente irrelevante na regulação da relação de emprego. Após crescer continuamente a uma taxa média de 2, 2 cláusulas por ano, o número médio das cláusulas adicionais chegou a 36, 8 cláusulas em 1994, vindo contudo a diminuir em 1995. Essa multiplicação no número de cláusulas adicionais acarretou, ainda, um aumento na proporção dessas cláusulas no total das cláusulas substantivas, praticamente dobrando de 37, 1% em 1978 para 66, 8% em 1995. Em contraste com o final da década de 1970, o quadro de meados da década de 1990 mostrava que as negociações coletivas respondiam por um número não desprezível de regras adicionais aplicáveis à relação de emprego.

O adensamento dos acordos coletivos favoreceu majoritariamente os empregados. Como se demonstra na Tabela 2, as cláusulas que beneficiam os empregados corresponderam a 89, 8% do total de cláusulas adicionais entre 1978 e 1995. Esse resultado é consistente tanto com a própria natureza do método de regulação coletiva da relação de emprego, como com o contexto histórico no qual as negociações coletivas adquiriram importância no Brasil. As negociações coletivas podem impor uma restrição ao poder discricionário do empregador por meio das obrigações que os empregadores individuais devem satisfazer em sua relação com os empregados. No contexto brasileiro, a expansão do escopo temático das negociações coletivas, ao final dos anos de 1970 e na década seguinte, associou-se a uma ofensiva dos sindicatos de trabalhadores. Uma proporção crescente de cláusulas adicionais beneficiando os empregados foi uma característica saliente dessa expansão, elevando-se de 18, 7% do total das cláusulas (substantivas e não-substantivas) em 1978 a um pico de 52, 2% em 1988, antes de decrescer para 47, 5% em 1995.

Não obstante as cláusulas favoráveis aos empregados terem correspondido a quase a metade de todas as cláusulas e a nove em cada dez cláusulas adicionais no período, há que se assinalar que os empregadores também se beneficiaram com algumas cláusulas adicionais. À luz do marco regulatório estatal predominante, as cláusulas adicionais favoráveis aos empregadores determinaram uma ampliação do poder discricionário dos empregadores individuais. O número médio dessas cláusulas cresceu de zero em 1978 para 5, 3 cláusulas em 1995, quando corresponderam a 14, 5% do total de cláusulas adicionais.

Na Tabela 3, apresentamos a distribuição das cláusulas adicionais por categorias, considerado o período entre 1978 e 1995 como um todo. Os dados mostram que as cláusulas adicionais que beneficiam os empregados foram eqüitativamente distribuídas entre as categorias "sem norma legal"e"mais ampla". As cláusulas classificadas na categoria "sem norma legal" responderam por 22, 1% do total de cláusulas dos acordos coletivos, ao passo que as cláusulas "mais amplas" corresponderam a 24, 3% desse total. Já as cláusulas que beneficiam os empregadores concentraram-se na categoria "disputável" I. As cláusulas classificadas nessa categoria corresponderam a 3, 5% de todas as cláusulas, percentual bem maior do que os das categorias "disputável" II (0, 8%) e "sem norma legal" (1, 0%).

A evolução das cláusulas substantivas adicionais mostra que seu número médio e percentagem cresceram consideravelmente a partir de fins dos anos de 1970. O ritmo desse crescimento, não obstante, oscilou ao longo do tempo e, segundo a parte beneficiária, indicando que os padrões de mudança no número de cláusulas favoráveis aos empregados diferenciaram-se daqueles associados aos empregadores.

A criação de regras favoráveis aos empregados por meio de negociações coletivas foi particularmente intensa entre fins das décadas de 1970 e 1980. Considerado o período entre 1978 e 1995 como um todo, a taxa média de crescimento no número de cláusulas substantivas adicionais que beneficiam os empregados foi de 1, 7 cláusula por ano. Com base nesse indicador e nos resultados anuais, identificamos dois padrões de mudança no número de cláusulas distribuídos em quatro diferentes períodos. A Tabela 4 apresenta um sumário das estatísticas básicas de cada período.

