Acessibilidade / Reportar erro

Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação

Mapping the feminist imagination: from redistribution to recognition to representation

Resumos

Este artigo realiza uma reflexão sobre como reinventar o projeto feminista em um mundo que se globaliza, a partir de um balanço sobre as mudanças no feminismo no contexto das transformações no capitalismo pós-guerra e na geopolítica pós-comunista. O pós-11 de Setembro significou uma mudança drástica nas energias feministas, deslocando a ponta-de-lança da luta de gênero dos Estados Unidos para espaços transnacionais, como a "Europa". O que está por trás dessa mudança geográfica e quais são as suas implicações políticas para o futuro do projeto feminista são questões que a autora busca responder.

feminismo contemporâneo; pós-11 de Setembro; redistribuição e reconhecimento


On this article the author aims to stimulate discussion as to how reinvent the project of feminism for a globalizing world, situating those shifts, in the context of changes in postwar capitalism and post-communist geopolitics. US feminism finds itself at an impasse, stymied by the hostile, post-9/11 political climate. The cutting edge of gender struggle has shifted away from the United States to transnational spaces, such as "Europe". What lies behind this geographical shif? what are its political implications for the future of the feminist project?

Contemporary Feminism; Post-11 September; Redistribuition and Recognition


ARTIGOS

Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação* * Publicado em Constellations, Oxford: Blackwell Publishing Ltd., v. 12, n. 3, 2005. p. 295-307. Traduzido e publicado com a autorização da autora.

Mapping the feminist imagination: from redistribution to recognition to representation

Nancy Fraser

New School for Social Research

RESUMO

Este artigo realiza uma reflexão sobre como reinventar o projeto feminista em um mundo que se globaliza, a partir de um balanço sobre as mudanças no feminismo no contexto das transformações no capitalismo pós-guerra e na geopolítica pós-comunista. O pós-11 de Setembro significou uma mudança drástica nas energias feministas, deslocando a ponta-de-lança da luta de gênero dos Estados Unidos para espaços transnacionais, como a "Europa". O que está por trás dessa mudança geográfica e quais são as suas implicações políticas para o futuro do projeto feminista são questões que a autora busca responder.

Palavras-chave: feminismo contemporâneo; pós-11 de Setembro; redistribuição e reconhecimento.

ABSTRACT

On this article the author aims to stimulate discussion as to how reinvent the project of feminism for a globalizing world, situating those shifts, in the context of changes in postwar capitalism and post-communist geopolitics. US feminism finds itself at an impasse, stymied by the hostile, post-9/11 political climate. The cutting edge of gender struggle has shifted away from the United States to transnational spaces, such as "Europe". What lies behind this geographical shif? what are its political implications for the future of the feminist project?

Key words: Contemporary Feminism; Post-11 September; Redistribuition and Recognition.

Por muitos anos, feministas ao redor do mundo se voltaram para os Estados Unidos em busca das mais avançadas teorias e práticas. Contudo, atualmente o feminismo estadunidense se encontra em um impasse, entravado pelo clima político hostil pós-11 de Setembro. Incertas de como buscar justiça em relação a gênero sob as condições atuais, estamos agora devolvendo o favor ao olharmos para as feministas de outros lugares buscando inspiração e orientação. Assim, hoje, a ponta de lança da luta de gênero transferiu-se dos Estados Unidos para espaços transnacionais, como a "Europa", onde há maior margem para manobras. A conseqüência é uma mudança drástica na geografia das energias feministas.

O que está por trás dessa mudança geográfica? E quais são as suas implicações políticas para o futuro do projeto feminista? No que se segue, eu proponho um relato da trajetória histórica da segunda onda do feminismo de maneira a jogar alguma luz sobre esse tema. Minha estratégia será a de relacionar as mudanças geográficas nas energias feministas a dois outros tipos. Por um lado, identificarei algumas grandes transformações no modo como feministas imaginaram a justiça de gênero partir dos anos 70. Por outro lado, situarei as transformações no imaginário feminista no contexto de mudanças maiores no Zeitgeist político e no capitalismo pós-guerra. O resultado será uma Zeitdiagnose historicamente situada através da qual podemos avaliar os prospectos políticos das lutas feministas para os tempos vindouros.

De forma geral, então, o objetivo deste trabalho é político. Ao historicizar mudanças na geografia das energias feministas, pretendo alcançar algum insight sobre como podemos revigorar a teoria e a prática da igualdade de gênero sob as condições atuais. Do mesmo modo, ao mapear as transformações na imaginação feminista, almejo determinar o que deveria ser descartado ou preservado para as lutas que virão. Ao situar tais mudanças, por fim, no contexto das transformações no capitalismo pós-guerra e geopolítica pós-comunista, desejo estimular a discussão sobre como podemos reinventar o projeto do feminismo em um mundo que se globaliza.

1 Historicizando a segunda onda do feminismo

Como devemos entender a história da segunda onda do feminismo? A narrativa que proponho se diferencia relevantemente do padrão difundido nos círculos acadêmicos dos Estados Unidos. A história padrão é uma narrativa de progresso, segundo a qual nós saímos de um movimento exclusivista, dominado por mulheres brancas heterossexuais de classe média, para um movimento maior e mais inclusivo que permitiu integrar as preocupações de lésbicas, mulheres negras e/ou pobres e mulheres trabalhadoras.1 1 Ver, por exemplo, bell HOOKS, 2000; Ruth ROSEN, 2001; e Benita ROTH, 2004. É claro que eu apoio os esforços para ampliar e diversificar o feminismo, mas não acho que essa seja uma narrativa satisfatória. No meu ponto de vista, ela é muito interna ao feminismo. Preocupada exclusivamente com os desenvolvimentos dentro do movimento, essa narrativa não consegue situar mudanças interiores em relação aos desenvolvimentos históricos mais amplos e ao clima externo. Assim, eu indicarei uma história alternativa, que é mais histórica e menos autocongratulatória.

Para os meus propósitos, a história da segunda onda do feminismo se divide em três fases. Em uma primeira fase, o feminismo estava estritamente relacionado a vários "novos movimentos sócias" que emergiram do fermento dos anos 60. Na segunda fase, foi atraído para a órbita da política de identidades. E, finalmente, em uma terceira fase, o feminismo é cada vez mais praticado como política transnacional, em espaços transnacionais emergentes. E eu me explico em seguida.

