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Reflexões de um grupo de professores acerca do melhoramento genético humano a partir de discussões de textos de divulgação científica

Reflexiones de un grupo de profesores acerca del mejoramiento genético humano a partir de discusiones de textos de divulgación científica

Reflections of a teacher group on human genetic improvement from discussions of scientific divulgation texts

RESUMO:

A possibilidade da manipulação genética humana levanta sérios questionamentos éticos. Nesse contexto objetiva-se analisar os sentidos produzidos em discursos de professores a partir da leitura e reflexão de textos de divulgação científica acerca do tema. A pesquisa foi realizada por meio da aplicação de questionários e vídeo gravação das falas de 17 professores durante um curso de formação continuada. Os dados constituídos foram organizados e analisados mediante Análise de Discurso Francesa. Os resultados apontaram que a formação discursiva e ideológica dos professores e as reflexões suscitadas durante o curso contribuíram para os docentes compreenderem os diferentes sentidos produzidos pelos discursos das atuais técnicas de manipulação genética humana e suas aproximações ideológicas com o “velho discurso eugênico” e suas implicações éticas.

Palavras-Chave:
Formação de Professores; Ensino de Ciências; Eugenia.

RESUMEN:

La posibilidad de la manipulación genética humana suscita serios cuestionamientos éticos. En ese contexto, se tiene el objetivo de analizar los sentidos producidos en discursos de profesores a partir de la lectura y la reflexión de textos de divulgación científica acerca del tema. La investigación se realizó por medio de la aplicación de cuestionarios y video grabación de las hablas de 17 profesores durante un curso de formación continuada. Se organizaron y se analizaron los datos constituidos considerándose el Análisis del Discurso Francés. Los resultados indicaron que la formación discursiva e ideológica de los maestros y las reflexiones suscitadas durante el curso contribuyeron a que los docentes comprendieran los distintos sentidos producidos por los discursos de las actuales técnicas de manipulación genética humana y sus aproximaciones ideológicas al “viejo discurso eugenésico” y sus implicaciones éticas.

Palabras clave:
Formación de Profesores; Enseñanza de Ciencias; Eugenesia.

ABSTRACT:

The possibility of human genetic manipulation raises serious ethical questions. In this context, the objective of this article is to analyze the meanings produced in teachers’ discourses based on the reading and reflection of scientific papers about the theme. The research have used the application of questionnaires and video recording of the speeches of 17 teachers during a course of continuing education. The obtained data were organized and analyzed using French Discourse Analysis. The results pointed out that the discursive and ideological formation of the teachers and their reflections during the course have contributed to their understanding of the different senses produced by the discourses of the present techniques of human genetic manipulation and their ideological approaches with the “old eugenic discourse” and its ethical implications.

Keywords:
Teacher Education; Science Education; Eugenics.

INTRODUÇÃO

Atualmente, o desenvolvimento da Biologia Molecular implica em consequências diretas na vida das pessoas, permeando os mais diversos espaços e sendo amplamente divulgado nos meios de comunicação. Isto aloca o tema engenharia genética ou manipulação genética como um dos mais controvertidos e polêmicos na sociedade contemporânea (PARANÁ, 2012). Segundo Guerra (2006GUERRA, A. Do holocausto nazista à nova eugenia no século XXI. Ciência e Cultura, v. 58, n.1, 2006.), os avanços da genética e a possibilidade de intervir diretamente no material genético dos seres humanos levam à discussão acerca das consequências éticas dessas novas tecnologias, trazendo em seu bojo a preocupação de uma nova ascensão de ideias eugênicas.

O termo eugenia foi cunhado por Francis Galton, na Inglaterra no século 19, para nomear a proposta de uma ciência que estudaria o “melhoramento” das qualidades inatas da espécie humana. O movimento propunha o estudo e a doutrina do aprimoramento biológico de uma população mediante a reprodução controlada, incentivando-a nos indivíduos saudáveis e belos, e/ou evitando-a para os ditos “maus elementos da sociedade”, classificados assim, os pobres, feios e doentes (MAI; BOARINI, 2002MAI, L. D.; BOARINI, M. L. Estudo sobre forças educativas eugênicas no Brasil, nas primeiras décadas do século XX. Ciência, Cuidado e Saúde, v. 1, n. 1, 2002.). Alcançando repercussão mundial, a ideia de que se poderia controlar a reprodução humana para melhorar a “raça” seguia um discurso ideológico, no qual tal melhoria levaria a um “progresso” das nações.

