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Pandemia de covid-19: uma análise geopolítica

Resumo

A partir de uma reelaboração crítica das categorias analíticas gramscianas de guerra de posição e de guerra de movimento, em uma perspectiva interescalar, analisam-se as diversas estruturas de poder e como elas se posicionam diante da crise mundial e busca de hegemonia. Tais perspectivas apontam a crise sanitária como uma questão geopolítica e evidenciam as estratégias de instâncias supraestatais (como a Organização Mundial do Comércio, a Organização Mundial da Saúde e a Organização Internacional do Trabalho), de Estados e de grupos econômicos setoriais que expressam as relações de poder, assim como as determinações territoriais que se desenvolvem sobre uma fragmentada sociedade civil, particularmente as camadas mais vulneráveis (povos originários, camponeses e comunidades negras), tendo como centralidade a produção da forma de valor.

Palavras-chave:
Guerra de Posição; Guerra de Movimento; Determinações Territoriais; Relações de Poder

Abstract

From a critical re-elaboration of the Gramsci’s analytical categories of war of position and war of movement, in an inter-scale perspective, the different power structures and how they position themselves in the face of the global health crisis in search of hegemony are analyzed. Such perspectives point to the covid-19 pandemic as a geopolitical issue and highlight how the strategies of supra-state bodies (WTO, WHO, ILO), States and sectoral economic groups materialize as territorial determinations developed over a fragmented civil society, particularly in the most vulnerable strata (indigenous peoples, peasants and black communities). These territorial determinations express a set of power relations for the realization of the form of value.

Keywords:
War of Position; War of Movement; Territorial Determinations; Power Relations

A propagação de contaminação do vírus Sars-Cov-2 se estabeleceu como um elemento no jogo geopolítico mundial quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou situação de pandemia em 12 de março de 2020, e em curto tempo os presidentes de duas grandes potências mundiais (Estados Unidos e França) trataram a saúde global como conflito de guerra. As expressões “a war against the invisible enemy” e “nous sommes en guerre”, de Donald Trump (2020TRUMP, D. Remarks by President Trump in a meeting with supply chain distributors on covid-19. U.S. Embassy & Consulates in Italy, Rome, 29 mar. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/37jXJJD >. Acesso em: 15 fev. 2021.
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) e Emmanuel Macron (2020MACRON, E. Addresse aux français du président de la République Emmanuel Macron. Élysée, Paris, 16 mar. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3boaVyr >. Acesso em: 15 fev. 2021.
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), respectivamente, deram o tom do debate.

A dimensão de conflito de guerra dá ao problema uma magnitude geopolítica, e articulistas estadunidenses apontavam para Trump acionar ou direcionar seu discurso ao artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte (Kempe, 2020KEMPE, F. Why Trump should trigger Nato’s Article 5 vs. covid-19. Atlantic Council, Washington, DC, 14 mar. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2NBCvjr >. Acesso em: 17 fev. 2021.
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), construindo uma linha de unidade dos países atingidos pelo que passou a denominar de “vírus chinês”, gerando ruído e desconforto no campo diplomático mundial. O fato é que esses elementos conduzem a crise sanitária para um tratamento geopolítico, exigindo analisar as estratégias de Estados, entidades supraestatais, grupos econômicos e as relações de poder estabelecidas e, para tal, estabelecemos uma releitura dos conceitos de guerras de posição e movimento1 1 Antonio Gramsci (1982) desenvolveu uma análise de guerra de posição a partir das estratégias de lutas no campo da hegemonia nas sociedades civis ocidentais, e guerra de movimento como elemento explicativo dos processos revolucionários orientais. Compreendemos que os conceitos não podem ser tratados como antinomias geográficas, mas como pares dialéticos e que se manifestam contraditoriamente no interior do processo histórico e que não se vinculam apenas aos movimentos revolucionários, mas também contrarrevolucionários. A compreensão é de que no âmago central os Estados, as estruturas supraestatais, os setores econômicos e a sociedade civil, são elementos categoriais (histórico-materiais) mediadores de uma base conflituosa central: a luta de classes. para analisar os conflitos que emergem em diversas escalas.

Este movimento teórico de Guerras de Posição e Movimento, em suas manifestações hegemônicas e contra-hegemônicas, determinam níveis espaciais escalares (mundial, regional, nacional e setorial) de disputas geopolíticas como desdobramentos provocados pela pandemia do Sars-Cov-2, refletindo processos de dissuasão, intervenção e coerção. A guerra de posição enquanto uma estratégia para garantir ou elevar o protagonismo de governança política e econômica e de movimento nas investidas concretas de apropriação do valor, tendo que quanto maior proximidade de sua gênese (mais valia e renda da terra), de forma mais violenta ela se materializa.

Na escala mundial as instituições supraestatais, de um lado a OMS, embora sem poder de chancela, tem consolidado papel importante e rompendo com impedimentos de ajuda humanitária. Por outro lado, a Organização Mundial do Comércio (OMC) se coloca, de forma mais secundária, frente aos posicionamentos de blocos e Estados na imposição de tarifas e controles de mercadorias e imigração. Neste processo, ao menos nos últimos meses, a única linha de desobstrução de fluxos se refere a suprimentos médicos e alimentos, este último sob forte apelo da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) na eliminação de restrições de comércio e aumento da produção agrícola (Covid-19: using…, 2020COVID-19: USING economic stimulus to reduce the long-term hunger impact. FAO, Rome, 30 abr. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2NFbfQP >. Acesso em: 28 abr. 2020.
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). Esse cenário, de controversa importância das agências, denota o comportamento dos indicadores de pandemia em países que observaram e não observaram as diretrizes de controle apresentadas pelo diretor da OMS, o biólogo etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, principalmente Brasil, Estados Unidos, Itália e Espanha (Gráfico 1).