A história da segunda onda do feminismo apresenta uma trajetória impressionante. Fomentada pelo radicalismo da Nova Esquerda (New Left), essa onda do feminismo começou como um dos novos movimentos sociais que desafiaram as estruturas normatizadoras da social-democracia pós-Segunda Guerra. Originou-se, em outras palavras, como parte de um esforço maior para transformar o imaginário político economicista que tinha centrado a atenção em problemas de distribuição entre as classes. Nessa primeira fase (novos movimentos sociais), feministas buscaram ampliar o seu imaginário. Ao exporem uma ampla gama de formas de dominação masculina, feministas sustentaram uma visão expandida da política que incluísse "o pessoal". Mais tarde, no entanto, com o declínio das energias utópicas da Nova Esquerda, os insights anti-economicistas foram ressignificados e incorporados em um novo imaginário político que colocou questões culturais em primeiro plano. Efetivamente capturado por esse imaginário culturalista, o feminismo reinventou-se como política de reconhecimento. Nessa segunda fase, o feminismo se preocupou com a cultura e foi atraído para a órbita da política de identidade. Apesar de o feminismo não ter sido notado àquela época, a sua fase de política de identidade coincidiu com um desdobramento histórico mais amplo: o esgarçamento da democracia social baseada na idéia de nação graças à pressão do neoliberalismo global. Sob tais condições, uma política de reconhecimento centrada na cultura não poderia ser bem-sucedida. Na medida em que negligenciou os desdobramentos político-econômicos e geopolíticos, essa abordagem não pôde opor-se de maneira efetiva nem à selvageria das políticas de livre-mercado nem ao chauvinismo de direita que emergiu com elas. Principalmente o feminismo estadunidense não estava preparado para as alterações dramáticas no horizonte político após o 11 de Setembro. Na Europa e em outros lugares, contudo, feministas descobriram, e estão destramente explorando, novas oportunidades políticas nos espaços políticos transnacionais no nosso mundo que se globaliza. Logo, estão mais uma vez reinventado o feminismo – desta vez como um projeto e um processo de política transnacional. Apesar de esta terceira fase ser ainda bastante recente, ela anuncia uma mudança na escala da política feminista que poderia tornar possível integrar os melhores aspectos das duas fases anteriores em uma nova e mais adequada síntese.

Essa é, de forma resumida, a história que eu gostaria de elaborar aqui. Antes de prosseguir com os seus desdobramentos, são necessários dois lembretes. O primeiro diz respeito ao caráter altamente estilizado dessa narrativa; de forma a esclarecer a trajetória como um todo, acabo por desenhar linhas extremamente demarcatórias quando, em muitos lugares e em muitos pontos, as realidades tendem a se sobrepor. Contudo, vale a pena correr o risco da distorção, se a narrativa gerar insights políticos e intelectuais para o período futuro.

Minha segunda advertência diz respeito à geografia das três fases do feminismo. Da forma como eu a entendo, a primeira fase (novos movimentos sociais) alcançou os feminismos da América do Norte e da Europa Ocidental – e possivelmente correntes em outros lugares. A segunda fase (política da identidade) foi mais bem expressa nos Estados Unidos, apesar de ter tido ressonância em outras regiões. Finalmente, a terceira fase é mais desenvolvida, como seu nome sugere, em espaços políticos transnacionais, paradigmaticamente associados à "Europa".

2 Aproximando o gênero à social-democracia: uma crítica ao economicismo

Para entender a fase um, relembremos as condições nas quais ainda estava o que significativamente se chamava de "Primeiro Mundo". Quando a segunda onda do feminismo eclodiu, as nações de capitalismo avançado na Europa Ocidental e na América do Norte ainda estavam colhendo os frutos da onda de prosperidade que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Utilizando novas ferramentas do dirigismo econômico keynesiano, essas nações tinham aparentemente aprendido a lidar com os maus tempos nos negócios e a guiar o desenvolvimento econômico nacional de forma a assegurar emprego quase pleno para os homens. Incorporando os antes incontroláveis movimentos dos trabalhadores, elas tinham construído um abrangente Estado de bem-estar social e institucionalizado a solidariedade entre as classes em âmbito nacional. Obviamente, esse acordo histórico de classe repousava sobre uma série de exclusões de gênero, raça e etnia, sem mencionar a exploração neocolonial. Mas esses defeitos em potencial tenderam a permanecer latentes no imaginário social-democrata que enfatizava redistribuição entre as classes. O resultado foi um cinturão de prósperas sociedades de consumo de massa no Atlântico Norte, que aparentemente haviam domesticado o conflito social.2 2 Eric HOBSBAWM, 1995.

Na década de 60, entretanto, a relativa calma dessa Época de Ouro foi repentinamente destruída. Em uma extraordinária explosão internacional, a juventude radical tomou as ruas – primeiro para se opor à segregação racial e à Guerra do Vietnã. Logo após, começou a questionar características centrais da modernidade capitalista que a social-democracia tinha naturalizado até então: repressão sexual, sexismo e heteronormatividade; materialismo, cultura corporativa e a "ética do sucesso"; consumismo, burocracia e "controle social". Rompendo as rotinas políticas normalizadas da era anterior, novos atores sociais formaram novos movimentos sociais, com a segunda onda do feminismo entre os mais visionários.3 3 Alain TOURAINE, 1988; Alberto MELUCCI, John KEANE e Paul MIER, 1989; e Hank JOHNSTON, Enrique LARANA e Joseph R. GUSFIELD, 1994.

Ao lado de seus camaradas de outros movimentos, os feminismos dessa era modificaram o imaginário político. Transgredindo uma cultura política que privilegiava atores que se colocavam como classes definidas nacional e politicamente domesticadas, eles desafiaram as exclusões de gênero dentro da social-democracia. Problematizando o paternalismo do Estado do bem-estar social e a família burguesa, os feminismos expuseram o profundo androcentrismo da sociedade capitalista. Politizando "o pessoal", expandiram as fronteiras de contestação para além da redistribuição sócio-econômica – para incluir o trabalho doméstico, a sexualidade e a reprodução.4 4 Sara EVANS, 1980; Alice ECHOLS, 1990; e Myra Marx FERREE e Beth B. HESS, 1995.