O primeiro período associa-se ao ímpeto adquirido pelas negociações coletivas de trabalho no final dos anos de 1970. Partindo de apenas 1, 5 cláusula em 1978, o número médio de cláusulas adicionais que beneficiam os empregados cresceu a uma taxa de 2, 3 cláusulas por ano entre 1979 e 1981. Em 1981, esse número tinha crescido cinco vezes, atingindo 8, 3 cláusulas. O rápido crescimento foi, todavia, revertido em 1982. A taxa de variação anual no número médio de cláusulas caiu para 0, 7 cláusula durante o período entre 1982 e 1984. Em 1984, havia, em média, 10, 5 cláusulas adicionais favoráveis aos empregados. No terceiro período, que se estendeu de 1985 a 1988, o ritmo do crescimento no número de cláusulas foi o mais intenso de todos, atingindo 3, 4 cláusulas por ano. Em 1988, como conseqüência, o número médio de cláusulas adicionais favoráveis aos empregados chegou a 24, 1 cláusulas. O último período iniciou-se em 1989. Nos sete anos até 1995, a taxa de variação no número médio de cláusulas (0, 9 cláusula por ano) manteve-se bem abaixo da média geral. Apenas em 1993, excepcionalmente, o incremento foi elevado (3, 8 cláusulas). Já em 1995, o número médio de cláusulas adicionais que beneficiam os empregados decresceu pela primeira vez desde 1979.

No caso das cláusulas favoráveis aos empregadores, os dados sugerem apenas dois períodos distintos: um período de baixo crescimento entre 1979 e 1987 e um período subseqüente em que os acordos ampliaram mais rapidamente o número dessas cláusulas. Em 1978, não há registro de cláusula adicional beneficiando os empregadores. Esse tipo de cláusula apareceu pela primeira vez somente em 1980. A taxa de variação no seu número médio, entretanto, foi de apenas 0, 1 cláusula por ano até 1987. Entre 1988 e 1995, essa taxa multiplicou-se por cinco. Em 1995, havia, em média, 5, 3 cláusulas favoráveis aos empregadores. A Tabela 5 mostra as estatísticas básicas.

A principal conclusão desta seção é que o notável acréscimo no número médio de cláusulas substantivas adicionais a partir do final dos anos de 1970 evidencia um fortalecimento das negociações coletivas como método de regulação da relação de emprego na indústria do Rio Grande do Sul. Como a maior parcela desse aumento deveu-se às cláusulas que beneficiam os empregados, houve um alargamento no espectro dos seus direitos. Não obstante, o simples registro de cláusulas coletivas que ampliam o poder discricionário dos empregadores vis-à-vis a legislação estatal aponta para um quadro mais complexo, em que também os empregadores retiraram alguma vantagem das negociações coletivas.

CLÁUSULAS OPERACIONAIS E CLÁUSULAS QUE REPRODUZEM A LEGISLAÇÃO ESTATAL

Em que pese a expansão das cláusulas substantivas que beneficiam os empregados ter se caracterizado por um predomínio de normas adicionais, a participação das cláusulas classificadas nas categorias "igual à lei" e "operacional" não pode ser julgada irrelevante. Nesta seção, analisamos a magnitude e as funções desempenhadas por essas cláusulas. A Tabela 6 mostra as estatísticas básicas conforme a periodização da Tabela 4.

Os dados mostram que uma em cada cinco cláusulas substantivas ajustadas entre 1978 e 1995 foi classificada ou na categoria "igual à lei", ou na categoria "operacional". Essa proporção, contudo, decresceu ao longo dos anos analisados, atingindo, em 1995, menos de metade do valor observado em 1978. O decréscimo na participação dessas duas categorias é a face reversa do acréscimo na participação das cláusulas adicionais.

Embora as cláusulas classificadas nas categorias "operacional" e "igual à lei", especialmente nesta última, não determinem um alargamento do escopo das normas aplicáveis à relação de emprego, pois são parte constitutiva da legislação estatal preexistente, cabe especular acerca de suas conseqüências específicas e, assim, aventar funções suplementares exercidas pelas negociações coletivas de trabalho no Brasil. As hipóteses que sugerimos quanto às funções exercidas por cláusulas não-adicionais foram recolhidas, em parte, de entrevistas realizadas com atores da cena das negociações coletivas no Rio Grande do Sul13 [13 ] Durante o trabalho de campo da pesquisa, foram realizadas 45 entrevistas, seccionadas em quatro grupos: 17 entrevistas com dirigentes dos sindicatos de trabalhadores, majoritariamente com os presidentes; 12 entrevistas com advogados que assessoravam os sindicatos de trabalhadores nas negociações coletivas; 10 entrevistas com advogados que assessoravam os sindicatos de indústrias ou empresas nas negociações coletivas; e 6 entrevistas com um grupo heterogêneo que incluiu o supervisor técnico do escritório regional do Dieese, dois magistrados do TRT - 4ª região que atuavam em processos de dissídio coletivo, o chefe da seção de mediação e arbitragem da DRT, a procuradora-chefe da Procuradoria Regional do Trabalho da 4ª região, e o diretor de relações de trabalho da Fiergs. .