Gráfico 1
Óbitos por covid-19 em países selecionados, 2020

É factível compreender que o mundo se depara com uma estrutura multipolar de poder, mas tem sido notória a dualidade, ainda que a China, estrategicamente, se recuse a estar nessa posição e sinalize por uma perspectiva multipolar. Este processo se evidencia no caso da crise da covid-19, não apenas por bravatas e insinuações acerca da origem do Sars-Cov-2, mas por dois elementos centrais: a estrutura de mercados e a posição de liderança no mundo.

Na estrutura de mercados há uma trégua no conflito comercial, perdem força as políticas antidumping, a exigência de abertura de mercados e as estratégias de repatriação de capitais/investimentos impostas pelos Estados Unidos (Gruszczynski; Lawrence, 2019GRUSZCZYNSKI, L.; LAWRENCE, J. Trump, international trade and populismo. In: NIJMAN, J.; WERNER, W. (Ed.). Netherlands yearbook of international law 2018. Fort Lauderdale: Springer, 2019. p. 19-44.). O acordo prevê a ampliação das compras de produtos e a redução das tarifas, principalmente porque a China tem um poder global no mercado de princípios ativos para medicamentos farmacêuticos. Em 2018, representava 95% das importações de ibuprofeno dos Estados Unidos, 91% de hidrocortisona, 40-45% de penicilina e 40% de heparina (Palmer; Bermingham, 2019PALMER, D.; BERMINGHAM, F. U.S. policymakers worry about China “weaponizing” drug exports. Politico, Arlington, 20 dez. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://politi.co/2QXHidx >. Acesso em: 17 fev. 2021.
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).

Nos Gráficos 2 e 3 e no Mapa 1 demonstra-se claramente as posições de importação da China, suas estratégias preferenciais (Alemanha, França e Irlanda, novos mercados) e a redução de dependência de mercados estadunidenses no período de 2010-2019 para produtos farmacêuticos e suprimentos médicos, o que explica os conflitos comerciais e a estratégias de Trump de repatriação de empresas e capitais estadunidenses. No âmbito das exportações e importações totais, com restrições, a China reduziu a participação dos Estados Unidos de 19% para 16%, e de 8,9% para 5,9%, respectivamente, no período em análise. Os Gráficos 3 e 4 e o Mapa 2 apresentam as exportações chinesas. Observa-se que as curvas de fármacos apresentam uma trajetória de crescimento significativo no período, reforçando a dependência estadunidense de princípios ativos do mercado chinês. No Gráfico 5 as exportações de equipamentos e suprimentos apresentam uma inflexão negativa e redução da curva de crescimento.

Gráfico 2
Principais origens das importações chinesas de produtos farmacêuticos, 2010-2019

Gráfico 3
Principais origens das importações chinesas de equipamentos e suprimentos médicos em geral, 2010-2019

Mapa 1
Vinte principais origens das importações chinesas de produtos farmacêuticos

Gráfico 4
Principais destinos das exportações chinesas de produtos farmacêuticos, 2010-2019

Mapa 2
Principais destinos das exportações chinesas de produtos farmacêuticos, 2019

Gráfico 5
Principais destinos das exportações chinesas de equipamentos e suprimentos médicos em geral, 2010-2019

A questão pós-crise se assenta em seu próprio desenvolvimento e os Estados Unidos manterá sua estratégia protecionista e endógena frente às necessárias políticas de paz e de desenvolvimento no mundo, diante da redução de contingentes de médicos e pessoal de saúde, de suprimentos químicos e farmacêuticos em vários países, sobretudo na Europa, e as previsões de redução do crescimento econômico mundial, por exemplo (Trade…, 2020TRADE and covid-19. The World Bank, Washington, DC, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3qHCI32 >. Acesso em: 29 abr. 2020.
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). A questão é saber se a posição de ajuda humanitária chinesa poderá se estender no âmbito econômico e produzirá um novo Plano Marshall, lastreado pela China, e reordenar a supremacia mundial. O domínio chinês sobre as cadeias de suprimentos médicos vem se comprovando com o número de equipamentos destinados aos países europeus e ao mundo, inclusive aos Estados Unidos. Segundo Schmidhuber (2020SCHMIDHUBER, J. Coronavirus geopolitics: germs and the rise of empires. Supsi, Lugano, 3 abr. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3bIMkVd >. Acesso em: 22 fev. 2021.
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), o Plano Marshall reuniu investimentos da ordem de US$ 130 bilhões (valores atuais), e desencadeou até 0,35% do crescimento adicional do produto interno bruto. Um plano médico Marshall demandaria pequena fração da iniciativa em andamento (Belt and Road) que atinge volumes de US$ 10 bilhões anuais e, para o presidente Xi Jinping, se trata da maior influência na governança econômica internacional a partir de uma iniciativa regional, específica de comércio e investimento (Huang, 2016HUANG, Y. Understanding China’s belt & road initiative: motivation, framework and assessment. China Economic Review, Amsterdam, v. 40, p. 314-321, 2016.). Esse quadro precisa ser analisado diante de uma contração do produto interno bruto nos Estados Unidos entre -10% e -25% e para a área do euro entre -15% e -22%, considerando os problemas a serem enfrentados na América Latina, África e Oriente Médio (European Commission, 2020EUROPEAN COMMISSION. Communication from the Commission: amendment to the Temporary Framework for State aid measures to support the economy in the current covid-19 outbreak. Brussels, 20 mar. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3pu5ovc >. Acesso em: 17 fev. 2021.
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). Neste sentido os Mapas 3 a 6 demonstram os fluxos de suprimentos médicos de covid-19 em abril de 2020, exportações e saldo comercial chineses (Mapas 3 e 4) e estadunidenses (Mapas 5 e 6). Cabendo-nos refletir sobre a desconcentração do fluxo e o saldo superavitário da China em comparação com os Estados Unidos.

