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Pesar no óbito fetal: luto sem voz

Resumo

O Ministério da Saúde orienta que a declaração de óbito não seja emitida em casos de óbito fetal com gestação inferior a 20 semanas ou feto com peso inferior a 500 g ou estatura menor que 25 cm, acrescentando que a legislação permite a emissão da declaração em casos em que a família deseje fazer o sepultamento do feto. Nesse contexto, são poucos os casos de aborto em que a declaração é feita. Este artigo realizou revisão integrativa que responde à pergunta: os rituais de fechamento, particularmente o sepultamento (possibilitado pela emissão da declaração de óbito) em caso de morte fetal inferior a 20 semanas de idade gestacional, ajudariam no processo de luto dos pais? A literatura consultada trouxe informações favoráveis à emissão da declaração de óbito e possibilitou discussão médica, jurídica e antropológica do tema.

Palavras-chave:
Aborto espontâneo; Pesar; Morte fetal

Abstract

The Ministry of Health advises that death certificates should not be issued in cases of fetal death for a pregnancy of less than 20 weeks or fetus weighing less than 500 g or shorter than 25 cm in height; however, the legislation allows the issuance of the certificate in cases where the family wishes to bury the fetus. Given this context, abortion cases in which the certificate is issued are few. This article presents an integrative review that answers the question: would the death ceremonies, particularly the burial (made possible by the issuance of the death certificate), in case of fetal death under 20 weeks of gestational age help in the parents’ mourning process? The literature consulted presented favorable information for the issuance of the death certificate and enabled a medical, legal and anthropological discussion of the theme.

Keywords:
Miscarriage; Grief; Fetal death

Resumen

El Ministerio de Salud brasileño recomienda que no se debe emitir el certificado de defunción en los casos de muerte fetal de menos de 20 semanas de gestación, feto con peso inferior a 500 g o estatura inferior a 25 cm, pero agrega que se puede permitirlo cuando la familia opta por el entierro del feto. En este contexto, el certificado se emite en pocos casos de aborto. Este artículo realizó una revisión integradora a partir de la pregunta: ¿Ayudarían en el proceso de duelo de los padres los rituales de inhumación, sobre todo el entierro (habilitado mediante la emisión de un certificado de defunción) en caso de muerte fetal con menos de 20 semanas de edad gestacional? La literatura consultada aportó con informaciones favorables a la emisión del certificado de defunción y permitió fomentar la discusión médica, jurídica y antropológica del tema.

Palabras clave:
Aborto espontáneo; Pesar; Muerte fetal

Existe um lugar onde a morte VIVA? Ah, ela vive nas despedidas, nos rituais de fechamento, quando o encerramento se legitima. Mas a vida, essa fica no lugar do para sempre, no lugar onde as memórias são guardadas, num quarto de afetos11 Pallottino E, Rezende C. Prefácio. In: Lupi C, Camargo F, Lupi L, Couri R, organizadoras. Histórias de amor na perda gestacional e neonatal. [local desconhecido]: Bookstart; 2015. p. 100..

A conduta quanto ao destino do corpo do feto em caso de óbito varia mundialmente, porém, segundo Laurenti e Jorge 22 Laurenti R, Jorge MHPM. O atestado de óbito: aspectos médicos, estatísticos, éticos e jurídicos [Internet]. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; 2015 [acesso 15 jul 2020]. Disponível: https://bit.ly/3ehvVM1
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, a 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial da Saúde (OMS) embasou os fluxogramas de destinação em vários países, inclusive no Brasil. Aqui, é obrigatório emitir declaração de óbito (DO) e realizar o consequente sepultamento (ou cremação) em caso de morte fetal com idade gestacional maior ou igual a 20 semanas e/ou peso maior que 500 g e/ou estatura maior que 25 cm.

Se o óbito fetal não se enquadrar nesses parâmetros, a orientação do Ministério da Saúde (MS) e do Conselho Federal de Medicina (CFM) é que a DO não seja emitida, porém, na prática, a legislação brasileira não estabelece impedimento ao sepultamento, ficando a emissão da declaração facultativa, caso os pais manifestem a vontade de fazê-lo 33 Brasil. Ministério da Saúde. A declaração de óbito: documento necessário e importante [Internet]. 3ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2009 [acesso 15 jul 2020]. Disponível: https://bit.ly/3KGL4CW
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. Se os pais não se manifestarem, o corpo seguirá para tratamento térmico por incineração.