As cláusulas substantivas classificadas na categoria "igual à lei" formam um caso extremo, pois não apresentam o mais tênue desvio em relação ao que estabelece a legislação estatal. Mesmo assim, essas cláusulas não devem ser consideradas absolutamente neutras, pois podem desempenhar pelo menos duas funções de interesse para os sindicatos. Em primeiro lugar, elas desempenhariam um papel de publicização das regras da legislação estatal do trabalho, reforçando a eficácia dessa legislação no interior das unidades de negociação, em particular no que tange às empresas de pequeno porte. Isto ocorre porque o conhecimento sobre os acordos coletivos é mais facilmente disseminado nos locais de trabalho do que a legislação estatal. Essa hipótese foi ventilada sobretudo nas entrevistas com advogados de empregadores, quando questionados sobre o porquê da existência de cláusulas que repetem a norma estatal. Assim, o advogado do Sindicato das Indústrias Metalúrgicas de Canoas explica que,

[... ]

quando se cobra da parte reivindicante o porquê se já está na lei, a explicação que se dá é a seguinte: a penetração da convenção coletiva é muito maior do que a da lei na base territorial. O empregador desconheceria a lei, mas não deixaria de conhecer a norma convencional. É quase como dar publicidade a uma lei já editada, a uma lei já conhecida, através da convenção coletiva

14 [14 ] Entrevista com Marco Antonio A. de Lima, em 21. 08. 1996.

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E o advogado do Sindicato das Indústrias Químicas do Rio Grande do Sul, ao se referir às cláusulas do tipo "igual à lei", assinala que os sindicatos de trabalhadores sustentam que "muitas questões que a legislação ordinária estabelece não são conhecidas pela maior parte das empresas, principalmente as menores, por falta de orientação e por falta de acesso"15 [15 ] Entrevista com Régis Renato Fabrício, em 25. 07. 1996. .

Em segundo lugar, o ajuste de cláusulas idênticas à lei parece estar associada às limitações, na legislação e na jurisprudência brasileira do período analisado, da possibilidade de ingresso de ação pelo sindicato na qualidade de substituto processual. Antes da Constituição Federal de 1988, essa possibilidade circunscrevia-se aos casos de não aplicação de reajustes salariais estipulados na legislação e de insalubridade e periculosidade, e, segundo a jurisprudência majoritária, com efeitos somente para os associados dos sindicatos. A expectativa de alargamento do uso da substituição processual, a partir de 1988, em virtude de dispositivo constitucional (art. 8º, III), viu-se logo frustrada em decorrência de interpretação restritiva emanada do judiciário trabalhista, de que o Enunciado 310 do Tribunal Superior do Trabalho é o exemplo mais conspícuo. Com efeito, reza o item primeiro desse Enunciado que "o artigo 8º, inciso III, da Constituição da República, não assegura a substituição processual pelo sindicato".

Em um tal contexto judicial, os sindicatos gozavam, ainda, da possibilidade de ação de cumprimento de norma coletiva. Como, ademais, os acordos coletivos normalmente trazem previsão de multa por descumprimento da norma, a qual reverte para o empregado, o transporte de regras estatais para os acordos coletivos parece explicar-se também pela possibilidade de ação de cumprimento de suas normas com a aplicação de multa em favor dos empregados, o que não seria crível no caso alternativo de ausência dessas normas dos acordos coletivos. Nas entrevistas realizadas com operadores das negociações coletivas, colhemos afirmações que ratificam a hipótese. O advogado do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Gráficas de Porto Alegre afirma que

[... ]

uma cláusula que é a reprodução da lei, não se está criando novidade do ponto de vista do regramento das relações coletivas de trabalho, mas se está trazendo aquela norma para o âmbito da competência fiscalizadora dos sindicatos.

[... ]

Hoje, a substituição processual, que é a possibilidade de o sindicato atuar enquanto representante da categoria profissional para fazer valer seus direitos, é muito limitada. Não é limitada pela nossa lei, é limitada pela nossa jurisprudência. Então, se trazes para dentro da convenção coletiva ou de um acordo homologado pelo poder judiciário uma coisa que está na lei, a partir desse momento o sindicato está legitimado a atuar para que se faça cumprir a norma

16 [16 ] Entrevista com Rômulo Escouto, em 21. 08. 1996.

.

E o presidente do Inama/RS observa que uma das razões para a existência de cláusulas e condições que simplesmente repetem dispositivos legais é que

[... ]

muitas vezes existe uma cláusula no acordo ou na convenção coletiva estipulando multa pelo descumprimento de determinada norma inclusa no acordo ou na convenção coletiva. A disposição existe no texto legal, na CLT, mas a multa é administrativa. Unicamente para o Estado. Se eu incluo essa condição no acordo ou na convenção e estipulo uma multa em favor do empregado prejudicado, estabeleço como nova condição não a vantagem que já existe na lei, mas a multa por descumprimento da condição. Esta é uma das razões de repetição de cláusulas previstas na legislação trabalhista

17 [17 ] Entrevista com Cláudia Petry de Faria, em 19. 08. 1996.

