Acessibilidade / Reportar erro

Clínica do cuidado de enfermagem na terapia intensiva: aliança entre técnica, tecnologia e humanização * * Extraído da tese “Estilos de cuidar na terapia intensiva em face das tecnologias: uma contribuição à clínica do cuidado de enfermagem”, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.

Clínica de la atención de enfermería en el cuidado intensivo: alianza entre la técnica, la tecnología y la humanización

Resumos

Pesquisa de campo, qualitativa, cujo objetivo foi caracterizar a clínica do cuidado de enfermagem específica da terapia intensiva. Para isso forma realizadas observação e entrevista com 21 enfermeiros de uma unidade de terapia intensiva. Os resultados evidenciaram oito características desta clínica, que abarcam tanto a subjetividade quanto a objetividade, traduzidas em: interação, diálogo, princípios humanísticos, vigilância, conhecimento e domínio do maquinário. Em razão dessa clínica, a subjetividade nem sempre expressa-se de modo claro e a objetividade exige capacitação dos enfermeiros para cuidar na terapia intensiva. Conclui-se que a clínica do cuidado de enfermagem na terapia intensiva alia técnica, tecnologia e humanização, que fundamentam os cuidados de enfermagem que lá se realizam.

Cuidados de enfermagem; Unidades de Terapia Intensiva; Tecnologia; Humanização da assistência


Investigación de campo, cualitativa, cuyo objetivo fue caracterizar la clínica de la atención de enfermería específica del cuidado intensivo. Se realizaron la observación y la entrevista con 21 enfermeros de una unidad de cuidados intensivos. Los resultados evidenciaron ocho características de esta clínica, que abarcan la subjetividad y la objetividad, traducidas en: interacción, diálogo, principios humanísticos, vigilancia, conocimiento y dominio de las máquinas. En razón de esta clínica, la subjetividad no siempre se expresa de manera clara y la objetividad exige capacitación de los enfermeros para la atención en cuidados intensivos. Se concluye que la clínica de la atención de enfermería en los cuidados intensivos compromete técnica, tecnología y humanización, que fundamentan la atención de enfermería que se realiza dentro.

Atención de enfermería; Unidades de Cuidados Intensivo; Tecnología; Humanización de la atención


A qualitative, field research study whose aim was to characterize the specific practice of intensive care nursing. Observation and interviews were conducted with 21 nurses in an intensive care unit. The results evidenced eight characteristics of this care, which included subjectivity and objectivity, translated into: interaction, dialogue, humanistic principles, vigilance, knowledge, and mastery of machinery. Because of this practice, subjectivity is not always expressed in a clear way, and objectivity requires training of nurses to perform intensive care. It is concluded that the practice of intensive care nursing combines technique, technology and humanization, which underlie the nursing care performed at the unit.

Nursing care; Intensive Care Units; Technology; Humanization of assistance


INTRODUÇÃO

O cuidado de enfermagem agrega ações da natureza própria da profissão, fruto de um preparo técnico e científico que se fundamenta no conhecimento empírico, pessoal, ético, estético e político, objetivando promover a saúde e a dignidade humanas ( 1. Souza ML, Sartor VVB, Padilha MICS, Prado ML. O cuidado em enfermagem: uma aproximação teórica. Texto Contexto Enferm. 2005;14(2):266-70. ) . Ao se pensar no modo como tal cuidado é realizado sublinha-se sua dimensão sociopolítica, já que este ato não é apenas operacional, mas um processo que visa favorecer a vida humana, amparando-se em referenciais teórico-filosóficos que orientam as escolhas feitas por quem os executa ( 1. Souza ML, Sartor VVB, Padilha MICS, Prado ML. O cuidado em enfermagem: uma aproximação teórica. Texto Contexto Enferm. 2005;14(2):266-70. ) .

No campo da Terapia Intensiva (TI), os modos de cuidar do enfermeiro mostram a interface entre a objetividade e a subjetividade no cuidado e a aplicação de tecnologias como instrumental complementar é evidente. Resultados de uma investigação sobre as representações sociais da tecnologia indicam que os modos de agir dos enfermeiros no cuidado do paciente que faz uso de aparelhos sinalizam a possibilidade da existência de duas formas de ação: o cuidado e a ação tecnológica ( 2. Silva RC, Ferreira MA. A dimensão da ação nas representações sociais da tecnologia no cuidado de enfermagem. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2011;15(1):140-8. ) .

O cuidado exige maior aplicação de conhecimento, o qual orienta a atenção do enfermeiro na busca por dados objetivos e subjetivos oriundos do cliente, bem como objetivos provenientes do maquinário. A ação tecnológica é sustentada majoritariamente por informações advindas do aparato tecnológico, levando os profissionais a realizar ações em função de dados fornecidos somente pela máquina ( 2. Silva RC, Ferreira MA. A dimensão da ação nas representações sociais da tecnologia no cuidado de enfermagem. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2011;15(1):140-8. ) .

Estas considerações ilustram a questão dos modos de cuidar, observando-se no discurso de estudiosos uma oposição das esferas objetivas e subjetivas do cuidado na TI. De um lado, percebe-se um grupo sugerindo que nas ações profissionais ocorra maior atenção à objetividade envolvida no cuidado, em detrimento da expressividade. Por outro, há uma corrente que julga que o fato de o enfermeiro concentrar mais sua observação em determinadas situações críticas que requerem tecnologias para cuidar não pressupõe uma noção primeira de desvalorização da subjetividade, indicando mecanicismo, falta de atenção ao cliente, vistas como condições desumanas. Mas, ao contrário, denota preocupação com o bem-estar do paciente e a manutenção de suas funções vitais ( 3. Silva RCL, Kaczmarkiewicz CC, Cunha JJSA, Meira IC, Figueiredo NMA, Porto IS. O significado da tecnologia no pós-operatório imediato de cirurgia cardíaca. Rev SOCERJ. 2009;22(4):210-8. ) .

