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Resenha

RESENHA

Fernando Costa Mattos

Professor de Filosofia Moderna e Contemporânea na Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP)

SGARBI, MARCO. LA "KRITIK DER REINEN VERNUNFT" NEL CONTESTO DELLA TRADIZIONE LOGICA ARISTOTÉLICA. HILDESHEIM, ZÜRICH, NEW YORK: GEORG OLMS VERLAG, 2010, 282 p.1 1 Na resenha, as referências ao livro serão feitas entre parênteses, no corpo do texto, sob a abreviatura " La Kritik".

Seja nos manuais de história da filosofia, seja em estudos mais especializados sobre Kant, estamos habituados a pensar a construção de sua filosofia crítica a partir de duas grandes linhas de influência: de um lado, a tradição metafísica leibniz-wolffiana, em que o filósofo se teria formado, e, de outro, o empirismo britânico, sobretudo Hume, que, segundo a conhecida explicação do próprio Kant, o teria acordado de seu sono dogmático. O mais novo livro de Marco Sgarbi, La "Kritik der reinen Vernunft" nel contesto della tradizione logica aristotelica [A "Crítica da razão pura" no contexto da tradição lógica aristotélica], publicado em 2010 pela prestigiosa casa editorial Georg Olms, propõe tirar-nos a nós, estudiosos da obra kantiana, desse antigo "sono dogmático": segundo sua tese fundamental, Kant seria tão ou mais devedor do aristotelismo quanto do leibniz-wolffianismo ou do empirismo humiano.

Isso não significa, naturalmente, que a obra de Aristóteles tenha exercido uma influência direta sobre Kant: como procura demonstrar Sgarbi, através de um estudo bastante detalhado do aristotelismo que prevalecia na Alemanha, notadamente em Königsberg, entre os séculos XVI e XVIII, foi através de autores pertencentes a essa corrente que Kant teve acesso a certas interpretações de Aristóteles, cujo impacto seria decisivo em seu pensamento. Isso também não significa, por outro lado, que Sgarbi seja o primeiro a apontar tal influência sobre o pensamento kantiano: como ele próprio faz questão de frisar - logo na frase que abre o livro (La Kritik, p. 13-14) -, o caminho por ele trilhado segue as pistas deixadas por estudiosos do kantismo, como Mariano Campo, Giorgio Tonelli, Riccardo Pozzo, Reinhard Brandt e Giuseppe Michelli (entre outros que são mencionados ao longo do percurso). Trata-se sobretudo, pois, de aprofundar certos pontos, iluminar melhor alguns aspectos da questão, reforçar a convicção acerca da importância do aristotelismo para Kant, e assim por diante.

E se pode dizer desde logo, sem medo de errar, que o sucesso de Sgarbi nessa empreitada não é pequeno. Em texto bem escrito, preciso nas informações e persuasivo nos argumentos,2 2 Parece-nos que o único ponto a reparar, no que concerne aos aspectos formais do texto, é o hábito de manter os trechos citados do grego no original, o que causa algum estranhamento no leitor. Afinal, ainda que entre os italianos seja habitual - e talvez compreensível - não verter os trechos citados em latim, não traduzir aqueles citados em grego pode suscitar contra o autor, desnecessariamente, a suspeita de certo pedantismo, já que não se pode supor de todos os leitores o conhecimento do grego antigo. Se as passagens kantianas são traduzidas do alemão, que é dominado por boa parte dos estudiosos da obra kantiana - público-alvo do livro -, não faz muito sentido deixar sem tradução os trechos citados em grego. ele começa por apresentar-nos as fontes aristotélicas a que Kant teria tido acesso, estabelecendo assim um amplo panorama do aristotelismo que, a partir da Itália (em especial da escola de Pádua), se teria expandido para a Alemanha, tendo em nomes como Philipp Melanchthon, Georg Sabinus (primeiro reitor da Universidade Albertina, futura Universidade de Königsberg), Giacomo Zabarella, Melchior Zeidler e Christian Dreier importantes expoentes desse cenário. Segundo Sgarbi procura mostrar, o aristotelismo teria funcionado em Königsberg, extremo leste da Prússia, como um instrumento de resistência ao cartesianismo, que varria a Europa com toda força, na segunda metade do século XVII.