Radical como era, o feminismo dessa fase mantinha uma relação ambivalente com a social-democracia. Por um lado, grande parte do início da segunda onda rejeitou o étatisme5 5 No original (N.T.). dessa democracia e sua tendência, principalmente na Europa, a marginalizar divisões sociais que não fossem de classe e problemas sociais que não fossem de distribuição. Por outro lado, a maioria das feministas pressupunha atributos-chave do imaginário socialista como base para projetos mais radicais.

Contando com o ethos solidário do Estado de bem-estar social e com as capacidades de assegurar a prosperidade, elas também estavam comprometidas a domar mercados e promover igualitarismo. Agindo a partir de uma crítica que era, ao mesmo tempo, radical e imanente, a primeira fase da segunda onda do feminismo buscava menos o desmantelamento do welfare state do que transformá-lo em uma força que pudesse remediar a dominação masculina.6 6 Para mais exemplos dessa ambivalência, ver os ensaios em Linda GORDON, 1990, incluindo minha contribuição: "Struggle over Needs: Outline of a Socialist-Feminist Critical Theory of Late-Capitalist Political Culture" (p. 205-231).

Contudo, por volta de 1989, a história parece ter ultrapassado o projeto político. Uma década de governo conservador na Europa Ocidental e na América do Norte, coroada pela queda do comunismo no Leste, deu nova vida às ideologias do livre-mercado antes dadas como mortas. Ressuscitado da lixeira histórica, o "neoliberalismo" permitiu um ataque sistemático à idéia de redistribuição igualitária. O resultado, amplificado pela globalização acelerada, foi a dúvida gerada em relação à legitimidade e viabilidade do dirigismo keynesiano. Com a social-democracia na defensiva, os esforços para ampliar e aprofundar suas promessas foram naturalmente sendo descartados. Os movimentos feministas que antes tinham o Estado de bem-estar como seu ponto de partida, procurando desdobrar o ethos igualitário da classe para o gênero, perderam o seu chão. Incapazes de assumir a social-democracia como base para a radicalização, gravitaram para novas gramáticas de reivindicações políticas, mais próximas do Zeitgeist pós-socialista.

3 Da redistribuição ao reconhecimento: o infeliz casamento do culturalismo com o neoliberalismo

Entra em jogo a política de reconhecimento. Se a primeira fase do feminismo pós-guerra procurou aproximar o gênero do imaginário socialista, a segunda fase enfatizou a necessidade de "reconhecer a diferença". "Reconhecimento", assim, tornou-se a principal gramática das reivindicações feministas no fin-de-siècle. Uma categoria venerável da filosofia hegeliana ressuscitada por cientistas políticos, essa noção capturou o caráter distintivo das lutas pós-socialistas, que freqüentemente tomavam a forma de uma política de identidade, visando mais a valorização da diferença do que a promoção da igualdade. Quer o problema fosse a violência contra a mulher, quer a disparidade de gêneros na representação política, feministas recorreram à gramática do reconhecimento para expressar suas vindicações. Incapazes de obter progresso contra as injustiças da política econômica, preferiram voltar-se para os males resultantes dos padrões antropocêntricos de valor cultural ou de hierarquias. O resultado foi uma grande mudança no imaginário feminista: enquanto a geração anterior buscava um ideal de eqüidade social expandido, esta investia suas energias nas mudanças culturais.7 7 Nancy FRASER, 1997.

Deixe-me esclarecer. O projeto de transformação cultural foi parte integrante de todas as fases do feminismo, incluindo a fase dos novos movimentos sociais. O que diferencia a fase da política de identidade é a relativa autonomização do projeto cultural – seu apartamento do projeto de transformação político-econômica e de justiça distributiva.

Não surpreende que os efeitos da fase dois tenham sido confusos. Por um lado, a nova orientação para o reconhecimento deu atenção às formas de dominação masculina que antes estavam enraizadas na ordem do status da sociedade capitalista. Se tivesse sido combinado com o foco anterior dado às desigualdades sócio-econômicas, nosso entendimento da justiça de gênero poderia ter se aprofundado. Por outro lado, a figura da luta pelo reconhecimento capturou de forma tão completa a imaginação feminista que serviu mais para deslocar do que aprofundar o imaginário socialista. A tendência foi subordinar lutas sociais às lutas culturais, a política de redistribuição à política do reconhecimento. Essa não foi, com certeza, a intenção original. Os proponentes da virada cultural pressupunham, ao contrário, que a política feminista de identidade e diferença criaria uma sinergia com as lutas pela igualdade social. Mas tal pressuposição virou uma presa para o Zeitgeist da época. No contexto do fin-de-siècle, a virada em direção ao reconhecimento acomodou-se confortavelmente ao neoliberalismo hegemônico que nada mais queria do que reprimir a memória do igualitarismo social. O resultado foi uma trágica ironia histórica. Ao invés de chegar a um paradigma maior e mais rico que incluísse tanto a redistribuição quanto o reconhecimento, nós efetivamente trocamos um paradigma truncado por outro um economicismo truncado por – um culturalismo truncado.

O momento não poderia ter sido pior. A mudança para uma política culturalizada de reconhecimento ocorreu precisamente no período em que o neoliberalismo estava encenando seu retorno espetacular. Durante esse período, a teoria acadêmica feminista estava preocupada com debates sobre "diferença". Colocando frente a frente "essencialistas" e "não-essencialistas", essas disputas serviram de forma útil para revelar as premissas de exclusão das teorias anteriores, e acabaram por abrir os estudos de gênero para muitas novas vozes. Porém, mesmo nos seus melhores momentos, as teorias tenderam a permanecer no terreno do reconhecimento, onde a subordinação era construída como um problema cultural e dissociado da economia política. O resultado foi ter nos deixado sem defesa contra o fundamentalismo do livre-mercado, que tinha se tornado hegemônico. Efetivamente encantadas pela política de reconhecimento, sem querer direcionamos a teoria feminista para canais culturalistas precisamente quando as circunstâncias requeriam atenção redobrada a políticas de redistribuição.8 8 Nancy FRASER, 1997, p. 173-188 ("Multiculturalism, Antiessen-tialism, and Radical Democracy: A Genealogy of the Current Impasse in Feminist Theory"). Retornarei a esse ponto em breve.