Apesar das especificidades do cenário da TI, são comuns discussões acerca da configuração da assistência e da atuação dos profissionais, frequentemente alvo de críticas, mormente quanto aos modos de agir em face das tecnologias, conduzindo a uma análise reducionista de polaridade das dimensões do cuidado de enfermagem que termina por simplificar a amplitude das práticas de cuidar na TI. Sob esta ótica, compreende-se que os modos de atuar do enfermeiro podem estar relacionados a uma determinada clínica do cuidado de enfermagem, a qual justifica certos formatos do cuidado do cliente e ajuda a balizar a discussão em tela.

Na Enfermagem, poucos autores trataram dessa temática, com exceção da clínica da enfermagem psiquiátrica, que opta por certa indisciplina, sendo fiel à abertura, à tolerância, ao diferente e à diversidade característica da psiquiatria. Nessa clínica, a dimensão tratável da doença mental não está marcada pela especificidade da doença e sim da pessoa que está doente e do que é possível fazer por ela e com ela, num cuidado crítico e criativo ( 4. Alves M, Oliveira RMP. Enfermagem psiquiátrica: discursando o ideal e praticando o real. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2010;14(1):64-70. ) . Em investigação que defendeu as contribuições que uma tecnologia de processo sustentada na valorização da cultura poderia trazer a uma clínica do cuidado de enfermagem, reforçou-se a noção de um cuidado compartilhado, em que os sujeitos são ativos e produtores de conhecimento, devendo esta proposta fazer parte dos modos de agir do enfermeiro ( 5. Teixeira MLO, Ferreira MA. Uma tecnologia de processo aplicada ao acompanhante do idoso hospitalizado para sua inclusão participativa nos cuidados diários. Texto Contexto Enferm. 2009;18(3):409-17. ) .

No caso internacional aborda-se esta temática à luz da indefinição da clínica do cuidado da enfermagem. Pelo fato de seus saberes não terem contornos próprios, os métodos não são fáceis de identificar e os instrumentos inscrevem-se no campo médico ( 6. Etienne MS. Éléments d’une clinique en soins. Rech Infirm [Internet]. 2005 [cited 2012 Apr 17];(82):11-5. Available from: http://fulltext.bdsp.ehesp.fr/Rsi/84/11.pdf
http://fulltext.bdsp.ehesp.fr/Rsi/84/11....
) . Tal ideia de clínica origina-se na área médica, relacionada a um modelo clínico composto por um arcabouço de conhecimentos psicobiológicos que dá sustentação ao trabalho desse profissional ( 7. Sousa LD, Lunardi Filho WD, Lunardi VL, Santos SSC, Santos CP. The scientific nursing production about the clinic: an integrative review. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2012 Apr 17];45(2):495-500. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n2/en_v45n2a26.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n2/en...
) .

Em vista do exposto, posiciona-se a favor de uma noção de clínica do cuidado de enfermagem , a qual perpassa o que fazem os enfermeiros ou o que precisa ser feito numa área de atuação, para alcance do objetivo da enfermagem: o cuidado. Partindo-se dessa defesa, este artigo norteou-se pela seguinte questão: que características da atuação do enfermeiro na TI constituem uma clínica do cuidado de enfermagem própria desse campo? O objetivo é caracterizar uma clínica do cuidado de enfermagem específica da TI, à luz da atuação do enfermeiro.

Reitera-se a relevância do estudo, pois fornece subsídios para esclarecer os modos como os enfermeiros cuidam dos pacientes nesses ambientes, permitindo o delineamento detalhado da prática assistencial, além dos avanços teóricos aos Cuidados Fundamentais e Tecnologias de Enfermagem.

MÉTODO

Pesquisa de campo, do tipo descritivo e qualitativo, desenvolvida em um Centro de Terapia Intensiva (CTI/UTI) de uma instituição pública do município do Rio de Janeiro. Os sujeitos foram 21 enfermeiros que atenderam aos seguintes critérios de inclusão: atuar no CTI diretamente na assistência ao cliente, estar em atividade durante o período destinado ao estudo e aceitar participar da pesquisa. O não atendimento desses critérios implicou a exclusão dos sujeitos. As técnicas de produção de dados foram a observação e a entrevista.

A observação buscou retratar o cotidiano prático de enfermeiros intensivistas para captar como agem em relação às práticas de cuidado ao paciente na TI, as percepções e os significados de seus comportamentos, mediante a imersão do pesquisador no campo, partilhando do cotidiano dos profissionais que atuam neste setor. Captaram-se elementos caracterizadores da linha de ação adotada pelo enfermeiro no cuidado ao paciente na TI, que foram aprofundados nas entrevistas, cujo roteiro abrangeu os porquês das ações e os sentidos a elas atribuídos. Foi feita uma descrição densa ( 8. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; 1989. ) dos dados da observação, registrando-os em um diário de campo, contabilizando aproximadamente 150 horas de observação.

A análise aplicada aos dados da observação visou descrever, traduzir, explicar e interpretar as cenas e ações de cuidado ( 8. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; 1989. ) . A partir desta análise, foram identificadas oito características das ações dos enfermeiros, as quais se confirmaram pela análise de conteúdo aplicada às entrevistas. As explicações dadas pelos enfermeiros para suas ações possibilitaram a descrição aprofundada das características identificadas, classificando-as em duas categorias: Características da atuação do enfermeiro: esfera subjetiva da clínica do cuidado na TI e Características da atuação do enfermeiro: esfera objetiva da clínica do cuidado na TI.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do Hospital Geral de Bonsucesso, RJ, sendo registrada sob o protocolo 35/10. Os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e o anonimato foi mantido por meio da identificação numérica dos enfermeiros, com base na ordem sequencial em que se organizou a observação. A coleta de dados ocorreu no período de novembro de 2010 a maio de 2011.

RESULTADOS

Características da atuação do enfermeiro: esfera subjetiva da clínica do cuidado na TI

A primeira característica que se destaca é a singularidade do sujeito, exemplificada em um trecho do diário de campo, no qual o enfermeiro demonstra preocupação com o comportamento de técnicos de enfermagem acerca da religião dos clientes. Nesta cena, o enfermeiro está no posto, parte da equipe saiu para o almoço e a unidade está silenciosa.

