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Uma revisão sobre aspectos fundamentais da teoria de Piaget: possíveis implicações para o ensino de física

A review on fundamental aspects of the Piaget's theory: possible implications for physics teaching

Resumos

Este artigo tem como objetivo mostrar as implicações do empirismo, inatismo e construtivismo no processo ensino-aprendizagem de física. Para tanto, são apresentadas algumas reflexões sobre o conceito de epistemologia e as diferentes formas de entender a origem do conhecimento, incluindo alguns pontos fundamentais da teoria construtivista de Piaget, a saber: assimilação, acomodação, interacionismo, equilibração e adaptação. Conclui-se que a teoria piagetiana do conhecimento é uma teoria com fortes argumentos para subsidiar a prática pedagógica de professores de física.

ensino de física; epistemologia; empirisimo; inatismo e construtivismo


The aim of this paper is to show the implication of the empiricism, innatism and constructivism in the physics teaching-learning process. Therefore, some reflections concerning the epistemology concept and the different ways to understand the knowledge origin, including some Piaget's constructivist theory fundamental points were done. The conclusion shows that the piagetian knowledge theory has some strong arguments to subsidize the physics teacher's pedagogic practice.

physics teaching; epistemology; empirism; innatism and constructivism


ARTIGOS GERAIS

Uma revisão sobre aspectos fundamentais da teoria de Piaget: possíveis implicações para o ensino de física

A review on fundamental aspects of the Piaget's theory: possible implications for physics teaching

Luciano Carvalhais GomesI,1 1 E-mail: carvalhaisgomes@uol.com.br 2 Emilia Ferreiro, no capítulo 8 do livro Atualidade de Jean Piaget, faz um breve resumo do percurso seguido pelo biólogo suíço na construção da epistemologia genética como ciência. A autora mostra os autores que o influenciaram, os primeiros artigos que escreveu, os debates com alguns de seus críticos, aspectos de sua vida pessoal e como a obra piagetiana pode ser organizada em grandes ciclos, divididos de acordo com os objetivos do autor ao realizar as suas pesquisas. ; Luzia Marta BelliniII

IDepartamento de Física, Centro de Ciências Exatas, Universidade Estadual de Maringá, Maringa, PR, Brasil

IIDepartamento de Fundamentos da Educação, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Estadual de Maringá, Maringa, PR, Brasil

RESUMO

Este artigo tem como objetivo mostrar as implicações do empirismo, inatismo e construtivismo no processo ensino-aprendizagem de física. Para tanto, são apresentadas algumas reflexões sobre o conceito de epistemologia e as diferentes formas de entender a origem do conhecimento, incluindo alguns pontos fundamentais da teoria construtivista de Piaget, a saber: assimilação, acomodação, interacionismo, equilibração e adaptação. Conclui-se que a teoria piagetiana do conhecimento é uma teoria com fortes argumentos para subsidiar a prática pedagógica de professores de física.

Palavras-chave: ensino de física, epistemologia, empirisimo, inatismo e construtivismo.

ABSTRACT

The aim of this paper is to show the implication of the empiricism, innatism and constructivism in the physics teaching-learning process. Therefore, some reflections concerning the epistemology concept and the different ways to understand the knowledge origin, including some Piaget's constructivist theory fundamental points were done. The conclusion shows that the piagetian knowledge theory has some strong arguments to subsidize the physics teacher's pedagogic practice.

Keywords: physics teaching, epistemology, empirism, innatism and constructivism.

1. Introdução

Muitas pesquisas, por exemplo, Fuller [1], têm mostrado que a preocupação do professor, no início da carreira, centra-se mais no planejamento, no domínio e desenvolvimento dos conteúdos ministrados e na percepção que os alunos, os pais e direção da escola têm sobre o seu trabalho. Tradição, talvez, da forma como apreendemos as lições das disciplinas didáticas nas licenciaturas como também da instituição escola. Quando se chega à escola esta tradição soma-se às apreensões docentes diante da indisciplina, da conduta dos alunos, da falta de motivação, da preparação dos planos de aula, dos problemas particulares dos alunos e das relações com os colegas de profissão. Percebemos que com muitos professores de física isto não é diferente. Apenas depois de alguns anos, surgem as preocupações com métodos mais apropriados para trabalhar os conteúdos. Com o intuito de ajudar os alunos a construírem o conhecimento físico, eles começam a fazer os seguintes questionamentos: "Qual a epistemologia do conhecimento que ensino aos meus alunos?"; "O que são os conteúdos físicos?"; "É possível ensinar física de outro modo, qual é esta nova maneira?". Para auxiliá-los na busca das respostas a estas perguntas, faremos uma síntese das principias correntes epistemológicas, mostrando alguns argumentos para considerar a teoria piagetiana do conhecimento como subsídio à prática pedagógica dos professores de física.

2. O que é epistemologia?

No sentido etimológico, epistéme significa ciência, verdade e logos significa estudo, discurso. Deste modo, podemos definir epistemologia como sendo o estudo ou discurso sobre a ciência ou sobre a verdade em busca de respostas para perguntas do tipo: O que conhecemos? Como conhecemos? O que é o conhecimento científico? O que faz a ciência? A epistemologia é interpretada como filosofia da ciência por alguns autores e como teoria do conhecimento por outros. Na primeira perspectiva, interessa o "[...] estudo crítico do conhecimento científico, de seus princípios e resultados, além de tratar também da história filosófica das ciências - análise crítica das caminhadas, das dificuldades, das evoluções e das rupturas da ciência" [2, p. 18]. A segunda visão procura compreender os papéis do sujeito e do objeto na aquisição do conhecimento. Estas duas vertentes são complementares. Por exemplo, saber como um cientista pensava a queda de corpos há dois mil anos atrás auxilia na interpretação dada por uma criança nos tempos modernos, por outro lado, a compreensão de como a criança chegou ao raciocínio facilita a análise histórica do fenômeno.

