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Mil ódios contra si. D. Lourenço de Mendonça, bispo eleito do Rio de Janeiro, seu combate à escravidão indígena, sua deposição e seu destino entre duas monarquias

RESUMO

A expulsão do primeiro bispo eleito do Rio de Janeiro, em 1637, oferece ocasião para uma reflexão mais detida sobre as relações conflituosas entre os moradores da cidade e as autoridades eclesiásticas enviadas para cá. De fato, como o próprio bispo assegurou, foi seu insistente combate à escravidão indígena que causou seus dissabores. No entanto, numerosos registros históricos do episódio buscaram elidir a expulsão ou alterar significativamente seus motivos; como é o caso da monumental obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, que vê no acontecimento um abuso do poder eclesiástico sobre as instituições civis. Esse tema criou memória que se expressa em um romance histórico publicado no século XIX. Em tempos mais recentes, o argumento abraçou os protestos da população local quanto à ação do bispo sobre temas da moral privada. Por consequência, um traço importante da cultura local - a escravidão indígena - sai do primeiro plano e mergulha no abandono e no esquecimento.

Palavras-chave:
Lourenço de Mendonça; expulsão do bispo; escravidão indígena

ABSTRACT

The expulsion of the first bishop-elect of Rio de Janeiro in 1637 offers an opportunity to make a more detailed discussion about the conflicting relationship between the inhabitants of the city and the ecclesiastical authorities who were sent there. In fact, as the bishop said, it was his persistent fight against indigenous slavery that caused his troubles. However, numerous historical records of the episode sought to suppress the expulsion, or to significantly alter the reasons that led to it; such is the case of the monumental work by Francisco Adolfo de Varnhagen, who sees the event as an abuse of ecclesiastical power over civil institutions. This subject generated a memory that is expressed in a historical novel published in the nineteenth century. In more recent times, the argument embraced the protests of the local population regarding the actions of the bishop regarding private moral issues. Consequently, an important feature of the local culture - the slavery of the indigenous populations - leaves the foreground and plunges into neglect and oblivion.

Keywords:
Lorenzo de Mendonça; expulsion of the bishop; slavery of indigenous peoples

RESUMEN

La expulsión del primer obispo electo de Río de Janeiro en 1637 ofrece ocasión para una reflexión más detallada sobre las relaciones conflictivas entre los habitantes de la ciudad y las autoridades eclesiásticas allá enviadas. De hecho, como el propio obispo aseguró, fue su insistente combate a la esclavitud indígena que causó sus desabores. Sin embargo, numerosos registros históricos del episodio buscaron suprimir su expulsión, o alterar significativamente sus motivos; como es el caso de la monumental obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, que ve en el acontecimiento un abuso de poder eclesiástico sobre las instituciones civiles. Este tema creó memoria que se expresa en un romance histórico publicado en el siglo XIX. En tiempos más recientes, el argumento abrazó las protestas de la población local en cuanto a la acción del obispo sobre temas de la moral privada. En consecuencia, un rasgo importante de la cultura local - la esclavitud indígena - sale del primer plano y queda abandonada y olvidada.

Palabras clave:
Lourenço de Mendoça; expulsión del obispo; esclavitud indígena

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No dia 17 de dezembro de 1644 foi publicado em Lisboa o segundo volume de uma obra que viria a conhecer algumas edições nas décadas seguintes. Trata-se do livro Decisiones et quaestiones senatus achiepiscopalis metropolis Olyssiponensis, que reuniu e tornou públicas as principais decisões do tribunal eclesiástico da Arquidiocese de Lisboa.1 1 TEMUDO DA FONSECA, Manuel. Secunda pars decisiones senatus archiepiscopalis metropolis Olyssiponensis Regni Portugaliae ex gravissimorum patrum responsis collectae tam in judicio ordinario quam apostolico. Lisboa: Domingos Lopes Rosa, 1644. Na edição, as sentenças sempre são acompanhadas de comentários e extratos de documentos importantes para justificar a decisão tomada. O material ali exposto permite refletir sobre as principais questões que animaram a Igreja portuguesa nas fervorosas décadas que envolveram a Restauração: alinhamento à nova monarquia, imunidade eclesiástica, autonomia jurídica da Igreja, relações com Roma etc.

Nesse volume de 1644, a decisão de número 118 apresenta o título De crimine laesae maiestatis per clericum comissae e chama a atenção dos estudiosos interessados na estrutura eclesiástica de Portugal e de seus domínios; diz o texto em sua abertura:

No mês de outubro deste ano de 1642 (sic), d. Lourenço de Mendonça, prelado e bispo eleito do Rio de Janeiro, morador desta cidade de Lisboa e nascido na aldeia de Sesimbra, se fez trânsfuga ao inimigo e passou ao Reino de Castela, onde buscava persuadir a ruína de seu rei e pátria por pregações e conspirações, esquecido de sua origem e de sua pátria. Ele foi citado por édito público durante trinta dias e acusado pelo promotor fiscal eclesiástico e, ainda que fosse reconhecido culpado de seu crime, houve dúvidas sobre as penas que deveria incorrer, pois era clérigo secular.2 2 Ibidem, p. 59. A indicação da data da fuga do bispo para Madri está equivocada. A data deve ser outubro de 1641, conforme se pode ver pela sentença reproduzida na página seguinte do mesmo volume.

Os comentários de Temudo da Fonseca mostram aqui, e também nas demais decisões, uma preocupação acentuada com os procedimentos jurídicos; afinal, tratava-se de pessoa eclesiástica (do clero secular) que cometera crime de lesa-majestade, coisa afeta ao direito civil. Por si só, um tema importante na cultura política daquele tempo, que fora debatido intensamente em toda a Península Ibérica nas primeiras décadas do século. O assunto envolvia as complicadas relações entre a Igreja e o Estado Moderno ainda em formação. Some-se mais a valorização de circunstância que os castelhanos faziam das imunidades eclesiásticas após o fracasso da conspiração de julho de 1641 que envolveu grandes nobres, bispos e prelados na intenção de derrubar a nova monarquia e matar d. João de Bragança.3 3 Em meados de 1641, após meses de instabilidade política marcados por fugas e retornos de nobres, de soldados, comerciantes, foi debelada uma “conspiração” para matar d. João e restabelecer d. Felipe IV no governo do reino de Portugal. Entre os conspiradores estavam nobres e eclesiásticos de grosso calibre. Os culpados foram sentenciados e executados no Rossio e nas Portas de Santo Antão de Lisboa, em agosto de 1641, os eclesiásticos mais importantes foram presos. Já na época, o problema foi matéria de condenação e de crítica por parte da monarquia católica e de seus aliados, o Vaticano em primeiro lugar, e permaneceu assunto da historiografia nos tempos seguintes. Cf. MENEZES, D. Luiz de (conde da Ericeira). História de Portugal Restaurado. Lisboa: João Galrão, 1679; parte II, livro V. Bem mais recentemente, saiu à luz uma obra que retoma essa conspiração: WAGNER, Mafalda de Noronha. A casa de Vila Real e a conspiração de 1641 contra d. João IV. Lisboa: Colibri, 2007.

Salta aos olhos a condição do réu: bispo eleito do Rio de Janeiro; e mais, importa o fato de esse título ser reconhecido pela Arquidiocese de Lisboa em 1642, ano da sentença. Ocorre que a diocese do Rio de Janeiro só foi criada formalmente mais de trinta anos depois, em 1676. Até então, os territórios entre Porto Seguro e o Rio da Prata formavam a Prelazia do Rio de Janeiro. Por outro lado, a condição de “bispo eleito” designava alguém escolhido pelo rei para a função episcopal, em virtude do Padroado Real, mas que ainda não fora nomeado pelo Vaticano, coisa que poderia demorar bastante, em caso de diocese em criação.4 4 Há alguns anos, os estudos sobre os bispos de Portugal vêm avançando bastante. Destacam-se especialmente as obras: PAIVA, José Pedro. Os bispos de Portugal e do império: 1495-1777. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006; PAIVA, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina: o enlace entre a inquisição e os bispos em Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2011. Isso aliás se colocava bastante bem nos domínios recém-incorporados ao cristianismo, quando o bispo tinha a seu encargo a própria organização da Igreja local. Este era o caso: não caberia bispo do Rio de Janeiro em 1642 pela simples razão de que não havia diocese, a menos que sua criação estivesse nos planos do rei a curto prazo. Mas o rei que escolheu d. Lourenço não mais reinava em Portugal desde dezembro de 1640 e, ainda que estivesse nos planos do governo, a criação da diocese e a nomeação do bispo pelo Papa não foram efetivadas e ficariam assim pelos trinta e tantos anos seguintes.

A justiça eclesiástica do Arcebispado de Lisboa, ao tratar Lourenço de Mendonça como bispo eleito, mostra reconhecimento das indicações do rei de Castela, antigo monarca de Portugal, ainda que a mesma pessoa tivesse escapado para Madri em meio aos conflitos que envolveram a execução dos “traidores” de 1641. Esse tratamento revela uma preocupação do novo governo, nos seus primeiros tempos, em reconhecer as nomeações de d. Felipe que ainda estavam pendentes, buscando pacificar os indicados com o novo rei, sobretudo em matéria eclesiástica. É importante lembrar ainda que entre os culpados dessa conspiração estavam o arcebispo de Braga e o inquisidor - Sebastião Matos de Noronha e Francisco de Castro, dois grandíssimos personagens da Igreja portuguesa. De qualquer modo, d. Lourenço foi condenado ao degredo e à perda de seus bens e benefícios eclesiásticos, incluindo sua administração na Prelazia do Rio de Janeiro.5 5 Cf. TEMUDO DA FONSECA, Manuel. Secunda pars decisiones senatus archiepiscopalis metropolis Olyssiponensis Regni Portugaliae ex gravissimorum patrum responsis collectae tam in judicio ordinario quam apostólico, op. cit., p. 60.

O que torna esse episódio curioso é a própria condição do prelado, seu destino e seus feitos anteriores à Restauração, nas Índias de Castela e no Rio de Janeiro. De fato, Lourenço de Mendonça contou vários anos de ação no Peru e na sua prelazia, do que se tem rastro em curtos textos que ele fez imprimir em Lisboa e em Madri e provavelmente em documentação manuscrita ainda não identificada ou examinada.6 6 Parte dos memoriais de d. Lourenço relativos à sua passagem pela América hispânica foi analisada em trabalho publicado há alguns anos: RAMADA CURTO, Diogo. O padre Lourenço de Mendonça: entre o Brasil e o Peru (c. 1630-c. 1640). Topoi, v. 11, n. 20, p. 27-35, 2010.

A primeira publicação sua que importa aqui data de 1630 e consiste em um libelo em defesa dos portugueses que viviam nas Índias de Castela. O problema que d. Lourenço queria ver resolvido com o livro tinha sua origem em uma cédula real de Felipe III, de 10 de dezembro de 1618, que limitava a imigração aos domínios americanos da monarquia apenas aos originários de Castela, considerando suspeitos todos os demais. A aplicação da lei exigia pagamento vultoso ao fisco por parte dos não castelhanos, ou a sua expulsão, e vinha sendo aplicado contra portugueses que moravam no Vice-Reinado do Peru, na Nova Espanha e nas demais possessões castelhanas no Novo Mundo.7 7 MENDONÇA, Lourenço de. Suplicacion a Su Magestad Catolica Del Rey nuestro Señor que Dios guarde ante sus reales consejos de Portugal y de las Indias en defensa de los portugueses. [s.n.]: Madri, 1630. D. Lourenço reproduz a cédula real no início de seu livro e fornece as referências das decisões das Audiências do Novo Mundo. Esse impresso foi bem analisado em tempos recentes em dois artigos: CARDIM, Pedro. Todos los que no son de Castilla son yguales. El estatuto de Portugal en la Monarquía española en el tiempo de Olivares. Pedralbes, n. 28, p. 521-552, 2008 e CARDIM, Pedro, De la nación a la lealtad al rey. Lourenço de Mendonça y el estatuto de los portugueses en la monarquía española de la década de 1630. In: CRUZ, David González (Org.). Extranjeros y enemigos en Iberoamérica: la visión del otro. Del imperio español a la Guerra de la Independencia. Madri: Sílex, 2010, p. 57-88. O impresso de Lourenço de Mendonça evidencia ainda que as políticas de unificação da monarquia não se tornaram consensuais. Afinal, unificar por cima, por ações de governo, povos cujo passado foi marcado por conflitos e por tensões agudas, não é coisa que se possa fazer em poucas décadas. E ainda, a Audiencia Real de La Plata havia incluído os portugueses naquilo de que trata a cédula, em decisão de 16 de outubro de 1620.