Naquela hora estava uma confusão. Essas duas aqui [aponta para as duas técnicas de enfermagem] cantando lá no leito 10, aqui estava cheio de gente conversando. Essas duas cantando música evangélica para o paciente. A gente [referindo-se à médica da unidade] estava aqui comentando: - E se o paciente gostasse de macumba? A técnica de enfermagem responde: - E eu com isso! Se ele não gostasse, tinha falado. A enfermeira contra-argumenta: - Mas como ele ia falar, não tinha como falar! [faz alusão ao estado clínico do doente]. A técnica expressa pouca preocupação com a preferência religiosa do cliente. A enfermeira, com ar de reprovação, finaliza: - Mas vocês sabem que não pode ser assim (....) (Trecho do diário de campo, relato da enfermeira 5).

O cuidado a um cliente que esteve hospitalizado no CTI, cuja história clínica era peculiar, mostra como a interação, a relação dialógica e a aplicação de princípios humanísticos podem se apresentar no cotidiano das práticas de cuidar neste cenário. Trata-se de um adolescente que após trauma evoluiu com tetraplegia. Estava acordado, sem déficit cognitivo, com traqueostomia e ventilação artificial, com limitação para a comunicação verbal. As cenas selecionadas retratam o reconhecimento da importância da interação nesse ambiente e indicam o sentimento de humanidade que o enfrentamento desse tipo de situação clínica suscita na relação de cuidado. Ao retornar do leito deste cliente, a enfermeira 2, com ar de insatisfação e inquietude, diz:

Eu fico agoniada quando fico com esse menino, eu não gosto de ficar com ele não! [referenciando-se à escala de trabalho] Ele não se comunica, não interage, a gente fala e ele não faz nada (....) com algumas pessoas ele interage, mas com a gente ele não faz nada! (Trecho de diário de campo, relato da enfermeira 2).

Ainda em relação a esse paciente, em conversa com a psicóloga da unidade, a enfermeira fala com um tom de preocupação:

Mas ele não sabe a verdade sobre o caso dele? Eu acho que ele tinha que saber a verdade. Ah, mas eu acho que deve ser tão difícil, meu Deus! [Após a fala, fica com um ar pensativo] (Trecho de diário de campo, relato da enfermeira 2).

Alguns profissionais, embora enfrentem obstáculos à comunicação, buscam aprofundar a interação, como é o caso da técnica de enfermagem 1 que acompanha a enfermeira 2 no leito e que, diante do cliente, busca pacientemente apreender suas necessidades a partir do balbucio das palavras.

Fulano, não estou entendendo! (A técnica faz uma expressão de inquietude e ansiedade). Vamos começar de novo?(....) - Ah, eu gosto muito desse menino, é que eu me sinto sensibilizada (Trecho de diário de campo, relato da técnica de enfermagem 1).

O respeito à subjetividade , interesse pelo outro, o envolvimento é uma característica que aparece de modo recorrente nas ações profissionais, a exemplo da enfermeira 7. Uma das situações clínicas observadas envolvia uma cliente acamada, vítima de soterramento, lúcida e orientada, com lesão em ambos os membros inferiores.

Há uma discussão médica em torno do leito da cliente sobre a conduta a ser implementada. A enfermeira 7 aproxima-se, acaricia a cliente e segura sua mão, permanecendo ao seu lado enquanto os demais membros da equipe continuam conversando. Após alguns minutos, os médicos decidem por uma cirurgia e a enfermeira 7 inicia os cuidados de higiene. A cliente, sentindo-se acolhida pela enfermeira e com tom carinhoso, dirige-se a ela pelo nome: - Teria possibilidade de escovar os dentes? A enfermeira preocupou-se com a dor durante a manipulação física e com ar de consternação, dirige-se ao pesquisador e diz: - Ela (a paciente) foi, abraçou a filha e conseguiu permanecer por seis horas soterrada. No plantão passado, nossa, quando cheguei em casa não consegui fazer mais nada, fiquei com aquela história na minha cabeça. (Trecho de diário de campo, relato da enfermeira 7).

Características da atuação da enfermeiro: esfera objetiva da clínica do cuidado na TI.

No caso da dimensão objetiva, a vigilância dos aparelhos é ilustrada quando o enfermeiro, durante a realização do banho de um cliente acamado em uma unidade de isolamento, comenta sobre as características estruturais da unidade, remetendo-se ao comprometimento da equipe.

Isso é uma questão de comprometimento da equipe. Esses dias fui colher sangue no leito ao lado, e passei neste leito para observar a cliente. Quando vi, o respirador estava desconectado, a cliente em parada cardiorrespiratória, o alarme tocando e ninguém viu! Tem gente que diz ser intensivista, ter pós-graduação, 20 de CTI, e? Se realmente não tiver um acompanhamento intensivo de nada adianta. Eu dava aula sobre emergência e CTI e dizia aos meus alunos que a tecnologia é burra, precisa de cuidados, de manutenção (Trecho de diário de campo, relato da enfermeira 5).

O relato da enfermeira 16 quando se refere ao cuidado com os alarmes e os riscos implicados em sua utilização inadequada denota a necessidade de dominar o maquinário na assistência na TI, por meio da utilização de conhecimentos apropriados ao seu manejo.

Quando o paciente é admitido ele é admitido também em relação à máquina, porque se tem a máquina, está programada com os parâmetros e você não define os parâmetros adequados para o diagnóstico daquele paciente (...). Você recebe o paciente, por exemplo, com Síndrome da Angústia Respiratória do Adulto, você deveria monitorizá-lo e adequar os parâmetros da saturação, até os da pressão também, mais respiratórios, e as pessoas não resetam os alarmes, não ajustam de acordo com a patologia, e o que acontece? Os monitores alarmam por qualquer motivo e para qualquer paciente e as pessoas banalizam os alarmes. A verdade é essa, essa banalização, acho que leva a ocorrência dos óbitos não assistidos na verdade, o que é grave dentro de um setor fechado (Entrevista, Enfermeira 16).