4 Geografias do reconhecimento: pós-comunismo, pós-colonialismo e a terceira via

Antes de qualquer coisa, preciso esclarecer esse ponto. Ao relatar a mudança da fase um para a fase dois, eu descrevi uma alteração no imaginário feminista. Mas a mudança não se limitou ao feminismo per se. Ao contrário, transformações análogas podem ser encontradas em praticamente todo movimento social progressista, assim como no declínio e/ou cooptação mundial dos sindicatos e partidos socialistas, e na correspondente ascensão da política de identidade, tanto nas formas progressistas quanto nas chauvinistas. Relacionada, por um lado, à queda do comunismo e, por outro, à ascensão do neoliberalismo, essa "mudança da redistribuição para o reconhecimento" (como eu designei) é parte de uma transformação histórica de maior escala associada à globalização.9 9 Nancy FRASER, 2003, p. 7-109.

Pode-se argumentar que esse Zeitdiagnose reflete uma perspectiva limitada, estadunidense e primeiro-mundista. Mas não creio que o seja. Ao contrário, a tendência das demandas pelo reconhecimento de eclipsar as demandas por distribuição foi geral, até mesmo mundial, apesar de o conteúdo dessas demandas diferirem. Na Europa Ocidental, o foco social-democrata na redistribuição cedeu terreno nos anos 90 à terceira via. Essa abordagem adotou uma orientação neoliberal de "flexibilização" do mercado de trabalho, enquanto procurava manter um perfil político progressista. O sucesso na manutenção desse perfil ocorreu não na busca de mitigar as iniqüidades econômicas, mas na superação das hierarquias – através de políticas anti-discriminatórias e/ou multiculturais. Assim, também na Europa Ocidental, a moeda corrente das reivindicações políticas mudou da redistribuição para o reconhecimento, ainda que de forma mais sutil do que nos Estados Unidos.

Alterações análogas ocorreram no antigo Segundo Mundo. O comunismo tinha sacramentado sua própria versão do paradigma economicista, que empurrou demandas políticas por canais distributivos, emudecendo as questões de reconhecimento, que foram descartadas como meros subtextos para os problemas econômicos "reais". O pós-comunismo quebrou esse paradigma, fomentando a deslegitimação do igualitarismo econômico e liberando novas lutas por reconhecimento especialmente em relação à nacionalidade e à religião. Nesse contexto, o desenvolvimento da política feminista foi retardada pela associação, real e simbólica, com o comunismo já desacreditado.

Processos relacionados também ocorreram no "Terceiro Mundo". De um lado, o fim da competição bipolar entre a União Soviética e o Ocidente reduziu o fluxo de ajuda para a periferia. De outro lado, o desmantelamento (liderado pelos Estados Unidos) do regime financeiro de Bretton Woods animou a política neoliberal de ajustamento estrutural, que ameaçava o desenvolvimento dos Estados pós-coloniais. O resultado foi a redução drástica do alcance dos projetos de redistribuição igualitária nos países do Sul. E a resposta foi o surgimento de políticas da identidade na pós-colônia, majoritariamente de caráter comunalista e autoritário. Assim, os movimentos feministas pós-coloniais também foram forçados a operar sem a cultura política de fundo que guiasse aspirações populares para os canais igualitários. Presos entre as diminuídas capacidades estatais e chauvinismo comunalistas, esses feminismos também sentiram a pressão por modificar suas demandas de forma a manter a sintonia com o Zeitgeist pós-colonial.

De maneira geral, então, a mudança do feminismo da fase um para a fase dois ocorreu dentro de uma mais ampla matriz pós-comunista e neoliberal. Na medida em que as feministas não conseguiram entender essa matriz mais ampla, demoraram a desenvolver os recursos necessários para lutar pela justiça de gênero sob novas circunstâncias.

5 Política de gênero nos Estados Unidos após o 11 de Setembro

Esse foi o caso dos Estados Unidos. Lá, feministas ficaram surpresas ao descobrir que, enquanto elas discutiam sobre essencialismo, uma aliança entre os defensores do livre-mercado e fundamentalistas cristãos tomava conta do país. Por causa de seu impacto mundial, gostaria de me deter sobre tal acontecimento, antes de comentar a emergência da fase três.

Os fatores decisivos nas eleições de 2004 nos Estados Unidos foram a assim chamada "guerra contra o terrorismo", de um lado, e, do outro (de maneira menos evidente), os assim chamados "valores familiares", em especial o direito ao aborto e ao casamento gay. Em ambos os casos a estratégica de manipulação do gênero foi instrumento crucial para a vitória de Bush. A estratégia vencedora invocou uma política codificada de reconhecimento de gênero para esconder uma política de redistribuição regressiva.

Deixe-me explicar. A estratégia da campanha de Bush pintou a "guerra contra o terror" como uma questão de liderança, à qual se referia em termos explicitamente de gênero. Mobilizando estereótipos masculinos, Bush cultivou a imagem de um chefe de Estado tranqüilizadoramente firme e determinado, um protetor que nunca demonstra dúvida ou hesitação – em resumo, um homem de verdade. De forma inversa, os Republicanos pintaram John Kerry como um homem "emasculado",10 10 "Girlie man", no original (N.T.). para usar a memorável frase de Arnold Schwarzenegger, um "vira-casacas" efeminado a quem não se poderia confiar a proteção das mulheres e crianças estadunidenses da violência de fanáticos barbudos. 11 11 Frank RICH, 2004.