Mapa 3
Principais 20 destinos das exportações chinesas de suprimentos relacionados a covid-19, abril/2020

Mapa 4
Saldo comercial de 20 países de suprimentos chineses relacionados a covid-19, abril/2020

Mapa 5
Principais 20 destinos das exportações estadunidenses de suprimentos relacionados a covid-19, abril/2020

Mapa 6
Saldo comercial de 20 países de suprimentos estadunidenses relacionados a covid-19, abril/2020

O Gráfico 6 demonstra os principais fluxos para países com maiores índices de contaminação e observa-se neste sentido a importância que a China assume nesse cenário.

Gráfico 6
Exportações chinesas de suprimentos relacionados a covid-19, países selecionados, outubro/2019-maio/2020 (mil US$)

No Gráfico 7 apresentamos a posição de contaminação de covid-19 nos principais mercados chineses de suprimentos. Observa-se que Brasil e Estados Unidos são os únicos países que apresentam trajetória crescente de óbitos, frente às trajetórias estabilizadas dos demais países.

Gráfico 7
Óbitos por covid-19 em mercados de exportação chineses e suprimentos, países selecionados, 2020

Ainda no plano regional, na zona do euro, com os indicadores de retração econômica e da questão do Brexit, com nova prorrogação para 31/12/2020, tem seu quadro pouco avaliado desde as questões de fronteira entre Irlanda (independente) e Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) que elimina o backstop até o pagamento de 30 bilhões de libras à União Europeia. Outro aspecto são as políticas de implementação de controle de endemias, que deverão ser revistas nos acordos internos de cooperação do bloco, uma vez que as respostas da comunidade para a crise covid-19 foram insatisfatórias. A demanda de harmonização de centros de pesquisa, de investimentos, controle dos sistemas médico-hospitalares e sanitários criam um novo ponto de controle e exigências mútuas e que reverberam sobre o acordo e se expande ou não o poder da União Europeia sobre os Estados membros (Flear, 2018FLEAR, M. Governing public health: EU law, regulation and biopolitics. Oxford: Hart Publishing, 2018.; Hervey; McHale, 2004HERVEY, T. K.; MCHALE, J. V. Health law and the European Union. New York: Cambridge University Press, 2004. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3jY8jLm >. Acesso em: 23 abr. 2020.
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; Ruijter, 2019RUIJTER, A. EU health law and policy: the expansion of EU power in public health and health care. Oxford: Oxford Studies in European Law, 2019.). Outro ponto se refere ao fechamento das fronteiras, o que gera problemas principalmente na agricultura, com os trabalhadores temporários do leste europeu que reduzem os custos de produção e são responsáveis por importantes transferências unilaterais de balanço de pagamentos para os seus países de origem. Evidencia-se que estes processos apresentarão rebatimentos desde o ponto de vista sanitário às questões relativas às ajudas econômicas aos países que apresentam e apresentarão retrações econômicas significativas, uma vez que o coronabonds se coloca como um ponto central na mutuação dos custos de recuperação econômica, ameaçando o futuro do bloco (Johnson; Fleming; Chazan, 2020JOHNSON, M.; FLEMING, S.; CHAZAN, G. Coronavirus: is Europe losing Italy? Financial Times, London, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://on.ft.com/3bjmOW4 >. Acesso em: 26 abr. 2020.
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).

Oriente médio e África apresentam também problemáticas muito particulares. O primeiro se constitui em um dos maiores importadores de alimentos do mundo e com o maior número de refugiados. No continente africano, particularmente na África oriental, a insegurança alimentar é crônica e pressões da pandemia sobre os alimentos serão consideráveis (Zurayk, 2020ZURAYK, R. Pandemic and food security: a view from the Global South. Journal of Agriculture, Food Systems, and Community Development, Ithaca, v. 9, n. 3, p. 17-21, 2020.). Necessário ainda analisar os regimes autocráticos que operam suas estratégias de controle social a partir da crise de saúde mundial. Embora essa tendência não seja uma exclusividade destas regiões, as situações de conflito têm demarcado as dificuldades da OMS e outros agentes de ajuda humanitária na intervenção e controle da pandemia. Estes processos de controle, informação e impedimento de atendimento por questões econômicas e políticas, e/ou de acesso, atingem os direitos humanos.

A covid-19 na necessária imposição de lockdown impõe ao Estado obrigações centrais que ultrapassam o direito à saúde de maneira mais específica e atingem questões relativas ao acesso à água, à alimentação e às condições mínimas de reprodução social (Glynn, 2020GLYNN, S. The geopolitics of covid-19. Green Left, Broadway, 21 mar. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Ztplrn >. Acesso em: 17 fev. 2021.
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). Neste campo parece-nos ter uma inversão da forma como a crise sanitária atinge as questões geopolíticas, mas como a geopolítica resulta em questões centrais de saúde pública, considerando que em zonas de guerra e nos campos de refugiados os problemas de nutrição, saúde e baixa imunidade e condições indignas de vida atingem um número significativo de pessoas.