No que tange à interface com o maquinário, a observação da linguagem tecnológica é um requisito na identificação das mudanças clínicas que requerem pronta atuação do enfermeiro, como confirma a enfermeira 11.

(A tecnologia) consegue me dar informação sobre o paciente. Mesmo estando com o paciente 1, 2 e 3, conheço os casos e vou ter que selecionar a prioridade do meu cuidado. Atendendo o paciente do leito 1, posso olhar para a tecnologia do 3 e ela vai me dizer se devo parar o que estou fazendo, porque está acontecendo alguma situação não esperada no leito 3. Ela abre esse olhar, para isso eu tenho que estar ligada. (Entrevista, enfermeira 11).

A manipulação desse instrumental incorporado ao cuidado requer preparo dos trabalhadores , conforme essa mesma informante complementa.

O saber te dá condições de fazer outras leituras das situações. Monitor na hora do banho: para alguns é importante, para outros não. Importa conhecer porque está monitorado? Acho que sim! Talvez, porque foram colocados aqui e não tenham esse entendimento. Ou não foram capacitados, ou não sabem a importância de monitorar paciente grave. É falha do sistema não permitir me capacitar sempre. (Entrevista, enfermeira 11).

DISCUSSÃO

A esfera subjetiva da clínica do cuidado de enfermagem na TI vem sendo discutida a partir do emprego de tecnologias, em razão das influências desses recursos nos modos de agir do enfermeiro frente ao paciente. Uma das características das tecnologias que ajuda a explicar isso é o fato de mediar a racionalidade e a subjetividade, o que torna necessário utilizar ferramentas ligadas à razão e à sensibilidade, de maneira a fortalecer o cuidado de enfermagem. Alguns estudos apontam a importância da valorização da subjetividade nos modos de agir no ambiente da TI ao considerar o uso de tecnologias para cuidar, denotando que fazem parte de sua clínica ( 9. Lucena AF, Crossetti MGO. Significado do cuidar na Unidade de Terapia Intensiva. Rev Gaúcha Enferm. 2004;25(2):243-56. - 1010 . Cunha PJ, Zagonel IPS. As relações interpessoais nas ações de cuidar em ambiente tecnológico hospitalar. Acta Paul Enferm. 2008;21(3):412-9. ) .

A intersubjetividade manifesta-se como história relacional vivida, como linguagem, intercomunicação, conhecimento, valores, crenças, emoções, desejos, temores, perspectivas ( 1111 . Mandú ENT. Intersubjetividade na qualificação do cuidado em saúde. Rev Latino Am. Enferm. 2004;12(4):665-75. ) . Conceber o indivíduo como objeto afasta-o de sua subjetividade e o relacionamento humano apoia-se na subjetividade, que confere singularidade ao sujeito ( 9. Lucena AF, Crossetti MGO. Significado do cuidar na Unidade de Terapia Intensiva. Rev Gaúcha Enferm. 2004;25(2):243-56. ) . Singularidade indica que o ser humano é pessoal, particular, reservado, privado, mas ao mesmo tempo inter-relaciona-se com outro singular por meio de encontros, nos quais ocorre a relação intersubjetiva. Toda relação é um encontro de subjetividades ( 1212 . Melo F. Quem me roubou de mim? O sequestro da subjetividade e o desafio de ser pessoa. São Paulo: Canção Nova; 2008. ) .

Nas discussões sobre estas interfaces entre os indivíduos nas ações de cuidar em ambiente tecnológico hospitalar fazem parte os elementos interação e relação dialógica. Significa que a interação sustenta o encontro entre o enfermeiro e o cliente, em respeito a dimensão existencial do ser, valorizando suas experiências de vida ( 1010 . Cunha PJ, Zagonel IPS. As relações interpessoais nas ações de cuidar em ambiente tecnológico hospitalar. Acta Paul Enferm. 2008;21(3):412-9. ) . O cuidado implica diálogo, em um processo que engloba sentimentos, ações e reações, possibilitando a intersubjetividade. Se realizado de forma calorosa, atenciosa e humana, abarcando as percepções técnicas dos profissionais e as emoções, o cuidado pode melhorar o estado do cliente ( 1010 . Cunha PJ, Zagonel IPS. As relações interpessoais nas ações de cuidar em ambiente tecnológico hospitalar. Acta Paul Enferm. 2008;21(3):412-9. ) .

É fundamental que o uso da tecnologia no cuidado seja norteado por princípios humanísticos , uma vez que repercute na atuação do enfermeiro e no cliente. Destaca-se que o desenvolvimento tecnológico, que propicia qualidade na assistência ao cliente crítico, não deve sobrepor-se à dimensão humana do cuidar ( 1010 . Cunha PJ, Zagonel IPS. As relações interpessoais nas ações de cuidar em ambiente tecnológico hospitalar. Acta Paul Enferm. 2008;21(3):412-9. ) . O contato interpessoal durante o cuidar do paciente nesse cenário em nada difere de outros ambientes e deve aliar os sentimentos humanos às atividades técnicas.

A necessidade de valorização de elementos subjetivos que integram esta categoria também se respalda em estudos que abarcam a questão das tecnologias, para os quais há necessidade de um exame moral no contexto tecnológico do CTI, pois ao informar e direcionar os enfermeiros, a tecnologia muda a dinâmica moral e social do binômio enfermeiro-paciente, produzindo uma distância que os coloca em posições de poder como autoridade epistêmica constrangendo os pacientes ( 1313 . O’Keefe-McCarthy S. Technologically-mediated nursing care: the impact on moral agency. Nurs Ethics. 2009;16(6):786-96. ) . Outra investigação, à luz da clínica ampliada, considera que há preocupação exacerbada dos profissionais com prescrição médica, aparelhos eletroeletrônicos e exames, em detrimento de um maior fortalecimento do diálogo, determinando o que se denomina de inversão dos valores, amparando-se em um modelo hegemônico. É necessário superar uma clínica em pedaços, fragmentada, indo em direção à noção de interdisciplinaridade, respeitando o caráter subjetivo e social na complexidade de cada sujeito ( 1414 . Campos LF, Melo MRAC. Assistência de enfermagem na perspectiva da clínica ampliada em Unidade de Terapia Intensiva. Rev Gaúcha Enferm. 2011;32(1):189-93. ) .