Em sua súplica, d. Lourenço relata vexações sofridas em Quito, no Peru, e em Potosí, onde residia em 1628 devido a seu trabalho na Inquisição, por portugueses ali instalados e vivendo com suas famílias pacificamente durante anos. Aqueles que não tinham recursos para pagar a soma estabelecida (algo entre 4 e 5 mil ducados), os ouvidores castigavam severamente, com violência, e faziam desnudar em praça pública e até mesmo os forçavam a trabalhar em benefício do fisco. O futuro bispo eleito agrega relatos de portugueses que tiveram até seus móveis vendidos para pagar as taxas, como ocorreu a Nicolau Freire de Andrada. Diz ainda que, em Quito, portugueses lá instalados com suas famílias chegaram a ser vendidos como escravos a fim de pagar as exigências do fisco. Segundo o autor: “...vendidos como negros escravos, ao menos como tais vexados, avaliados e presos.”8 8 “...vendidos como negros escravos, a lo menos como tales vexados, alquilados y presos”. MENDONÇA, Lourenço de. Suplicacion a Su Magestad Catolica Del Rey nuestro Señor que Dios guarde ante sus reales consejos de Portugal y de las Indias en defensa de los portugueses, op. cit., fol. 28v.

Como se verá mais adiante, é importante registrar que, entre as denúncias de maus tratos aos portugueses, o bispo Mendonça protesta ainda, em seu impresso, que os paulistas que iam ao porto de Guairá sofriam bárbaras vexações e punições pelos ouvidores. Intoleráveis seriam os maus-tratos sofridos pelos portugueses que iam de São Paulo a este porto:

Mal chegam ali, os que passam são logo despidos e, para mostrar alguma aparência de justiça, são presos. Alguns piedosos lhes dão algo com o que se cobrir e eles voltam para os lugares de onde vieram ou são libertados após serem despojados e desnudados para irem ao Tucuman e ao Peru, e assim não se cumpre o que Vossa Majestade ordena: que não podem ir ao Peru. Mas ocorre o contrário e ainda por cima são roubados e despidos como se fossem inimigos e isso é verdade pública e notória.9 9 “Llegados alli, los que passan los desnudan luego; y para mostrar alguna aparencia de justicia los prenden, y luego dandoles algunos piadosos algo con que cobrirse buelven, o en los mismos lugares, o en los que se sieguen a ser despojados, y desnudos, y luego los dan de mano, para que passen y cuellen al Tucuman y Peru y ansi no se cumple con lo que V. Magestad manda que no vayan al Peru, sino con lo contrario y con roballos, y desnudallos, como enemigos, y esto es lo dicho publico y notoria verdad.” Ibidem, fol. 7v.

D. Lourenço estivera em Buenos Aires em 1628-1629, antes de retornar a Madri, e não é possível que não soubesse o que os bandeirantes andavam fazendo com os índios aldeados nos domínios da coroa de Castela ao leste do rio Paraná. De fato, em 1628, Antônio Raposo Tavares e seus bandeirantes chegaram aos aldeamentos jesuítas do Guairá e capturaram os indígenas para o trabalho escravo em São Paulo e nas outras pequenas cidades portuguesas do litoral.10 10 Há vasta bibliografia brasileira sobre a ação dos bandeirantes e ainda mais estudos e análises de fundo na Argentina, no Paraguai e na Espanha. Não se trata aqui de repertoriar todo esse material. No que diz respeito efetivamente ao Brasil, à exceção dos trabalhos de exaltação das bandeiras como veículo da “expansão para o interior” produzida em tempos de celebração nacional, destaca-se CAPISTRANO DE ABREU, João. Capítulos de história colonial. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988; e o mais recente estudo de MONTEIRO, John Manuel. Os negros da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. A empreitada destruiu aldeamentos dos padres da Companhia de Jesus em operações estrepitosas, que chocaram os moradores das vilas, das cidades e dos assentamentos castelhanos do Sul e impactaram até mesmo a corte de Madri.

De fato, o prelado não podia estar indiferente e, ao final de seu pequeno tratado, ele faz uma distinção mais fina entre os portugueses de São Paulo e os tomadores de índios que, em sua ousadia, atacavam até mesmo as reduções da Companhia de Jesus em uma vasta extensão de terras ao sul dos domínios portugueses.11 11 As discussões dos jesuítas sobre a escravidão encontraram uma excelente análise nos últimos tempos: ZERON, Carlos Alberto. Linha de fé. São Paulo: Edusp, 2011. Sobre a ação dos jesuítas no Sul, cf. VASCONCELOS FRANZEN, Beatriz. Os jesuítas portugueses e espanhóis e sua ação no sul do Brasil e Paraguai (1580-1640). São Leopoldo: Unisinos, 1999. Segundo o bispo, esses bandeirantes não podiam ser confundidos com os honrados portugueses do Novo Mundo: “Todos os soldados em semelhantes entradas são gente desgarrada, muitos são blasfemos, gente livre e licenciosa, e mesmo os que têm mais obrigações e melhor criação que os crioulos de São Paulo.”12 12 “Todos los soldados en semejantes entradas es gente desgarrada, y muchos blasfemos, y gente libre, y licenciosa, aun los que tienen mas obligaciones, y mejor criança que los criollos de San Pablo.” MENDONÇA, Lourenço de. Suplicacion a Su Magestad Catolica Del Rey nuestro Señor que Dios guarde ante sus reales consejos de Portugal y de las Indias en defensa de los portugueses, op. cit., fol. 53. Ou seja, os portugueses que ele defendeu não eram aqueles responsáveis pela captura de indígenas ao sul de São Paulo; por outro lado, os criollos que destruíram os aldeamentos e as vilas cuidadosamente dirigidas pelos padres da Companhia de Jesus eram gente que deveria ser contida. Mal sabia ele dos modos com que as populações portuguesas do Rio de Janeiro, de São Vicente e de São Paulo, aqueles tais que teriam mais obrigações, lidavam com os indígenas. Para alguém que nunca estivera nessas capitanias, a distinção realizada poderia se apresentar como algo refinado que buscava separar os bons portugueses do Novo Mundo daqueles “malvados colonizadores” que violentavam os nativos. O padre ainda iria descobrir toda a extensão do problema que lhe causaria tantos tormentos nos anos seguintes.

Na sua súplica, d. Lourenço desenvolve argumentos que dão largo pensar aos estudiosos do passado e da condição portuguesa no mundo. Ele lembra os benefícios que os portugueses traziam ao Potosí, com os escravos africanos que eles comercializavam por lá (estes poderiam sim ser espancados, vexados e vendidos publicamente, segundo ele), e as riquezas que proporcionavam em suas minas e em seus campos, lembrando que aquilo que o fisco ganhava com a proibição era muito pouco, comparado com as fortunas que os lusitanos aportavam à monarquia católica.

No entanto, o incomodava muito mais a suspeita de infidelidade que recaía sobre os portugueses do que a economia ou o comércio de homens da África, realizado por seus compatriotas. Os portugueses, embora tidos como leais e bons vassalos, eram considerados como “judeus”, como maus e danosos nas Índias de Castela, segundo d. Lourenço.

De fato, o tema da infidelidade portuguesa andava vigoroso naqueles anos difíceis do reino e da monarquia. A acusação era, aliás, claramente lançada por gente do governo, conforme crescia o mal-estar lusitano com o domínio de Castela. As suspeitas e acusações, bem como os protestos e a revolta portuguesa, começaram a avultar pouco após as cortes de Lisboa de 1619, e tomaram corpo na sequência da jornada da Bahia de 1625, com a controvérsia sobre o papel de cada armada no grande feito.13 13 Cf. ZILLER CAMENIETZKI, Carlos; PASTORE, Gianriccardo. 1625, o fogo e a tinta: a batalha de Salvador nos relatos de guerra. Topoi, v. 6, n. 11, p. 261-288. Um importante volume exatamente sobre essa matéria saiu em meados de 1626: COELHO DE BARBUDA, Luís. Por la fidelidad lusitana. Lisboa: Jorge Rodrigues, 1626. Porém, o mal-estar português alcançou uma dimensão dramática a partir de 1630, com a resistência explícita e ameaçadora à “União de Armas” de Olivares14 14 Em 1632, apesar do controle real, chegou a ser publicado em Lisboa um livreto contra o projeto de unificação militar do conde-duque de Olivares: PINTO RIBEIRO, João. Discurso sobre os fidalgos e soldados portugueses não militarem em conquistas alheias desta coroa. Lisboa: Pedro Craesbeck, 1632. e se estendeu às populações urbanas com as alterações de Évora e do Alentejo,15 15 Há mais de vinte anos foi publicado um excelente estudo das alterações do Alentejo: OLIVEIRA, António de. Poder e oposição política em Portugal no período filipino (1580-1640). Lisboa: Difel, 1991. culminando em dezembro de 1640, na Restauração.

É certo que o tema da fidelidade nesses anos teria larga fortuna entre aqueles que sustentavam a monarquia católica, sobretudo entre fidalgos e gente nobre, a quem o tema é intrinsecamente afeto. No entanto, o domínio castelhano em nada se assemelhava a um largo consenso entre os portugueses, ainda que as iniciativas mais orgânicas tardassem. De fato, a sucessão dos acontecimentos demonstrou que sequer a nobreza de Portugal mostrava-se unida ao redor de d. Felipe IV, ainda que uma maioria se mostrasse francamente adepta nos anos em que d. Lourenço publicava seus textos.16 16 Sobre o incômodo português com o domínio castelhano, cf. SCHAUB, Jean-Frédéric. Le Portugal au temps Du Comte-Duc d’Olivares (1621-1640). Madri: Casa de Velasquez, 2001.

Como bom “castelhanista”, conforme vimos na abertura do presente texto, o bispo eleito fez parte do grupo que protestava uma fidelidade histórica dos portugueses a seus reis, mesmo que fossem, naquela altura, os monarcas de Castela. D. Lourenço apoiou-se nos escritos históricos de Manuel de Faria e Sousa para mostrar que os portugueses nunca se levantaram contra seus reis e que a fidelidade lusitana era inquebrantável, ao contrário de diversos outros povos ibéricos.17 17 D. Lourenço refere-se à obra FARIA E SOUSA, Manuel de. Epitome de las historias portuguesas. Madri: Francisco Martinez, 1628. Faria e Sousa manteve sua fidelidade a d. Felipe depois de 1640, ao contrário de outros historiadores portugueses. Assim, considerar estrangeiros os portugueses nos domínios de Castela era praticamente uma ofensa. Diz ele logo no início de seu escrito:

[aos] portugueses naturais é muito feio e falso o motivo e o título com que em todas as Índias são tratados como gente suspeita e perigosa, e essa cédula real lhes é aplicada como uma afronta que cai sobre todo o Reino de Portugal e sobre toda a nação portuguesa.18 18 “[aos] portugueses naturales, quanto mas es fea, y falsa la causa y titulo con que en todas las Indias se los componen como gente sospechosa y danosa, que non son, y cuya cedula les aplican la qual afronta cae sobre todo el Reyno de Portugal, y sobre toda su nacion portuguesa.” MENDONÇA, Lourenço de. Suplicacion a Su Magestad Catolica Del Rey nuestro Señor que Dios guarde ante sus reales consejos de Portugal y de las Indias en defensa de los portugueses, op. cit., fol. 2.