.

Já as cláusulas classificadas na categoria "operacional", além dessas funções e conforme destacamos anteriormente, desempenhariam uma função primordial de tornar clara a aplicação da legislação estatal. Em síntese, as cláusulas "operacionais" permitiriam alguma escolha sobre como observar ou deixar de observar as normas estatais sem entrar em conflito com o princípio da proteção.

ALARGANDO O PODER DISCRICIONáRIO DOS EMPREGADORES POR MEIO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA

Não apenas os empregados foram favorecidos pela expansão no número de cláusulas coletivas, mas, conforme destacamos na seção primeira, os empregadores também passaram a extrair benefícios das negociações coletivas de trabalho, sobretudo a partir de fins dos anos de 1980. As cláusulas substantivas que beneficiam os empregadores compreendem cinco categorias. Três dessas categorias correspondem a regras adicionais: "sem norma legal", "disputável" I e "disputável" II. De modo similar, às cláusulas que beneficiam os empregados, há duas categorias de regras não-adicionais: "igual à lei "e" operacional". A Tabela 7 mostra o número médio e a percentagem das cláusulas que beneficiam os empregadores segundo as diferentes categorias, considerados os períodos da Tabela 5.

As cláusulas favoráveis aos empregadores corresponderam a cerca de uma em cada cinco cláusulas substantivas entre 1978 e 1995. Em 1978, essas cláusulas restringiam-se a um único tema. Em 14 unidades de negociação coletiva, os agentes convencionaram um esquema de compensação de horas por meio do qual, mantida constante a jornada semanal, os empregados tinham sua jornada diária estendida entre as segundas-feiras e as sextas-feiras a fim de não trabalhar nos sábados. O artigo 59 da CLT permitia esse tipo de compensação sob a condição de que fosse ajustado mediante acordos coletivos nos termos da lei.

O número médio de cláusulas substantivas que beneficiam os empregadores multiplicou-se por 15 entre 1978 e 1995. A metade desse crescimento correspondeu ao aumento no número de cláusulas adicionais, ao passo que a metade restante esteve associada às categorias "igual à lei" e "operacional". A imensa maioria das cláusulas substantivas que beneficiam os empregadores, independentemente de sua condição de regra adicional ou não - adicional, enfocou objetos temáticos já tratados na legislação estatal. Essa característica torna-se ainda mais saliente quando comparada à distribuição das cláusulas que beneficiam os empregados, como se visualiza na Tabela 8.

Uma reflexão sobre as possíveis funções desempenhadas pelas negociações coletivas de trabalho do ponto de vista patronal requer um prévio exame do escopo temático das cláusulas substantivas que beneficiam os empregadores. O conjunto completo dessas cláusulas cobriu 36 diferentes tópicos temáticos entre 1978 e 1995. A Tabela 9 mostra a distribuição dos tópicos temáticos das cláusulas, segundo diferentes temas (agrupamentos de tópicos) e categorias de classificação das cláusulas de acordo com sua relação com a legislação estatal. Uma reflexão sobre as possíveis funções desempenhadas pelas negociações coletivas de trabalho do ponto de vista patronal requer um prévio exame do escopo temático das cláusulas substantivas que beneficiam os empregadores. O conjunto completo dessas cláusulas cobriu 36 diferentes tópicos temáticos entre 1978 e 1995. A Tabela 9 mostra a distribuição dos tópicos temáticos das cláusulas, segundo diferentes temas (agrupamentos de tópicos) e categorias de classificação das cláusulas de acordo com sua relação com a legislação estatal.

A cláusulas substantivas que beneficiam os empregadores concentraram-se em quatro grandes temas: remuneração, jornada de trabalho, garantia no emprego e condições de trabalho. Os dados da Tabela 9 sugerem ainda que o escopo temático guardou alguma associação com a relação entre a regra convencionada e a legislação estatal. Assim, por exemplo, as cláusulas "operacionais" versaram principalmente sobre a jornada de trabalho, as cláusulas da categoria "igual à lei" sobre as condições de trabalho, e as "sem norma legal" sobre remuneração. A Tabela 10 lista os principais tópicos temáticos enfocados nas cláusulas classificadas nas categorias "operacional", "igual à lei" e "sem norma legal".