Inúmeros trabalhos concebem a relação entre o homem e as tecnologias como puramente racional e instrumental, e neles, as tecnologias são vistas como meios funcionais a serviço de fins humanos. Todavia, defende-se que as tecnologias e seus utilizadores reconfiguram-se reciprocamente em suas práticas particulares. A oposição entre a frieza da tecnologia e o calor do cuidado não se sustenta, pois existem diferentes conexões entre as pessoas e as tecnologias em seus contextos de uso, as quais permitem criar laços afetivos e sociais ( 1515 . Pols J, Moser I. Cold technologies versus warm care? On affective and social relations with and through care technologies. Eur J Disabil Res. 2009;3(2):159-78. ) .

Quanto à segunda categoria que trata da objetividade na clínica na TI, afirma-se que no caso de um pós-operatório de cirurgia cardíaca, por exemplo, as máquinas que fornecem suporte avançado à vida também precisam de assistência e cuidado. Considera-se que a vigilância dos aparelhos importa aos enfermeiros, com o propósito final de manter a vida dos pacientes. Nesta clínica é necessário que se assista e se cuide também da máquina ( 3. Silva RCL, Kaczmarkiewicz CC, Cunha JJSA, Meira IC, Figueiredo NMA, Porto IS. O significado da tecnologia no pós-operatório imediato de cirurgia cardíaca. Rev SOCERJ. 2009;22(4):210-8. ) .

Para um cuidado seguro é fundamental conhecer, dominar e refletir sobre o uso de tecnologias no CTI. Esta característica de domínio das máquinas destaca-se no campo dos cuidados intensivos de enfermagem, pois os aparatos resultam da ciência, são produtos de um determinado saber tecnológico. Para que os equipamentos sejam utilizados pelos profissionais no cotidiano de sua prática de modo cada vez mais aperfeiçoado, objetivando a qualidade do cuidado ao cliente, é primordial a atenção a tais conhecimentos ( 1616 . Martins JJ, Nascimento ERP. Tecnologia e a organização do trabalho da enfermagem em UTI. ACM Arq Catarin Med. 2005;34(4):23-7. ) .

O preparo dos trabalhadores para entender o funcionamento das tecnologias com vistas ao trabalho eficiente é condição para que estas sejam consideradas como um recurso de trabalho da enfermagem. Em virtude do avanço do conhecimento e da produção acelerada de inovações tecnológicas, a capacitação e a atualização profissional para o cuidado são necessárias à clínica, sendo necessária, portanto, a qualificação continuada dos trabalhadores em saúde, já que na sua formação esta abordagem ainda é bastante superficial ( 1616 . Martins JJ, Nascimento ERP. Tecnologia e a organização do trabalho da enfermagem em UTI. ACM Arq Catarin Med. 2005;34(4):23-7. ) .

A existência de uma linguagem tecnológica objetivada na amplificação dos sinais que emanam do corpo do cliente por meio do maquinário e que se traduzem em códigos de manipulação é outra ideia defendida nesse contexto. É preciso observar e entender os códigos emitidos pela máquina, de modo a direcionar o cuidado sem prejuízos aos pacientes. Para evitar o manuseio equivocado, são necessárias a observação rigorosa e a tradução correta dessa linguagem, já que erros podem trazer danos e causar a morte do paciente. É importante observar a linguagem tecnológica para o cuidado de enfermagem ( 2. Silva RC, Ferreira MA. A dimensão da ação nas representações sociais da tecnologia no cuidado de enfermagem. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2011;15(1):140-8. ) .

Uma das consequências da progressiva complexidade do maquinário tecnológico é o significativo número de erros, pois muitos incidentes ocorrem por falhas em sua operação, demandando gerenciar os riscos de iatrogenias com o uso da tecnologia médico-hospitalar, focando os fatores que interferem na segurança, como é o caso da atuação de enfermagem ( 1717 . Padilha KG. Ocorrências iatrogênicas em Unidade de Terapia Intensiva (UTI): análise dos fatores relacionados. Rev Paul Enferm. 2006;25(1):18-23. ) . Portanto, um sistema de vigilância constante pelo enfermeiro ou tecnovigilância, a fim de prevenir a ocorrência de erros no manejo da tecnologia e minimizar os riscos à população é de grande valia em uma clínica do cuidado de enfermagem.

Os resultados expressos nesta categoria alinham-se a um estudo reflexivo acerca do uso da tecnologia no cuidado de enfermagem ao doente crítico em TI, na defesa de um cuidado com as máquinas. O uso da tecnologia na assistência ao doente crítico em TI suscita um cuidado com as máquinas, havendo necessidade de análise da função relacional dos aparelhos com o enfermeiro, o doente e o ambiente de cuidado, para que se obtenha maior chance de efeitos terapêuticos positivos. Há que repensar as tecnologias duras como um estar com o doente crítico, deixando de lado a concepção de que ao se cuidar da máquina se esquece daquele que de certa forma depende dela ( 1818 . Schwonke CR, Lunardi Filho WD, Lunardi VL, Santos SSC, Barlem ELD. Perspectivas filosóficas do uso da tecnologia no cuidado de enfermagem em terapia intensiva. Rev Bras Enferm. 2011;64(1):189-92. ) .

Para que este cuidado não tenha erros releva-se a competência dos enfermeiros necessária para o trabalho no CTI. Tal competência foi demonstrada numa investigação que verificou que a proporção de profissionais certificados na equipe foi inversamente relacionada com a taxa de quedas, e o número de anos de experiência dos enfermeiros inversamente relacionado à frequência de infecções do trato urinário, indicando que existem ligações entre a competência dos enfermeiros e a segurança dos pacientes. Ressalta-se assim o conhecimento e o julgamento do enfermeiro na prevenção de eventos adversos, sobretudo quanto à aplicação de tecnologias ( 1919 . Kendall-Gallagher D, Blegen MA. Competence and certification of registered nurses and safety of patients in Intensive Care Units. Am J Crit Care. 2009;18(2):106-14. ) .