Apesar da distância em relação à realidade, essa retórica codificada de gênero se mostrou imensamente poderosa – tanto para eleitores quanto para eleitoras. Tão poderosa, na verdade, que pareceu neutralizar o que todos achavam ser o ponto fraco da campanha de Bush: sua política conservadora de redistribuição, que estava trazendo significativas dificuldades para muitos estadunidenses. Já no seu primeiro mandato, Bush delineou uma enorme redistribuição de riqueza para os interesses das grandes corporações e classes proprietárias. Ao eliminar os impostos sobre herança e diminuir os tributos dos ricos, ele obrigou a classe trabalhadora a pagar por uma maior parte do orçamento nacional do que antes. O efeito foi colocar a política de redistribuição de ponta cabeça, promovendo injustiça social. Mas ninguém parecia se importar diante da "guerra ao terror". Assim, uma política de gênero codificada efetivamente se sobrepôs a uma política de redistribuição regressiva.12 12 Para análises relacionadas (ainda que não interessadas em gênero), ver Thomas FRANK, 2005; e Richard SENNETT, 2004.

Uma dinâmica similar assenta-se no uso estratégico da retórica dos "valores familiares" na campanha eleitoral. A questão decisiva em Ohio, que acabou se tornando o Estado crucial para a campanha, pode ter sido "a defesa do casamento". Essa questão foi deliberadamente escolhida pelos conservadores para um referendo nesse (e em outros) estados como uma estratégia para um grande comparecimento às urnas de eleitores cristãos fundamentalistas. A teoria era de que, uma vez levados às urnas contra o casamento gay, eles iriam adiante e também votariam em Bush. E parece que a estratégia funcionou.

De qualquer forma, "valores familiares" se mostraram um poderoso tema de campanha. Mas aqui jaz uma grande ironia. As verdadeiras tendências que estão tornando a vida em família tão difícil para as classes média e trabalhadora derivam da agenda capitalista neoliberal que Bush apóia. Tais políticas incluem impostos reduzidos para as corporações e os ricos, seguridade social e proteção ao consumidor reduzidas, e baixos salários e emprego precário. Graças a essas tendências conexas, não é mais possível sustentar a família com apenas um contracheque, e muitas vezes nem mesmo com dois. Longe de ser voluntário ou suplementar, o salário da mulher torna-se obrigatório, um pilar indispensável da ordem econômica neoliberal. Assim também é a prática de "fazer bicos", em que membros de famílias trabalhadoras ou de classe média baixa têm de trabalhar em mais de um emprego para pagar as contas no fim do mês. Tais são as forças que estão realmente ameaçando a vida em família nos Estados Unidos.13 13 Ver FRANK, 2005; e SENNETT, 2004. As feministas entendem isso, mas não conseguiram convencer muitos dos que são prejudicados por essas políticas. Ao contrário, a direita conseguiu persuadi-los de que são os direitos ao aborto e ao casamento gay que ameaçam seu estilo de vida. Aqui também, em outras palavras, os Republicanos usaram de forma bem-sucedida a política anti-feminista de reconhecimento para esconder a política de redistribuição anti-classe trabalhadora.

Nesse cenário, você pode ver todo o problema da fase dois. Apesar de não ter totalmente compreendido isso naquele tempo, feministas estadunidenses mudaram o foco da redistribuição para o reconhecimento no momento em que a direita aperfeiçoava seu próprio uso estratégico de uma política cultural regressiva para tirar a atenção de sua política de redistribuição regressiva. Foi uma coincidência infeliz. O relativo desprezo à economia política do feminismo dos Estados Unidos e outros movimentos progressivos acabou jogando a favor da direita, que colheu os principais benefícios da virada cultural.

6 Evangelicalismo: uma tecnologia neoliberal do self

Mas como os estadunidenses foram tão facilmente enganados por esse truque óbvio? E por que tantas mulheres dos Estados Unidos mostraram-se suscetíveis a esse apelo codificado de gênero? Muitos observadores notaram que a direita teve algum sucesso em mostrar as feministas dos Estados Unidos como profissionais de elite e humanistas seculares que desprezam as mulheres comuns, especialmente as trabalhadoras e religiosas. Até certo ponto essa visão do feminismo como elitista é patentemente falsa, claro, mas o fato é que o feminismo falhou ao tentar alcançar estratos das mulheres trabalhadoras e de classe baixa, atraídas na última década para a cristandade evangélica. Focadas apenas na política de reconhe-cimento, falhamos na tentativa de entender como a orientação religiosa delas responde às suas posições sociais.

Explico-me. À primeira vista, a situação das mulheres cristãs evangélicas nos Estados Unidos parece contraditória. Por um lado, subscrevem a uma ideologia conservadora de domesticidade tradicional. Por outro lado, tais mulheres não vivem de fato vidas patriarcais, sendo a maioria ativa no mercado de trabalho e relativamente empoderada na vida familiar.14 14 Para estudos sobre mulheres cristãs de direita, ver R. Marie GRIFFITH, 1997; Sally GALLAGHER, 2003; e Julie INGERSOLL, 2003. Dois estudos anteriores são também úteis: o capítulo "Fundamentalist Sex: Hitting Below the Bible Belt" (p. 134-160) em Barbara EHRENREICH, Elizabeth HESS e Gloria JACOBS, 1987; e Judith STACEY, 1987. O mistério é resolvido quando entendemos que o evangelicalismo responde, nos Estados Unidos, à emergência de um novo tipo de sociedade, a que eu chamo de "sociedade da insegurança". Essa sociedade é a sucessora da "sociedade da seguridade" que estava associada à social-democracia do período anterior. Diferentemente desta, a nova sociedade institucionaliza uma crescente insegurança nas condições de vida da maioria das pessoas. Como eu disse antes, ela enfraquece as proteções da seguridade social ao institucionalizar formas mais precárias de trabalho assalariado, incluindo terceirização, trabalho temporário e trabalho não-sindicalizado, que são mal pagos e não dão direito a benefícios. O resultado é uma grande sensação de insegurança, à qual o cristianismo evangélico responde.