A conseqüência principal das cláusulas "operacionais", conforme assinalamos anteriormente, consiste em tornar clara a aplicação da legislação estatal. Essa função adquire um significado especial quando se trata dos interesses dos empregadores. A imprecisão no texto legal, por exemplo, pode dar origem a disputas no judiciário trabalhista quanto à aplicação das normas nos locais de trabalho. Além disso, em alguns casos, a própria legislação estipula modos de conduta diferentes que podem ser seguidos desde que se ajuste um acordo formal entre os agentes de negociação. Assim, a celebração de cláusulas "operacionais" que beneficiam os empregadores residiria numa tentativa de se ampararem certas condutas patronais e se minimizarem os riscos de disputas judiciais.

A função de minimização do risco legal pode ter sido igualmente desempenhada pelas cláusulas da categoria "igual à lei". Este parece ser o caso de algumas cláusulas que estipularam normas complementares sobre o reajuste salarial. Em geral, o conteúdo normativo dessas cláusulas já estava previsto nas normas estatais de política salarial. O que poderia parecer exagerado, no entanto, teria sido útil aos empregadores num cenário de insegurança jurídica causado por sucessivas normas estatais de política salarial, que, por sua vez, ocasionaram inúmeras ações na Justiça do Trabalho. As prescrições das cláusulas coletivas podem ter oferecido um certo grau de conforto aos empregadores contra as demandas judiciais por maiores salários.

Já as cláusulas classificadas na categoria "disputável", ao contrário das anteriores, envolvem maior exposição ao risco legal. A própria definição da categoria remete à existência de riscos dessa natureza. As cláusulas "disputáveis" podem mesmo ser consideradas ilegais, porquanto não estão em conformidade com o critério da "norma mais favorável". Apesar disto, o número dessas cláusulas cresceu rapidamente entre fins dos anos de 1980 e meados dos anos de 1990. A Tabela 11 exibe a lista dos tópicos temáticos mais freqüentemente cobertos por cláusulas "disputáveis".

As cláusulas classificadas na categoria "disputável" significam uma ampliação do poder discricionário dos empregadores além daquilo que consideram como os limites rígidos da legislação estatal. Mesmo que trouxesse consigo o risco de reclamatórias judiciais, a disseminação desse tipo de cláusula parece ter configurado um estratagema consciente para legitimar as respectivas condutas e, adicionalmente, exercer pressão sobre as decisões judiciais, governamentais e do Congresso Nacional com o intuito de modificar a legislação estatal. A advogada do Sindicato das Indústrias de Curtimento de Couros e do Sindicato das Indústrias de Calçados, ambos de Novo Hamburgo, ilustra com um caso específico:

Mas sendo essa cláusula no mínimo controversa, que fica na dependência de posterior interpretação do Tribunal, o fato de ser acordada em vários setores não teria o poder de influenciar as decisões do Tribunal?

Isto pode acontecer. É o que aconteceu com a questão da jornada compensada. No Vale, calçadistas, metalúrgicos, coureiros, construção civil, há a jornada compensada. Trabalham-se as 44 horas de segunda à sexta e não se trabalha aos sábados. Sempre é uma cláusula de acordo. O que acontecia? O empregado postulava a nulidade da cláusula em dissídio individual. Qual era a exigência para trabalhar 44 horas de segunda à sexta? Que houvesse uma autorização do Ministério do Trabalho.

Isto nas atividades insalubres, não?

Nas atividades insalubres. Não se conseguia essa autorização. Argumentou-se que desde 1988 a Constituição deu liberdade às partes para estabelecerem a jornada sem restrições, ou seja, sem necessitar da autorização. De umaforma geral, as empresas vinham perdendo nos dissídios individuais. Mas houve tanto grito das partes envolvidas, que essa jornada beneficiava com dois dias de folga o empregado e que beneficiava a empresa, que o TST lançou o enunciado 349, dizendo que a autorização do Ministério do Trabalho não é necessária dado que as partes tenham estabelecido essa cláusula em acordos. Isto torna perfeitamente legal o trabalho de segunda à sexta nas atividades insalubres. Então, tanto as partes estabeleceram, tanto as partes acordaram que... não se mudou a lei, mas se mudou a orientação do Tribunal18 [18 ] Entrevista com Gilson Pinheiro, em 29. 05. 1996. .

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas de Sapiranga menciona um objetivo perseguido pelos empregadores em negociações nos anos de 1990, destacando o papel de escritórios de advocacia que assessoram as empresas:

[...] esses escritórios têm um papel fundamental, que é o de desenvolver algumas propostas para incluir nas pautas do dissídio. Propostas de interesse das empresas, que vão acabar gerando uma possível jurisprudência, vão acabar gerando uma possível lei. Este é o interesse deles e eles estão se especializando nisso19 [19 ] Entrevista com Gilson Pinheiro, em 29.05.1996. .