Curiosamente, por sinal, esse contexto de resistência ao cartesianismo, via Aristóteles, teria favorecido uma certa recepção da obra de Locke que, através de Lorenz Weger, suscitou a criação de uma disciplina intitulada "lógica das faculdades" - cuja influência sobre Kant se pode desde logo imaginar. Mas foi Paul Rabe, "o último aristotélico de Königsberg" - e cujos escritos seriam "[...] a fonte mais direta e imediata do aristotelismo que Kant podia ter à disposição" (La Kritik, p. 56) - quem de fato efetuou, segundo nos mostra Sgarbi, a "[...] passagem da Schulphilosophie, voltada à tradição aristotélica, às novas tendências filosóficas do empirismo inglês e do racionalismo de Gottfried W. Leibniz e Christian Wolff" (La Kritik, p. 43), i.e. quem prepararia o terreno para que Kant pudesse, a partir dessa tripla influência (e não dupla, como costumamos imaginar), construir gradativamente a sua filosofia crítica.

Para compreender esse processo, Sgarbi analisa, procurando identificar sinais embrionários dos conceitos kantianos, o modo como Rabe compreendia a dialética e a analítica, bem como as noções de forma e matéria. Tais noções, cuja centralidade em Aristóteles é bastante conhecida, já sofriam uma inflexão que era fruto do modo como se compreendia o Estagirita, na Königsberg da primeira metade do século XVIII. Isto é algo que se deixa deduzir a partir dos manuais de história da filosofia então adotados, e que Sgarbi analisa em detalhe, no quarto capítulo de seu livro, chamando especialmente a atenção para aqueles de Friedrich Gentzken e Jakob Brucker, cuja influência seria admitida pelo próprio Kant, em algumas Reflexionen do filósofo (La Kritik, pp. 71-81).

Todavia, o livro de Sgarbi não se limita, naturalmente, a repertoriar os autores que teriam influenciado Kant, no que diz respeito ao aristotelismo. Feito esse trabalho mais documental, por assim dizer, na primeira parte do livro (dedicada justamente às "fontes"), ele se dedica, na segunda, a destrinchar "os problemas" que revelariam tal influência em termos propriamente conceituais, trazendo consequências filosóficas interessantes para a interpretação do kantismo. Começando pela célebre oposição entre matéria e forma, que ganha destaque na obra kantiana, através da "Dissertação de 1770", e que não se deixaria compreender, segundo Sgarbi, se só tivéssemos em conta o leibniz-wolffianismo e o empirismo britânico (La Kritik, p. 104), ele passa a analisar algumas noções-chave do pensamento kantiano, com base nesse aristotelismo que vinha sendo caracterizado nos capítulos anteriores.

É bem verdade que, em alguns momentos desse percurso, a influência de Aristóteles aparece um pouco atenuada em face de algumas semelhanças conceituais com a própria tradição wolffiana: "[...] a distinção entre matéria e forma nos elementos lógicos é comum a boa parte da tradição lógica dos séculos XVI e XVII, sobretudo na aristotélica, mas também na wolffiana" (La Kritik, p. 126). E há outros momentos em que o aristotelismo parece chegar a Kant através de Leibniz e Wolff (La Kritik, p. 128), ou mesmo por meio do empirismo inglês, notadamente via Locke - conforme a associação que o próprio Kant fazia entre os dois autores (Aristóteles e Locke), "[...] sobre a base comum que teriam ambos em relação à origem dos conceitos" (La Kritik, p. 172).

Poder-se-ia questionar se, em alguma medida, essa influência do aristotelismo sobre Locke ou sobre Wolff, os quais, por sua vez, a fariam chegar a Kant, não diminui razoavelmente o alcance da tese proposta por Sgarbi, já que o aristotelismo deixaria de ser, nesse caso, uma linha de influência alternativa ao leibniz-wolffianismo e ao empirismo britânico, tornando-se antes um aspecto destes - indiretamente contemplado, portanto, pelos intérpretes kantianos que examinaram o impacto de tais tradições sobre a filosofia crítica. Mas, ainda que esta seja a sensação deixada por passagens como as acima citadas, há outras que insistem com mais vigor na influência direta de autores aristotélicos, como Abraham Calov e Paul Rabe, sobre Kant, realçando assim o caráter alternativo da influência aristotélica (La Kritik, p. 250). E mesmo a importância do aristotelismo para Wolff ou Locke, usualmente desconsiderada, já seria um ponto interessante a destacar na reconstrução, efetuada por Sgarbi, da recepção moderna de Aristóteles.