O Heyva Sor, o Crescente Vermelho Curdo, apresentou apelo à OMS para controle da propagação da covid-19 em Sheba, ao norte da Síria. Um conflito que envolve cerca de 200 mil pessoas que se encontram em meio ao controle do governo sírio e grupos jihadistas armados pela Turquia. Nestas áreas e em áreas curdas a OMS tem rompido os bloqueios e conseguido atingir parcialmente as comunidades. No campo de refugiados curdos-turcos de Maxmur, na fronteira com o Iraque, são 12 mil pessoas em risco de contágio. No Irã o embargo dos Estados Unidos impede a chegada de ajuda humanitária, e as ofensivas de guerra só não foram estabelecidas pois colocariam o governo Trump em cheque com a opinião pública mundial. De outra parte, a contenção de movimentos sociais na Argélia, Iraque, Líbano que sofrem significativa repressão sob a justificativa de controle sanitário (Zurayk, 2020ZURAYK, R. Pandemic and food security: a view from the Global South. Journal of Agriculture, Food Systems, and Community Development, Ithaca, v. 9, n. 3, p. 17-21, 2020.).

No continente africano as questões étnicas, religiosas e o mosaico do recorte espacial colonial aumentam as contaminações que se associam a outros problemas de saúde, tais como ebola, cólera e aids. Esta situação em termos de abastecimento e demanda alimentar e renda fez com que o Banco Mundial emitisse uma nota sobre o continente, considerando o nível de dependência do mercado mundial de alimentos. O fato é que Líbia, Quênia, Marrocos, Nigéria, Mauritânia e Egito apresentam situações de maior contaminação e ausência de equipamentos de saúde e de proteção individual. Na questão alimentar, ganham destaque especialmente a Argélia, o Marrocos, a Líbia, a Nigéria e a Tunísia. Nesses países, os conflitos internos impedem a circulação de alimentos e as facções étnicas, religiosas e políticas consolidam processos de saques às agências de ajuda humanitária. Os apelos de paz, de liberação de fronteiras, de articulação de cadeias de produção e distribuição emitidos aos Estados apresentam ainda reduzida ressonância. Dados do comércio mundial indicam que a participação de todos os países africanos no mercado mundial de exportações manteve a taxa anual de 2,35%, sendo que mais de 50% de suas exportações são produtos minerais. Nas importações a participação reduziu de 3,04% para 2,75 (2015-2019), denotando a posição marginal do continente no cenário internacional e não se coloca em situação de maior gravidade frente às estratégias multilaterais da China, particularmente na consolidação belt and road initiative. Na Tabela 1 demonstra-se os principais produtos importados pelo continente africano e verifica-se que aproximadamente 50% das importações são destinadas a produtos e equipamentos aos setores de extração mineral, ou seja, importações que ampliam sua relação de dependência à produção primária. Os alimentos e fármacos ocupam a 6ª e 7ª posição, na demanda de equipamentos médicos a 11ª posição, o que denota as fragilidades dos países na área de saúde e os mecanismos de extração de valor, considerando a trajetória de deterioração dos termos de troca.

Tabela 1
Principais produtos importados pelos países africanos, 2015-2019 (mil US$)

A África exige considerar alguns aspectos: o primeiro se refere ao processo de contaminação que se estabeleceu de forma retardatária no continente. Outro diz respeito à questão de testes de covid-19, a dinâmica de urbanização e circulação de pessoas, somando-se ainda a dificuldade de obtenção de dados precisos em relação à propagação da Sars-Cov-2 e de óbitos da covid-19. Por sua vez, os indicadores apontam para curvas de crescimento. No Gráfico 8 apresenta-se a trajetória de contágio nos sete países mais populosos.

Gráfico 8
Óbitos por covid-19 nos países mais populosos, África, janeiro-maio/2020

Nos últimos anos se observa a presença da China em projetos de desenvolvimento coadunados com ações de paz, de ajuda humanitária, sobretudo no eixo da Rota, a partir de doações de alimentos, consolidação de vias de comunicação e transporte, de hospitais e agricultura. As Gongos (Government Sponsored Non-Governmental Organizations), associações humanitárias vinculadas ao Estado chinês, atuam com grupos de médicos e distribuição de medicamentos e combate ao ebola (em 45 países). Em 2018 a China criou um fundo humanitário e aplicou 18 milhões de dólares em 2019. Os focos foram Ruanda, Guiné-Bissau, Nigéria, e o G5 de Sahel (Burkina Faso, Chad, Mali, Mauritânia, e Níger) (Piveteau, 2019PIVETEAU, A. What is the reality of Chinese humanitarian aid in Africa? Défis Humanitaries, [s. l.], 30 out. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3bgysRv >. Acesso em: 30 abr. 2020.
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), o que significa dizer ainda que a covid-19 possa lançar maiores atenções às estratégias de posição da China na África. Assim, a guerra de posição chinesa se revela na conquista gradual de espaços cujo embate pelo poder hegemônico se estabelece em várias frentes e espacialidades.

O continente americano demanda uma análise pontual entre Estados Unidos, Canadá e a América Latina. O processo está articulado às trocas comerciais e, principalmente, as províncias canadenses que fazem fronteira com os Estados Unidos. A economia desse país deve apresentar uma redução da ordem de 20% e parte das províncias canadenses estabelecem uma estratégia comercial N-S, e não L-O (Predicting…, 2020PREDICTING the post-pandemic recovery. Deloitte, New York, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3bdxzct >. Acesso em: 17 fev. 2021.
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) e o choque de renda-consumo será um dos sérios efeitos da pandemia, associando à preocupação com as políticas protecionistas do governo Trump, que não miraram o país, mas demandam uma avaliação do mercado. Um ponto pendente nesse processo é o novo acordo entre os Estados Unidos, México e Canadá, USMCA, que substitui o Nafta, embora suspensas irão exigir políticas internas de ajustes (McGregor, 2020MCGREGOR, J. Revised Nafta will not take effect on June 1, as Trump had hoped. CBC, Toronto, 31 mar. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2LYLdaP >. Acesso em: 17 fev. 2021.
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).