Interessantemente, o evangelicalismo não dá segurança de forma real. Na verdade, dá às pessoas um discurso e um conjunto de práticas através das quais elas podem gerir a insegurança. O evangelicalismo lhes diz: "Você é um pecador, você vai fracassar, você pode perder seu emprego, você pode beber demais, você pode ter um caso extraconjugal, seu marido pode te abandonar, seus filhos podem usar drogas. Mas está tudo bem. Deus ainda te ama e a tua igreja te aceita". O efeito é, em parte, transmitir aceitação, mas também preparar as pessoas para os problemas de tempos difíceis. Constantemente invocando a possibilidade de haver problemas, o evangelicalismo incute sentimento de insegurança em seus seguidores mesmo quando parece oferecer-lhes uma maneira de lidar com ele. Talvez seja preciso recorrer ao Foucault tardio para entender isto: o evangelicalismo é uma tecnologia do cuidado-de-si que é especialmente adaptada ao neoliberalismo na medida em que este está sempre gerando insegurança. Como eu disse, muitas mulheres trabalhadoras nos Estados Unidos estão tirando algo significativo dessa ideologia, algo que lhes confere sentido à vida. Mas as feministas não conseguiram entender o que é e como funciona. Nem conseguimos entender como nos comunicar com elas ou o que o feminismo pode lhes oferecer em troca.

Demorei-me nesse exemplo em particular porque eu o acho emblemático de uma situação mais ampla de nossa época. Todos vivemos em uma era em que a segurança decai, graças às pressões neoliberais para aumentar a "flexibilidade" e cortar as proteções da seguridade social, em meio a cada vez mais precários mercados de trabalho. Para estratos menos integrados, incluindo imigrantes, tais pressões são aumentadas quando desigualdades de distribuição são sobrepostas à desigualdade de status de reconhecimento; e esta última pode ser atribuída ao "feminismo secular". Em tais casos, é obrigação de todas feministas, na Europa e nos Estados Unidos, revisitar a relação entre as políticas de redistribuição e as de reconhecimento. Hoje, enquanto mudamos para uma terceira fase do feminismo, precisamos reintegrar essas duas dimensões indispensáveis da política feminista, que não foram adequadamente balanceadas na fase dois.

7 Reenquadrando o feminismo: uma política transnacional de representação

Felizmente, algo desse tipo já está acontecendo naquelas áreas da política feminista que operam nos espaços transnacionais. Sensibilizadas pelo crescente poder do neoliberalismo, essas correntes estão construindo uma nova e promissora síntese entre redistribuição e reconhecimento. E estão também mudando a escala da política feminista. Cônscias da vulnerabilidade das mulheres às forças transnacionais, essas feministas acham que não podem desafiar adequadamente a injustiça de gênero se permanecerem no já aceito quadro do Estado territorial. Porque esse quadro limita o alcance da justiça às instituições dentro do Estado que organizam as relações entre os cidadãos, ele sistematicamente obscurece fontes de injustiça que atravessam fronteiras e que compõem as relações sociais transnacionais. O resultado é excluir do alcance da justiça as forças que formatam as relações de gênero que rotineiramente atravessam fronteiras territoriais.

Atualmente, muitas feministas transnacionais rejeitam o quadro do Estado territorial. Elas percebem que decisões tomadas dentro de um território freqüentemente provocam impacto na vida de mulheres fora dele, assim como o fazem organizações inter e supranacionais, governamentais ou não-governamentais. As feministas também percebem a força da opinião pública transnacional, que flui com supremo desprezo por fronteiras através dos meios de massa globais e da cibertecnologia. Como conseqüência temos uma nova apreciação do papel das forças transnacionais na manutenção da injustiça de gênero. Diante do aquecimento global, propagação da AIDS, terrorismo internacional e unilateralismo de superpotências, feministas desta fase acreditam que as chances de as mulheres viverem uma boa vida dependem tanto dos processos que atravessam fronteiras dos Estados territoriais quanto daqueles que acontecem dentro deles.

Sob tais condições, importantes correntes do feminismo estão desafiando o quadro de demandas políticas do Estado territorial. Da forma como elas vêem, esse quadro é um grande veículo de injustiça, pois reparte o espaço político de maneira a bloquear a contestação, pelas mulheres, das forças que as oprimem. Canalizando suas demandas para os espaços políticos domésticos de Estados desempoderados, quando não totalmente falidos, tal quadro isola os poderes exteriores da crítica e do controle. Entre aqueles que estão protegidos contra o alcance da justiça estão os poderosos Estados predadores e poderes transnacionais privados, incluindo investidores e credores estrangeiros, especuladores e corporações transnacionais. Também protegidas estão as estruturas de governança da economia mundial, que colocam termos exploradores de interação e os eximem de controle democrático. Finalmente, o quadro do Estado territorial é auto-isolante; a arquitetura do sistema inter-Estados protege a partilha do espaço político que ela institucionaliza, efetivamente excluindo a tomada de decisão democrática transnacional nas questões de justiça de gênero.

Atualmente, as demandas feministas por redistribuição e reconhecimento estão cada vez mais conectadas a lutas pata alterar esse quadro. Diante da produção transnacionalizada, muitas feministas vão além das economias nacionais. Na Europa, por exemplo, feministas miram as políticas e estruturas econômicas da União Européia, enquanto correntes feministas entre os que protestam contra a OMC desafiam as estruturas de governança na economia global. De forma análoga, lutas feministas por reconhecimento cada vez mais olham além das fronteiras do Estado territorial. Sob o abrangente slogan "direitos das mulheres, direitos humano", feministas ao redor do mundo estão conectando as lutas contra as práticas patriarcais locais a campanhas para reformar o direito internacional.15 15 Brooke A. ACKERLY e Susan Moller OKIN, 2002; Donna DICKENSON, 1997. Para duas avaliações da política de gênero do movimento anti-globalização, ver Virginia VARGAS, 2003; e Judy REBICK, 2002.

O resultado é uma nova fase da política feminista em que a justiça de gênero está sendo reenquadrada. Nesta fase, uma preocupação maior é com o desafio às injustiças – interligadas – de má distribuição e não-reconhecimento. Acima e além dessas formas de injustiça, feministas estão mirando uma meta-injustiça que apenas recentemente se tornou visível, a que eu chamo de mau enquadramento.16 16 Nancy FRASER, 2005. O mau enquadramento surge quando o quadro do Estado territorial é imposto a fontes transnacionais de injustiça. Como resultado, temos divisão desigual de áreas de poder às expensas dos pobres e desprezados, a quem é negada a chance de colocar demandas transnacionais. Em tais casos, as lutas contra a má distribuição e o não-reconhecimento não são levadas adiante, e menos ainda são bem-sucedidas, a não ser que se liguem a lutas contra o mau enquadramento. O mau enquadramento, assim, emerge como alvo central da política feminista na sua fase transnacional.