Ou, como sinteticamente esclarece o advogado do Sindicato das Indústrias Metalúrgicas de Canoas, "a pauta patronal visa principalmente à flexibilidade da legislação trabalhista"20 [20 ] Entrevista com Marco Antonio A. de Lima, em 21.08.1996. . O ponto-chave está em que a propagação de cláusulas consideradas "disputáveis" em várias unidades de negociação fortalece, logicamente, a posição dos empregadores individuais e dos sindicatos patronais para pressionar o judiciário trabalhista a fim de que este altere sua interpretação, de contrário à favorável à legalidade da conduta associada à norma convencionada, sob o argumento de que a cláusula expressa a vontade dos agentes de negociação e das partes, assim como uma necessidade de maior flexibilidade nos locais de trabalho em virtude da intensificação da concorrência nos mercados de produtos. Esse ponto torna-se especialmente relevante após a promulgação da Constituição Federal de 1988, quando a negociação coletiva de trabalho adquiriu uma proeminência legal que não chegara a experimentar no passado. Assim, buscar-se-ia favorecer um circuito por meio do qual a disseminação de certo tipo de cláusula coletiva, especialmente quando as condutas individuais a ela associadas fossem corroboradas por decisões judiciais, poderia levar à aprovação de nova legislação, em que regras antes consideradas ilegais se tornassem um padrão aceitável de conduta.

CONCLUSÃO

Neste artigo, analisamos o conteúdo das cláusulas coletivas que regulam a relação de emprego em busca de evidência complementar sobre o fortalecimento das negociações coletivas como método de regulação das relações de trabalho no Brasil entre fins dos anos de 1970 e meados dos anos de 1990. A evidência analisada demonstra que um vigoroso crescimento no número de cláusulas apoiou-se preponderantemente em regras cujo escopo temático e/ou conteúdo normativo não se encontravam na legislação estatal. Entre 1978 e 1995, duas em cada três cláusulas substantivas estipularam regras adicionais à legislação estatal, sendo que a maior parte dessas regras adicionais (89, 8%) beneficiaram os empregados. Esse resultado é consistente com a natureza original das negociações coletivas - uma tentativa dos sindicatos de melhorar os termos e as condições da relação de emprego - , bem como com as circunstâncias históricas de fins dos anos de 1970 e início da década seguinte no Brasil, que permitiram uma ofensiva dos sindicatos de trabalhadores em busca de melhores condições de trabalho e liberdade de organização.

Um quadro mais complexo, todavia, emerge da análise dos dados. Em primeiro lugar, o ritmo de crescimento no número de cláusulas adicionais que beneficiam os empregados não foi constante ao longo dos anos entre 1978 e 1995. Períodos de maior crescimento alternaram-se com períodos de menor crescimento, sugerindo diferentes graus de dificuldade aos sindicatos. Em segundo lugar, um montante não desprezível de cláusulas substantivas que beneficiam os empregados fixou regras já previstas na legislação estatal. Essas cláusulas, todavia, podem não ser absolutamente neutras para as relações de trabalho. As cláusulas classificadas na categoria "igual à lei", que são o paradigma das regras não - adicionais, desempenhariam uma função de publicização de normas estatais nos locais de trabalho e assegurariam aos sindicatos uma representação legal perante a Justiça do Trabalho quanto a um conjunto mais amplo de aspectos da relação de emprego. Já as cláusulas classificadas como "operacionais", além dessas duas funções, também desempenhariam uma função de tornar as normas estatais plenamente aplicáveis. Por fim, constatamos que uma em cada cinco cláusulas substantivas beneficiou os empregadores, inclusive com a estipulação de regras que podem ser consideradas ilegais.

A análise do conteúdo das cláusulas coletivas sobre a relação de emprego, em comparação com a legislação estatal, permite uma conclusão mais segura acerca do fortalecimento das negociações coletivas no Brasil, a qual não é possível exclusivamente com base no crescimento do número total de cláusulas. A comparação entre as cláusulas coletivas e as normas estatais, entretanto, caracteriza apenas de modo parcial a evolução do conteúdo dos acordos coletivos ao longo dos anos. Um novo problema metodológico surge do fato de que o conteúdo normativo de uma cláusula pode se modificar entre um e outro ano sem que se altere sua condição comparada à lei. A fim de examinar a mudança no conteúdo normativo das cláusulas ao longo do tempo, há que se ir adiante e dirigir o olhar para esse conteúdo por si, sem necessariamente compará-lo ao da legislação estatal, questão que foge, contudo, ao objeto deste artigo21 [21 ] Uma comparação intertemporal do conteúdo normativo das cláusulas substantivas, independentemente da condição das regras coletivas vis-à-vis as normas estatais, compõe uma parte do capítulo 6 da tese de doutorado do autor. Ver, também, Horn, Carlos Henrique. "Mensuração da mudança no conteúdo das normas coletivas sobre a relação de emprego: metodologia e aplicação". Porto Alegre: Departamento de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. Texto para Discussão nº 03/2005. .