Seja como for, o fato é que, além dos pares conceituais matéria-forma e analítica-dialética, nos quais a influência aristotélica se faria sentir mais claramente, também os contornos de uma certa "fisiologia do intelecto humano", que Kant teria herdado sobretudo dos ingleses, passa a poder ser computada, na chave interpretativa de Sgarbi, entre os aspectos aristotélicos da filosofia kantiana. Afinal, a ideia de que as categorias, embora a priori (ou por isso mesmo), só adquirem realidade no uso, à medida que exercitemos o entendimento (algo a que os comentadores dariam em geral pouca atenção), pode ser frutiferamente aproximada da noção aristotélica de habitus: "[...] [os conceitos puros do entendimento] se formam através do exercício do intelecto, no seu uso real em relação com a experiência. Os conceitos são, portanto, adquiridos propriamente como um habitus, seguindo primeiro a tradição aristotélica, depois a wolffiana" (La Kritik, p. 168).

Tal modo de compreender a formação dos conceitos, como uma espécie de epigênese (La Kritik, p. 184), seria fundamental para distanciar Kant do inatismo, que ele combateu com tanta veemência, em diferentes ocasiões - notadamente no debate contra Eberhard, oportunamente lembrado por Sgarbi (La Kritik, p. 176 e ss.). E seria fundamental, outrossim, para explicar a entrada em cena das noções - claramente inspiradas em Aristóteles - de juízo, categoria e esquema, peças-chave no projeto crítico que, segundo Sgarbi (opondo-se nisto a intérpretes recentes, como Paul Guyer), vem efetivamente revolucionar o pensamento de Kant na passagem dos anos 1770 aos 80:

[...] é evidente o fato de que [na Kritik der reinen Vernunft] Kant está operando uma revolução terminológica e conceitual relativamente aos três primeiros decênios de sua carreira filosófica. A partir dos primeiros anos 70, surge em Kant a exigência, para resolver o problema das categorias, de rever todo aquele material do aristotelismo alemão que ele havia antes ignorado. (La Kritik, p. 206).

Ou seja (e nisso fica ainda mais claro o alcance da tese de Sgarbi): a influência do aristotelismo não é apenas uma influência "a mais", ao lado das outras, mas a influência decisiva, que teria fornecido a Kant os instrumentos necessários para passar de sua fase pré-crítica à fase crítica, edificando assim o sistema de sua filosofia madura. Em estando correta essa tese, à qual está voltada, no fim das contas, toda a segunda parte do livro de Sgarbi, seria necessário restituir a Aristóteles um espaço, entre as figuras relevantes da modernidade europeia, bem maior do que estamos habituados a conferir-lhe. Resta saber se isso faz de Kant um "aristotélico", ou se apenas revela uma estratégia de incorporação filosófica - mais uma, dentre as tantas que caracterizam a história da filosofia - para expressar com certos conceitos aquilo que, sob outra formulação, perderia grandemente a sua força.

De certo modo, é justamente essa a questão que Sgarbi se coloca ao final, perguntando-se, no título da última seção, se "Kant foi um aristotélico" (La Kritik, p. 254). Porém, a resposta, sucinta, limita-se a reafirmar a existência dessa importante influência - uma conclusão efetivamente autorizada pelo percurso desenvolvido ao longo do livro. Sgarbi não se aventura, nesse ponto, a formular um juízo mais ousado em resposta a essa pergunta-título. O que deixa no leitor uma certa dúvida: a presença de Aristóteles, na forma de uma influência entre outras, traz implicações realmente decisivas, do ponto de vista filosófico, quanto aos resultados do criticismo kantiano para a posteridade, ou apenas permite compreender melhor a gênese de certos conceitos? Se Kant puder, de fato, ser considerado um aristotélico, a primeira alternativa terá prevalecido; se não o puder, a segunda será mais acertada. Caberá a Sgarbi, talvez, retomar a questão em uma obra futura. E o leitor deste livro esperará por isso com ansiedade.

Recebido em: 08.11.2011

Aprovado em: 15.12.2011

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    Na resenha, as referências ao livro serão feitas entre parênteses, no corpo do texto, sob a abreviatura "
    La Kritik".
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    Parece-nos que o único ponto a reparar, no que concerne aos aspectos formais do texto, é o hábito de manter os trechos citados do grego no original, o que causa algum estranhamento no leitor. Afinal, ainda que entre os italianos seja habitual - e talvez compreensível - não verter os trechos citados em latim, não traduzir aqueles citados em grego pode suscitar contra o autor, desnecessariamente, a suspeita de certo pedantismo, já que não se pode supor de todos os leitores o conhecimento do grego antigo. Se as passagens kantianas são traduzidas do alemão, que é dominado por boa parte dos estudiosos da obra kantiana - público-alvo do livro -, não faz muito sentido deixar sem tradução os trechos citados em grego.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Abr 2012
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