Ainda mais que os outros “espanhóis” não castelhanos, como os aragoneses, os catalães, os navarros, os galegos, os bascos eram bem recebidos e não estavam sujeitos às imposições fiscais da cédula de 1618 e dos seus adendos feitos pelas Audiências Reais do Novo Mundo. Ao desenvolver esse ponto de sua exposição, d. Lourenço tocou em uma questão da maior importância para o conde-duque de Olivares e para toda a monarquia naqueles anos posteriores à retomada de Salvador: a unificação política e jurídica dos domínios de d. Felipe IV. Ao suplicar por igualdade de tratamento para todos os espanhóis, incluindo os portugueses, ele sustenta uma semelhança quase que natural desses povos e usa como exemplo a proximidade da língua, que se pode verificar em quase toda a península, com exceção dos bascos. Para ele, a grandeza da monarquia, incluindo as Índias, se fundamentava na unificação de todos os espanhóis, de todos os diversos reinos ibéricos. Caso contrário, a monarquia se tornaria “poliarquia”, com súditos seus perseguindo outros súditos do mesmo rei, apenas por motivo de sua nacionalidade. Ou seja, mesmo que o bispo não estivesse acompanhando de perto a controvérsia dos memoriais de Olivares e da tentativa de unificação política da Espanha, o que é pouco provável, sua intervenção mostra claramente o ponto de vista adotado.

De fato, o bispo eleito se revela um entusiasta do programa unificador de Olivares e defende nesse seu texto um modelo para a monarquia que incorporava as diversas nações ibéricas em condição de igualdade sob o comando harmonioso do rei de Castela. Ele defende que os lusitanos gozassem dos mesmos direitos nas Índias que os castelhanos gozavam nos domínios portugueses do além-mar. Aliás, já na abertura do livro, d. Lourenço estampa o dito “não façamos com os outros aquilo que não queremos que nos façam”, e repete isso inúmeras vezes até o final de sua súplica, reiterando a necessária igualdade de todos os espanhóis. Ele crê possível unificar pelo rei todos os reinos ibéricos.

Modelando sua interpretação da condição espanhola, o bispo protesta que não é justo querer portugueses se batendo por seu rei em Flandres e negando-lhes acesso às Índias:

Por ventura são menos patrimônio e terras de seu rei de Espanha as Índias que Flandres? E se alguém disser que as Índias não são da coroa de Portugal para deixar acusarem dessa forma nelas, tão pouco Flandres é da coroa de Portugal e os portugueses são mortos em suas guerras a serviço de Vossa Majestade.19 19 “Son por ventura menos patrimonio y tierras de su Rey de España las Indias que Flandres? Y si dixere alguien, que las Indias no son de la corona de Portugal, para dexar de ser ansi compuestos en ellas, tanpoco es de la corona de Portugal y son en sus guerras en servicios de V. Magestad muertos.” Ibidem, fol. 35v.

O bispo eleito defende efetivamente o reino e a condição portuguesa no interior da Espanha, em pé de igualdade com os demais povos ibéricos. De fato, ele evoca inúmeras vezes a sua “ilustre nação e honrada pátria”, fazendo-o tanto que até mesmo um poeta romântico do século XIX acreditaria exagerado. Maior vergonha registrada por d. Lourenço fora a dissimulação operada por alguns portugueses do Peru que, para escapar às vexações e ao confisco, se fizeram passar por galegos ou andaluzes. Não se trata de forma alguma de um religioso que negou sua condição portuguesa em nome de outra, “espanhola”, mais abrangente e confortável, dadas as circunstâncias. Ao contrário, é ela que faz o reino ser parte de uma Espanha unificada, é essa mesma condição portuguesa que exigiria a unificação política.

Foi sua coerência nesse projeto de Espanha que o levou a manter sua fidelidade a Castela mesmo depois da Restauração, pelo que acabou condenado por traição no arcebispado de Lisboa e desprestigiado em Madri, como se verá a seguir.

Conforme já mencionado, d. Lourenço esteve no Potosí como comissário do Santo Ofício em 1628-1629, antes de ter sido escolhido bispo do Rio de Janeiro por d. Felipe IV, e por lá teve contato direto com a ação da Companhia de Jesus em defesa dos índios em seus aldeamentos. Em especial, ele conheceu pessoalmente o padre Antonio Ruiz de Montoya e revelou seu apreço pelo trabalho que os inacianos realizavam com os nativos reduzidos - se o contato entre os dois não ocorreu na América, certamente teve lugar em Madri.20 20 O padre Antonio Ruiz de Montoya era um importante jesuíta que animara e defendera as reduções do Rio da Prata. Em seus trabalhos, ele foi a Madri em defesa dos indígenas de seus aldeamentos. A bibliografia relativa é razoavelmente numerosa e conta com um título publicado ainda no século XVII: JARQUE, Francisco. Vida prodigiosa, en lo vario de los sucessos, exemplar en lo heroico de religiosas virtudes, admirable en los favores del cielo, gloriosa en lo apostolico de sus empleos, del venerable padre Antonio Ruiz de Montoya. Saragoça: Miguel de Luna, 1662. A relativa proximidade com o jesuíta e com seus temas de proteção aos indígenas pode ser verificada em escritos posteriores à patriótica súplica de 1630. Por exemplo, cerca de dez anos depois, saem publicados em Madri dois livros de Montoya relativos aos Guaranis do Paraguai; o primeiro é o conhecido volume da gramática e dicionário guarani, e o outro é uma narrativa histórica da formação da Província do Paraguai da Companhia de Jesus e dos principais acontecimentos que lá tiveram lugar.21 21 RUIZ DE MONTOYA, Antonio. Arte y bocabulario de la lengua guarani. Madri: Juan Sanchez, 1640; RUIZ DE MONTOYA, Antonio. Conquista espiritual hecha por los religiosos de la Compañia de Jesus en las províncias del Paraguai, Parana, Uruguay y Tape. Madri: Imprenta del Reyno, 1639. Esta segunda obra de Montoya contém uma narrativa detalhada dos ataques bandeirantes sobre os aldeamentos e dos massacres e aprisionamentos de índios. Em ambas as obras, Montoya agregou aprovações de d. Lourenço de Mendonça, prelado e bispo eleito do Rio de Janeiro, independentemente daquelas mais discretas e obtidas nas instâncias censórias de Madri. No seu parecer relativo à Conquista espiritual, o bispo elogia a política dos aldeamentos da Companhia de Jesus nos seguintes termos:

(...) fundaram nas ditas províncias um jardim de flores do céu e uma nova e primitiva Igreja que o lobo do inferno por tantas vias pretendeu destruir, e destruiu em grande parte, e fez fugir os guaranis de suas terras para além dos seus limites. Eu sou bom testemunho de muito disso e principalmente dos ditos frutos da redução de tantas almas e da glória de Deus, por estarem as ditas reduções tão próximas da minha diocese.22 22 “(...) fundaron en las dichas Provincias un jardin de flores del cielo, y una nueva, y primitiva Iglesia, que el lobo del infierno por tantas vias ha pretendido destruir, y aun en gran parte destruyo, y hizo huir de sus mismas tierras, y de los terminos dellas (...) De mucho de lo qual, y principalmente de los dichos frutos de reduccion de tantas almas, y gloria de Dios, yo soy buen testigo, por estar las dichas reducciones tan conjuntas con mi Diocesi.” RUIZ DE MONTOYA, Antonio. Conquista espiritual hecha por los religiosos de la Compañia de Jesus en las províncias del Paraguai, Parana, Uruguay y Tape, op. cit., páginas não numeradas.

Muito provavelmente, a escolha de d. Lourenço para a condição de bispo do Rio de Janeiro se deve aos seus feitos quando esteve no Potosí e à publicação de sua súplica em 1630. Afinal, nada mais conveniente que enviar um defensor dos portugueses, em harmonia com os memoriais de Olivares, com autoridade episcopal, para uma prelazia em que diversos moradores estavam em conflito agudo com religiosos e indígenas aldeados das ocupações castelhanas.

Os feitos e os desfeitos do prelado no exercício de sua função, quando esteve no Rio de Janeiro, foram brevemente narrados em textos de publicação antiga e ainda considerados em estudos relativamente recentes, mas dedicados a outros problemas.23 23 Dado o caráter um tanto espetacular de sua passagem pelo Rio de Janeiro, as iniciativas mais importantes de contar uma história da diocese referem-se sumariamente à estada e aos feitos de d. Lourenço na cidade. Já no segundo volume da Revista do IHGB, de 1840, há uma narrativa da fundação da Igreja do Rio de Janeiro em que a expulsão do prelado é registrada em termos bastante sumários: Cf. Memória da fundação da Igreja de S. Sebastião. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 2, 1840, p. 165. Segue no mesmo diapasão, embora ofereça mais detalhes, PEIXOTO DE ALENCAR, Carlos Augusto. Roteiro dos bispados do Brasil. Fortaleza: Tipografia Cearense, 1864, p. 89-92. Os textos sobre a formação da Igreja no Brasil, quando se referem a esse prelado, acabam repetindo os mesmos ditos. Os estudos mais recentes serão referidos a seguir. Na verdade, o padre teve de enfrentar dificuldades inesperadas que não poderiam passar em branco, dados os enormes problemas vinculados a elas. Suas dificuldades relacionaram-se com a escravidão indígena, a imunidade eclesiástica, as tensões entre a Igreja e a monarquia, as autonomias citadinas e, sobretudo, o turbilhão português de 1640.

A passagem de d. Lourenço pelo Rio de Janeiro já foi referida por diversos estudiosos que se deram ao trabalho de analisar os sucessos pregressos da cidade. O conflituoso exercício do religioso à frente da prelazia não poderia ser esquecido ao longo dos séculos; afinal, ele fora deposto de suas funções pelas autoridades locais em meio a conflitos agudos com os moradores e, ainda que a Câmara da cidade, o ouvidor ou mesmo o governador não tivessem jurisdição para isso, o bispo eleito foi embarcado à força para Lisboa. Ao longo dos tempos, um feito desses não poderia ficar abandonado em um caixote empoeirado da diocese. Para além de documentos coetâneos, de que se tratará mais adiante, diversos escritores de memórias da cidade e de sua Igreja buscaram interpretar esses acontecimentos. Em 1820, José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo publicou nove volumes dedicados à História do Rio de Janeiro, àquela altura já em vias de sua transformação em capital do Império do Brasil. A obra monumental refere-se ao caso de d. Lourenço em termos bastante desfavoráveis aos moradores, que teriam perseguido o prelado por força de seu empenho em corrigir os costumes soltos dos portugueses da cidade. Com isso, Pizarro e Araújo acaba elidindo o problema indicado pelo próprio bispo eleito como sendo a causa de seus males no Rio de Janeiro: seu combate à escravidão indígena. Nas quatro páginas dedicadas ao caso do prelado expulso, em momento algum o autor faz referência a esse problema, deixando aos costumes frouxos, à moralidade relapsa e à religiosidade relaxada da população a responsabilidade pela perseguição a d. Lourenço:

O ódio concebido à observância das Constituições dos Prelados, que só tendiam à reforma de costumes, e boa direção das almas de seus súditos, não podia sofrer tanta vigilância, nem o sistema de trabalho, com que zelava este pastor o proveito espiritual da sua Diocese.24 24 SOUZA AZEVEDO PIZZARRO E ARAÚJO, José de. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas à jurisdição do vice-rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1820, v. II, p. 220.

Ao menos Pizarro e Araújo identificou a deposição de d. Lourenço e buscou alguma explicação para o inusitado acontecimento, ainda que fizesse desaparecer o problema principal. Francisco Adolfo de Varnhagen, entusiasta do império e considerado o grande historiador do Brasil, cuja obra marcou de forma indelével a historiografia brasileira, cita d. Lourenço de Mendonça como exemplo das ingerências indevidas da Igreja sobre matéria civil! O celebrado membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro trata da matéria a partir de suas condenações à ação dos padres da Companhia de Jesus, como se o prelado não tivesse autonomia na matéria e como se as próprias leis civis não condenassem a escravidão dos nativos. O prelado é então caracterizado como um religioso que excedeu suas funções, sob influência dos jesuítas:

Os administradores eclesiásticos e seus substitutos, ajudados sempre pelos jesuítas, de tal modo adjudicavam poderes temporais, na qualidade de comissários do Santo Ofício e da Bula, e de vice-coletores do Papa, que o povo estava com eles em hostilidade contínua, e todos eles acabavam mal e alguns com suspeitas de envenenamento. É natural, pois não temos documentos autênticos para o poder afirmar, que a influência do Santo Ofício de Lisboa contra os colonos do Rio de Janeiro date do primeiro século da colonização (...) O escândalo chegou a tal ponto que se fez necessária uma carta régia ordenando aos ouvidores do Rio que não consentissem que o bispo d. Lourenço de Mendonça (que fora para Castela, cujo partido seguira), ou seus ministros prendessem seculares, o que bem deixa ver que até então isso se praticava.25 25 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1854, p. 405-406, t. I.