3. A epistemologia como teoria do conhecimento

Desde quando viemos ao mundo, até mesmo antes, estamos em constante processo de aprendizagem. Infelizmente, não nos lembramos o que aconteceu, em termos cognitivos, quando vimos, ouvimos, cheiramos, degustamos ou tateamos pela primeira vez os objetos em nossa volta. O que nos levou a dizer a primeira palavra, a diferenciar o cachorro da vaca, a andar, a ler e escrever, enfim, como nasce o conhecimento em nós. Em busca de respostas a estas perguntas, surgiram duas correntes filosóficas: o empirismo e o racionalismo. O empirismo defende que todas as nossas idéias vêm de nossas percepções sensoriais, "[...] o espírito humano está por natureza vazio: é uma tábua rasa, uma folha em branco, onde a experiência escreve"[3, p. 68]. Nada vem à mente sem ter passado pelos sentidos. Contra esta concepção, o racionalismo atribui exclusiva confiança na razão humana como instrumento capaz de conhecer a verdade. A experiência sensorial é uma fonte permanente de erros e confusões, somente a razão, com princípios lógicos, pode atingir o conhecimento verdadeiro. E os princípios lógicos fundamentais são inatos ao ser humano.

De acordo com Descartes, devemos duvidar do conhecimento sensível, pois este foi fonte de erro e de engano. Em busca do conhecimento verdadeiro, ele propõe um método universal inspirado no rigor matemático e em suas longas cadeias de razão. Suas idéias fundamentais foram retomadas por Augusto Comte, que combinou os princípios do racionalismo e do empirismo sem estar interessado que tais princípios funcionem como componentes de uma teoria do conhecimento, "[...] mas como regras normativas do procedimento científico, o qual, por sua vez, define a ciência" [4, p. 27]. Esta filosofia científica ficou conhecida como Positivismo. Para os positivistas, não existe nenhum conhecimento legítimo fora das ciências e todos os enunciados precisam ser passíveis de verificação experimental. Deste modo, existe um método único e infalível para aquisição do conhecimento científico, baseado na observação, na experiência, no acúmulo de evidêcias e na formulação de hipóteses.

4. A epistemologia como filosofia da ciência

O Positivismo pode ser considerado como o marco inicial da filosofia da ciência, de acordo com Neves [4, p. 25, grifo do autor]:

O Positivismo é um movimento filosófico que marca o fim de todo um corpus de conhecimentos sintetizados num movimento filosófico que buscava a teoria do conhecimento e se apoiava, pois, em critérios de subjetividade e na metafísica. A teoria do conhecimento foi abandonada e, em seu lugar, foi colocada uma "disciplina" (e aqui podemos batizá-la como tal, uma vez que tudo o que era contingente foi excluído, restando somente os "fatos" e as "normas"), intitulada filosofia da ciência.

Junto com a filosofia da ciência, nasce o método positivista (também conhecido como método científico) considerado como uma receita que, ao ser seguida, resulta em um conhecimento seguro. Este método cristalizou a crença generalizada de que o conhecimento científico possui um alto grau de certeza, tendo uma posição privilegiada em relação aos demais tipos de conhecimento (o do homem comum, por exemplo). Boa parte desta interpretação deve-se ao sucesso prático alcançado pela mecânica „galileu-newtoniana-cartesiana" dando origem ao "determinismo mecanicista". O advento da Relatividade e da Mecânica Quântica trouxe consigo objeções incisivas à concepção comum de ciência, pois, a maneira pelas quais estas teorias foram criadas não condiz com o receituário apregoado pelo método científico. Para ilustrar este nosso comentário, apresentaremos um pequeno resumo do artigo de Boaventura de Sousa Santos que descreve algumas condições que ocasionaram "a crise do paradigma dominante" - nome dado pelo autor ao paradigma da ciência positivista - distinguindo-as entre teóricas e sociais.

Dentre as condições teóricas, Santos [5] cita a relatividade da simultaneidade formulada por Einstein; o princípio da incerteza de Heisenberg; o teorema da incompletude (ou do não-completamento) estabelecido por Gödel; a teoria das estruturas dissipativas e o princípio da "ordem através de flutuações" de Prigogine. A Relatividade da Simultaneidade de Einstein afirma que a simultaneidade de acontecimentos distantes não pode ser demonstrada, só pode ser definida, portanto é arbitrária. Isto é o suficiente para alterar por completo a nossa noção de tempo e espaço absolutos de Newton. O Princípio da Incerteza de Heisenberg, no âmbito da mecânica quântica, tem também consequências marcantes ao resultar da demonstração de que não e possível conhecer simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula atômica. Ou seja, que não é possível observar sem alterar o objeto observado. Os teoremas de Gödel são, talvez, a mais surpreendente destas descobertas, pois surgiram no domínio científico que mais imune parecia estar a abalos epistemológicos -a matemática. Gödel demonstrou que é possível formular proposições que não se podem demonstrar nem refutar seguindo as regras da lógica matemática. O quarto pilar desta crise do paradigma dominante é a nova abordagem da complexidade em sistemas dinâmicos. Trata-se de um novo corpo de conhecimentos cujo objeto são os sistemas dinâmicos não-lineares, logo, de comportamento imprevisível, que atravessa disciplinas tradicionais e contraria o mecanicismo clássico com conceitos como a auto-semelhançca ou a dependência sensível das condições iniciais.

Podemos inferir que a partir destas teorias, o mundo cartesiano, que rejeitava todo o conhecimento provável e aceitava somente aqueles que poderiam ser conhecidos sem nenhuma dúvida, ruiu. A causalidade, o determinismo, a separação entre o sujeito e objeto foram aos poucos cedendo lugar à probabilidade, à incerteza e às inter-relações. Com relação às condições sociais que contribuíram para a "a crise do paradigma dominante" o autor destaca que:

[..] as idéias da autonomia da ciência e do desinteresse do conhecimento científico, que durante muito tempo constituíram a ideologia espontânea dos cientistas, colapsaram perante o fenômeno global da industrialização da ciência a partir sobretudo das décadas de trinta e quarenta. Tanto nas sociedades capitalistas como nas sociedades socialistas de Estado do leste europeu, a industrialização da ciência acarretou o compromisso desta com os centros de poder econômico, social e político, os quais passaram a ter um papel decisivo na definição das prioridades científicas [5, p. 59].

A nova visão de ciência entende que o conhecimento científico, por ser uma construção humana, é sujeito a mudanças e não é construído de forma linear. Leis e teorias não são descobertas apenas com a utilização rigorosa do "método científico". Não existem observações neutras. A ciência sofre influência de fatores históricos, sociais, políticos, econômicos e culturais.

5. A epistemologia genética

5.1. Jean Piaget: biografia resumida

A crise do positivismo gerou inquietações quanto ao papel do sujeito e do objeto na aquisição do conhecimento.