Caracterização de uma clínica do cuidado de enfermagem na TI à luz da atuação do enfermeiro

A incorporação de aparatos tecnológicos na TI traz inúmeros requisitos para os profissionais que visam à assistência ética, segura e de qualidade. Os modos de agir do enfermeiro constituem elementos específicos que buscam equilibrar a objetividade e a subjetividade. Entretanto, na organização dessa clínica, alguns caracteres objetivos destacam-se, como as ações de cuidado centradas na operação e no manejo das máquinas, a preocupação com a observação e o domínio da linguagem dos aparelhos sobre o funcionamento orgânico do cliente e a vigilância em relação à ocorrência de efeitos indesejáveis que possam trazer riscos à vida.

Vários fatores concorrem para isso. Para manter a vida e recuperar a saúde, os pacientes são acoplados a dispositivos que realizam momentaneamente suas funções vitais. Além dos cuidados diretos, é fundamental o conhecimento teórico e prático do manuseio dessas máquinas para que se compreenda seus modos de execução e interprete seus dados, garantindo confiabilidade aos resultados e a condução da assistência. Caso isso não ocorra, interdita-se o cuidado à clientela, comprometendo sua evolução ( 2. Silva RC, Ferreira MA. A dimensão da ação nas representações sociais da tecnologia no cuidado de enfermagem. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2011;15(1):140-8. ) . Acrescenta-se ainda que na TI, a maioria dos clientes apresenta um quadro clínico de instabilidade hemodinâmica, no qual as complicações são frequentes, exigindo monitoramento, a fim de que nas intercorrências se possa intervir rapidamente no restabelecimento orgânico.

A clínica do cuidado de enfermagem na TI comporta determinadas características que, em certos momentos, fazem com que os modos de agir dos enfermeiros conformem estilos de cuidar marcados por uma maior expressão da objetividade própria desse cenário, o que não significa desvalorização da subjetividade e sim repercussão de sua clínica. A maior atenção ao maquinário e aos procedimentos a ele relacionados é inerente à prática de cuidar nesse ambiente.

O impacto da morte dos pacientes representa o insucesso dos esforços e investimentos da equipe multiprofissional. Assim, a atuação profissional, principalmente em setores de cuidados intensivos, é orientada pela busca obstinada da recuperação do paciente, até a última medida terapêutica eficaz disponível para prolongar sua vida. O resgate da vida passa pela atenção às tecnologias, o que justifica as formas de agir dos enfermeiros.

A revolução tecnológica no tratamento em saúde impactou na maneira de abordagem do cliente em setores de TI, isto é, ao tempo em que os enfermeiros passam a ter uma atuação mais aperfeiçoada tecnicamente, há certo afastamento do cliente ( 1313 . O’Keefe-McCarthy S. Technologically-mediated nursing care: the impact on moral agency. Nurs Ethics. 2009;16(6):786-96. ) , já que pelos muitos aparelhos usados, o contato entre o enfermeiro e o paciente diminui. Contudo, esse afastamento não pode representar de imediato uma ideia de coisificação, relações frias e distantes, dentre outras qualificações negativas do cuidado que são veiculadas na literatura atual.

Os resultados aqui demonstrados evidenciam que há respeito ao próximo e cuidado atencioso ao ser humano e, ao contrário do que se pensa, o distanciamento pode significar preocupação, resultado da necessidade de buscar informações sobre o manejo do instrumental ou da patologia. Os argumentos amparam-se na clínica própria desse ambiente, na qual há produção de novos conhecimentos e tecnologias, necessitando que o enfermeiro acompanhe essa transformação e ocupe parte do seu tempo envolvido com essa atividade.

Em virtude do uso de drogas sedativas e o fato dos recursos utilizados serem invasivos, os clientes ficam em total dependência daqueles que os cuidam. Essa configuração assistencial dificulta a visualização das características subjetivas do cuidado nas ações profissionais. Todavia, reitera-se que nos modos de cuidar dos enfermeiros há características que denotam o reconhecimento da subjetividade, mas, por conta da clínica específica desse cenário, isso nem sempre se expressa claramente, o que produz discursos sobre o resgate da expressividade do sujeito na promoção do cuidado humanizado.

Um exemplo disso é a observação atenta das máquinas, por meio das quais se obtém informações que ajudam a equipe a conhecer melhor o que se passa no organismo do paciente para direcionar o cuidado. Para que não haja erros na tradução dessas informações, o enfermeiro precisa interagir com as máquinas, o que causa a impressão de desvalorização do cliente e supervalorização do maquinário. Contudo, essa é uma característica do cuidado na TI, pois essa comunicação proporciona respostas acerca da singularidade do sujeito e sobre as terapêuticas, haja vista que ele não consegue comunicar suas demandas. A máquina amplifica as reações do corpo e, dando-se atenção a ela, respeita-se a pessoalidade do paciente.

Ao mesmo tempo em que a aplicação de tecnologias facilita a assistência ao cliente crítico, exige atenção e zelo dos profissionais para garantir a fidedignidade dos dados, sendo o cuidado com o seu uso uma ação humana ( 3. Silva RCL, Kaczmarkiewicz CC, Cunha JJSA, Meira IC, Figueiredo NMA, Porto IS. O significado da tecnologia no pós-operatório imediato de cirurgia cardíaca. Rev SOCERJ. 2009;22(4):210-8. ) . O acompanhamento hemodinâmico do cliente, diagnosticando alterações e realizando intervenções, é condição para restaurar a saúde do sujeito, de tal forma a resgatar sua autonomia para o exercício da cidadania. Pode-se dizer que o cuidado com a tecnologia contribui para promover a humanização, preservando a dignidade humana. Logo, quando se cuida da máquina, implicitamente se valorizam os princípios humanísticos, fundamentais na expressividade do ser, mas que nem sempre ganham status acadêmico.