Ao confrontar o mau enquadramento, esta fase do feminismo torna visível uma terceira dimensão da justiça do gênero, além da redistribuição e do reconhecimento. Chamo essa terceira dimensão de representação. Como a entendo, representação não é apenas uma questão de assegurar voz política igual a mulheres em comunidades políticas já constituídas. Ao lado disso, é necessário reenquadrar as disputas sobre justiça que não podem ser propriamente contidas nos regimes estabelecidos. Logo, ao contestar o mau enquadramento, o feminismo transnacional está reconfigurando a justiça de gênero como um problema tridimensional, no qual redistribuição, reconhecimento e representação devem ser integrados de forma equilibrada.17 17 Nancy FRASER, 2005.

O espaço político transnacional em desenvolvimento na União Européia promete ser um importante campo para essa terceira fase do feminismo. Na Europa, a tarefa é, de alguma maneira, fazer três coisas ao mesmo tempo. Primeiro, as feministas têm de trabalhar com outras forças progressistas para criar proteções de seguridade social igualitárias e sensíveis ao gênero. Além disso, devem se juntar a aliados para integrar tais políticas distributivas com políticas de reconhecimento igualitárias e sensíveis ao gênero que façam justiça à multiplicidade cultural européia. Finalmente, devem fazer tudo isso sem enrijecer as fronteiras externas, certificando-se de que a Europa transnacional não se torne a Europa fortaleza, para que não se repliquem as injustiças de mau enquadramento em uma escala maior.

A Europa, contudo, não é o único campo para essa terceira fase. Igualmente importantes são os espaços transnacionais que cercam as várias agências das Nações Unidas e do Fórum Social Mundial. Aqui, também, feministas estão se aliando a outros atores transnacionais progressistas, incluindo ambientalistas, ativistas do desenvolvimento e povos indígenas para confrontar as injustiças de má distribuição, não-reconhecimento e má representação. Aqui, também, a tarefa é desenvolver uma política tridimensional que equilibre e integre tais preocupações. Levar a cabo essa política tridimensional não é nem um pouco fácil. Contudo, ela contém em si uma grande promessa para a terceira fase do feminismo. De um lado, essa abordagem pode ultrapassar as maiores fraquezas da fase dois, ao reequilibrar as políticas de redistribuição e reconhecimento. Por outro lado, pode superar o ponto cego de ambas as fases anteriores do feminismo, ao explicitamente contestar as injustiças desse mau enquadramento. Acima de tudo, tal política talvez nos permita colocar e, quem sabe, responder à questão política-chave de nossa época: como podemos integrar demandas por redistribuição, reconhecimento e representação de forma a contestar o amplo espectro de injustiças de gênero em um mundo que se globaliza?** ** Este ensaio se originou como uma palestra apresentada em uma conferência sobre "Eqüidade de Gênero e Mudança Social" na Universidade de Cambridge, Inglaterra, em março de 2004. Uma outra versão foi apresentada em uma conferência sobre "Gênero em Movimento" na Universidade de Basel, Suíça, em março de 2005. Agradeço a Juliet Mitchell, Andrea Maihofer e aos participantes dessas conferências que discutiram essas idéias comigo. Agradeço, também, a Nancy Naples; apesar de não comungarmos das mesmas idéias, nossas conversas influenciaram muito o meu pensamento, como fica claro em nosso projeto conjunto: "To Interpret the World and To Change It: An Interview with Nancy Fraser," de autoria de Nancy Fraser e Nancy A. Naples ( Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 29, n. 4, Summer 2004. p. 1103-1124). Eu também fico grata a Keith Haysom, pela assistência de pesquisa bem-humorada e eficiente, e a Veronika Rall, cuja tradução para o alemão melhorou tanto o original ("Frauen, denkt ökonomisch!" Die Tageszeitung, n. 7633, April 7, 2005. p. 4-5) que eu acabei incorporando parte de seu fraseado. Obrigada, final-mente, ao Wissenschaftskolleg zu Berlin, que deu apoio financeiro, estímulo intelectual e um ambiente ideal de trabalho.