Varnhagen certamente estava tão impactado pelos embates com a Igreja do seu próprio tempo, aquele do Império do Brasil e do “ultramontanismo”, que sequer se preocupou em verificar a data da expulsão de d. Lourenço e aquela de sua morte. Ele não considerou ainda que quando a tal carta régia fora assinada, em 1646, por João de Bragança e não por Felipe de Castela, d. Lourenço já estava morto após cinco anos de vida desprestigiada em Madri, conforme se verá mais adiante.26 26 Em nota de margem, o historiador assinala que o documento real data de 10 de maio de 1646. Seu vigoroso empenho também não considerou que a Restauração, com o rompimento com a monarquia católica de d. Felipe IV, mudara também a política de Portugal com relação à escravização das populações indígenas do Brasil. Com isso, Varnhagen acabou invertendo o argumento principal do próprio prelado: como se fosse o bispo eleito que tivera ultrapassado sua jurisdição, como se fosse ele a depor o ouvidor!

Embora possam aparecer citações em obras ainda mais antigas sobre a História Eclesiástica do Rio de Janeiro ou do Brasil, o tema fica balizado pelas exposições já apresentadas. Ou seja, a passagem de d. Lourenço de Mendonça pelo Rio de Janeiro, quando foi considerada, foi narrada de modo bastante assemelhado ao que já ficou exposto aqui. Além do que, os mais significativos empreendimentos literários do século XVIII, a Academia Brasílica dos Esquecidos, a Academia dos Renascidos e a Sociedade Literária do Rio de Janeiro simplesmente não se referem à expulsão de d. Lourenço em seus escritos, como se o prelado e seu destino na cidade fora uma assombração que não importava registrar ou considerar na formação da Igreja local.

Mas, no século de Varnhagen, d. Lourenço chegou a ser objeto de um romance histórico publicado pela primeira vez em 1868 e reeditado poucas vezes ao longo das décadas.27 27 Cf. MOREIRA DE AZEVEDO, Manuel Duarte. Lourenço de Mendonça, episódio dos tempos coloniais. Rio de Janeiro: Typ. Indústria Nacional, 1868. Nesse livro, o prelado é apresentado como uma malvada autoridade religiosa que sequestra e conspira contra o amor de Henrique, jovem filho de um antigo desafeto, e de Helena, inocente e rica herdeira local. O livro, na realidade, não chega a empolgar muito por suas características literárias - não se trata de um bom exemplo do romantismo literário brasileiro. Na trama entram diversos personagens da vida da cidade em meados do século XVII, com papéis mais ou menos detalhados: o padre João de Almeida, por exemplo, o ouvidor Paulo Pereira e outros mais. A operação de inversão literária leva Azevedo a responsabilizar d. Lourenço pela queima da própria residência, pois o personagem teria levado para casa um barril de pólvora apreendido indevidamente no cais da cidade. Seu tema central acompanha a tese do abuso de poder por parte do bispo eleito, sem dar destaque à política de correção dos costumes e sem sequer mencionar as iniciativas de d. Lourenço de enfrentamento da escravidão indígena. Aliás, o único personagem que apresenta traços indígenas em todo o romance é Antônio das Canoas, um pescador mameluco que salva o bispo da morte certa na Baía da Guanabara. Em todo o livro, os indígenas simplesmente não aparecem como tais: vê-se de quase tudo, beatas, rezadeiras, comerciantes, vereadores, pobres, religiosos, soldados e escravos - sem que sua origem nativa ou africana seja mencionada -, menos indígenas. Decididamente Moreira de Azevedo não incluiu os nativos como parte de sua estória e menos ainda tentaria tirar proveito literário das ações de um defensor de suas liberdades.

De fato, essa descaracterização fica mais anômala quando se considera que os traços impressos do bispo eleito não se restringem ao livreto de 1630. Assegura o padre Arlindo Rubert que Mendonça escrevera um memorial propondo linhas de ação na prelazia do Rio de Janeiro ainda antes de partir para o Rio de Janeiro.28 28 Cf. RUBERT, Arlindo. O prelado Lourenço de Mendonça, primeiro bispo eleito do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 311, p. 13-33, 1976. Os pontos principais indicam as riquezas locais, a vasta extensão de terras e os problemas gerados na religiosidade das populações. De fato, o historiador da Igreja no Brasil não deixa de assinalar o grave conflito entre o bispo eleito e os comerciantes e donos de gente indígena, mas o faz em meio a um conjunto grande de problemas em que a inabilidade do prelado ganha destaque. Em registro parecido, há poucos anos Diogo Ramada Curto também lembra outros memoriais escritos pelo prelado, anteriores ao seu desembarque no Rio, e preservados em bibliotecas europeias. Para o historiador português, o combate do religioso pela liberdade dos índios já aparece com maior destaque nas suas ações.29 29 RAMADA CURTO, Diogo. O padre Lourenço de Mendonça: entre o Brasil e o Peru (c. 1630-c. 1640), op. cit.

Oito anos depois de sua publicação patriótica, d. Lourenço enviou um memorial e pedido de mercês ao rei em que dá conta de sua estada na prelazia do Rio de Janeiro, do que ele fez e do que ele padeceu por lá. O texto é bastante curto, conta apenas doze páginas impressas em português, e remete constantemente à documentação anexada, sugerindo que se trata de memorial justificado com documentos comprobatórios de seus ditos. Um exemplar desse texto, sem a documentação complementar, encontra-se entre os papéis de Jerónimo Mascarenhas na Biblioteca Nacional de Espanha.30 30 MENDONÇA, Lourenço de. Memorial al Rey Phe. 4. de los excesos que se cometian en la India y Rio Janeiro pidiendo su remedio. Sucesos del año 1638. Coleccion Mascareñas, mss 2369, fol. 296-301. O texto foi impresso em português.

D. Lourenço saiu de Madri no final de 1631 com determinações expressas do Conselho de Índias e do Conselho de Portugal relativas ao problema da escravização dos nativos. Ele certamente aportou na sua prelazia no ano seguinte, desembarcando na capitania do Espírito Santo e partindo alguns meses depois para o Rio de Janeiro. Diz o bispo que, logo na sua chegada, constatou a prática do comércio de indígenas escravizados na cidade. Ele conta que, após terem rapinado índios locais e esgotado as populações indígenas vizinhas desde os anos 1620, os moradores da sua diocese (Rio de Janeiro, São Vicente e São Paulo) vinham avançando sobre as reduções guaranis do Paraguai, do Potosí, da província dos Patos e de outros domínios da coroa de Castela, do que Antonio Ruiz de Montoya irá tratar na sua Conquista espiritual, publicada quase dez anos depois:

É em razão das entradas que com tão notáveis danos tantos moradores da dita sua diocese do Rio de Janeiro, assim dos lugares da costa, como das vilas da terra adentro fazem entrando por terra por várias partes as ditas províncias das Índias de Castela, e chegando já à de Santa Cruz de La Sierra, que é no Peru. E o que é pior, e mais danoso, que com eles vão muitos estrangeiros das nações do norte nossos inimigos e de algumas do Levante. E tiram aos índios que estão já feitos cristãos, e sujeitos a V. Majestade, e a outros das mesmas províncias que estão para se converter e reduzir, trazendo-os tantos centos de léguas fora de seu natural, e com os excessos que se verão, os vendem, sendo livres, como se foram escravos, no dito Rio de Janeiro, que é na costa do mar do Brasil.31 31 Ibidem, fol. 1.

Em seu relatório, o bispo eleito lembra que a violência contra os nativos foi perpetrada contra todo o bom senso, cristandade e contra as leis divinas e humanas, incluindo as numerosas proibições e leis reais que reconhecem os nativos como súditos livres, tal e qual os portugueses e os castelhanos. D. Lourenço lança mão de cores bastante vivas e de elementos clássicos da literatura do sofrimento na descrição das barbaridades cometidas pelos bandeirantes contra os indígenas: pais queimados vivos diante dos filhos, mães mortas com seus filhos de colo ainda mamando em seus seios etc. Muitos desses testemunhos aparecem também na obra referida do padre Montoya, embora o texto de d. Lourenço seja datado de fevereiro de 1638 e a Conquista espiritual do jesuíta seja de maio do ano seguinte, ambos publicados em Madri.

A captura descrita pelo bispo eleito não distinguia os índios cristãos dos demais, e todos eram vendidos como escravos em São Paulo e no Rio de Janeiro, embora súditos de d. Felipe IV.32 32 D. Lourenço fala de dezenas de milhares de indígenas trazidos do Paraguai e do sul de sua diocese e de sua comercialização no Rio de Janeiro e na Bahia. Cf. Ibidem, fol. 1v-2r. Essa condição alarmava o prelado: ele não conseguia compreender que a fragilidade dos nativos diante da barbárie bandeirante não poderia resultar em coisa muito diferente em uma terra de conquista, sem os freios morais, políticos e religiosos que tanto defendia. D. Lourenço alarmou-se ainda com a atitude de autoridades públicas locais que, em vez de corrigir a ilegalidade brutal cometida pelos traficantes de gente, acabavam por participar em benefício próprio da venda de nativos já cristianizados: “e o pior é, que alguns ministros da Justiça que foram do Rio de Janeiro às ditas vilas por correição, os trouxeram da mesma maneira presos e se pagaram neles as custas que as partes lhe deviam.”33 33 Ibidem, fol. 2r.

O bispo eleito tentou impedir a escravização dos índios e enviá-los de volta às suas terras e às reduções, cumprindo com o que lhe foi determinado pelos Conselhos de Índias e de Portugal, porém, a tentativa revelou-se infrutífera e só o fato de ter tomado a iniciativa já lançou contra si mil ódios na prelazia. Temerosos dos castigos que lhes seriam infringidos, muitos moradores dissimulavam a possessão de escravos indígenas, escondendo seu pecado maior em um menor: a mentira, a dissimulação, o silêncio. Ao que o padre assegurou, a população da diocese do Rio de Janeiro assentia ou se beneficiava diretamente do tráfico de homens livres. De fato, ele atribuiu todos os males que sofreu na diocese antes de ser forçado a retornar à Europa ao seu empenho em atalhar a escravidão indígena:

E assim pelo dito, como por ser tão contra toda justiça o vendê-los, sendo livres, e cristãos, e tão em descrédito da Fé, e lei que lhe pregamos, fez ele prelado as tão notáveis diligências para que não fossem vendidos, nem mediante isso deitados para mais longe, ainda que padecendo nisso e por isso o prelado tanto.34 34 Ibidem, fol. 2v.

Assegura d. Lourenço que fora hostilizado desde sua chegada por força do combate que ofereceu à tomada de índios e à sua escravização e venda na prelazia do Rio de Janeiro. O prelado teria sido inclusive avisado de que não deveria tocar nesse problema, garantindo dessa forma o amor e a colaboração dos moradores. O preço a pagar por sua interferência nesse assunto seria a perseguição com os meios de que eles dispunham: agravos da Câmara da cidade e embaraços no cumprimento de suas funções e até mesmo a expulsão. Seu desgosto na cidade devia-se, além desse problema central, e segundo ele mesmo, ao exercício de suas funções eclesiásticas normais; devia-se à punição a uma feiticeira e a seus clientes que agiam em uma igreja local, à cobrança da Bula da Cruzada, ao reenvio a Portugal de homens por lá casados etc. Temas aliás também constantes de regimentos dos ouvidores gerais enviados pelo governo à cidade ao longo das décadas anteriores, sempre com importância assinalada para o problema da escravidão indígena.35 35 Os regimentos dos ouvidores foram analisados há mais de dez anos no trabalho: GUIMARÃES SANCHES, Marcos. O rei visita seus súditos: a ouvidoria do Sul e as correições na câmara do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 164, n. 421, p. 123-142, 2003.