As características da clínica da Enfermagem na TI podem ser comparadas às de outras clínicas no âmbito da enfermagem, como a da psiquiatria. Ao contrário do que acontece na TI, nesse caso a atenção não se volta aos maquinários avançados, mas à sofisticação da atenção à pessoa ( 4. Alves M, Oliveira RMP. Enfermagem psiquiátrica: discursando o ideal e praticando o real. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2010;14(1):64-70. ) . A empatia está diretamente ligada ao que se considera clínica da enfermagem psiquiátrica, pois a partir dela se compreendem seus outros elementos constitutivos ( 4. Alves M, Oliveira RMP. Enfermagem psiquiátrica: discursando o ideal e praticando o real. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2010;14(1):64-70. ) . Tal clínica possui todas as sutilezas e as peculiaridades que não se encontram em outras áreas da enfermagem, apoiando-se em quatro pressupostos: escuta qualificada com a valorização da narrativa do sujeito; no tempo do paciente para o sintoma e na relação de cuidado; o cuidado é pós-demanda, focado no sujeito e não na doença, ação a ser realizada com ele; prontidão do enfermeiro para cuidar, disponibilidade para conhecê-lo e estar ao seu lado, construir caminhos possíveis com ele ( 4. Alves M, Oliveira RMP. Enfermagem psiquiátrica: discursando o ideal e praticando o real. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2010;14(1):64-70. ) .

Em face dos resultados, ressalta-se a configuração da clínica do cuidado na TI: a interação com o cliente é mediada pela tecnologia e pelos saberes especializados do enfermeiro, a partir da qual este profissional executa atividades assistenciais que expressam sua ciência e arte de cuidar e refletem as características próprias desse ambiente de trabalho, implicando modos de cuidar marcados por atributos distintivos que manifestam em maior ou menor proporção a objetividade e a subjetividade.

Embora se defenda a influência dos elementos da clínica na conformação dos estilos de cuidar na TI e, portanto, que se amplie a dimensão de análise desta questão, reconhece-se a existência de linhas de ação que podem se repercutir na qualidade da assistência ao cliente, podendo coloca-lo em risco. Vários autores destacam este ponto quando abordam o cuidado e a tecnologia ( 1313 . O’Keefe-McCarthy S. Technologically-mediated nursing care: the impact on moral agency. Nurs Ethics. 2009;16(6):786-96. , 2020 . Silva RC, Ferreira MA. Technology in intensive care and its effects on nurses’ actions. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2012 Apr 17];45(6):1403-11. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n6/en_v45n6a18.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n6/en...
) . Ressaltam que a TI é um espaço com características peculiares, no qual o cuidado processa-se com predomínio do maquinário, marcado pelo desconforto e a impessoalidade ( 2121 . Nascimento ERP, Trentini M. Nursing care at the intensive care unit: going beyond objectivity. Rev Latino Am Enferm. 2004;12(2):250-7. ) . Assim, os aspectos relacionais do cuidado seriam coadjuvantes da tecnologia e do tecnicismo – os protagonistas, centrando-se na patologia e procedimentos. Em contrapartida, sentimentos, angústias, vivências e experiências do doente e sua família são postos em segundo plano ( 2121 . Nascimento ERP, Trentini M. Nursing care at the intensive care unit: going beyond objectivity. Rev Latino Am Enferm. 2004;12(2):250-7. ) .

Pesquisas também já indicaram que diante dos caracteres objetivos que permeiam a atuação profissional na TI, existem grupos de enfermeiros que não se dispõem a dominar a tecnologia, ou seja, nos momentos em que se faz necessário manusear a tecnologia, alguns se retiram da linha de frente do cuidado, afastando-se do cliente. Além desses, há os que não se afastam, mas se acomodam, sem buscar o conhecimento necessário para cuidar do cliente, o que aumenta a possibilidade de riscos ( 2020 . Silva RC, Ferreira MA. Technology in intensive care and its effects on nurses’ actions. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2012 Apr 17];45(6):1403-11. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n6/en_v45n6a18.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n6/en...
) .

Levando-se em conta a dimensão sociopolítica do cuidado, e sob a perspectiva teórico-filosófica adotada, o sentido atribuído aos objetos em torno do cuidado de Enfermagem é que determina as formas de agir do enfermeiro e caracteriza os modos de cuidar em tal ambiente, pois se toma como princípio que os fenômenos são socialmente construídos e que os sujeitos lidam com o seu cotidiano a partir de elaborações que fazem sobre aquilo que definem como relevante, mediando aspectos individuais e coletivos ( 2222 . Silva RC, Ferreira MA. A tecnologia em saúde: uma perspectiva psicossociológica aplicada ao cuidado de enfermagem. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009;13(1):169-73. ) .

Considerar os modos de cuidar dos enfermeiros abre possibilidades para identificar os fatores que interferem na organização do pensamento sobre suas práticas enquanto fenômeno social e que, por sua vez, justificam seus modos de cuidar. As contribuições disso são a reflexão sobre a atuação do profissional, trazendo à pauta temas como qualificação, formação especializada, qualidade da assistência, entre outros.

CONCLUSÃO

Este artigo introduz a noção sobre a clínica do cuidado de enfermagem baseada nas ações dos enfermeiros que atuam em terapia intensiva, que possui oito características, sendo quatro da esfera subjetiva (singularidade do sujeito, interação e relação dialógica, princípios humanísticos, subjetividade) e quatro da esfera objetiva (vigilância dos aparelhos, domínio do maquinário, observação da linguagem tecnológica e preparo dos trabalhadores). Estas características conduzem os enfermeiros a determinados modos de cuidar e mostram que a assistência de enfermagem realizada no ambiente de TI não deve ser caracterizada a priori como mais ou menos humana, pois alia técnica, tecnologia e humanização.

Ao revelar as características que integram o marco conceitual dessa clínica têm-se melhores condições de conhecer como se conformam as práticas neste setor e os sentidos que assumem os aspectos que estruturam tal marco e guiam as ações na TI. Isto porque o marco conceitual é uma ferramenta de identificação do saber-fazer que possibilita construir o conhecimento por meio da reflexão dos conceitos que circundam um determinado processo de trabalho.