E neste cenário que surge a figura do suíço Jean Piaget. Antes de entrarmos nas explicações de sua epistemologia, apresentaremos alguns aspectos de sua vida com o objetivo de contextualizar sua obra.2 1 E-mail: carvalhaisgomes@uol.com.br 2 Emilia Ferreiro, no capítulo 8 do livro Atualidade de Jean Piaget, faz um breve resumo do percurso seguido pelo biólogo suíço na construção da epistemologia genética como ciência. A autora mostra os autores que o influenciaram, os primeiros artigos que escreveu, os debates com alguns de seus críticos, aspectos de sua vida pessoal e como a obra piagetiana pode ser organizada em grandes ciclos, divididos de acordo com os objetivos do autor ao realizar as suas pesquisas.

Nasceu em Neuchâtel em 1896 e faleceu em Genebra em 1980. Formou-se em ciências naturais (biologia e filosofia) pela Universidade de Neuchâtel, desde criança mostrou interesse pela Historia Natural. Publicou o seu primeiro artigo aos 11 anos sobre um pardal albino, considerado o início de sua carreira como cientista. Doutorou-se em biologia aos 22 anos mudando-se para Zurique, em busca de uma iniciação na psicologia experimental, onde frequentou aulas ministras por Paul Eugen Bleuler (psiquiatra suíço notável pelas suas contribuições para o entendimento da esquizofrenia). Em 1919, muda-se para Paris, onde fez um curso de filosofia das ciências com Leon Brunschvigc. Segundo Ferreiro [6, p. 107-108]:

A visão crítica e racionalista da história da ciência e da oposição desse autor tanto às correntes irracionais quanto ao empirismo positivista impressionaram Piaget, que reterá também aquelas características que Brunschvicg aponta como específicas da inteligência: a capacidade indefinida de progresso e a preocupação perpétua pela verificação.

Não contente em ter que refletir sem experimentar, Piaget aceita o convite para trabalhar no laboratório de Alfred Binet, auxiliando na investigação do desenvolvimento intelectual da criança a partir de testes de inteligência padronizados elaborados pelo investigador francês. "Embora sua tarefa consistisse em classificar simplesmente as respostas em certas ou erradas, Piaget descobre de imediato que era muito mais interessante tentar descobrir as razões dos fracassos'' [6, p. 108]. Disposto a confirmar a sua hipótese, inicia um diálogo clínico com as crianças, afastando-se radicalmente das normas do teste, a sua intenção era "[... ] descobrir quais eram os processos de raciocínio que conduziam às respostas erradas e os que conduziam às respostas corretas" [6, p. 108]. Deste modo, descobre que raciocínios aparentemente simples apresentavam dificuldades, ainda desconhecidas, até a faixa etária de 10-11 anos. Ferreiro [6, p. 108, grifo nosso] nos esclarece que:

Dessas primeiras experiências, surge uma metodologia e uma problemática nova: deixar de considerar as respostas erradas como um déficit, uma carência, e considerá-las em sua própria originalidade; tentar descobrir uma lógica dos erros; questionar os processos subjacentes às respostas, em vez de se contentar em catalogá-las. E, para consegui-lo, inventar uma metodologia adequada, que reúna as vantagens do controle experimental rigoroso com a flexibilidade dos interrogatórios utilizados na clínica psiquiátrica.

Ao enviar um dos três artigos com seus primeiros resultados para a revista Archives de Psychologie, é convidado pelo suíço Edouard Claparèd (neurologista e psicólogo do desenvolvimento infantil) para assumir um cargo no Instituto Jean-Jacques Rousseau da Universidade de Genebra. "Piaget aceita, sem imaginar que havia encontrado o lugar de trabalho que não haveria de abandonar jamais. Isto acontece em 1921" [6, p. 108]. Em 1923, aos 27 anos, escreveu o seu primeiro livro, A Linguagem e o Pensamento na Criança, "[...] quando a questão primeira era: para que serve a linguagem? A partir daí, mostra que o progresso da inteligência da criança se dá através da mudança de suas características e não, simplesmente, pela eliminação de erros" [7, p. 180]. Ao longo de seus 84 anos de vida, Piaget escreveu mais de 60 livros e uns 1500 artigos [6, 7]. Devida à grandiosidade de seu trabalho, nos limitaremos a uma análise de suas principais idéias que, em nossa opinião, possam melhorar a relação professor-aluno.

5.2. A obra: aspectos gerais

A teoria construtivista piagetiana procura responder a seguinte pergunta: Como se passa de um estado de menor conhecimento para um estado de maior conhecimento? A originalidade de Piaget "[... ] consistiu em haver tomado a decisão (escandalosa, para alguns críticos) de ir procurar respostas no comportamento das crianças, do nascimento à adolescência, antes de buscá-las na história da ciência" [9, p. 22]. Ainda de acordo com Garcia [9, p. 22, grifo nosso]:

A explicação do que chamamos "conhecer", "compreender", "explicar" surgirá, consequentemente, da investigação dos processos de mudança de um nível a outro, mais que da análise dos estados em cada período ou nível. E essa pesquisa leva, necessariamente, a considerar a níveis cada vez mais elementares, sem possibilidade, no atual estado da ciência, de retroceder o estudo até antes do nascimento, mas com crescente necessidade de considerar os processos biológicos que o precedem. A psicologia e a epistemologia, que estudam esses processos, foram classificadas por Piaget, com toda propriedade, como psicologia genética e epistemologia genética, já que seu objetivo é estudar a gênese do conhecimento.

Encontramos um interessante resumo de sua teoria no artigo Development and learning. Com o intuito de esclarecer ao leitor alguns pontos fundamentais de sua obra, faremos uma síntese do que se encontra nesta comunicação. Piaget começa diferenciando o desenvolvimento em geral e o desenvolvimento da aprendizagem. O desenvolvimento do conhecimento, para este autor, é um processo espontâneo ligado ao desenvolvimento do corpo como um todo, incluindo o sistema nervoso e as funções mentais. Em contrapartida, a aprendizagem é provocada por um agente externo interessado em promover a aquisição de algum ponto didático, o que torna o processo limitado a um problema simples ou a uma estrutura simples. Deste modo, o desenvolvimento não é uma soma de aprendizagens. Feita esta introdução, Piaget divide a sua fala em duas partes: a primeira sobre o desenvolvimento e a segunda sobre a aprendizagem. Ao discorrer sobre o desenvolvimento do conhecimento, Piaget esclarece que o mesmo está intimamente ligado à idéia de operação. Ou seja, conhecer um objeto não é simplesmente olhar e fazer uma cópia mental, ou imagem, deste, há a necessidade do sujeito agir sobre ele. A operação, desta maneira, e a essência do conhecimento, ou uma ação interiorizada que modifica o objeto do conhecimento. Nos dizeres de Piaget [10, grifo nosso]:

Em outras palavras, e um grupo de ações modificando o objeto e possibilitando ao sujeito do conhecimento alcançar as estruturas da transformação. Uma operação é uma ação interiorizada. Mas, além disso, é uma ação reversível; isto é, pode ocorrer em dois sentidos, por exemplo, adição ou subtração, juntar ou separar. Assim, é um tipo particular de ação que constrói estruturas lógicas. Acima de tudo, uma operação nunca é isolada. É sempre ligada a outras operações e, como resultado, é sempre parte de uma estrutura total.