A América Latina se depara com a resistência dos Estados na determinação de políticas na distribuição de renda, na segurança alimentar e na saúde pública. A onda neoliberal que varreu a região nos últimos anos, deteriorando as estruturas públicas e as estratégias de desenvolvimento endógeno simplesmente tornou estas economias mais vulneráveis, reafirmando a hegemonia dos Estados Unidos na região. Estes países dependem do mercado mundial de commodities para manter suas reservas internacionais e podem sofrer significativo revés se ocorrer um ciclo de protecionismos e a ruptura da cadeia mundial de suprimentos. Estes dois movimentos poderão produzir novo estágio de deterioração dos termos de intercâmbio. Imperativo destacar as estratégias geopolíticas de bloqueios à Cuba e Venezuela. Cuba, historicamente, faz estes enfrentamentos, mas a projeção que a medicina de seu país tem no cenário mundial e das ações humanitárias são fatores de desgaste político às imposições estadunidenses (Covid-19: US…, 2020COVID-19: US criticises South Africa for accepting Cuban doctors. Vanguard, Apapa Lagos, 30 abr. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3prYh6h >. Acesso em: 17 fev. 2021.
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).

A Venezuela responde por questões internas e externas fomentadas por ingerência dos Estados Unidos. A superprodução e redução dos preços do petróleo, protagonizada pela Arábia Saudita, trouxe situação de insolvência ao país. Nicolas Maduro solicitou ajuda ao Fundo Monetário Internacional, que negou alegando que Juan Guaidó foi declarado presidente por Washington. Mesmo assim Maduro estabeleceu políticas de controle interno (isolamento social) e de ajuda social em todo o país. A OMS, por sua vez, quebrou o bloqueio destinando testes e suprimentos de proteção. Fato a ser pontuado é que países latino-americanos (Argentina, Paraguai e Venezuela) estabeleceram medidas de bloqueio de fronteiras com o Brasil, que não atende ao organismo internacional.

O tratamento da geopolítica em escala “nacional” se fundamenta na concepção de que o poder não é uma prerrogativa de Estado, mesmo diante da capacidade de intervir e estabelecer o monopólio da força, consideramos necessário refletir sobre a sociedade civil suas forças políticas e sociais no apoio a governos ou contraposição aos mesmos, e é nesse movimento dialético que reconhecemos as lógicas geopolíticas intraestatais, pois nessa escala é que se planteia a guerra de movimento.

A análise tratará dos regimes, das desigualdades sociais e regionais, da especialização produtiva, do federalismo e das medidas de saúde pública de contenção. No que tange aos regimes, já foram apontadas as formas de controle que o Estado tem utilizado para conter as lutas políticas, os movimentos sociais, que buscam romper com governos antidemocráticos e ditatoriais, ainda que sua chegada ao poder se realizou por sistemas eleitorais. A dimensão democrática não se restringe ao plebiscito, mas incorpora neste processo as formas de proteção no âmbito dos interesses da sociedade, do desenvolvimento social e das formas de resistência às políticas ultraliberais de financeirização, desnacionalização, desconstituição de direitos sociais e trabalhistas entre outros, visto que a imposição destes modelos determina o aumento da exclusão social, da pobreza e considerados como antidemocráticos.

Os estudos da United Kingdom’s Economist Intelligence Unit indicam que em 2019 o índice de democracia apresenta o pior resultado desde 2006, quando foram criados os indicadores (Democracy…, 2020DEMOCRACY index 2019: in sickness and in health? The Economist Intelligence Unit, London, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3u5HzNz >. Acesso em: 28 abr. 2020.
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). Os dados apontam para a América Latina e a África Subsaariana como as regiões com maiores problemas aos princípios democráticos. Neste sentido, a crise sanitária mundial tem sido um instrumento de controle, manipulação e forma de obscurecer não apenas a situação de pandemia vivenciada, mas de revelar a fragilidade dos sistemas de saúde, dos investimentos, dos processos de privatização e desmantelamento dos serviços públicos. Casos nessa direção estão nos Estados Unidos, mediados por interesses das corporações e eleitorais. Trump tem buscado romper com o Affordable Care Act (Obamacare…, 2019OBAMACARE: has Trump managed to kill off Affordable Care Act? BBC, [s. l.], 29 mar. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://bbc.in/3bjnQBq >. Acesso em: 1º maio 2020.
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) e desconsiderou e/ou negligenciou as medidas preventivas da OMS, juntamente com outros dirigentes do continente (Brasil, Equador) com os objetivos de evitar que o Estado se responsabilizasse pelas condições mínimas de políticas sociais e de renda, de obscurecer as crises econômicas e a reduzida capacidade de estabelecer políticas de crescimento da economia, concorrendo com a fragilização dos Direitos Humanos.

As desigualdades sociais e regionais ganham evidência, pois os indicadores de contágio e óbito denotam a dimensão de classe e renda, inclusive étnica, evidenciando que negros (Taylor, 2020TAYLOR, K.-I. The black plague: public officials lament the way that the coronavirus is engulfing black communities. The New Yorker, New York, 16 abr. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3uoKwJt >. Acesso em: 1º maio 2020.
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) e indígenas estão colocados à margem de todos os sistemas de amparo social. Na mesma direção as diferenças culturais que emergem dada a ausência de instituições de assistência social, educação e orientação à saúde.