A medicina vive, atualmente, uma época muito salutar de valorização de habilidades de comunicação médico-paciente. No entanto, mães que vivenciam perdas fetais comumente referem pouca valorização de sua dor e não se sentem acolhidas pela sociedade em geral, incluindo profissionais de saúde e até mesmo familiares 44 Shakespeare C, Merriel A, Bakhbakhi D, Baneszova R, Barnard K, Lynch M et al. Parents’ and healthcare professionals’ experiences of care after stillbirth in low-and middle-income countries: a systematic review and meta-summary. BJOG [Internet]. 2019 [acesso 10 fev 2020];126(1):12-21. DOI: 10.1111/1471-0528.15430
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A orientação e a escuta adequadas dessas mulheres por profissionais de saúde podem identificar aquelas para as quais os rituais de fechamento e/ou a possibilidade de velar e sepultar seus filhos sejam uma maneira importante de vivenciar seu luto, com repercussões terapêuticas positivas 55 Rådestad I, Steineck G, Nordin C, Sjögren B. Psychic and social consequences of women in relation to memories of a stillborn child: a pilot study. Gynecol Obstet Invest [Internet]. 1996 [acesso 10 fev 2020]; 41(3):194-8. DOI: 10.1159/000292267
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,66 Muza JC, Sousa EN, Arrais AR, Iaconelli V. Quando a morte visita a maternidade: atenção psicológica durante a perda perinatal. Psicol Teor Prat [Internet]. 2013 [acesso 15 fev 2020];15(3):34-48. Disponível: https://bit.ly/3cJB3Ze
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. Se o luto materno já é subvalorizado, o luto paterno é acadêmica e assistencialmente ignorado 77 McCreight BS. A grief ignored: narratives of pregnancy loss from a male perspective. Sociol Health Illn [Internet]. 2004 [acesso 2 fev 2020];26(3):326-50. DOI: 10.1111/j.1467-9566.2004.00393.x
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Iaconelli refere que (…) o ritual com o cadáver; sua limpeza, vestimenta, velório, cremação, tudo é absolutamente anacrônico quando considerado de forma objetiva. Nem por isso, prescindimos deste prolongamento da existência do outro como forma de elaborar sua perda. No luto perinatal [a autora inclui, nesta terminologia, o luto decorrente de óbito de feto ou de recém-nascido] nem sempre é escutado o desejo dos pais de realizarem procedimentos ritualísticos que fazem parte das demais perdas por morte e, quando são realizados, não deixam de criar certo constrangimento. Estas diferenças no tratamento destes casos revelam uma impossibilidade de atribuir à morte de um bebê (pré ou pós-termo) o status de morte de filho 88 Iaconelli V. Luto insólito, desmentido e trauma: clínica psicanalítica com mães de bebês. Rev Latinoam Psicopatol Fundam [Internet]. 2007 [acesso 15 fev 2020];10(4):614-23. DOI: 10.1590/S1415-47142007000400004
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Diante do exposto, surgiu a seguinte questão: os rituais de fechamento, particularmente o sepultamento (possibilitado pela emissão da DO) em caso de morte fetal inferior a 20 semanas de idade gestacional, ajudariam no processo de luto dos pais? O objetivo deste trabalho é investigar esse efeito tomando como base a literatura.