Estas estruturas operacionais, para Piaget, constituem a base do conhecimento, "[...] e o problema central do desenvolvimento é compreender a formação, elaboração, organização e funcionamento dessas estruturas" [10]. Neste momento, o autor relembra os quatro grandes estágios de desenvolvimento dessas estruturas, fornecendo uma síntese de cada um. São eles:

• Estágio sensório-motor (pré-verbal): dura, aproximadamente, os 18 primeiros meses de vida. É neste estágio que o conhecimento prático é desenvolvido, constituindo-se a sub-estrutura do conhecimento representativo ulterior. Por exemplo, para um bebê, um objeto não tem permanência, ao desaparecer de seu campo visual, não mais existe. A construção do objeto permanente vira quando o bebê tentar achá-lo e encontrá-lo por sua localização espacial. Logo, a construção do objeto permanente vem acompanhada da construção do espaço prático ou sensório-motor, além da construção da sucessão temporal e da causalidade sensório-motora elementar. Ou seja, será construída uma série de estruturas que serão indispensáveis para o pensamento representativo do próximo estágio.

• Estágio da representação pré-operacional (início da linguagem e da função simbólica): desenvolve-se a capacidade de substituir o objeto pela sua representação simbólica. Mas, as ações sensório-motoras não são imediatamente transformadas em operações.

• Estágio das operações concretas: ocorrem operações sobre os objetos concretos e não sobre hipóteses expressadas verbalmente. ''Por exemplo, há as operações de classificação, ordenamento, a construção da idéia de número, operações espaciais e temporais e todas as operações fundamentais da lógica elementar de classes e relações, da matemática elementar, da geometria elementar e até da física elementar" [10].

• Estágio das operações formais ou hipotético-dedutivas: cria-se a possibilidade de raciocinar com hipóteses e não só com objetos. A criança tem a capacidade de construir operações de lógica proposicional, e não simplesmente as operações de classes, relações e números.

Piaget explica agora como estes estágios são formados e quais são os fatores que explicam o desenvolvimento de um conjunto de estruturas para outra. Ele inicia citando quatro fatores principais: a maturação biológica, o papel da experiência, a transmissão social e a equilibração ou auto-regulação. O primeiro alerta é achar que estes estágios são simplesmente reflexos de uma maturação interna do sistema nervoso. Um argumento utilizado pelo autor para fazer entender que a maturação, por si só, não explica o desenvolvimento cognitivo, e o fato de crianças de mesma idade, em sociedades diferentes, apresentarem o mesmo nível de maturação, mas estarem em estágio diferentes. Ou, apresentarem níveis de maturação diferentes, mas estarem no mesmo estágio. O que se observa é que, embora a ordem dos quatro grandes estágios seja constante, em todas as sociedades estudadas, a idade cronológica desses estágios varia bastante. Outro erro é pensar ser a experiência a única responsável pelo desenvolvimento das estruturas cognitivas. Piaget apresenta duas razões contrárias a esta afirmativa. "A primeira razão é a de que alguns conceitos que aparecem no início do estágio das operações concretas são tais que não posso ver como poderiam ser formados a partir da experiência" [10]. Para exemplificar, o autor cita a conservação de substância em contraste com a não conservação do peso e do volume.

Experimentos feitos demonstraram que crianças, até a faixa etária de oito anos, ao manipularem uma bola de massa de modelar transformando-a e um formato de salsicha, respondem afirmativamente, ao serem questionadas, que há mesma quantidade de substância, mas não o mesmo peso ou volume. A resposta esperada, numa visão empirista, é exatamente o contrário. Afinal, nenhum experimento pode mostrar à criança que há a mesma quantidade de substância. De acordo com Piaget [10, grifo nosso]:

Ela pode pesar a bola e isso levará a conservação do peso. Ela pode mergulhar a bola na água e isso levará à conservação de volume. Mas a noção de substância e atingida antes da de peso e de volume. Essa conservação de substância é simplesmente uma necessidade lógica. Agora a criança compreende que quando há uma transformação algo deve ser conservado pois revertendo a transformação pode-se voltar ao ponto de partida e de novo ter a bola. Ela sabe que algo é conservado mas não sabe o quê. Ainda não é o peso, nem o volume; é simplesmente a forma lógica - uma necessidade lógica. Mas parece-me um exemplo de progresso no conhecimento, uma necessidade lógica de algo a ser conservado ainda que a experiência não pode ter levado à essa noção.

Para Piaget [10], a segunda razão contra a experiência ser a única responsável pelo desenvolvimento das estruturas cognitivas e o fato da noção de experiência ser muito equívoca. Há duas espécies de experiências que são psicologicamente muito diferentes: a experiência física e a experiência lógico-matemática. A primeira consiste em agir sobre os objetos e construir algum conhecimento sobre o mesmo. Por exemplo, para descobrir entre dois objetos qual o mais pesado, a criança pesa ambos e encontra a diferença nos próprios objetos. Esta e a experiência no sentido usado pelos empiristas. Na experiência lógico-matemática, o conhecimento não é construído a partir dos objetos, mas mediante as ações efetuadas sobre os objetos. O que não é a mesma coisa. Para exemplificar, o autor conta um caso de um amigo que quando criança - tinha cerca de quatro anos de idade - ficou maravilhado ao descobrir que não importava a forma geométrica que dispunha dez sementes que brincava, sempre encontrava dez ao contar em qualquer sentido. A explicação dada por Piaget é que o seu amigo não descobriu uma propriedade das sementes, descobriu uma propriedade da ação de ordenar. Ou seja:

As sementes não possuem ordem. Foi a sua ação que introduziu um ordenamento em fileira ou circular, ou algum outro tipo de ordem. Ele descobriu que a soma era independente da ordem. A ordem era a ação que ele introduzia entre as sementes. O mesmo princípio aplicava-se a soma. As sementes não possuem soma; eram simplesmente uma pilha. Para fazer uma soma, era necessária uma ação - a operação de colocá-las juntas e contá-las. Ele descobriu que a soma era independente da ordem, em outras palavras, que a ação de pô-las junto era independente da ação de ordená-las. Descobriu uma propriedade da ação e não de uma propriedade das sementes [10, grifo nosso].