No Brasil, o movimento eugênico foi muito difundido pela elite de médicos, farmacêuticos, advogados, políticos entre outros, no início do século XX. Um dos meios de divulgação da eugenia entre a comunidade científica e a sociedade foi o Boletim de Eugenia, periódico elaborado por iniciativa do médico eugenista Renato Kehl, impresso no Rio de Janeiro, com uma tiragem mensal de 1000 exemplares (MAI; BOARINI, 2002MAI, L. D.; BOARINI, M. L. Estudo sobre forças educativas eugênicas no Brasil, nas primeiras décadas do século XX. Ciência, Cuidado e Saúde, v. 1, n. 1, 2002.). Nesse Boletim foram publicados artigos, eventos e concursos de eugenia, anunciado bibliografias, pesquisas e reflexões a respeito dos problemas da época.

Os Boletins além de permitirem o intercâmbio de informações científicas funcionaram como meio de divulgação e propaganda do movimento eugênico. Segundo Maingueneau (1997MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1997.),textos de divulgação científica (TDC)resultam de uma atividade discursiva desenvolvida em condições de produção distintas daquelas em que os cientistas produzem o conhecimento científico, apresentam características próprias como linguagem clara e uso de analogias e metáforas, tendo a finalidade de instigar a curiosidade e interesse do público. Sendo assim, os Boletins serviram como meio de divulgação do discurso de um determinado grupo de sujeitos que naquele determinado contexto defendia a necessidade de melhorar a “raça” humana, mediante a seleção e reprodução dos seus melhores membros e coibindo a mesma aos considerados “inferiores”.

De acordo com Orlandi (2007ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP. Pontes, 2007.), o discurso é uma prática que liga o homem à sua realidade, sendo uma das instâncias por onde a ideologia se materializa, a partir de Formações Discursivas, ou seja, aquilo que deve e pode ser dito a partir do lugar que o sujeito ocupa, vai organizando, na língua, alguns sentidos (não todos, porque não se pode dizer tudo de certo lugar) e evidenciando em sítios de significância o lugar ou os lugares discursivos do sujeito que enuncia.

Segundo Foucault (2005FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 2005.), identificamos uma Formação Discursiva quando:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva - evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e consequências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio de objetividade”. (FOUCAULT: 2005FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 2005., p. 43).

O discurso eugênico motivou diversos movimentos ideológicos mundiais, como o racismo e a discriminação de pessoas com características consideradas indesejáveis e degeneradas perante grupos sociais dominantes, ou seja, é possível identificar uma memória discursiva nos movimentos racistas a partir das retomadas ideológicas, inscritas no discurso, motivadas pelo discurso eugênico. Após o holocausto, em meados do século XX, as atrocidades provocadas devido aos ideais nazistas vieram à tona e a eugenia foi condenada científica e eticamente. Apesar disso, conforme afirma Del Cont (2007Del Cont, V. D. A ciência do melhoramento das especificidades genéticas humanas. 2007.370f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, São Paulo, 2007.), muitos ideais divulgados pela eugenia não desapareceram totalmente do cenário científico:

Contudo, a eugenia não desapareceu como seria de se imaginar, ela se transformou; mas, ao se transformar conservou um núcleo teórico que se manteve inalterado e tem servido de orientação para novas roupagens eugênicas. Em outras palavras, manteve-se a ideia de que com a adequada informação genética poder-se-ia intervir no curso da reprodução humana, no sentido de se estabelecer, através de conhecimento científico, o seu devido controle e direcionamento. Parece-nos que temos, neste momento, movimentos em curso que lembrariam modelos ou programas eugênicos com a recolocação de antigas práticas articuladas em novos discursos. Por exemplo, contratos firmados entre empresas de biotecnologia e Estados com a finalidade de estudo e desenvolvimento de produtos baseados em informação genética da população, como o caso da empresa Decode Genetics com a Islândia e a empresa Autogen com Tonga e com a Tasmânia, que recolocam antigas tentativas de se construir um programa eugênico baseado na regulamentação estatal, agora também com interesses mercadológicos. Em uma outra perspectiva, poder-se-ia indicar uma nova forma de eugenia, que poderíamos classificar de razões eugênicas baseadas em decisões pessoais com relação à qualidade do material genético e o compromisso com as futuras gerações, gestores de novos referenciais para se pensar noções como identidade, pessoa e corporeidade (DEL CONT, 2007Del Cont, V. D. A ciência do melhoramento das especificidades genéticas humanas. 2007.370f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, São Paulo, 2007., p. 23).

Em seu livro “Genética: escolhas que nossos avós não faziam” a autora Mayana Zatz sinaliza inúmeras perguntas a respeito das possibilidades que os testes genéticos oferecem atualmente, temas polêmicos e controversos que necessitam de muita reflexão. É preciso levantar a questão de até que ponto as informações do nosso DNA são úteis para nossa vida diária e se temos conhecimento para lidar com essas informações. Além disso, cabe perguntar se essas informações devem ser confidenciais ou públicas, já que podem ter repercussões nas decisões do cotidiano e afetar a vida das pessoas. Muitos têm se perguntado se não se trata da volta da eugenia, “que nunca se foi totalmente”, já que se relaciona com a ideia de aprimoramento de certas características motivado pelo desejo de ter crianças melhores e mais perfeitas, bonitas e saudáveis. Contudo, ao selecionar certas características como melhores consequentemente o outro lado da moeda será rejeitar e eliminar os embriões com características indesejáveis (ZATZ, 2011ZATZ, M. Genética: Escolhas que nossos avós não faziam. 1ªed. São Paulo: Globo, 2011., p. 120). Como a autora afirma:

É fundamental alertar: esses testes permitem excluir doenças, mas jamais garantir um descendente perfeito. Além disso, há aqueles que se opõem, é claro. Estamos falando de uma nova forma de eugenia? Será que as pessoas não vão se sentir estigmatizadas? Como os casais irão lidar com essas informações? Quem vai garantir o sigilo das informações?

Neste sentido, Oliveira (2004OLIVEIRA, F. Engenharia genética: o sétimo dia da criação. 2ª ed. Reform. - São Paulo: Moderna, 2004.) aponta a necessidade de inserir discussões contextualizadas e críticas acerca da bioética em todos os níveis de ensino, chegando a propô-la mesmo como uma disciplina formal dos currículos do ensino superior, respeitando a diversidade de opiniões e crenças e evitando qualquer forma de discriminação e preconceito. Os novos manuais escolares de Biologia do ensino médio já vêm abordando o tema engenharia genética, mas há ainda a necessidade de pesquisar como vem sendo essa abordagem e principalmente se os professores estão preparados/qualificados profissionalmente para este desafio, tendo em vista que, por ser um tema atual muitos deles não tiveram este conteúdo na sua formação inicial, tendo a necessidade de cursos de capacitação e atualização em sua formação continuada.

De acordo com Carvalho et al. (2011CARVALHO, Í. N.; NUNES-NETO, N. F.; EL-HANI, C. N. Como selecionar conteúdos de biologia para o ensino médio? Revista de Educação, Ciências e Matemática. v. 1, n. 1, p. 67-100, ago/dez. 2011.) e Krasilchik (2005KRASILCHIK, M. Prática de Ensino de Biologia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.), o atual patamar do desenvolvimento científico e tecnológico aponta sérios questionamentos em relação ao ensino de Ciências e a forma de trabalhar os conteúdos científicos, a qual deveria seguir uma abordagem contextualizada1 1 Abordagem da História da Ciência de maneira complexa, considerando os contextos socioculturais, políticos e econômicos de produção do conhecimento. e afinada aos interesses dos cidadãos. Porém, muitos pesquisadores mostram que o ensino de Ciências continua sendo ofertado nas escolas de forma excessivamente abstrata, descontextualizada da vida cotidiana e em uma perspectiva que contribuí para uma compreensão da ciência dogmática e imune a questionamentos.