Do ponto de vista setorial a especialização produtiva tem se apresentado como elemento importante em meio à pandemia. Como demonstrado no caso da África, as relações de dependência e subordinação econômica estabelecem um patamar de entrada no jogo geoeconômico e geopolítico mundial de forma subordinada em uma lógica de Divisão Territorial do Trabalho, demarcando as áreas de denominação e de imposição de modelos e estratégias produtivas. Este mecanismo não apenas determina as deteriorações de intercâmbios, mas também denota a fragilidade de produção alimentar, colocando em risco as questões de segurança e soberania alimentar. O sistema de grandes cadeias de suprimentos apresentou fragilidades com o impedimento dos trabalhadores estarem nas indústrias (circuitos longos de comercialização), e desníveis de distribuição e alocação de insumos em todos os setores da economia (bens de consumo duráveis e não duráveis) (Deaton; Deaton, 2020DEATON, B. J.; DEATON, B. J. Food security and Canada’s agricultural system challenged by covid-19. Canadian Journal of Agricultural Economics, Hoboken, v. 68, n. 2, p. 143-149, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3qyQIvZ >. Acesso em: 28 abr. 2020.
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). A especialização produtiva coloca em risco a diversidade produtiva e autonomia dos Estados no controle da produção, distribuição e consumo, o que denota a fragilidade de um sistema que se processa em concentração e centralização econômica.

Assim, as questões relativas às medidas de saúde pública de contenção se vinculam e se contrapõem às ações de Estado em sua relação à sociedade civil, e reverberam do ponto de vista das diferenciações espaciais e das capacidades de disputas socioespaciais que podem ser estabelecidas e deflagradas. Neste processo a covid-1917 17 Nosso cuidado neste ponto é tomar como referência que a covid-19 não é determinante, mas uma determinação sócio-histórica, ou seja, o surto mundial de covid-19 não caracteriza o vírus como sujeito, mas como determinação das relações e formas de intercâmbio humano com a natureza e consigo mesmo. Trata-se de uma tênue relação entre o mundo natural orgânico e inorgânico e a natureza humana em sua generecidade que por processos de mediação/trabalho constitui a hominização e humanização do homem e que são ontologicamente inseparáveis. é uma determinação sócio-histórica da imbricação metabólica do homem. Significa dizer que a crise sanitária impulsiona e contraditoriamente cria impedimentos para enfrentamentos concretos de disputa, considerando o seu nível de letalidade e a incerteza das respostas imunológicas de cada ser humano. Essa concretude coloca como imperativas as políticas de isolamento social, rastreamento de contágio, testagem, recuperação de infraestrutura e suprimentos médicos para pacientes e profissionais de saúde e comunidades vulneráveis, garantia e permanência de atendimento, gerenciamento e controle social dos sistema de saúde, banco de alimentos, programas de nutrição e de saúde mental, de aumento de capacidade imunológica, manutenção de serviços e equipamentos sociais públicos (escola e merenda escolar) e integração social. Todos elementos fundamentais e estão na órbita do Estado, um campo de disputa da sociedade civil e interferem diretamente na localização e espacialização da pandemia e de seus efeitos deletérios. Este é um jogo da geopolítica de uma escala interna aos Estados, geopolítica dos interesses intraclasses e na disputa com os movimentos sociais e a sociedade civil em geral por um projeto de Estado.

Em uma outra dimensão de análise, setorial, este jogo geopolítico também se realiza nas questões médico-hospitalar e de suprimentos, de segurança pública, de turismo, entre outras. Especificamente no âmbito setorial optamos pela questão alimentar por considerarmos o cerne da condição de reprodução social humana e por nos permitir refletir, conjuntamente, a questão da guerra de posição e guerra de movimento em um processo analítico escalar.

Na Tabela 2 estão apresentados os saldos comerciais dos continentes, considerando todos os produtos e alimentos para o período de 2015 a 2019. Depreende-se a significativa fragilidade comercial da África, sua dependência de mercados de alimentos, a posição deficitária de toda a sua economia, particularmente na produção alimentar diante do déficit apresentado em decorrência dos elevados graus de miséria, seca, guerras civis e conflitos étnico-territoriais, que são em verdade os resultados deletérios da colonização e espoliação a que vem sendo submetida.

Tabela 2
Saldo da balança comercial (t. produtos e alimentos) por continente, 2015-2019 (mil US$)

Em um quadro geral podemos afirmar que a América Latina não é muito diferente, como toda economia dependente e marginal tem posição deficitária em produtos de maior valor agregado e superavitária em alimentos. O continente asiático apresenta elevado superávit em alimentos comercial em todos os produtos e déficit na produção alimentar, mas cabendo destacar que o déficit de seus fluxos comerciais de alimentos representou em 2019 apenas 6,1% de seu superávit comercial total. Enquanto a América Latina, além de uma posição de instabilidade no último ano da série, o déficit na balança comercial total atinge aproximadamente 1/4 de seu superávit. Ressalta-se ainda que parte significativa desse superávit está concentrada em Brasil, Argentina e Uruguai.

A Europa, em que pese toda a polêmica relativa aos subsídios da Política Agrícola Comum, após esta crise sanitária, dificilmente abandonará sua posição de segurança e soberania alimentar, principalmente ao levarmos em conta o quadro já apresentado de enfraquecimento da OMC, sobretudo pelos posicionamentos de Trump no mercado mundial. Neste caso, o grupo Nafta, no qual os maiores déficits são relativos à posição dos Estados Unidos, dada sua capacidade de emissão de papel moeda, como salientado, tem apresentado mudança estratégica na busca de repatriação de capitais e empresas e implementado políticas protecionistas. Importante ainda mencionar que, embora a dívida estadunidense seja considerável, os dados apresentados referem-se apenas a resultados comerciais que são significativamente alterados quando agregados o conjunto de elementos do balanço de pagamentos (juros, serviços, royalties, transportes, lucros, entre outros) vinculados à lógica financeira na qual os Estados Unidos ainda apresentam significativa hegemonia. Por último, observa-se a Oceania, que se trata de um mercado mais reduzido e que consolidou um equilíbrio em sua balança comercial nos últimos anos. Como produtores de alimentos, têm ainda como trunfo (Nova Zelândia e Austrália compõem o Grupo Cairns) os acordos comerciais prioritários com o Japão, Europa, Estados Unidos da América e Canadá.