Segundo Piaget, esse é o ponto de partida da dedução matemática. O próximo passo é a interiorização dessas ações e a combinação delas sem necessitar de qualquer semente, utilizando simplesmente símbolos. E o início dessa dedução matemática é a experiência lógico-matemática, que não é a experiência no sentido dos empiristas. O terceiro fator que influência na passagem de um estado cognitivo para outro é a transmissão social. Piaget afirma, categoricamente, ser este fator de fundamental importância, mas inócuo se for analisado isoladamente. Pois, se a criança não tiver uma estrutura cognitiva que a capacite entender o que está sendo informado, ela não assimilará a informação. De acordo com Piaget, o quarto e último fator - fator de equilibração - é de extrema importância. Uma razão é devida à necessidade dos três fatores anteriores estarem equilibrados entre si. Outra razão:

É que no ato de conhecer o sujeito é ativo e, consequentemente, defrontar-se-á com uma perturbação externa, e reagirá como fim de compensar e consequentemente tenderá para o equilíbrio. O equilíbrio, definido por compensação ativa, leva à reversibilidade. A reversibilidade operacional é um modelo de um sistema equilibrado, onde a transformação em um sentido é compensada por uma transformação em outro. A equilibração, como eu a entendo, é um processo ativo [10, grifo nosso].

O processo de equilibração pode ser entendido como uma sucessão de níveis de equilíbrio, em que não é possível alcançar um determinado nível a não ser que o equilíbrio tenha sido atingido no nível anterior. Como exemplo, Piaget volta ao experimento da conservação de quantidade de substância e o analisa por outro ângulo. Agora ele procura demonstrar, com o auxílio do conceito de equilibração, como a criança chega a esta conclusão em quatro níveis. De início, ao transformar a bola de massa e um formato de salsicha, o mais provável é que a criança focalize apenas uma dimensão e diga que há mais substância na salsicha pelo fato dela ser mais comprida. Após ser atingido este nível, se continuarmos a alongar a salsicha, em algum momento ela dirá que tem menos substância na mesma por ela estar muito fina. Ou seja, neste momento ela pensa na largura e esquece o comprimento. Deste modo, "[...] chega-se a um segundo nível que se torna mais provável após o primeiro, mas que não é o mais provável no ponto de partida" [10]. Em um próximo nível ela oscilará a sua explicação entre a largura e o comprimento, descobrindo que ambos são relacionados. Ela perceberá que ao alongar a salsicha fica mais fino, ao encurtar fica mais grosso. No último nível, ao descobrir que ambas dimensões estão solidamente relacionadas, ela começará a pensar em termos de transformação e não somente em termos da configuração final. Ela perceberá que quando se aumenta o comprimento diminui-se a largura, e vice-versa, assim, a quantidade de substância sofre uma compensação e não é alterada. Logo:

[...] há uma compensação - compensação que define o equilíbrio no sentido que eu o defini há pouco. Consequentemente temos operações e conservação. Em outras palavras, no curso desses desenvolvimentos encontram-se sempre um processo de auto-regulação que chamo de equilibração e que me parece o fator fundamental na aquisição do conhecimento lógico-matemático [10, grifo nosso].

Deste ponto em diante Piaget abordará o tópico da aprendizagem. O primeiro comentário é a respeito do conceito clássico de aprendizagem baseada no esquema estímulo-resposta. Na opinião do autor, este esquema é incapaz de explicar a aprendizagem cognitiva. Pois, se houve resposta ao estímulo, é por que havia uma estrutura preparada para assimilar este estímulo e produzir a resposta. Não é exagero dizer, deste modo, que o sujeito já sabia a resposta. Então, não houve a aprendizagem. O autor propõe que o esquema estímulo-resposta seja escrito em forma circular, de tal maneira que não haja um sentido único entre os dois. Entre eles deve haver um organismo e sua estrutura. "Uma vez que haja uma estrutura, o estímulo produzirá uma resposta, mas somente por intermédio dessa estrutura" [10]. Para confirmar a sua afirmação, Piaget conta um caso de um cientista do Centro de Estudos Cognitivos de Harvard convencido que o desenvolvimento das idéias de conservação poderia ser indefinidamente acelerado através de aprendizagem do tipo estímulo-resposta. Então o autor convidou-o para ficar um ano em Genebra e comprovar a sua hipótese. Antes de iniciar os experimentos, começou por estabelecer que havia uma correlação muita significativa entre conservação e transitividade3 3 Transitividade de igualdades: se A é igual a B e B é igual a C, então A é igual a C. Transitividade de desigualdades: se A é menos do que B e B é menos do que C, então A é menos do que C. do peso de um objeto, conclusão tirada ao analisar as respostas espontâneas das crianças. Em um de seus experimentos, com crianças de cinco e seis anos de idade, ele fornecia massa de modelar para que elas alterassem a vontade o seu formato e perguntava, em seguida, se o peso foi alterado. As respostas foram afirmativas. Depois ele utilizou uma balança para as crianças verem que, não importava a forma da massa, o peso era idêntico. Assim, conseguiu que elas generalizassem que independentemente do formato da massa de modelar o peso era conservado.

Por outro lado, o mesmo método não teve sucesso para ensinar a transitividade do peso. A explicação dada por Piaget e que neste experimento há duas aprendizagens em jogo: a física e a lógico-matemática. Consegue-se sucesso na primeira apenas observando fatos sobre objetos em uma experiência física, o mesmo não acontece na aprendizagem que envolve a construção de uma estrutura lógica. Afinal, a estrutura lógica, por não ser resultado da experiência física, não pode ser obtida por reforço externo, ela será adquirida apenas com a equilibração interna, por auto-regulação. Para mostrar como e possível acelerar a aprendizagem lógico-matemática, Piaget nos presenteia com o seguinte exemplo da conservação do número no caso da correspondência termo a termo. Ao darmos a uma criança sete fichas azuis e pedirmos-lhe que coloque logo abaixo outras tantas fichas vermelhas, haverá um estágio pré-operacional em que ela colocará uma vermelha para cada azul. Mas se aumentarmos o espaço entre as vermelhas, ela dirá que ha mais vermelhas do que azuis.