Além desses, o bispo relata um desacato que dá o que pensar sobre ataques a símbolos religiosos no Brasil daqueles tempos. Ele sugere que um clérigo afastado pelo prelado por má reputação junto aos moradores, certo Arrevessa Toucinho, alcunha do padre Manuel da Nóbrega, teria se vingado na cruz da rua Direita. Com isso, o prelado ainda inocentou cristãos-novos e holandeses, tradicionalmente responsabilizados por esses feitos:

(...) acrescentou-se a isso acudir ele prelado a um grande e escandaloso desacato, que amanheceu feito a uma formosa cruz que estava na rua Direita, onde se faz o altar da procissão dos passos da Paixão, que com grande dor dos fiéis, e dos novos cristãos, e grande nota dos forasteiros do Peru e Rio da Prata, e mofa de tantos holandeses, amanheceu em pedaços e esses pendurados como quartos de enforcado; e mais que não foi flamengo, nem holandês, nem tão pouco secular o que o fez, assaz se cala.36 36 MENDONÇA, Lourenço de. Memorial al Rey Phe. 4. de los excesos que se cometian en la India y Rio Janeiro pidiendo su remédio, op. cit., fol. 3r.

De fato, o ataque direto a um símbolo religioso revela desprezo pela confissão religiosa e pelas crenças alheias, mas pode também mostrar profundo descontentamento com a conduta de algum responsável religioso local. Afinal, o ataque a um crucifixo público, ou a uma estátua da virgem, tem enorme poder agressivo e eloquente significado político e mostra ainda uma atitude de desassombro diante do sagrado, mas também evidencia revolta e desgosto. É certo que o ataque ao crucifixo também é uma agressão aos seus principais defensores: o clero e a suas hierarquias locais. O responsável pelo ataque estaria insatisfeito com as medidas do prelado na administração eclesiástica da cidade.

Não são pequenos os problemas registrados no memorial e também não estão restritos a uma hostilidade voltada apenas a d. Lourenço de Mendonça, por parte dos moradores do Rio de Janeiro. Um dos exemplos que narra refere-se à Visitação do Santo Oficio realizada pouco anos antes de sua chegada à prelazia.37 37 As Visitações do Santo Ofício ao Brasil vêm sendo analisadas nos tempos mais recentes, com resultados bastante interessantes para o que importa no presente trabalho. Em especial, há alguns anos foi publicado um estudo que busca situar o problema inquisitorial nos domínios americanos de Portugal: FEITLER, Bruno. Dos usos políticos do Santo Ofício no Atlântico. O período filipino. In: MELLO E SOUZA, Laura; FERREIRA FURTADO, Júnia; BICALHO, Maria Fernanda (Orgs.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009, p. 241-262; cf. FEITLER, Bruno. Usos políticos del Santo Oficio portugués en el Atlántico (Brasil y África Occidental): el período filipino. Hispania Sacra, v. 119, p. 269-291, 2007. O comissário do Tribunal teria sido vítima do povo amotinado contra si e até mesmo apedrejado por crianças em virtude de seu ofício, “e isso foi ontem e notório por todo o mundo”.38 38 A Visitação do Santo Ofício ao Rio de Janeiro já foi estudada em algumas ocasiões. Especialmente GORENSTEIN, Lina. A terceira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (século XVII). In: FLEITER, Bruno; LAGE, Lana; VAINFAS, Ronaldo (Orgs). A Inquisição em xeque. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006; mas sobretudo SANTOS PEREIRA, Ana Margarida. Terceira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Capitanias do Sul, 1627-1628. História e Sociedade, Vitória da Conquista, v. 11, n. 1, p. 35-60, 2011. Neste último texto, a autora identifica o insucesso da Visitação, mas não aponta o mesmo padrão de oposição ao comissário em seu trabalho, cf. p. 57. Não deixa de ser curioso perceber que o combate da população ao comissário do Santo Ofício não tenha despertado interesse para reflexões mais detidas nos últimos anos. Mas os problemas com as autoridades não se restringiram apenas à Inquisição; os três primeiros prelados enviados ao Rio de Janeiro foram envenenados ou corridos no Espírito Santo, no próprio Rio de Janeiro e em São Paulo. A incompatibilidade da cidade com as autoridades religiosas estendia-se também aos oficiais da monarquia: a Câmara do Rio chegou a prender e a despachar de volta à Bahia um desembargador e um ouvidor, ambos enviados para correção das ilegalidades cometidas por lá antes da sua chegada à cidade.39 39 O desembargador era João de Sousa de Cardenas, e o ouvidor, Paulo Pereira. Cf. MENDONÇA, Lourenço de. Memorial al Rey Phe. 4. de los excesos que se cometian en la India y Rio Janeiro pidiendo su remédio, op. cit., fol. 3v. Ou seja, a população local mostrava-se rebelde e irredutível até mesmo às ações de oficiais do rei no sentido de garantir a obediência às leis do reino. Os moradores não aceitavam a submissão em temas que contrastassem seus modos próprios de vida, entre eles e em primeiro lugar, a escravização dos nativos. D. Lourenço não deixa de lembrar o dito de um antigo governador-geral, responsável pelo combate à invasão francesa no Maranhão no início do século XVII: “o governador Gaspar de Sousa dizia que o Rio de Janeiro era terra por conquistar.”40 40 Ibidem, fol. 3r.

Com tamanha hostilidade antiga aos oficiais do governo ou aos eclesiásticos, d. Lourenço não deveria esperar fácil aceitação por parte dos moradores do Rio de Janeiro. Conta ele que, no quarto dia de sua instalação na cidade, foi vítima de uma tentativa de assassinato, quando colocaram um barril de pólvora ao lado de seu leito e atearam um fogo tão imponente que fez arder toda a casa em que estava hospedado. E as iniciativas não pararam. Ao longo do tempo, outras tentativas de matá-lo foram feitas, em especial, no engenho de Diogo Rodrigues de Faria, a casa em que o prelado dormia foi alvo de diversos tiros de arcabuz.

De fato, seu combate à escravidão indígena lhe fez inimigo mortal dos beneficiados por essas práticas e, a se crer no que ele narra, sua fama lhe precedeu na viagem ao Rio de Janeiro. Naquele tempo, combater alguma dimensão da escravidão não era efetivamente coisa que pudesse passar sem maiores resistências no Brasil.

No entanto, o que acaba por justificar o próprio memorial do bispo eleito foram os capítulos apresentados por moradores e pela Câmara da cidade contra ele. A petição em prol do povo do Rio de Janeiro foi primeiramente enviada a Salvador para apreciação do bispo da Bahia, de quem se esperava alguma atitude contra o prelado, o que não veio a ocorrer por força da autonomia da prelazia, garantida na bula de sua fundação e certamente pelo bom senso de d. Pedro Sampaio, então bispo do Brasil. No que diz respeito à correção dos costumes, e à bula da Cruzada, d. Lourenço era o único juiz no Rio de Janeiro e capitanias anexas; e no que toca à sua ação, o metropolitano nada poderia fazer, caso desejasse, dizia d. Lourenço em uma clara hipervalorização de sua autonomia na matéria. De fato, “viu o dito bispo da Bahia tudo, e condenou o dito cabeça e autor dos capitulantes e conjurados em quinhentos cruzados”.41 41 Ibidem, fol. 4v.

Mas o ouvidor e a Câmara da cidade não se deram por vencidos e lançaram pregão para que ele não fosse reconhecido como prelado nem comissário da Cruzada e que suas excomunhões não fossem reconhecidas. O ouvidor também lançou acusações públicas contra o prelado, reuniu o povo da cidade para ofendê-lo injustificadamente em praça pública: “velhaco”, “herege”, “ladrão”, “sacrílego”, “simoníaco”. Contava esse oficial da cidade com o apoio de Fábio Moja Calabares (“antigo revoltoso”), do “perniciosíssimo” sacerdote Francisco Carneiro e do frei João da Cruz (“natural dos negros de Angola”), “gente baixa” e indigna. Eles teriam ainda espalhado inúmeros folhetos em todo o Brasil, em Portugal e nas Índias de Castela contra o prelado. “Não se faz mais em Genebra”,42 42 Idem. lamentou o religioso.

O conflito com o ouvidor foi se tornando cada vez mais agudo a partir de meados de 1636, chegando ao ponto de os conspiradores prenderem e maltrataram seus criados laicos e torturarem seu capelão, Tomé da Costa, que por ser um menino de 14 anos e não ser religioso estava sob jurisdição civil. As acusações contra o bispo e o capelão remetiam ao Tribunal da Inquisição, e d. Lourenço não esclarece quais eram, diga-se de passagem. Contudo, mesmo uma rápida reflexão já permite imaginar seu teor. Os principais conspiradores embarcaram o capelão e o prelado nos navios que iam para Lisboa, junto com os capítulos contra o bispo eleito e os documentos “forjados” contra o capelão e seu amo. Mal chegaram ao destino, em 6 de junho de 1637, o menino foi entregue em custódia ao Tribunal com toda a papelada feita sobre ele e o bispo. Examinada a denúncia pelos oficiais responsáveis, Tomé da Costa foi solto sem que se atestasse culpa em 19 de junho. Assinam a sentença Pantaleão Rodrigues Pacheco e Simão Torrezão Coelho.43 43 A sentença do Tribunal da Inquisição de Lisboa foi agregada ao final do memorial. Cf. Ibidem, fol. 6v.

Enfim e ao cabo, o bispo eleito do Rio de Janeiro, d. Lourenço de Mendonça, foi deposto pelo ouvidor e pela Câmara da cidade, “fazendo-se Papa ou juiz metropolitano publicou por excomungado ao prelado”.44 44 Ibidem, fol. 4v. Ele não deixa de lamentar a ausência de Salvador Correia de Sá y Benevides, “porque é muy servidor de V. Majestade, e zeloso do bem comum”.45 45 Idem. De fato, o herdeiro notável dos primeiros chefes militares da cidade era o grande homem da capitania e um dos mais expressivos dirigentes do ultramar português; sua proximidade com as políticas dos padres da Companhia de Jesus e seus entendimentos com eles e com os moradores garantiam uma certa, porém não constante, pacificação do Rio de Janeiro, que certamente não incluía o reconhecimento da liberdade dos nativos.46 46 Cf. a biografia já um tanto antiga, mas sempre importante, feita por BOXER, Charles. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola 1602-1686. São Paulo: Nacional, 1973.

O prelado foi embarcado à força para Lisboa junto com seu capelão, embora em navios diferentes, sob acusações afetas ao Santo Ofício, que ademais não foram acolhidas. Para além do que ele mesmo narra, sua deposição das funções eclesiásticas também ficou registrada em documentação da Igreja da cidade do Rio de Janeiro. O manuscrito publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, há bem mais de um século e já referido anteriormente, conta os esforços para a estruturação da diocese e o caso de d. Lourenço aparece descrito nos seguintes termos:

Tomou posse a 9 de setembro de 1633 (sic), e com este lugar herdou as afrontas com que o tratou o povo desde os primeiros dias de sua residência, chegando ao excesso de o fazerem embarcar em um desaparelhado barco, deixando o seu último destino à Providência; porém felizmente o salvou a gente de uma embarcação que estava no poço (sic), e por último foi preso, e remetido para Lisboa, ao Tribunal do Santo Ofício, por crimes indignos de seu Estado; e ali, dizem, que mostrando-se inocente, fora, por ordem do Soberano, consultado para o cargo de Prior do Convento de Aviz.47 47 Memória da fundação da Igreja de S. Sebastião, primeira matriz que teve a cidade do Rio de Janeiro, com um catálogo dos prelados administradores da jurisdição eclesiástica que houveram ate o ano em que esta matriz foi elevada à dignidade de Sé Episcopal. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 2, 1840, p. 185.

D. Lourenço de fato teve motivos para se amargurar na sua prelazia, sobretudo pelo fato de chegar defendendo a liberdade dos indígenas e ver sua política ser combatida tão vigorosamente e de forma tão desviada. Ao que parece, as denúncias “afetas ao Santo Ofício” e outras mais que sugere seriam apenas formas de camuflar a revolta da população quanto às atitudes do prelado de combate à flagrante escravização e comercialização de índios cristãos e súditos de d. Felipe IV. Ou seja, a cidade não admitia de forma alguma que a barbárie contra os índios fosse tocada por autoridade alguma: esse problema estaria fora do consenso que garantia a governabilidade local. O bispo eleito não poderia mais do que expressar as dores do seu desengano com os moradores de sua prelazia. Ele mostra seu desgosto e sentimento em uma frase bastante sintética: “Esta é a paga que, sendo portugueses, deram a quem com o livro, que escreveu em defesa dos portugueses, tanto os defendeu e honrou a todos.”48 48 MENDONÇA, Lourenço de. Memorial al Rey Phe. 4. de los excesos que se cometian en la India y Rio Janeiro pidiendo su remédio, op. cit., fol. 4v.