Reconhecer a influência das tecnologias tem um papel importante na conformação das perspectivas assistenciais. Entender o cuidado em um setor imerso em situações clínicas críticas e no qual a fronteira entre a vida e a morte é bastante tênue, é uma possibilidade que se abre à luz de uma clínica do cuidado, com as características evidenciadas nesta pesquisa.

Trabalhou-se com um número restrito de sujeitos em um contexto situacional que apresenta peculiaridades em termos da caracterização do campo. Para maiores generalizações em torno da questão dos estilos de cuidar, baseadas em outras características desta clínica não evidenciadas neste estudo, recomendam-se novas investigações que permitam não somente caracterizar e definir a clínica, mas estruturar seu marco conceitual, com novos instrumentos de análise da prática assistencial para os pesquisadores interessados na especificidade da TI, numa perspectiva crítica.

Sugere-se que o debate acerca das formas de atuar do enfermeiro ganhe um discurso mais ameno, investindo-se inicialmente em compreender os referenciais teórico-filosóficos dos sujeitos que cuidam, assim como as particularidades de sua clínica, condição sine qua non para uma avaliação fundamentada do objeto em questão, em contribuição ao campo dos fundamentos do cuidado de enfermagem.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Souza ML, Sartor VVB, Padilha MICS, Prado ML. O cuidado em enfermagem: uma aproximação teórica. Texto Contexto Enferm. 2005;14(2):266-70.
  • 2
    Silva RC, Ferreira MA. A dimensão da ação nas representações sociais da tecnologia no cuidado de enfermagem. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2011;15(1):140-8.
  • 3
    Silva RCL, Kaczmarkiewicz CC, Cunha JJSA, Meira IC, Figueiredo NMA, Porto IS. O significado da tecnologia no pós-operatório imediato de cirurgia cardíaca. Rev SOCERJ. 2009;22(4):210-8.
  • 4
    Alves M, Oliveira RMP. Enfermagem psiquiátrica: discursando o ideal e praticando o real. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2010;14(1):64-70.
  • 5
    Teixeira MLO, Ferreira MA. Uma tecnologia de processo aplicada ao acompanhante do idoso hospitalizado para sua inclusão participativa nos cuidados diários. Texto Contexto Enferm. 2009;18(3):409-17.
  • 6
    Etienne MS. Éléments d’une clinique en soins. Rech Infirm [Internet]. 2005 [cited 2012 Apr 17];(82):11-5. Available from: http://fulltext.bdsp.ehesp.fr/Rsi/84/11.pdf
    » http://fulltext.bdsp.ehesp.fr/Rsi/84/11.pdf
  • 7
    Sousa LD, Lunardi Filho WD, Lunardi VL, Santos SSC, Santos CP. The scientific nursing production about the clinic: an integrative review. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2012 Apr 17];45(2):495-500. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n2/en_v45n2a26.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n2/en_v45n2a26.pdf
  • 8
    Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; 1989.
  • 9
    Lucena AF, Crossetti MGO. Significado do cuidar na Unidade de Terapia Intensiva. Rev Gaúcha Enferm. 2004;25(2):243-56.
  • 10
    Cunha PJ, Zagonel IPS. As relações interpessoais nas ações de cuidar em ambiente tecnológico hospitalar. Acta Paul Enferm. 2008;21(3):412-9.
  • 11
    Mandú ENT. Intersubjetividade na qualificação do cuidado em saúde. Rev Latino Am. Enferm. 2004;12(4):665-75.
  • 12
    Melo F. Quem me roubou de mim? O sequestro da subjetividade e o desafio de ser pessoa. São Paulo: Canção Nova; 2008.
  • 13
    O’Keefe-McCarthy S. Technologically-mediated nursing care: the impact on moral agency. Nurs Ethics. 2009;16(6):786-96.
  • 14
    Campos LF, Melo MRAC. Assistência de enfermagem na perspectiva da clínica ampliada em Unidade de Terapia Intensiva. Rev Gaúcha Enferm. 2011;32(1):189-93.
  • 15
    Pols J, Moser I. Cold technologies versus warm care? On affective and social relations with and through care technologies. Eur J Disabil Res. 2009;3(2):159-78.
  • 16
    Martins JJ, Nascimento ERP. Tecnologia e a organização do trabalho da enfermagem em UTI. ACM Arq Catarin Med. 2005;34(4):23-7.
  • 17
    Padilha KG. Ocorrências iatrogênicas em Unidade de Terapia Intensiva (UTI): análise dos fatores relacionados. Rev Paul Enferm. 2006;25(1):18-23.
  • 18
    Schwonke CR, Lunardi Filho WD, Lunardi VL, Santos SSC, Barlem ELD. Perspectivas filosóficas do uso da tecnologia no cuidado de enfermagem em terapia intensiva. Rev Bras Enferm. 2011;64(1):189-92.
  • 19
    Kendall-Gallagher D, Blegen MA. Competence and certification of registered nurses and safety of patients in Intensive Care Units. Am J Crit Care. 2009;18(2):106-14.
  • 20
    Silva RC, Ferreira MA. Technology in intensive care and its effects on nurses’ actions. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2012 Apr 17];45(6):1403-11. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n6/en_v45n6a18.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n6/en_v45n6a18.pdf
  • 21
    Nascimento ERP, Trentini M. Nursing care at the intensive care unit: going beyond objectivity. Rev Latino Am Enferm. 2004;12(2):250-7.
  • 22
    Silva RC, Ferreira MA. A tecnologia em saúde: uma perspectiva psicossociológica aplicada ao cuidado de enfermagem. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009;13(1):169-73.
  • *
    Extraído da tese “Estilos de cuidar na terapia intensiva em face das tecnologias: uma contribuição à clínica do cuidado de enfermagem”, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2013

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2012
  • Aceito
    25 Jun 2013
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: reeusp@usp.br