Recebido para publicação em 18 de fevereiro de 2009 18 de fevereiro de 2009.

CARLOS HENRIQUE HORN é professor do Departamento de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em Economia-Área de Desenvolvimento Econômico, da UFRGS, Ph.D pela Universidade de Londres.

  • [4] Reale, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 95-97.
  • [5] A expressão "cláusulas substantivas" baseia-se na tradicional dicotomia, utilizada para fins de classificação das regras que emergem de um sistema de relações de trabalho, entre regras substantivas e regras de procedimento. Essa distinção encontra-se na literatura de relações de trabalho (industrial relations) pelo menos desde a obra seminal de Dunlop, John, Industrial Relations Systems. Edição revista. Boston: HBS Press, 1993 [1958], pp. 51 - 53.
  • Flanders, em sua análise teórica sobre as negociações coletivas de trabalho, também faz uso da dicotomia entre regras substantivas e regras de procedimento (Flanders, Allan. "Collective bargaining: a theoretical analysis". In: Flanders. Management and unions: the theory and reform of industrial relations Londres: Faber and Faber, 1970, pp. 213 - 40).
  • Uma síntese conceitual nos marcos da rules school de relações de trabalho é oferecida por Wood, Stephen e outros. "Rules in industrial relations theory: a discussion". Industrial Relations Journal, vol. 6, nş 1, pp. 14 - 30, 1975.
  • [6] Reale, Miguel. Lições preliminares de Direito. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 95.
  • [8] Kahn-Freund, Otto. Labour and the law. 2 ed. Londres: Stevens, 1977, pp. 27-28.
  • [9] Rodríguez, Américo Plá. Princípios de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1996, p. 28.
  • [11] Castillo, Santiago Pérez del. "Hierarquia das fontes no direito do trabalho". In: Rodríguez, Américo Plá (coord. ). Estudos sobre as fontes do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1998, pp. 30-31).
  • [21] Uma comparação intertemporal do conteúdo normativo das cláusulas substantivas, independentemente da condição das regras coletivas vis-à-vis as normas estatais, compõe uma parte do capítulo 6 da tese de doutorado do autor. Ver, também, Horn, Carlos Henrique. "Mensuração da mudança no conteúdo das normas coletivas sobre a relação de emprego: metodologia e aplicação". Porto Alegre: Departamento de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. Texto para Discussão nş 03/2005.
  • [*
    ] Este artigo é uma versão revisada do trabalho apresentado no VIII Encontro Nacional de Estudos do Trabalho da ABET, em São Paulo, em outubro de 2003. Consiste, em sua maior parte, do capítulo 5 da tese de doutorado do autor,
    Collective bargaining in Brazilian manufacturing, 1978-95, que resultou de pesquisa sob a supervisão do professor Stephen Wood, e que foi submetida a London School of Economics and Political Science (Universidade de Londres) em janeiro de 2003. Para realizar a pesquisa, o autor contou com o apoio de bolsa de estudo do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. O autor agradece os comentários do professor José Dari Krein, da professora Rosana Ribeiro e da Dra. Raquel Paese, que, como de praxe, ficam eximidos dos equívocos do artigo.
  • [1
    ] Por acordo coletivo de trabalho, designamos o conjunto de regras, normalmente escritas, derivadas de um processo de negociação entre agentes de negociação ou de barganha coletiva (sindicatos de empregadores ou empregadores individuais, de um lado, e sindicatos de trabalhadores, de outro), com o objetivo de regulamentar a relação de emprego entre empregadores e empregados (as partes), bem como a relação entre os próprios agentes e entre os agentes e sua base constituinte.
  • [2
    ] Por regras adicionais, entendemos tanto as regras sobre aspectos das relações de trabalho que não são cobertos pela legislação estatal, como as regras cujo conteúdo difere das normas estatais que tratam de idêntico objeto.
  • [3
    ] As unidades de negociação coletiva analisadas correspondem aos seguintes setores de atividade: Laticínios, Panificação, Metal-Mecânica, Química, Adubos e Fertilizantes, Produtos Farmacêuticos, Gráfica, Artefatos de Couro, Calçados e Têxteis.
  • [4
    ] Reale, Miguel.
    Lições Preliminares de Direito. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 95-97.
  • [5