É curioso constatar que d. Lourenço não tenha feito referência alguma aos jesuítas do Rio de Janeiro ou de São Paulo em seu escrito, como aliás não se referiu às outras ordens religiosas. De fato, sua proximidade com Montoya e seus embates contra a escravidão indígena sugerem que os padres da Companhia deveriam ser forte apoio do prelado nessa matéria. E, no entanto, ele nada diz dos inacianos da Província do Brasil.

Por outro lado, o problema do comércio de indígenas escravizados no Rio de Janeiro foi assinalado em diversa documentação coetânea e parece ter sido algo que não poderia ser dissimulado pelos vendedores ou pelos compradores de gente. Por exemplo, o governador de Buenos Aires, d. Pedro Esteban D’Avila, no caminho para tomar posse de sua governança, passou pelo Rio de Janeiro em outubro de 1637 e não deixou de notificar a d. Felipe IV a prática corriqueira da venda de índios na cidade:

Assim que cheguei ao Rio de Janeiro, eu vi e reconheci ser correta a relação que me havia sido feita, pois diante de meus olhos se vendiam os índios naquela cidade, que foram trazidos pelos moradores de São Paulo como se fossem escravos e tidos como tais por Vossa Majestade. Eu averiguei verbalmente que do ano de 1628 até 1630 os moradores de São Paulo trouxeram mais de 70 mil almas das reduções dos padres da Companhia do distrito deste e do governo do Paraguai, e que eles tinham praticado ali crueldades e desumanidades incríveis e até mesmo faltaram em suas ações às obrigações de cristãos católicos.49 49 “Y llegado que fui al Rio Jenero vi y reconoci ser cierta la relacion que se me avia hecho pues a mis ojos se vendian los Indios en aquella ciudad traydos por los vezinos de la Villa de San Pablo, como si fueran esclavos y dados por tales por V. Mag. e ynformado vine averiguar vervalmente como desde el año de 28 hasta el de 30 avian traydo los vezinos de San Pablo mas de setenta mil almas de las reduciones de los padres de la compañia del destrito de este govierno y del del Praguay, en que avian usado los dichos vezinos de San Pablo crueldades y inhumanidades increybles hasta faltar en sus acciones a católicos Xrtianos.” Carta do Governador de Buenos Aires a d. Felipe IV, 12 de outubro de 1637. In: CORTESÃO, Jaime (Org.). Jesuítas e bandeirantes no Itatim (1596-1760). Rio de Janeiro: BN, 1952, p. 61.

O comércio de indígenas nas ruas do Rio de Janeiro é ainda atestado em variada documentação de natureza semelhante e nada sugere que o prelado tenha hiperdimensionado o problema por força de suas conveniências. De fato, não se teria muito a contestar d. Lourenço na atribuição da origem de suas dificuldades na prelazia ao combate oferecido a essas práticas. É importante lembrar que o memorial do prelado foi datado de fevereiro de 1638, oito meses após sua chegada a Lisboa, e que o governador de Buenos Aires, citado anteriormente, não poderia ter tido contato com esse texto, tampouco com o livro impresso de Montoya.

D. Lourenço fecha seu memorial com um pedido de mercê ao rei, em que solicita uma diocese vaga em Portugal, o que, ademais, não lhe foi atendido. Por outro lado, se as acusações não foram acolhidas e o réu capelão inocentado junto com ele, a conspiração do ouvidor ao menos conseguiu uma vitória significativa: retirou do Rio de Janeiro um prelado protetor dos índios e conseguiu manter por ainda muito tempo o comércio de nativos na cidade. Por consequência, a derrota sobre essa questão deixou d. Lourenço sem seus rendimentos da prelazia, que eram bastante grandes. Diante dessa situação, ele acabou tendo que recorrer ao governo para seu sustento. Conforme registro de outros documentos, ele solicitou ao rei, em outubro de 1640, ajuda de custo para prover suas necessidades em Lisboa, e isso quando os restauradores já agiam abertamente na cidade para a derrubada do poder castelhano.50 50 Cf. AHU, Brasil — Rio de Janeiro, cx. 2, doc. 190.

O memorial do bispo eleito deve ter corrido um tanto nos tempos imediatamente posteriores a sua chegada em Lisboa. No final da década de 1630, a questão da escravização de indígenas preocupava bastante a monarquia, como já foi visto, e o testemunho de um prelado deposto nas circunstâncias já descritas não poderia passar em branco. De fato, há sinais de que o texto de d. Lourenço circulou em outras versões antes daquela em português, impressa na corte de Madri. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), por exemplo, guarda uma cópia manuscrita do texto, datada de 1637, em castelhano, com variações pouco significativas.51 51 Arquivo IHGB, 219/17. Ao que tudo indica, o memorial de onde a versão do IHGB foi copiada já deveria ser, ele mesmo, uma cópia castelhana. No entanto, salta aos olhos que as parcas referências a esse manuscrito não tenham registrado o problema central da deposição e sua dependência das iniciativas em barrar a escravização indígena.52 52 Há uns dez anos foi publicado um estudo que parece elidir o problema indígena em favor de uma celebração da rebeldia dos moradores: SALDANHA ÁLVAREZ, José Maurício. Foi público e notório para toda a gente: arte no teatro da política portuguesa no Rio de Janeiro colonial (1630-1641). Portugese Studies Review, v. 12, n. 2, p. 139-160, 2004/2005.

O bispo eleito denomina direta e inequivocamente o ouvidor que o acusou e depôs de sua prelazia: Francisco Taveyra de Neiva. De fato esse ouvidor exerceu sua função na cidade no ano exato em que d. Lourenço foi expulso, e as referências do prelado a ele indicam que se tratava de alguém já condenado em Salvador por delitos não indicados.53 53 “E assi ao tempo em que agora elle Prelado de la partio, o que da Baia foi por Ouvidor chamado Francisco Taveira de Neiva, está por acordão em Relação mandado justiçar por seus delictos.” MENDONÇA, Lourenço de. Memorial al Rey Phe. 4. de los excesos que se cometian en la India y Rio Janeiro pidiendo su remédio, op. cit., fol. 3r. De fato, o ouvidor viera da Bahia e, em pouco tempo do exercício na função, já reunira um grupo de moradores dispostos a impedir a ação do prelado no Rio de Janeiro. Taveyra de Neiva, “homem matador”, teria mobilizado gente da cidade e até mesmo religiosos na sua conspiração, como Francisco Carneiro, insatisfeitos com os trabalhos do prelado. Ao se considerar o que ele narra, o ouvidor teria tocado o sino e reunido os moradores para perpetrar publicamente a deposição do prelado e a prisão do capelão.

De fato, as funções do ouvidor daqueles anos em quase nada se pareciam com as atuais. Hoje em dia, o ouvidor é alguém designado por uma autoridade ou empresa para receber e levar adiante queixas contra o exercício do comando por parte de estratos intermediários, entre outras coisas assemelhadas. No século XVII e nos domínios de Portugal, o ouvidor tinha a função de zelar pelo bom cumprimento das leis e dos mandatos reais nas cidades metropolitanas e nas conquistas; ele era um oficial que deveria zelar pelo “bem comum” e pela obediência local ao poder que o designou. Eles eram nomeados periodicamente para realizar suas correições nas cidades portuguesas do ultramar. Suas funções já foram bem analisadas em trabalhos bastante detalhados, o que dispensa uma exposição mais cuidadosa aqui.54 54 Cf. GUIMARÃES SANCHES, Marcos. O rei visita seus súditos: a ouvidoria do Sul e as correições na câmara do Rio de Janeiro, op. cit.; PEREIRA DE MELLO, Isabele de Matos. Poder, administração e justiça: os ouvidores gerais no Rio de Janeiro (1624-1696). Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade, 2010.

No Rio de Janeiro, a ação dos ouvidores se fazia quase que permanentemente, confundindo-se em algumas ocasiões com as funções próprias da Câmara local. Há quase cem anos, foram publicados os autos de correição dos ouvidores da cidade preservados no arquivo local.55 55 TOURINHO, Eduardo. Autos de correições de ouvidores do Rio de Janeiro. Primeiro Volume. 1624-1699. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 1929. Esses documentos são padronizados e foram escritos na forma de perguntas feitas pelo ouvidor e em respostas dadas pelos oficiais da Câmara. Nessa obra, constata-se que as correições registradas apresentam um caráter formal bastante acentuado, limitando assim os registros de conflitos envolvendo os moradores e as autoridades enviadas à cidade, como o que ocorreu a Paulo Pereira em sua correição de 6 de agosto de 1631; pelo que ficou registrado na Câmara do Rio de Janeiro, nada se pode saber de suas desavenças com os moradores e de sua expulsão naquele mesmo ano, por exemplo. De fato, as correições mostram atos de grande interesse para a história urbana local: abertura de ruas, de valas; e organização do comércio local, dos matadouros e de outras medidas governativas da cidade, sem mais detalhamentos dos conflitos mais ruidosos.

Francisco Taveyra de Neiva aparece como ouvidor-geral da Repartição Sul, assinando a correição em 22 de setembro de 1636. Nos autos, a questão relativa a problemas da cidade com os religiosos é respondida de tal modo pelos oficiais da Câmara que o problema com o prelado local simplesmente parece não existir:

Perguntou [o ouvidor] se nesta terra havia alguns clérigos revoltosos e travessos que tenham necessidade de castigos de seus superiores para os mandar notificar que os castigassem; responderam [os oficiais] que um padre por nome Manoel Alvares e o padre Manoel Monteiro Correa que hoje serve de vigário na Matriz desta cidade inquietavam esta República, de que se queixava todo o povo, digo todo este povo, e o dito Ouvidor-Geral respondeu proveria no caso como Sua Majestade o mandava.56 56 Ibidem, p. 29.

Certamente, o conflito da cidade com seu prelado já deveria andar vigoroso em setembro de 1636. Ao que d. Lourenço conta, as hostilidades começaram tão logo ele desembarcou no Rio de Janeiro, cerca de quatro anos antes, e causa espécie constatar que aquele que será o protagonista da sua expulsão nada registre nos autos de sua correição. Esse problema, no entanto, torna-se compreensível se levarmos em conta que não se tratava de religiosos “travessos” ou “revoltosos”, mas daquele que era o principal responsável eclesiástico local e que não seria do interesse do ouvidor deixar registro de seu conflito com ele, principalmente considerando a natureza do problema: o comércio de indígenas na cidade. Afinal, àquela altura, as insistentes disposições reais, e até mesmo do papa, sobre a liberdade dos índios não deixava alternativa oficial aos que se beneficiavam dessas práticas. Taveyra de Neiva bem pode dissimular as tensões com o prelado, ignorando sua existência.

A identificação da centralidade da escravidão indígena nos conflitos das populações com os diversos agentes eclesiásticos já foi apontada inúmeras e repetidas vezes.57 57 Recentemente, FEITLER, Bruno. Continuidades e rupturas da Igreja na América portuguesa no tempo dos Áustrias. A importância da questão indígena e do exemplo espanhol. In: CARDIM, Pedro; FREIRE Costa, Leonor; SOARES DA CUNHA, Mafalda (Org.). Portugal na monarquia hispânica: dinâmicas de integração e conflito. Lisboa: CHAM, 2013, p. 212; e FEITLER, Bruno. Missões indígenas e clero secular no Brasil colônia: o exemplo castelhano e as tentativas de normalização da malha eclesiástica sob os Felipes. In: CHAMBOULEYRON, Rafael; AREZ, Karl-Heiz (Org.). Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial. Dimensões do catolicismo português. Belém: Açaí, 2014. v. 3., p. 39. No caso específico da expulsão de d. Lourenço esse problema não poderia ser elidido ou francamente descaracterizado, como se o prelado tivesse retornado a Lisboa pacificamente, ou como se o conflito com o ouvidor se devesse apenas a limites de jurisdição. Essa questão era central e era ainda aquilo que distinguia a Igreja portuguesa do Brasil daquela do Velho Mundo.58 58 Em artigo recente, José Carlos Vilardaga identificou o problema e indicou algumas de suas consequências na caracterização das identidades ibéricas daquele tempo: VILARDAGA, José Carlos. Identidades instáveis: um padre português no império dos Felipes. Antíteses, v. 7, n. 13, 2014, p. 517-534. Além disso, é importante lembrar que as rupturas políticas na governança de Portugal tinham consequências na vida religiosa dos moradores do Brasil. E o caso específico do combate à escravidão indígena bem pode ser uma delas. Afinal, se d. Felipe fez algo para atalhar essas práticas, nada sugere que d. João seguiria na mesma orientação. Não será hipótese ruim considerar que a matéria esteve em consideração por muitos moradores quando tão prontamente apoiaram a Restauração.