Pode-se imaginar uma estrutura análoga, mas em uma situação mais simples, mais elementar, que possibilite que a criança construa a conservação desejada, voltando-se em seguida à atividade anterior. Um exemplo e uma outra atividade realizada por Piaget que consistia dar a criança dois copos, de mesmo formato, e uma grande pilha de contas. A criança tinha que colocar uma conta com uma mão em um copo e ao mesmo tempo uma conta em outro copo com a outra mão. Depois de certo tempo, escondia-se um dos copos. Agora ela colocava uma conta com uma mão em um copo que enxergava e ao mesmo tempo uma conta em outro copo que não podia ver. Ao serem perguntadas se a igualdade havia sido conservada, se havia ainda a mesma quantidade em um como no outro copo, "[...] verificou-se que as crianças bem pequenas, de cerca de quatro anos, não queriam fazer qualquer predição. Elas diziam: "Antes tinha a mesma quantidade, mas agora não sei. Não dá para ver, então não sei". Elas não queriam generalizar. Mas a generalização foi feita a partir da idade de cinco anos e meio" [10]. No caso da atividade das fichas azuis e vermelhas, a generalização foi obtida a partir de sete ou oito anos. A explicação dada por Piaget para esta diferença cronológica nos resultados, entre as duas atividades, está atrelada ao conceito de número. Para este autor, "[... ] o número é uma síntese de inclusão e ordenamento de classe" [10]. Assim, no caso da primeira atividade, esta síntese foi favorecida pelas próprias ações da criança. Nas palavras do autor:

Criou-se uma situação onde havia uma interação de uma mesma ação que continuava e que era, portanto, ordenada e ao mesmo tempo inclusiva. Tinha-se, por assim dizer, uma síntese localizada de inclusão e ordenamento que facilitava a construção de idéia de número nesse caso específico, e então pode-se encontrar, em decorrência, uma influência dessa experiência sobre a outra experiência [10, grifo nosso].

Resumindo, "[... ] a aprendizagem e possível se basearmos a estrutura mais complexa em uma estrutura simples, isto é, quando há uma relação natural de desenvolvimento de estruturas e não simplesmente um reforço externo" [10]. Finalizando a sua comunicação, Piaget considera que alguns sucessos no ensino de estruturas operacionais divulgados por alguns investigadores merecem uma análise mais meticulosa. A primeira dúvida que surge e se estes resultados serão duradouros, pois, quando "[... ] uma estrutura desenvolve-se espontaneamente, uma vez alcançado um estado de equilíbrio, ela e duradoura e continuará através de toda a vida da criança" [10]. E no caso da aprendizagem por reforço externo? Outro questionamento é o aspecto da generalização. A aprendizagem por reforço externo possibilita à criança fazer generalizações ou está ligada apenas àquele experimento? A terceira e última questão é saber qual era o nível operacional do sujeito antes da experiência e que estruturas mais complexas pôde esta aprendizagem alcançar. O autor conclui afirmando que a relação fundamental envolvida em todo desenvolvimento e toda aprendizagem não é a relação de associação, como apregoam os defensores do esquema estímulo-resposta, e sim de assimilação.4 4 De acordo com Ferreiro [6, p. 114, grifo do autor] ao comentar as idéias de Piaget: "[...] a assimilação designa a ação do sujeito sobre o objeto. Um mecanismo antagônico, mas complementar é a acomodação: ela designa a ação de sentido contrário, do objeto sobre o sujeito, a modificação que o sujeito experimenta em virtude do objeto. O que chamamos adaptação é, para Piaget, um ato complexo que resulta do interjogo de mecanismos de acomodação e de assimilação, com doses variáveis de um e outro". A aprendizagem só é possível quando há uma assimilação ativa. "Toda ênfase é colocada na atividade do próprio sujeito, e penso que sem essa atividade não há possível didática ou pedagogia que transforme significativamente o sujeito" [10].

Complementando, Piaget [11] enfatiza três tipos de epistemologias das ciências: a da biologia, da matemática e da física. Afirmou que na matemática a atividade operatória (pensamento) do matemático parece ser a única em jogo, independentemente de todo elemento experimental tomado do objeto. O sujeito-matemático elabora o esquematismo da coordenação de suas ações por meio da formulação das leis mais gerais do universo, graças à aplicação de suas operações aos objetos. Desse modo, a matemática é produto da atividade mental do sujeito. Do ponto de vista da epistemologia do conhecimento da física, Piaget [11] mostra a interdependência entre o sujeito que conhece e o objeto cognoscível gerando os conhecimentos em um intercâmbio direto e externo. A sua hipótese acerca do conhecimento físico admite a existência de dados exteriores que o sujeito só descobre mediante a experiência. Quando os físicos alcançam um certo grau de generalidade, a experiência do sujeito-físico e sua atividade operatória - isto é - de seu pensamento, tendem a confundir-se com os esquemas matemáticos necessários para sua formalização. Assim, a física, mesmo sendo mais realista (ou experimental) que a matemática, alcança, em graus diversos, uma assimilação da realidade experimental aos esquemas lógico-matemáticos construídos pela atividade do sujeito físico. Em outras palavras, são necessárias à construção do conhecimento da física, as atividades dedutivas e experimentais. O conhecimento físico necessita do intercâmbio entre o sujeito e o objeto, ou seja, da experiência do sujeito-físico e sua atividade operatória. Esta atividade operatória dedutiva são os esquemas matemáticos necessários para à formalização da física. Quanto à epistemologia do conhecimento biológico a dedução desempenha um papel muito menor que na física; isso, pois os dados "exteriores" são mais independentes do sujeito. O conhecimento biológico é uma forma de conhecimento que abarca a história de desenvolvimentos, daí que o sujeito-biólogo não se apropria da dedução para elaborar teorias; a dedução sofre severas limitações. O biólogo não pode inferir nada sem a experimentação.