    ] A expressão "cláusulas substantivas" baseia-se na tradicional dicotomia, utilizada para fins de classificação das regras que emergem de um sistema de relações de trabalho, entre regras substantivas e regras de procedimento. Essa distinção encontra-se na literatura de relações de trabalho (
    industrial relations) pelo menos desde a obra seminal de Dunlop, John,
    Industrial Relations Systems. Edição revista. Boston: HBS Press, 1993 [1958], pp. 51 - 53. Flanders, em sua análise teórica sobre as negociações coletivas de trabalho, também faz uso da dicotomia entre regras substantivas e regras de procedimento (Flanders, Allan. "Collective bargaining: a theoretical analysis". In: Flanders.
    Management and unions: the theory and reform of industrial relations. Londres: Faber and Faber, 1970, pp. 213 - 40). Uma síntese conceitual nos marcos da
    rules school de relações de trabalho é oferecida por Wood, Stephen e outros. "Rules in industrial relations theory: a discussion".
    Industrial Relations Journal, vol. 6, nº 1, pp. 14 - 30, 1975.
  • [6
    ] Reale, Miguel.
    Lições preliminares de Direito. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 95.
  • [7
    ] Foge inteiramente aos objetivos deste artigo uma discussão mais aprofundada sobre as diferenças entre normas de conduta e normas de organização. Em especial, não pretendemos sequer sugerir uma hierarquização entre os dois tipos de normas, como se as primeiras fossem mais importantes do que as segundas. A menção ao papel instrumental das normas de organização, que poderia dar a entender, mesmo que involuntariamente, tal hierarquização, é retirada de Reale, que associa um "caráter instrumental" àquelas regras (op. cit. , p. 97). Não obstante, quando discute a divisão entre regras primárias e regras secundárias e considera as normas de organização, "de uma forma relativa", como secundárias, esse autor assinala que "essa qualificação não deve significar uma escala de importância [entre normas primárias e secundárias]" (op. cit. , p. 99).
  • [8
    ] Kahn-Freund, Otto.
    Labour and the law. 2 ed. Londres: Stevens, 1977, pp. 27-28.
  • [9
    ] Rodríguez, Américo Plá.
    Princípios de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1996, p. 28.
  • [10
    ] Ibidem, p. 42 - 43.
  • [11
    ] Castillo, Santiago Pérez del. "Hierarquia das fontes no direito do trabalho". In: Rodríguez, Américo Plá (coord. ).
    Estudos sobre as fontes do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1998, pp. 30-31).
  • [12
    ] Ibidem, p. 40.
  • [13
    ] Durante o trabalho de campo da pesquisa, foram realizadas 45 entrevistas, seccionadas em quatro grupos: 17 entrevistas com dirigentes dos sindicatos de trabalhadores, majoritariamente com os presidentes; 12 entrevistas com advogados que assessoravam os sindicatos de trabalhadores nas negociações coletivas; 10 entrevistas com advogados que assessoravam os sindicatos de indústrias ou empresas nas negociações coletivas; e 6 entrevistas com um grupo heterogêneo que incluiu o supervisor técnico do escritório regional do Dieese, dois magistrados do TRT - 4ª região que atuavam em processos de dissídio coletivo, o chefe da seção de mediação e arbitragem da DRT, a procuradora-chefe da Procuradoria Regional do Trabalho da 4ª região, e o diretor de relações de trabalho da Fiergs.
  • [14
    ] Entrevista com Marco Antonio A. de Lima, em 21. 08. 1996.
  • [15
    ] Entrevista com Régis Renato Fabrício, em 25. 07. 1996.
  • [16
    ] Entrevista com Rômulo Escouto, em 21. 08. 1996.
  • [17
    ] Entrevista com Cláudia Petry de Faria, em 19. 08. 1996.
  • [18
    ] Entrevista com Gilson Pinheiro, em 29. 05. 1996.
  • [19
    ] Entrevista com Gilson Pinheiro, em 29.05.1996.
  • [20
    ] Entrevista com Marco Antonio A. de Lima, em 21.08.1996.
  • [21
    ] Uma comparação intertemporal do conteúdo normativo das cláusulas substantivas, independentemente da condição das regras coletivas
    vis-à-vis as normas estatais, compõe uma parte do capítulo 6 da tese de doutorado do autor. Ver, também, Horn, Carlos Henrique. "Mensuração da mudança no conteúdo das normas coletivas sobre a relação de emprego: metodologia e aplicação". Porto Alegre: Departamento de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. Texto para Discussão nº 03/2005.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Aceito
      18 Fev 2009
    • Recebido
      18 Fev 2009
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