De fato, a deposição de um responsável eclesiástico pelo ouvidor, pela Câmara e pelos moradores não é algo muito comum em situações de vida civil já sedimentada. Mas ocorre que o sul do Brasil, Rio de Janeiro, São Paulo e São Vicente não eram sociedades cuja organização pudesse se considerar consolidada. Sua população não era muito grande e as instituições não gozavam muitas décadas de existência; some-se a isso as enormes distâncias e os ingentes esforços de deslocamento entre Salvador e Rio de Janeiro, entre este último e a Corte de Lisboa, entre esta e aquela de Madri, sem lembrar das tensões próprias daqueles anos difíceis de 1630-1640, com invasões holandesas e com o mal-estar português na monarquia católica. Não será de todo desprovido de sentido considerar que a moral pública e a vida religiosa sofriam um isolamento relativo bastante significativo, sobretudo por se tratar de tão vastas extensões de terra, povoadas por tão poucos portugueses. A aceleração dos tempos durante a ocupação do chão acabava comprometendo alguns de seus próprios objetivos: não poderiam ser tão católicos e respeitadores dos princípios da Igreja e das leis da monarquia os portugueses do Brasil (sobretudo do Rio de Janeiro e de São Paulo), ao menos quanto o eram aqueles de Lisboa ou de Braga. Por aqui, vivia-se um cristianismo distanciado, ao menos por força do isolamento e pelas dificuldades de contato, para não lembrar da realidade física e humana tão diferente de tudo aquilo que os portugueses conheciam. Do mesmo modo, também as disposições civis e legais do reino deveriam passar pelos mesmos problemas. Tratava-se de uma sociedade em construção cujo assentamento ainda demoraria algum tempo.

No entanto, o que mais interessa aqui é seu problema com os moradores do Rio de Janeiro e as modalidades de tratamento dessa matéria pelos historiadores dos últimos duzentos anos. Ao concentrar as tensões com o prelado em temas que excluem o que ele considerou como fundamento de sua intervenção no Rio de Janeiro (atalhar a escravidão indígena), os escritores de História contribuíram sensivelmente para sua elisão. O que restou da ação de d. Lourenço nas narrativas, e foi pouco, limita-se aos conflitos de ordem moral com os moradores, matérias afeitas à disciplina religiosa, salvo o estranho e anacrônico feito de Varnhagen que teve repercussão no romance de Moreira de Azevedo. Aparentemente, aqueles que levaram em consideração os seus feitos optaram por concentrar atenções nas liberdades dos moradores em buscar efetivar os próprios modos de vida, como se a vigilância eclesiástica apenas lhes roubasse os costumes e a moral privada, como se a violência perpetrada contra os nativos estivesse incluída na própria autonomia, ou como se isso pudesse ser apagado do passado.

Independentemente do que foi dito até agora sobre esse feito e do que se pode pensar sobre seus significados, a deposição do prelado sugere que, na fronteira da expansão europeia no Atlântico Sul não apenas os nativos eram um povo “sem fé, sem lei nem rei”. Também os que vieram para cá, viviam aqui em constante tensão com seus homens de fé - os responsáveis religiosos - com algumas leis que desarranjavam seus modos de vida e, finalmente, com seus reis que teimavam em querer vê-las obedecidas.