6. A epistemologia piagetiana e o ensino de física

Façamos, neste momento, a ligação de tudo que foi dito. De acordo com os sentidos atribuídos a palavra epistemologia, a epistemologia da física se confunde com a própria filosofia da ciência. Em outras palavras, os debates entre os empiristas e os racionalistas, que vimos anteriormente, basearam-se, principalmente, no estudo histórico da física. A própria crise do "paradigma dominante" foi causada por novas descobertas nesta área. Mas não se iluda o leitor de que a visão empirista-racionalista esteja ausente do meio científico, muito pelo contrário, esta é, ainda, a visão predominante entre os cientistas das chamadas ''ciências duras'' (física, química, matemática e biologia). Com o agravante de tratarem com hostilidade os que pensam de modo diferente. Vejamos o relato de Neves [4, p. 3839, grifo nosso]:

A epistemologia do século XX é taxada de irracionalista, irrealista e perigosa à ciência. Este autor, por exemplo, teve um trabalho de orientação de estudantes (Veroneze et al. 1993) recusado para exposição em uma das edições da Reunião Anual da SBPC por um parecerista que taxou o emprego da epistemologia de Kuhn e Feyerabend no texto como um "irracionalismo inaceitável", uma vez que as teses de Einstein e da cosmologia moderna estavam muito bem estabelecidas nas regras metodológicas das pesquisas atuais. Conjecturar sobre o grau de subjetvidade, de imprecisão e de incertezas de teorias, como relatividade ou a cosmologia moderna, constituíam, para este parecerista, uma prática "perigosa" de questionamento da ciência. O problema desse ato é de que ele não é isolado e, mais ainda, que ele se difunde pelo sistema educacional (o trabalho a ser apresentado era para uma sessão de orientação de estudantes de graduação), perpetuando o status quo de uma tendência realista, positivista, impositiva e dogmática de ver, fazer e ensinar ciência.

Corroborando com o comentário do autor, vários estudos têm demonstrado que a visão epistemológica da grande maioria dos professores é empirista ou racionalista [12-14]. O leitor-professor de física deve estar se perguntando: O que isto tem a ver com as aulas que ministro? A resposta é: tudo. A prática didático-pedagógica do professor é guiada, na maior parte das vezes, inconscientemente, de acordo com a sua concepção de conhecimento. Um professor empirista dissocia a teoria da prática. Faz experimentos ditos ''cruciais'' como se estes fossem a solução das ''concepções errôneas''5 5 Para este tipo de professor as concepções dos alunos não são alternativas e sim erradas. Ou seja, ele não procura entender o porquê do argumento apresentado, simplesmente o descarta. dos alunos. Repete até que os alunos memorizem, pois acreditam que estes sejam "folhas em branco" ansiosas por serem preenchidas. "Transmite" um conhecimento pronto e acabado. Acredita ser capaz de ensinar qualquer coisa a qualquer pessoa aplicando os estímulos e reforços adequados. Consequentemente, a escola formará verdadeiros "analfabetos científicos", sem autonomia, criatividade ou senso crítico. Por outro lado, um professor inatista culpa unicamente o aluno pelo seu fracasso escolar. Mostra que a física progride graças às mentes geniais de certos iluminados, que do nada, descobrem leis científicas que revolucionam o mundo. Mesmo que sem intencionalidade, adota posturas de discriminação para com os índios, negros, pobres, ou qualquer outro grupo social, por achar que não possuem condições genéticas para adquirir a aprendizagem. Deste modo, as consequências na formação do aluno não são muito diferentes das do empirismo. As aulas destes dois tipos de professores caracterizam o método tradicional de ensinar física, segundo Megid [15, p. 17], é um método que tem:

Um ensino calcado na transmissão de informações através de aulas quase sempre expositivas, na ausência de atividades experimentais, na aquisição de conhecimentos desvinculados da realidade. Um ensino voltado primordialmente para a preparação aos exames vestibulares, suportado pelo uso indiscriminado do livro didático ou materiais assemelhados e pela ênfase excessiva na resolução de exercícios puramente memorísticos e algébricos. Um ensino que apresenta a física como uma ciência compartimentada, segmentada, pronta, acabada, imutável.

E qual seria a postura esperada de um professor influenciado pela concepção de conhecimento piagetiana? Este tipo de professor investiga o que o aluno já sabe com a intenção de escolher a melhor prática didático-pedagógica para a sua aprendizagem. Estimula a participação ativa dos alunos na aula através de debates ou de perguntas frequentes, auxiliando-os a saírem de um "nível de menor conhecimento para um nível de maior conhecimento". Utiliza diversos tipos de metodologias didático-pedagógicas, pois tem consciência de que os alunos não aprendem todos da mesma maneira. Sugere atividades experimentais desafiadoras, em grupo, incentivando os alunos a formularem as suas hipóteses, discuti-las, testá-las, reformulá-las, até que estejam prontos para darem as suas explicações causais. Apresenta a física como um produto de uma atividade social sujeita as influências política e econômica, entre outras, enfatizando que não existe um método único na produção do conhecimento científico e que o mesmo é fruto do trabalho árduo de vários cientistas. O aluno em contato com este tipo de ensino terá todas as oportunidades de adquirir responsabilidade, autonomia, solidariedade, criatividade, senso crítico e, acima de tudo, uma aprendizagem efetiva e duradoura, como desejava Piaget.

7. Comentários finais

Perguntamos se precisamos conhecer Piaget para sermos professores de física. A resposta pode ser não se, para nós, não importa o tipo de ensino e de pergunta que podemos fazer sobre os conteúdos da ciência física que ensinamos. Mas, a resposta será sim, se nos preocupamos com a nossa conduta epistemológica em sala de aula. Se os conteúdos de física são vistos como produtos de atividades operatórias complexas de dedução e experimentação e se queremos ir além do empirismo e de um ensino puramente transmissor de conhecimentos, então a teoria piagetiana nos fornecerá argumentos sólidos para a ação docente cotidiana em situação de ensino de física. Estes argumentos são: a) há uma epistemologia do conhecimento científico da física com a qual a epistemologia genética de Piaget colabora quando explicita os marcos dos conhecimentos físicos, ou seja, os marcos da dedução e da experiência na constituição das teorias da física, assim como estabelece as relações entre sujeito e objeto no conhecimento físico; b) há uma epistemologia do conhecimento escolar que dirige e coordena as ações do professor em situação de ensino. Esta epistemologia subsidia as condutas do docente quando ensina a física aos seus alunos.