Recebido em fevereiro de 2007 e aceito para publicação em março de 2007

Tradução: Ramayana Lira

  • ACKERLY, Brooke A., and OKIN, Susan Moller. "Feminist Social Criticism and the International Movement for Women's Rights as Human Rights." In: SHAPIRO, Ian, and HACKER-CORDÓN, Casiano (eds.). Democracy's Edges Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 134-162.
  • DICKENSON, Donna. "Counting Women In: Globalization, Democratization, and the Women's Movement." In: MCGREW, Anthony (ed.). The Transformation of Democracy? Globalization and Territorial Democracy Cambridge: Polity, 1997. p. 97-120.
  • ECHOLS, Alice. Daring to Be Bad: Radical Feminism in America, 1967-75 Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990.
  • EHRENREICH, Barbara, HESS, Elizabeth, and JACOBS Gloria. Re-making Love: The Feminization of Sex New York: Anchor, 1987.
  • EVANS, Sara. Personal Politics: The Roots of Women's Liberation in the Civil Rights Movement and the New Left New York: Vintage, 1980.
  • FERREE, Myra Marx, and HESS, Beth B. Controversy and Coalition: The Feminist Movement Across Three Decades of Change New York & London: Routledge, 1995.
  • FRANK, Thomas. "What's the Matter with Liberals?" The New York Review of Books, v. 52, n. 8, 12 May 2005. p. 46-51.
  • FRASER, Nancy. Justice Interruptus: Critical Reflections on the "Postsocialist" Condition New York & London: Routledge, 1997.
  • ______. "Social Justice in the Age of Identity Politics." In: FRASER, Nancy, and HONNETH, Axel. Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical Exchange tr. Joel Golb, James Ingram, and Christiane Wilke. London & New York: Verso, 2003.
  • ______. "Reframing Justice in A Globalizing World." New Left Review, v. 36, 2005. p. 69-88.
  • GALLAGHER, Sally. Evangelical Identity and Gendered Family Life New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2003.
  • GORDON, Linda (ed.). Women, the State, and Welfare: Historical and Theoretical Perspectives Madison: University of Wisconsin Press, 1990.
  • GRIFFITH, R. Marie. God's Daughters: Evangelical Women and the Power of Submission. Berkeley: University of California Press, 1997.
  • HOOKS, Bell. Feminist Theory: From Margin to Center Boston: South End, 2000.
  • HOBSBAWM, Eric. The Age of Extremes: A History of the World, 1914-1991 London: Abacus, 1995. p. 320-341, 461-518.
  • INGERSOLL, Julie. Evangelical Christian Women: War Stories in the Gender Battles New York: NYU Press, 2003.
  • JOHNSTON, Hank, LARANA, Enrique, and GUSFIELD, Joseph R. (eds.). New Social Movements: From Ideology to Identity Philadelphia: Temple University Press, 1994.
  • MELUCCI, Alberto, KEANE, John, and MIER, Paul (eds.). Nomads of the Present: Social Movements and Individual Needs in Contemporary Society Philadelphia: Temple University Press, 1989.
  • REBICK, Judy. "Lip Service: The Anti-Globalization Movement on Gender Politics." Herizons, v. 16, n. 2, 2002. p. 24-26.
  • RICH, Frank. "How Kerry Became a Girlie Man." The New York Times, 5 September 2004.
  • ROSEN, Ruth. The World Split Open: How the Modern Women's Movement Changed America New York: Penguin, 2001.
  • ROTH, Benita. Separate Roads to Feminism: Black, Chicana, and White Feminist Movements in America's Second Wave Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
  • SENNETT, Richard. "The Age of Anxiety." Guardian Saturday, 23 October 2004. Disponível em: http:// books.guardian.co.uk/print/0,3858,5044940-110738,00.html
  • STACEY, Judith. "Sexism by a Subtler Name? Postindustrial Conditions and Postfeminist Consciousness in the Silicon Valley." Socialist Review, v. 17, n. 6, 1987. p. 7-28.
  • TOURAINE, Alain. Return of the Actor: Social Theory in Postindustrial Society Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988.
  • VARGAS, Virginia. "Feminism, Globalization and the Global Justice and Solidarity Movement." Cultural Studies, n. 17, 2003. p. 905-920.
  • *
    Publicado em
    Constellations, Oxford: Blackwell Publishing Ltd., v. 12, n. 3, 2005. p. 295-307. Traduzido e publicado com a autorização da autora.
  • **
    Este ensaio se originou como uma palestra apresentada em uma conferência sobre "Eqüidade de Gênero e Mudança Social" na Universidade de Cambridge, Inglaterra, em março de 2004. Uma outra versão foi apresentada em uma conferência sobre "Gênero em Movimento" na Universidade de Basel, Suíça, em março de 2005. Agradeço a Juliet Mitchell, Andrea Maihofer e aos participantes dessas conferências que discutiram essas idéias comigo. Agradeço, também, a Nancy Naples; apesar de não comungarmos das mesmas idéias, nossas conversas influenciaram muito o meu pensamento, como fica claro em nosso projeto conjunto: "To Interpret the World and To Change It: An Interview with Nancy Fraser," de autoria de Nancy Fraser e Nancy A. Naples (
    Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 29, n. 4, Summer 2004. p. 1103-1124). Eu também fico grata a Keith Haysom, pela assistência de pesquisa bem-humorada e eficiente, e a Veronika Rall, cuja tradução para o alemão melhorou tanto o original ("Frauen, denkt ökonomisch!"
    Die Tageszeitung, n. 7633, April 7, 2005. p. 4-5) que eu acabei incorporando parte de seu fraseado. Obrigada, final-mente, ao Wissenschaftskolleg zu Berlin, que deu apoio financeiro, estímulo intelectual e um ambiente ideal de trabalho.
  • 1
    Ver, por exemplo, bell HOOKS, 2000; Ruth ROSEN, 2001; e Benita ROTH, 2004.
  • 2
    Eric HOBSBAWM, 1995.
  • 3
    Alain TOURAINE, 1988; Alberto MELUCCI, John KEANE e Paul MIER, 1989; e Hank JOHNSTON, Enrique LARANA e Joseph R. GUSFIELD, 1994.
  • 4
    Sara EVANS, 1980; Alice ECHOLS, 1990; e Myra Marx FERREE e Beth B. HESS, 1995.
  • 5
    No original (N.T.).
  • 6
    Para mais exemplos dessa ambivalência, ver os ensaios em Linda GORDON, 1990, incluindo minha contribuição: "Struggle over Needs: Outline of a Socialist-Feminist Critical Theory of Late-Capitalist Political Culture" (p. 205-231).
  • 7
    Nancy FRASER, 1997.
  • 8
    Nancy FRASER, 1997, p. 173-188 ("Multiculturalism, Antiessen-tialism, and Radical Democracy: A Genealogy of the Current Impasse in Feminist Theory").
  • 9
    Nancy FRASER, 2003, p. 7-109.
  • 10
    "Girlie man", no original (N.T.).
  • 11
    Frank RICH, 2004.
  • 12
    Para análises relacionadas (ainda que não interessadas em gênero), ver Thomas FRANK, 2005; e Richard SENNETT, 2004.
  • 13
    Ver FRANK, 2005; e SENNETT, 2004.
  • 14
    Para estudos sobre mulheres cristãs de direita, ver R. Marie GRIFFITH, 1997; Sally GALLAGHER, 2003; e Julie INGERSOLL, 2003. Dois estudos anteriores são também úteis: o capítulo "Fundamentalist Sex: Hitting Below the Bible Belt" (p. 134-160) em Barbara EHRENREICH, Elizabeth HESS e Gloria JACOBS, 1987; e Judith STACEY, 1987.
  • 15
    Brooke A. ACKERLY e Susan Moller OKIN, 2002; Donna DICKENSON, 1997. Para duas avaliações da política de gênero do movimento anti-globalização, ver Virginia VARGAS, 2003; e Judy REBICK, 2002.
  • 16
    Nancy FRASER, 2005.
  • 17
    Nancy FRASER, 2005.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Aceito
      Mar 2007
    • Recebido
      Fev 2007
    Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
    E-mail: ref@cfh.ufsc.br