Conceitos e legislação

Breve embasamento

É importante salientar algumas diferenças conceituais. Aborto é a expulsão ou extração de um embrião ou feto pesando menos de 500 g (aproximadamente 20 a 22 semanas de gestação), independentemente da presença ou não de sinais vitais. Morte fetal é a morte do produto da concepção, ocorrida antes de sua completa expulsão ou extração do organismo materno, independentemente do tempo de gestação. A morte é constatada quando, depois da separação, o feto não respirar nem mostrar qualquer outro sinal de vida, como batimentos cardíacos, pulsações do cordão umbilical ou movimentos de músculos voluntários 99 Brasil. Ministério da Saúde. Manual de vigilância do óbito infantil e fetal e do Comitê de Prevenção do Óbito Infantil e Fetal [Internet]. 2ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2009 [acesso 29 jul 2022]. Disponível: https://bit.ly/3Cb6iFg
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A partir da CID-10, a OMS passou a considerar como o limite inferior do período perinatal a idade gestacional de 22 semanas (peso equivalente a 500 g). Segundo Laurenti e Jorge 22 Laurenti R, Jorge MHPM. O atestado de óbito: aspectos médicos, estatísticos, éticos e jurídicos [Internet]. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; 2015 [acesso 15 jul 2020]. Disponível: https://bit.ly/3ehvVM1
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, essa nova determinação influenciou sobremaneira as tomadas de decisão do CFM que culminaram na Resolução CFM 1.601/2000, a qual foi revogada pela Resolução CFM 1.779/2005, segundo a qual, em caso de morte fetal, os médicos que prestaram assistência à mãe ficam obrigados a fornecer a Declaração de Óbito quando a gestação tiver duração igual ou superior a 20 semanas ou o feto tiver peso corporal igual ou superior a 500 gramas e/ou estatura igual ou superior a 25 cm 1010 Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.779, de 11 de novembro de 2005. Regulamenta a responsabilidade médica no fornecimento da Declaração de Óbito. Revoga a Resolução CFM n. 1601/2000. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 121, 5 dez 2005 [acesso 15 fev 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3Q8FlH5
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O MS orienta, ainda, que a DO seja emitida quando a criança nascer viva e morrer logo após o nascimento, independentemente da duração da gestação, do peso do recém-nascido e do tempo que tenha permanecido vivo 33 Brasil. Ministério da Saúde. A declaração de óbito: documento necessário e importante [Internet]. 3ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2009 [acesso 15 jul 2020]. Disponível: https://bit.ly/3KGL4CW
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. Em contrapartida, a DO não deverá ser emitida no óbito fetal, com gestação de menos de 20 semanas, ou feto com peso menor que 500 gramas, ou estatura menor que 25 centímetros33 Brasil. Ministério da Saúde. A declaração de óbito: documento necessário e importante [Internet]. 3ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2009 [acesso 15 jul 2020]. Disponível: https://bit.ly/3KGL4CW
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. Por fim, o MS acrescenta: a legislação atualmente existente permite que, na prática, a emissão da DO seja facultativa para os casos em que a família queira realizar o sepultamento do produto de concepção 33 Brasil. Ministério da Saúde. A declaração de óbito: documento necessário e importante [Internet]. 3ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2009 [acesso 15 jul 2020]. Disponível: https://bit.ly/3KGL4CW
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A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por meio da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 222/2018, regulamenta os resíduos de serviços de saúde (RSS). Recebem a classificação grupo A, subgrupo A3, peças anatômicas (membros) do ser humano; produto de fecundação sem sinais vitais, com peso menor que 500 gramas ou estatura menor que 25 centímetros ou idade gestacional menor que 20 semanas, que não tenham valor científico ou legal e não tenha havido requisição pelo paciente ou seus familiares1111 Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 222, de 28 de março de 2018. Regulamenta as Boas Práticas de Gerenciamento dos Resíduos de Serviços de Saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 61, p. 76, 29 mar 2018 [acesso 15 fev 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3qafS5m
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Ainda segundo a Anvisa, os RSS do subgrupo A3 devem ser destinados para sepultamento, cremação, incineração ou outra destinação licenciada pelo órgão ambiental competente. (…) Quando forem encaminhados para incineração, os RSS devem ser acondicionados em sacos vermelhos e identificados com a inscrição “PEÇAS ANATÔMICAS” 1111 Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 222, de 28 de março de 2018. Regulamenta as Boas Práticas de Gerenciamento dos Resíduos de Serviços de Saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 61, p. 76, 29 mar 2018 [acesso 15 fev 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3qafS5m
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De acordo com o artigo 14 da resolução mencionada, os sacos para acondicionamento de RSS do grupo A devem ser substituídos ao atingirem o limite de 2/3 de sua capacidade ou então a cada 48 horas (…), independentemente do volume, visando o conforto ambiental e a segurança dos usuários e profissionais. (…) Os sacos contendo RSS do grupo A de fácil putrefação devem ser substituídos no máximo a cada 24 horas, independentemente do volume 1111 Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 222, de 28 de março de 2018. Regulamenta as Boas Práticas de Gerenciamento dos Resíduos de Serviços de Saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 61, p. 76, 29 mar 2018 [acesso 15 fev 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3qafS5m
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Método

O estudo consiste em revisão integrativa, seguindo estas etapas: identificação do tema e construção da questão da pesquisa; estabelecimento de critérios para inclusão e exclusão na busca da literatura; definição das informações a serem extraídas dos estudos selecionados; avaliação e categorização dos estudos incluídos na revisão integrativa; análise e interpretação dos resultados e apresentação da revisão/síntese do conhecimento 1212 Mendes KDS, Silveira RCCP, Galvão CM. Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto & Contexto Enferm [Internet]. 2008 [acesso 15 fev 2020]; 17(4):758-64. DOI: 10.1590/S0104-07072008000400018
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As bases de dados para a pesquisa foram Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e PubMed, utilizando Descritores em Ciência da Saúde (DeCS), com a estratégia de busca “miscarriage and grief”. Os critérios iniciais de inclusão para as publicações foram: pesquisa em humanos, texto completo disponível gratuitamente em português ou inglês, publicado nos últimos cinco anos.