Hart et al. (2020HART, C. E. et al. The impact of covid-19 on Iowa’s corn, soybean, ethanol, pork, and beef sectors. Center for Agricultural and Rural Development, Ames, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3qvkVff >. Acesso em: 28 abr. 2020.
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), ao analisarem o setor de produção de alimentos em Iowa nos Estados Unidos, o segundo estado maior produtor de carnes e grãos do país, identificou que o isolamento social produziu o fechamento das indústrias de processamento e que a dependência de alimentos do mercado externo deve ser reduzida. Pontualmente, as produções de commodities já apresentavam problemas sérios de rentabilidade e de custos. A queda dos preços do petróleo tornou inviável a produção de etanol e seus subprodutos; os custos de grãos destiladores (DDG), utilizados na produção animal, têm aumentado, repercutindo nos preços de ração, farelo e milho, que são acompanhados da redução da demanda mundial e regional.

Zurayk (2020ZURAYK, R. Pandemic and food security: a view from the Global South. Journal of Agriculture, Food Systems, and Community Development, Ithaca, v. 9, n. 3, p. 17-21, 2020.) aponta que a pandemia na área de alimentos produzirá os efeitos na disponibilidade (produção, circulação e restrições comerciais que poderão ser impostas pelos Estado), acesso (redução da demanda em decorrência da renda, emprego e o empobrecimento das sociedades), utilização (alteração no padrão de consumo, nas dietas alimentares, consumo industrial e obesidade) e outros relativos à estabilidade política (conflitos mundiais, preços de petróleo, secas, pragas). Nos casos de conflitos podemos citar o contrabando de arroz na África (Nigéria), a queda da produção de flores na Etiópia que ao longo dos anos se constituiu em uma disputa destes setores por água e que a redução da demanda provocou o desemprego e a fome de milhares de pessoas vinculadas ao mercado exportador, principalmente mulheres. Esse processo de especialização produtiva causa homogeneização das paisagens rurais, reduz a diversidade ecológica e produtiva e amplia a vulnerabilidade das populações (Souza; Cabero Diegues, 2012SOUZA, J. G.; CABERO DIEGUES, V. Por uma desglobalização da produção alimentar: commoditização da agricultura e diversidade produtiva: uma análise de Espanha. GEOgraphia, Niterói, v. 14, p. 63-81, 2012.).

Esta vinculação, ou integração produtiva a mercados externos, tem produzido redução na renda das pequenas famílias rurais camponesas da ordem de 20% a 30%, ou seja, o agronegócio produz a concentração e aumento da pobreza rural. Todos estes processos tendem ao agravamento se os Estados produzirem uma mudança em suas políticas de proteção, de segurança e soberania alimentar, voltando-se para dentro, alterando o sistema de governança internacional.

Neste ponto as formulações de Gramsci (1982GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.) acerca de guerra de posição e de movimento ganham corpo, sobretudo nos países periféricos. É preciso considerar que estas guerras ocorrem tanto na sociedade civil como na política. O autor indica que a hegemonia se estabelece do consenso espontâneo, que é consolidado pelo grupo fundamental dominante à vida social, e buscam imagens de prestígio, de confiança em decorrência de valorar sua posição e sua função no mundo da produção,19 19 Neste sentido se pode entender os investimentos das propagandas do setor e sua estratégia de vincular a pequena produção (camponesa) à produção em geral de commodities (“O agro é pop”). bem como o aparato de coerção estatal, que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos. Por sua vez, nos países periféricos, grupos paraestatais ou milícias impõem o medo e a barbárie aos que não “consentem” nem ativa nem passivamente às lógicas de espoliação, e que atuam nos momentos de crise no comando e na realização de ações violentas, como as instauradas no Brasil e na Bolívia, por exemplo, guerras contrarrevolucionárias de movimento.

Dessa forma, os setores do agronegócio têm procurado estabelecer estratégias de subordinação produtiva e comercial de pequenos agricultores por meio da territorialização do monopólio (Oliveira, 2012OLIVEIRA, A. U. A mundialização da agricultura brasileira. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE GEOCRÍTICA, 12., 2012, Bogotá. Anais… Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2012.). Atuam sobre as terras comunais com estratégias produtivas e de cooptação, mas de forma específica grilagem na falsificação de títulos de propriedade e perseguição às comunidades rurais e indígenas. De forma menos ostensiva, estes setores sempre realizaram massacres e ataques às populações, porém, nos últimos anos, com o avanço dos setores conservadores e suas políticas neoliberais agravaram-se os conflitos fundiários e as disputas pelos bens comuns (água, preservação ambiental e saúde coletiva). No Brasil vive-se claramente não apenas uma guerra de posição, mas uma guerra de movimento, em campo aberto, produzindo o assassinato de camponeses, indígenas e quilombolas, a contaminação deliberada e a ausência de assistência médica, sobretudo para os indígenas em um claro projeto etnocida. O número de assassinatos de lideranças de povos originários, camponeses, inclusive mulheres, cresceu vertiginosamente desde o ano de 2016 e se acentua nos últimos 12 meses. A pandemia e o isolamento social têm aumentado a vulnerabilidade destas populações no campo e na cidade, dadas as dificuldades de denúncia, de proteção, devendo-se considerar que tais ações abertamente contam com a conivência de forças policiais do Estado, quando não são elas mesmas que atuam. Há uma efetiva guerra de movimento no campo e que as condições sanitárias agravam e impedem a denúncia e a resistência das organizações sociais. Evidencia esse processo que a disputa dentro do Estado é tão importante quanto aquela vista na sociedade civil. Assim, muito da extensão e da gravidade da pandemia atual, quanto maior o impacto, maiores são as chances de vermos a mudança de paradigma nas relações comerciais, governança internacionais e, por outro lado, agudizarão os confrontos de movimento que se estabelecem.