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  • 1
    TEMUDO DA FONSECA, Manuel. Secunda pars decisiones senatus archiepiscopalis metropolis Olyssiponensis Regni Portugaliae ex gravissimorum patrum responsis collectae tam in judicio ordinario quam apostolico. Lisboa: Domingos Lopes Rosa, 1644.
  • 2
    Ibidem, p. 59. A indicação da data da fuga do bispo para Madri está equivocada. A data deve ser outubro de 1641, conforme se pode ver pela sentença reproduzida na página seguinte do mesmo volume.
  • 3
    Em meados de 1641, após meses de instabilidade política marcados por fugas e retornos de nobres, de soldados, comerciantes, foi debelada uma “conspiração” para matar d. João e restabelecer d. Felipe IV no governo do reino de Portugal. Entre os conspiradores estavam nobres e eclesiásticos de grosso calibre. Os culpados foram sentenciados e executados no Rossio e nas Portas de Santo Antão de Lisboa, em agosto de 1641, os eclesiásticos mais importantes foram presos. Já na época, o problema foi matéria de condenação e de crítica por parte da monarquia católica e de seus aliados, o Vaticano em primeiro lugar, e permaneceu assunto da historiografia nos tempos seguintes. Cf. MENEZES, D. Luiz de (conde da Ericeira). História de Portugal Restaurado. Lisboa: João Galrão, 1679; parte II, livro V. Bem mais recentemente, saiu à luz uma obra que retoma essa conspiração: WAGNER, Mafalda de Noronha. A casa de Vila Real e a conspiração de 1641 contra d. João IV. Lisboa: Colibri, 2007.
  • 4
    Há alguns anos, os estudos sobre os bispos de Portugal vêm avançando bastante. Destacam-se especialmente as obras: PAIVA, José Pedro. Os bispos de Portugal e do império: 1495-1777. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006; PAIVA, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina: o enlace entre a inquisição e os bispos em Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2011.
  • 5
    Cf. TEMUDO DA FONSECA, Manuel. Secunda pars decisiones senatus archiepiscopalis metropolis Olyssiponensis Regni Portugaliae ex gravissimorum patrum responsis collectae tam in judicio ordinario quam apostólico, op. cit., p. 60.
  • 6
    Parte dos memoriais de d. Lourenço relativos à sua passagem pela América hispânica foi analisada em trabalho publicado há alguns anos: RAMADA CURTO, Diogo. O padre Lourenço de Mendonça: entre o Brasil e o Peru (c. 1630-c. 1640). Topoi, v. 11, n. 20, p. 27-35, 2010.
  • 7
    MENDONÇA, Lourenço de. Suplicacion a Su Magestad Catolica Del Rey nuestro Señor que Dios guarde ante sus reales consejos de Portugal y de las Indias en defensa de los portugueses. [s.n.]: Madri, 1630. D. Lourenço reproduz a cédula real no início de seu livro e fornece as referências das decisões das Audiências do Novo Mundo. Esse impresso foi bem analisado em tempos recentes em dois artigos: CARDIM, Pedro. Todos los que no son de Castilla son yguales. El estatuto de Portugal en la Monarquía española en el tiempo de Olivares. Pedralbes, n. 28, p. 521-552, 2008 e CARDIM, Pedro, De la nación a la lealtad al rey. Lourenço de Mendonça y el estatuto de los portugueses en la monarquía española de la década de 1630. In: CRUZ, David González (Org.). Extranjeros y enemigos en Iberoamérica: la visión del otro. Del imperio español a la Guerra de la Independencia. Madri: Sílex, 2010, p. 57-88. O impresso de Lourenço de Mendonça evidencia ainda que as políticas de unificação da monarquia não se tornaram consensuais. Afinal, unificar por cima, por ações de governo, povos cujo passado foi marcado por conflitos e por tensões agudas, não é coisa que se possa fazer em poucas décadas.
  • 8
    “...vendidos como negros escravos, a lo menos como tales vexados, alquilados y presos”. MENDONÇA, Lourenço de. Suplicacion a Su Magestad Catolica Del Rey nuestro Señor que Dios guarde ante sus reales consejos de Portugal y de las Indias en defensa de los portugueses, op. cit., fol. 28v.
  • 9
    “Llegados alli, los que passan los desnudan luego; y para mostrar alguna aparencia de justicia los prenden, y luego dandoles algunos piadosos algo con que cobrirse buelven, o en los mismos lugares, o en los que se sieguen a ser despojados, y desnudos, y luego los dan de mano, para que passen y cuellen al Tucuman y Peru y ansi no se cumple con lo que V. Magestad manda que no vayan al Peru, sino con lo contrario y con roballos, y desnudallos, como enemigos, y esto es lo dicho publico y notoria verdad.” Ibidem, fol. 7v.
  • 10
    Há vasta bibliografia brasileira sobre a ação dos bandeirantes e ainda mais estudos e análises de fundo na Argentina, no Paraguai e na Espanha. Não se trata aqui de repertoriar todo esse material. No que diz respeito efetivamente ao Brasil, à exceção dos trabalhos de exaltação das bandeiras como veículo da “expansão para o interior” produzida em tempos de celebração nacional, destaca-se CAPISTRANO DE ABREU, João. Capítulos de história colonial. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988; e o mais recente estudo de MONTEIRO, John Manuel. Os negros da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
  • 11
    As discussões dos jesuítas sobre a escravidão encontraram uma excelente análise nos últimos tempos: ZERON, Carlos Alberto. Linha de fé. São Paulo: Edusp, 2011. Sobre a ação dos jesuítas no Sul, cf. VASCONCELOS FRANZEN, Beatriz. Os jesuítas portugueses e espanhóis e sua ação no sul do Brasil e Paraguai (1580-1640). São Leopoldo: Unisinos, 1999.
  • 12
    “Todos los soldados en semejantes entradas es gente desgarrada, y muchos blasfemos, y gente libre, y licenciosa, aun los que tienen mas obligaciones, y mejor criança que los criollos de San Pablo.” MENDONÇA, Lourenço de. Suplicacion a Su Magestad Catolica Del Rey nuestro Señor que Dios guarde ante sus reales consejos de Portugal y de las Indias en defensa de los portugueses, op. cit., fol. 53.
  • 13
    Cf. ZILLER CAMENIETZKI, Carlos; PASTORE, Gianriccardo. 1625, o fogo e a tinta: a batalha de Salvador nos relatos de guerra. Topoi, v. 6, n. 11, p. 261-288. Um importante volume exatamente sobre essa matéria saiu em meados de 1626: COELHO DE BARBUDA, Luís. Por la fidelidad lusitana. Lisboa: Jorge Rodrigues, 1626.
  • 14
    Em 1632, apesar do controle real, chegou a ser publicado em Lisboa um livreto contra o projeto de unificação militar do conde-duque de Olivares: PINTO RIBEIRO, João. Discurso sobre os fidalgos e soldados portugueses não militarem em conquistas alheias desta coroa. Lisboa: Pedro Craesbeck, 1632.
  • 15
    Há mais de vinte anos foi publicado um excelente estudo das alterações do Alentejo: OLIVEIRA, António de. Poder e oposição política em Portugal no período filipino (1580-1640). Lisboa: Difel, 1991.
  • 16
    Sobre o incômodo português com o domínio castelhano, cf. SCHAUB, Jean-Frédéric. Le Portugal au temps Du Comte-Duc d’Olivares (1621-1640). Madri: Casa de Velasquez, 2001.
  • 17
    D. Lourenço refere-se à obra FARIA E SOUSA, Manuel de. Epitome de las historias portuguesas. Madri: Francisco Martinez, 1628. Faria e Sousa manteve sua fidelidade a d. Felipe depois de 1640, ao contrário de outros historiadores portugueses.
  • 18
    “[aos] portugueses naturales, quanto mas es fea, y falsa la causa y titulo con que en todas las Indias se los componen como gente sospechosa y danosa, que non son, y cuya cedula les aplican la qual afronta cae sobre todo el Reyno de Portugal, y sobre toda su nacion portuguesa.” MENDONÇA, Lourenço de. Suplicacion a Su Magestad Catolica Del Rey nuestro Señor que Dios guarde ante sus reales consejos de Portugal y de las Indias en defensa de los portugueses, op. cit., fol. 2.
  • 19
    “Son por ventura menos patrimonio y tierras de su Rey de España las Indias que Flandres? Y si dixere alguien, que las Indias no son de la corona de Portugal, para dexar de ser ansi compuestos en ellas, tanpoco es de la corona de Portugal y son en sus guerras en servicios de V. Magestad muertos.” Ibidem, fol. 35v.
  • 20
    O padre Antonio Ruiz de Montoya era um importante jesuíta que animara e defendera as reduções do Rio da Prata. Em seus trabalhos, ele foi a Madri em defesa dos indígenas de seus aldeamentos. A bibliografia relativa é razoavelmente numerosa e conta com um título publicado ainda no século XVII: JARQUE, Francisco. Vida prodigiosa, en lo vario de los sucessos, exemplar en lo heroico de religiosas virtudes, admirable en los favores del cielo, gloriosa en lo apostolico de sus empleos, del venerable padre Antonio Ruiz de Montoya. Saragoça: Miguel de Luna, 1662.
  • 21
    RUIZ DE MONTOYA, Antonio. Arte y bocabulario de la lengua guarani. Madri: Juan Sanchez, 1640; RUIZ DE MONTOYA, Antonio. Conquista espiritual hecha por los religiosos de la Compañia de Jesus en las províncias del Paraguai, Parana, Uruguay y Tape. Madri: Imprenta del Reyno, 1639. Esta segunda obra de Montoya contém uma narrativa detalhada dos ataques bandeirantes sobre os aldeamentos e dos massacres e aprisionamentos de índios.
  • 22
    “(...) fundaron en las dichas Provincias un jardin de flores del cielo, y una nueva, y primitiva Iglesia, que el lobo del infierno por tantas vias ha pretendido destruir, y aun en gran parte destruyo, y hizo huir de sus mismas tierras, y de los terminos dellas (...) De mucho de lo qual, y principalmente de los dichos frutos de reduccion de tantas almas, y gloria de Dios, yo soy buen testigo, por estar las dichas reducciones tan conjuntas con mi Diocesi.” RUIZ DE MONTOYA, Antonio. Conquista espiritual hecha por los religiosos de la Compañia de Jesus en las províncias del Paraguai, Parana, Uruguay y Tape, op. cit., páginas não numeradas.
  • 23
    Dado o caráter um tanto espetacular de sua passagem pelo Rio de Janeiro, as iniciativas mais importantes de contar uma história da diocese referem-se sumariamente à estada e aos feitos de d. Lourenço na cidade. Já no segundo volume da Revista do IHGB, de 1840, há uma narrativa da fundação da Igreja do Rio de Janeiro em que a expulsão do prelado é registrada em termos bastante sumários: Cf. Memória da fundação da Igreja de S. Sebastião. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 2, 1840, p. 165. Segue no mesmo diapasão, embora ofereça mais detalhes, PEIXOTO DE ALENCAR, Carlos Augusto. Roteiro dos bispados do Brasil. Fortaleza: Tipografia Cearense, 1864, p. 89-92. Os textos sobre a formação da Igreja no Brasil, quando se referem a esse prelado, acabam repetindo os mesmos ditos. Os estudos mais recentes serão referidos a seguir.
  • 24
    SOUZA AZEVEDO PIZZARRO E ARAÚJO, José de. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas à jurisdição do vice-rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1820, v. II, p. 220.
  • 25
    VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1854, p. 405-406, t. I.
  • 26
    Em nota de margem, o historiador assinala que o documento real data de 10 de maio de 1646. Seu vigoroso empenho também não considerou que a Restauração, com o rompimento com a monarquia católica de d. Felipe IV, mudara também a política de Portugal com relação à escravização das populações indígenas do Brasil.
  • 27
    Cf. MOREIRA DE AZEVEDO, Manuel Duarte. Lourenço de Mendonça, episódio dos tempos coloniais. Rio de Janeiro: Typ. Indústria Nacional, 1868.
  • 28
    Cf. RUBERT, Arlindo. O prelado Lourenço de Mendonça, primeiro bispo eleito do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 311, p. 13-33, 1976.
  • 29
    RAMADA CURTO, Diogo. O padre Lourenço de Mendonça: entre o Brasil e o Peru (c. 1630-c. 1640), op. cit.
  • 30
    MENDONÇA, Lourenço de. Memorial al Rey Phe. 4. de los excesos que se cometian en la India y Rio Janeiro pidiendo su remedio. Sucesos del año 1638. Coleccion Mascareñas, mss 2369, fol. 296-301. O texto foi impresso em português.
  • 31
    Ibidem, fol. 1.
  • 32
    D. Lourenço fala de dezenas de milhares de indígenas trazidos do Paraguai e do sul de sua diocese e de sua comercialização no Rio de Janeiro e na Bahia. Cf. Ibidem, fol. 1v-2r.
  • 33
    Ibidem, fol. 2r.
  • 34
    Ibidem, fol. 2v.
  • 35
    Os regimentos dos ouvidores foram analisados há mais de dez anos no trabalho: GUIMARÃES SANCHES, Marcos. O rei visita seus súditos: a ouvidoria do Sul e as correições na câmara do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 164, n. 421, p. 123-142, 2003.
  • 36
    MENDONÇA, Lourenço de. Memorial al Rey Phe. 4. de los excesos que se cometian en la India y Rio Janeiro pidiendo su remédio, op. cit., fol. 3r.
  • 37
    As Visitações do Santo Ofício ao Brasil vêm sendo analisadas nos tempos mais recentes, com resultados bastante interessantes para o que importa no presente trabalho. Em especial, há alguns anos foi publicado um estudo que busca situar o problema inquisitorial nos domínios americanos de Portugal: FEITLER, Bruno. Dos usos políticos do Santo Ofício no Atlântico. O período filipino. In: MELLO E SOUZA, Laura; FERREIRA FURTADO, Júnia; BICALHO, Maria Fernanda (Orgs.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009, p. 241-262; cf. FEITLER, Bruno. Usos políticos del Santo Oficio portugués en el Atlántico (Brasil y África Occidental): el período filipino. Hispania Sacra, v. 119, p. 269-291, 2007.
  • 38
    A Visitação do Santo Ofício ao Rio de Janeiro já foi estudada em algumas ocasiões. Especialmente GORENSTEIN, Lina. A terceira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (século XVII). In: FLEITER, Bruno; LAGE, Lana; VAINFAS, Ronaldo (Orgs). A Inquisição em xeque. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006; mas sobretudo SANTOS PEREIRA, Ana Margarida. Terceira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Capitanias do Sul, 1627-1628. História e Sociedade, Vitória da Conquista, v. 11, n. 1, p. 35-60, 2011. Neste último texto, a autora identifica o insucesso da Visitação, mas não aponta o mesmo padrão de oposição ao comissário em seu trabalho, cf. p. 57. Não deixa de ser curioso perceber que o combate da população ao comissário do Santo Ofício não tenha despertado interesse para reflexões mais detidas nos últimos anos.
  • 39
    O desembargador era João de Sousa de Cardenas, e o ouvidor, Paulo Pereira. Cf. MENDONÇA, Lourenço de. Memorial al Rey Phe. 4. de los excesos que se cometian en la India y Rio Janeiro pidiendo su remédio, op. cit., fol. 3v.
  • 40
    Ibidem, fol. 3r.
  • 41
    Ibidem, fol. 4v.
  • 42
    Idem.
  • 43
    A sentença do Tribunal da Inquisição de Lisboa foi agregada ao final do memorial. Cf. Ibidem, fol. 6v.
  • 44
    Ibidem, fol. 4v.
  • 45
    Idem.
  • 46
    Cf. a biografia já um tanto antiga, mas sempre importante, feita por BOXER, CharleBOXER, Charles. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola 1602-1886. São Paulo: Nacional, 1973.s. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola 1602-1686. São Paulo: Nacional, 1973.
  • 47
    Memória da fundação da Igreja de S. Sebastião, primeira matriz que teve a cidade do Rio de Janeiro, com um catálogo dos prelados administradores da jurisdição eclesiástica que houveram ate o ano em que esta matriz foi elevada à dignidade de Sé Episcopal. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 2, 1840, p. 185.
  • 48
    MENDONÇA, Lourenço de. Memorial al Rey Phe. 4. de los excesos que se cometian en la India y Rio Janeiro pidiendo su remédio, op. cit., fol. 4v.
  • 49
    “Y llegado que fui al Rio Jenero vi y reconoci ser cierta la relacion que se me avia hecho pues a mis ojos se vendian los Indios en aquella ciudad traydos por los vezinos de la Villa de San Pablo, como si fueran esclavos y dados por tales por V. Mag. e ynformado vine averiguar vervalmente como desde el año de 28 hasta el de 30 avian traydo los vezinos de San Pablo mas de setenta mil almas de las reduciones de los padres de la compañia del destrito de este govierno y del del Praguay, en que avian usado los dichos vezinos de San Pablo crueldades y inhumanidades increybles hasta faltar en sus acciones a católicos Xrtianos.” Carta do Governador de Buenos Aires a d. Felipe IV, 12 de outubro de 1637. In: CORTESÃO, Jaime (Org.). Jesuítas e bandeirantes no Itatim (1596-1760). Rio de Janeiro: BN, 1952, p. 61.
  • 50
    Cf. AHU, Brasil — Rio de Janeiro, cx. 2, doc. 190.
  • 51
    Arquivo IHGB, 219/17.
  • 52
    Há uns dez anos foi publicado um estudo que parece elidir o problema indígena em favor de uma celebração da rebeldia dos moradores: SALDANHA ÁLVAREZ, José Maurício. Foi público e notório para toda a gente: arte no teatro da política portuguesa no Rio de Janeiro colonial (1630-1641). Portugese Studies Review, v. 12, n. 2, p. 139-160, 2004/2005.
  • 53
    “E assi ao tempo em que agora elle Prelado de la partio, o que da Baia foi por Ouvidor chamado Francisco Taveira de Neiva, está por acordão em Relação mandado justiçar por seus delictos.” MENDONÇA, Lourenço de. Memorial al Rey Phe. 4. de los excesos que se cometian en la India y Rio Janeiro pidiendo su remédio, op. cit., fol. 3r.
  • 54
    Cf. GUIMARÃES SANCHES, Marcos. O rei visita seus súditos: a ouvidoria do Sul e as correições na câmara do Rio de Janeiro, op. cit.; PEREIRA DE MELLO, Isabele de Matos. Poder, administração e justiça: os ouvidores gerais no Rio de Janeiro (1624-1696). Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade, 2010.
  • 55
    TOURINHO, Eduardo. Autos de correições de ouvidores do Rio de Janeiro. Primeiro Volume. 1624-1699. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 1929.
  • 56
    Ibidem, p. 29.
  • 57
    Recentemente, FEITLER, Bruno. Continuidades e rupturas da Igreja na América portuguesa no tempo dos Áustrias. A importância da questão indígena e do exemplo espanhol. In: CARDIM, Pedro; FREIRE Costa, Leonor; SOARES DA CUNHA, Mafalda (Org.). Portugal na monarquia hispânica: dinâmicas de integração e conflito. Lisboa: CHAM, 2013, p. 212; e FEITLER, Bruno. Missões indígenas e clero secular no Brasil colônia: o exemplo castelhano e as tentativas de normalização da malha eclesiástica sob os Felipes. In: CHAMBOULEYRON, Rafael; AREZ, Karl-Heiz (Org.). Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial. Dimensões do catolicismo português. Belém: Açaí, 2014. v. 3., p. 39.
  • 58
    Em artigo recente, José Carlos Vilardaga identificou o problema e indicou algumas de suas consequências na caracterização das identidades ibéricas daquele tempo: VILARDAGA, José Carlos. Identidades instáveis: um padre português no império dos Felipes. Antíteses, v. 7, n. 13, 2014, p. 517-534.
  • 60
    Como citar - CAMENIETZKI, Carlos Ziller. Mil ódios contra si D. Lourenço de Mendonça, bispo eleito do Rio de Janeiro, seu combate à escravidão indígena, sua deposição e destino entre duas monarquias. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 37, p. 144-170, jan./abr. 2018. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.
  • 61
    Todas as traduções de textos em castelhano para o português foram realizadas pelo próprio autor do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2017
  • Aceito
    17 Out 2017
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