A partir desses requisitos, selecionaram-se 37 artigos, dos quais 17 foram excluídos por estarem duplicados e 13 por não atenderem à pergunta norteadora (três após a leitura do resumo e dez após a leitura do artigo completo). Assim, a amostra final ficou composta de sete artigos capazes de responder à pergunta da pesquisa.

Resultados e discussão

Os Quadros 1 e 2 contêm as análises da amostra final.

Quadro 1
Apresentação dos artigos por autores, ano de publicação, local e periódico
Quadro 2
Apresentação dos artigos por objetivos, tipo de estudo e resultados

O Quadro 2 mostra que os objetivos de todos os artigos selecionados não estavam direta nem exclusivamente relacionados à pergunta norteadora desta revisão integrativa, a qual foi respondida por meio das informações contidas nos resultados, invariavelmente, mais amplos dos manuscritos. Apenas um estudo (14% da amostra) foi realizado exclusivamente com homens, dois (28%) apenas com mulheres, e o restante com ambos os gêneros, pares de mãe e pai ou isoladamente. Utilizando o método descrito, não se encontrou nenhum manuscrito brasileiro que atendesse à pergunta de pesquisa.

A totalidade dos artigos da amostra trouxe informações favoráveis à emissão da declaração de óbito fetal, mesmo abaixo de 20 semanas de idade gestacional, apesar de não ter sido possível identificar o percentual de familiares que se reconheceriam beneficiados com a respectiva emissão.

A perda fetal representa um dos mais frustrantes episódios na vida de uma mulher, sendo de difícil elaboração, além de representar o insucesso na atividade profissional do médico obstetra 2020 Aquino MMA, Guedes AC, Mesquita MRS, Hernandez M, Cecatti JG. Conduta obstétrica no óbito fetal. Rev Bras Ginecol Obstet [Internet]. 1998 [acesso 9 dez 2021];20(3):145-9. DOI: 10.1590/S0100-72031998000300004
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. Desse modo, esse profissional pode sentir dificuldade na comunicação da má notícia e, com isso, a paciente pode sentir-se desamparada pela falta de informação médica.

Evita-se emitir DO e ofertar o sepultamento do concepto, muitas vezes, por receio de afetar negativamente as estatísticas do serviço de saúde (hospital ou maternidade) ou do próprio médico com dados de óbito fetal intraútero (Ofiu). Há uma diferença nas notificações: os produtos de aborto não entram em estatísticas, ao passo que o Ofiu entra. Para emitir a DO que permite o sepultamento, é necessária notificação de óbito fetal.

Apesar de, como já mencionado, a legislação atual permitir que, na prática, a emissão da DO seja facultativa para os casos em que a família queira realizar o sepultamento do produto de concepção33 Brasil. Ministério da Saúde. A declaração de óbito: documento necessário e importante [Internet]. 3ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2009 [acesso 15 jul 2020]. Disponível: https://bit.ly/3KGL4CW
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, isso resulta em dados contabilizados ao serviço prestador de saúde.

Segundo dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS), em 2019 foram registrados 2.803 óbitos fetais com menos de 500 g e 2.055 óbitos fetais com menos de 22 semanas de gestação 2121 Brasil. Ministério da Saúde. Óbitos fetais: Brasil. DataSUS [Internet]. [s.d.] [acesso 9 dez 2021]. Disponível: https://bit.ly/3Q8oFiP
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. Isso mostra que em pouquíssimos casos de aborto essa DO é feita e que quase nunca o sepultamento do concepto é ofertado à família como uma possibilidade.

Esses dados são oriundos do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), gerido pelo Departamento de Análise de Situação de Saúde, da Secretaria de Vigilância em Saúde, em conjunto com as secretarias estaduais e municipais de saúde. Estas coletam as DO dos cartórios e registram no SIM as informações nelas contidas. Tais dados podem, então, ser classificados por local (como hospitais e maternidades) e entrar na contabilização das estatísticas do serviço de saúde. Muitos médicos talvez evitem ofertar o sepultamento do concepto por receio de que os dados resultantes da emissão da DO repercutam negativamente no serviço.

Discussão fundamentada no direito e na antropologia

Com base nos resultados apresentados no Quadro 2, pode-se afirmar que a morte e a relação com pessoas que falecem fazem parte da vida dos seres humanos. Não se trata de uma realidade ligada a alguma religião ou espiritualidade específicas, mas, sim, da própria humanidade vivida. Não se trata, outrossim, de fato relevante somente na esfera privada. Embora a vivência esteja no âmbito pessoal, tem evidente transcendência social, afinal, a família é o núcleo da sociedade.