Considerações finais

A pertinência dos conceitos gramscianos se evidencia na análise de um efetivo jogo geopolítico mundial. Neste aspecto, se descontrói uma leitura dicotômica do autor de que estes processos de luta hegemônica possam ser compreendidos como territoriais (oriental e ocidental), da mesma forma coloca-se estas categoriais analíticas em movimento nas relações sociais e nas formas de estratégias que os grupos sociais estabelecem no embate de classes. Ou seja, de um lado a guerra de posição pode se realizar nos posicionamentos soft power da China nas suas relações multilaterais e simultaneamente de movimento quando se materializa suas ações imperialistas nas relações mundiais sobretudo no seu entorno geopolítico.

Estes movimentos não se processam de forma diferente em relação aos Estados Unidos. Ao recuar nas conflituosas relações comerciais com a China, como posição, e simultaneamente avançar no controle de comércio e suprimentos médicos na Venezuela, Cuba e Síria, como movimento. Estes processos de forma dialetizada vão mudando suas formas e estratégias de enfrentamentos para as diversas instâncias de poder, como pode ser observado nas manifestações da OMS e na descaracterização da OMC, recuando em um cenário de abertura comercial mundial.

As relações de poder mudam de escalas, de estratégias e de ações e quanto mais se verticalizam na esfera da produção do valor, mais elas deixam de ser de posição e mais avançam na dimensão de movimento. Na menor escala, no local, é onde as contradições da luta de classes, da luta de gênero, da luta de sobrevivência étnica frente ao genocídio de Estado e de capital se realizam, porque estas existências exprimem a contradição direta na produção do valor. Na confrontação objetiva de valor de uso e valor de troca e, nessa dimensão, se processa a morte e a ação contrarrevolucionária em guerra de movimento e a pandemia - covid-19, é objeto -, instrumento, oportunidade e cortina, para desvanecer a dimensão concreta da espoliação e da violência em diversas espacialidades do mundo, o que caracteriza esta geopolítica.

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  • 1
    Antonio Gramsci (1982GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.) desenvolveu uma análise de guerra de posição a partir das estratégias de lutas no campo da hegemonia nas sociedades civis ocidentais, e guerra de movimento como elemento explicativo dos processos revolucionários orientais. Compreendemos que os conceitos não podem ser tratados como antinomias geográficas, mas como pares dialéticos e que se manifestam contraditoriamente no interior do processo histórico e que não se vinculam apenas aos movimentos revolucionários, mas também contrarrevolucionários. A compreensão é de que no âmago central os Estados, as estruturas supraestatais, os setores econômicos e a sociedade civil, são elementos categoriais (histórico-materiais) mediadores de uma base conflituosa central: a luta de classes.
  • 2
    WORLD Bank open data. The World Bank, Washington, DC, c2020. Disponível em: <https://data.worldbank.org/>. Acesso em: 15 fev. 2021.
  • 3
    TRADE statistics for international business development. International Trade Centre, Geneva, [s. d.]. Disponível em: <www.trademap.org>. Acesso em: 12 fev. 2021.
  • 4
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  • 5
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  • 6
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  • 7
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  • 8
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  • 9
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  • 10
    TRADE statistics for international business development. International Trade Centre, Geneva, [s. d.]. Disponível em: <www.trademap.org>. Acesso em: 12 fev. 2021.
  • 11
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  • 12
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  • 13
    TRADE statistics for international business development. International Trade Centre, Geneva, [s. d.]. Disponível em: <www.trademap.org>. Acesso em: 12 fev. 2021.
  • 14
    WORLD Bank open data. The World Bank, Washington, DC, c2020. Disponível em: <https://data.worldbank.org/>. Acesso em: 15 fev. 2021.
  • 15
    TRADE statistics for international business development. International Trade Centre, Geneva, [s. d.]. Disponível em: <www.trademap.org>. Acesso em: 12 fev. 2021.
  • 16
    WORLD Bank open data. The World Bank, Washington, DC, c2020. Disponível em: <https://data.worldbank.org/>. Acesso em: 15 fev. 2021.
  • 17
    Nosso cuidado neste ponto é tomar como referência que a covid-19 não é determinante, mas uma determinação sócio-histórica, ou seja, o surto mundial de covid-19 não caracteriza o vírus como sujeito, mas como determinação das relações e formas de intercâmbio humano com a natureza e consigo mesmo. Trata-se de uma tênue relação entre o mundo natural orgânico e inorgânico e a natureza humana em sua generecidade que por processos de mediação/trabalho constitui a hominização e humanização do homem e que são ontologicamente inseparáveis.
  • 18
    TRADE statistics for international business development. International Trade Centre, Geneva, [s. d.]. Disponível em: <www.trademap.org>. Acesso em: 12 fev. 2021.
  • 19
    Neste sentido se pode entender os investimentos das propagandas do setor e sua estratégia de vincular a pequena produção (camponesa) à produção em geral de commodities (“O agro é pop”).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2020
  • Aceito
    03 Ago 2020
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