Considerando que boa parte dos cursos de licenciatura em física apresenta uma discussão muito superficial sobre o conceito de epistemologia, muitos professores desconhecem, ao entrar em sala de aula, as implicações das epistemologias empiristas, inatistas e construtivistas para o processo ensino-aprendizagem. Apesar de a teoria piagetiana do conhecimento não ter cunho pedagógico, entendemos que esta traz elementos muito apropriados para os professores de física apoiar-se na realização de suas práticas. De acordo com o próprio Piaget apud [6, p. 98, grifo nosso]:

O problema da educação interessa-me extremamente, porque tenho a impressão de que há muitíssimo que reformar e que transformar, mas penso que o papel do psicólogo é, antes de mais nada, mostrar os fatos que o pedagogo pode utilizar, e não se pôr em seu lugar para lhe dar conselhos. Corresponde ao pedagogo ver como pode utilizar o que o psicólogo lhe oferece.

O leitor percebeu que não fornecemos "receitas" ou "métodos milagrosos", apenas reflexões para que percebamos que, mesmo a prática docente sem conhecimento epistemológico, é carregada de significado epistêmico. Ou seja, quando desconhecemos o papel das epistemologias, isso não significa que realizamos uma ação docente neutra. Temos, como professores, uma hipótese epistemológica que nos guia em sala de aula e, na maioria das vezes, ela é empirista. Receitas ou métodos para ensinar não existem. O nosso intuito é que estas reflexões provoquem o desejo por mudanças no sistema de ensino, afinal, não é possível acreditarmos que estamos formando cidadãos participantes, democráticos, criativos, solidários, críticos, autônomos, responsáveis e ativos, com um ensino respaldado em um adestramento meramente cognitivo.

A maioria dos alunos de licenciatura em física acredita que, após concluírem o curso, estarão aptos a exercer a docência. No entanto, a profissionalização do professor não finda ao término do curso. Na verdade, aí está dado o ponto de partida que se prolonga ao longo de sua carreira, decorrente de toda a experiência adquirida como aluno, bem como no transcorrer da prática profissional. Entende-se, portanto, que a formação do professor não se conclui ao final de quatro ou cinco anos na universidade. A formação inicial deveria ser avaliada como o primeiro passo rumo à formação contínua, mas, na maioria das vezes, o processo de desenvolvimento do sujeito é interrompido após o término do curso de graduação, não tendo este a continuidade de formação. Talvez essa interrupção corrobore com as dificuldades, preocupações, incertezas, crenças e inseguranças encontradas pelos professores durante seus primeiros anos de sala de aula, refletindo na aprendizagem de seus alunos.

Recebido em 3/9/2007

Revisado em 17/4/2008

Aceito em 19/3/2009

Publicado em 26/6/2009

  • [1] F. Fuller, American Educational Research Journal 6, 207 (1969).
  • [2] M.G. Ramos, in Construtivismo e Ensino de Ciências: Reflexões Epistemológicas e Metodológicas, editado por R. Moraes (EDIPUCRS, Porto Alegre, 2003), p. 13-35.
  • [3] J. Hessen, Teoria do Conhecimento (Armênio Amado, Coimbra, 1980).
  • [4] M.C.D. Neves, Lições da Escuridão ou Revisitando Velhos Fantasmas do Fazer e do Ensinar Ciências (Mercado de Letras, Campinas, 2002).
  • [5] B.S. Santos, Estudos Avançados 2, 46 (1988).
  • [6] E. Ferreiro, Atualidade de Jean Piaget (ArtMed, Porto Alegre, 2001).
  • [7] L. Ferracioli, Caderno Catarinense de Ensino de Física 16, 180 (1999).
  • [8] J. Montangero e D.M. Naville, Piaget ou a Inteligência em Evolução (ArtMed, Porto Alegre, 1998).
  • [9] R. Garcia, O Conhecimento em Construção. Das Formulações de Jean Piaget à Teoria de Sistemas Complexos (ArtMed, Porto Alegre, 2002).
  • [10] J. Piaget, in Reading in Child Behavior and Development, edited by C.S. Lavattelly and F. Stendler (Hartcourt Brace Janovich, New York, 1972). Tradução de Paulo Francisco Slomp, disponível em http://educadi.psico.ufrgs.br/servicos/listas/ ppg-cognitiva/doc00000.doc Acesso em 12/1/ 2007.
  • [11] J. Piaget (org.), Tratado de Lógica e Conocimiento Científico. Epistemologia de la Física (Editorial Paidós, Buenos Aires, 1979), v. 4.
  • [12] F. Becker, A Epistemologia do Professor: O Cotidiano da Escola (Vozes, Petrópolis, 1993).
  • [13] N.T. Massoni, Estudo de Caso Etnográfico Sobre a Contribuição de Diferentes Visões Epistemológicas Contemporâneas na Formação de Professores de Física. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005.
  • [14] J.B.S. Harres, Concepções de Professores sobre a Natureza da Ciência. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1999.
  • [15] J. Megid Neto D. e Pacheco, in Pesquisas em Ensino de Física, organizado por R. Nardi (Escrituras Editora, São Paulo, 1998).
  • 1
    E-mail:
    2
    Emilia Ferreiro, no capítulo 8 do livro
    Atualidade de Jean Piaget, faz um breve resumo do percurso seguido pelo biólogo suíço na construção da epistemologia genética como ciência. A autora mostra os autores que o influenciaram, os primeiros artigos que escreveu, os debates com alguns de seus críticos, aspectos de sua vida pessoal e como a obra piagetiana pode ser organizada em grandes ciclos, divididos de acordo com os objetivos do autor ao realizar as suas pesquisas.
  • 3
    Transitividade de igualdades: se A é igual a B e B é igual a C, então A é igual a C. Transitividade de desigualdades: se A é menos do que B e B é menos do que C, então A é menos do que C.
  • 4
    De acordo com Ferreiro [6, p. 114, grifo do autor] ao comentar as idéias de Piaget: "[...] a assimilação designa a ação do sujeito sobre o objeto. Um mecanismo antagônico, mas complementar é a acomodação: ela designa a ação de sentido contrário, do objeto sobre o sujeito, a modificação que o sujeito experimenta em virtude do objeto. O que chamamos adaptação é, para Piaget, um ato complexo que resulta do interjogo de mecanismos de acomodação e de assimilação, com doses variáveis de um e outro".
  • 5
    Para este tipo de professor as concepções dos alunos não são alternativas e sim erradas. Ou seja, ele não procura entender o porquê do argumento apresentado, simplesmente o descarta.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Revisado
      17 Abr 2008
    • Recebido
      03 Set 2007
    • Aceito
      19 Mar 2009
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