Partindo dessa premissa, pode-se considerar que os artigos consultados para esta pesquisa vão ao encontro dessa dimensão humana de relação pessoal com a morte. Em primeiro lugar, fica evidente que essa relação não pode ser privatizada, ou seja, não pode ser vislumbrada somente a partir de uma consideração individual das pessoas envolvidas, mas precisa ter uma perspectiva social e, para isso, um reconhecimento político. Assim, os fatos cujo impacto têm caráter público geralmente se revestem de solenidade e se expressam com a formalidade adequada para que se reconheça sua importância social, política e jurídica.

Essa relevância é indubitável em caso de morte fetal, tanto pelos dados objetivos, que contribuem, por exemplo, para analisar a taxa de natividade e as estatísticas sobre as condições sindrômicas, quanto pelos subjetivos, tais como a avaliação do efetivo respeito à dignidade e aos direitos humanos. A ausência de um reconhecimento público e jurídico – manifestado na DO – é a negação de que existiu uma relação pessoal e, inclusive, a negação de que se pode sofrer pela perda de um filho durante a gestação. Não se trata de mera formalidade, mas, sim, de reconhecimento social de algo que existe e precisa ser vivido.

Esse reconhecimento é o que possibilita que pais, pessoas próximas e a própria sociedade vivam a despedida de seus entes queridos, por meio de distintas formas rituais e simbólicas de despedida, de luto. Assim, é possível estabelecer uma relação muito mais saudável do ponto de vista humano – considerado na integridade da dimensão material e espiritual –, que permite, uma vez superada a dor da perda, estabelecer memórias do período de relações humanas dos momentos em que viveram juntos. Além disso, a própria espiritualidade – independentemente da maneira como seja vivida – é reforçada na vivência real das relações humanas, seja durante a vida, seja depois da morte desses entes queridos.

É por essa razão que se faz imprescindível o fortalecimento de uma rede de apoio para auxiliar na vivência da perda. Assim, espera-se que haja uma inclinação a ressignificar o processo de luto, atribuindo dignidade ao sofrimento e facilitando sua superação. Para tanto, não há nenhum óbice jurídico que inviabilize a criação de memória mediante a formalização do óbito, visto que, sob o fundamento do princípio da legalidade, conforme estatui o artigo 5º, II, da Constituição Federal, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei2222 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 1, 5 out 1988 [acesso 1 set 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3P525Z8
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.

Há um direito natural de sepultar e velar os mortos, bem como o reconhecimento ético e jurídico da natureza humana do feto. Com efeito, o Pacto de São José da Costa Rica (ou Convenção Americana sobre Direitos Humanos, introduzida no ordenamento jurídico interno pelo Decreto 678/1992) 2323 Brasil. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 15562, 9 nov 1992 [acesso 9 dez 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3Q6zdz3
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dispõe, em seu artigo 4(1), sobre o direito a que se respeite a vida, a qual é protegida pela lei e, em geral, desde a concepção.

Reconhece-se, assim, a natureza humana do feto, o direito a que se respeite sua vida e sua dignidade. De igual modo, reconhece-se a necessidade de apoio à família, especialmente por esta mostrar-se hipossuficiente, já que não necessariamente conhece o ordenamento jurídico e a deontologia médica

Por fim, é necessário entender que o reconhecimento social oferecido pela DO, que possibilita ritos e símbolos próprios de uma despedida funeral, não concedem ao Estado o direito de determinar como essa dimensão deve ser vivida. Sempre será uma realidade profundamente pessoal, marcada pelas crenças e decisões dos pais, que não podem ser suplantados nas decisões de quais rituais e formas simbólicas deveriam ser utilizadas nessa despedida. Evidencia-se, assim, a relevância das solenidades para marcar a existência do filho, tornando possível rememorá-lo na intimidade de cada família, que, por ser a célula nuclear da sociedade, estende essa marca à sociedade como um todo.

Considerações finais

Alguns pais que sofreram a morte fetal, mesmo inferior a 20 semanas de idade gestacional, reconhecem na emissão da DO efeitos importantes sobre a vivência de seu processo de luto, inclusive perante a sociedade, sendo o acolhimento e a identificação desses pais possibilitados pelas habilidades de comunicação do profissional médico. É muito importante discutir se possíveis preocupações profissionais quanto à contabilização das estatísticas dos serviços de saúde, oriundas da emissão da declaração de óbito fetal, influenciam negativamente na necessidade legítima de apoio a esses pais no enfrentamento ao luto.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2021
  • Revisado
    10 Ago 2022
  • Aceito
    15 Ago 2022
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