Sendo assim, Trivelato e Silva (2011TRIVELATO, S. F.; SILVA, R. L. F. Ensino de Ciências. 1ªed. São Paulo: Cengage Learning, v. 1. 135 p, 2011.) defendem que a contextualização atual de conteúdos da ciência com componentes relacionados à bioética é uma forma de garantir a reflexão acerca das rápidas e profundas transformações na área da Biologia. A educação e particularmente o ensino de Ciências ganham papel fundamental na formação de cidadãos capazes de participar ativa e significativamente em processos democráticos de tomada de decisões. “O controle social e ético sobre os novos saberes produzidos pela biociência só pode ser realizado por uma sociedade detentora de informações e capaz de se posicionar conscientemente” (TRIVELATO; SILVA, 2011TRIVELATO, S. F.; SILVA, R. L. F. Ensino de Ciências. 1ªed. São Paulo: Cengage Learning, v. 1. 135 p, 2011., p. 96).

Neste contexto, este artigo objetiva analisar o funcionamento do discurso de um grupo de professores na produção de sentidos acerca das relações ideológicas entre o melhoramento genético humano atual e a “velha” eugenia a partir de discussões de textos de divulgação científica. Para tanto, foram investigados os discursos dos professores mediante questionários inicial e final, e discussões de um texto de divulgação científica atual e de artigos originais do Boletim de Eugenia de 1929, 1930 e 1931.

CAMINHOS METODOLÓGICOS

A pesquisa foi realizada com 17professores das áreas de Biologia, Física e Química, da rede estadual da educação básica no decorrer de um curso de formação continuada a respeito de História da Ciência. O curso foi realizado em dois dias, contabilizando 16 horas de atividades presenciais, cujo conteúdo programático (Quadro 1) visava a reflexão da importância da História da Ciência no processo de ensino e aprendizagem do conhecimento científico, a partir dos estudos do movimento eugênico e suas aproximações aos ideais do melhoramento genético humano atual. Também buscava trazer subsídios para um ensino do conhecimento biológico contextualizado em sua conjuntura histórica e social, desmistificando a ideia da ciência como neutra e linear.

Quadro 1
Conteúdo programático desenvolvido no curso de formação continuada.

No primeiro dia, após as assinaturas dos termos de consentimento livre e esclarecido2 2 A realização da pesquisa foi previamente aprovada em Comitê de Ética e Pesquisa. , o curso teve início com a aplicação de um questionário inicial acerca do desenvolvimento do conhecimento científico, da eugenia e das implicações da biotecnologia. A aplicação do questionário foi seguida pela promoção de um debate a respeito de técnicas de manipulação genética, melhoramento genético e predisposições a doenças genéticas. O debate subsidiou a leitura e discussão do TDC: “Como fazer um Superbebê” (COSTA; GARATTONI, 2012COSTA, C.; GARATTONI, B. Como fazer um superbebê. Super Interessante, São Paulo, n. 301, fev. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.super.abril.com.br/ciencia/como-fazer-super-bebes >. Acesso em: 4 jul. 2016.
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), que apresenta pesquisas atuais que estão sendo realizadas na área da genética molecular, idealizando um ser humano livre de doenças genéticas e com melhor desempenho físico e intelectual. Após a discussão, foram distribuídos, aos professores, 20 artigos originais (fontes primárias) publicados no Boletim de Eugenia dos anos de 1929, 1930 e 1931, para lerem, apresentarem e contraporem com a reportagem anterior. Os artigos tratavam dos propósitos da eugenia no Brasil, tais como: aperfeiçoamento e controle da natalidade, fundamentos científicos da eugenia, educação eugênica, educação sexual, esterilização em prol da eugenia e eugenia como ciência e ideal social.

No segundo dia de formação continuada, foram retomadas as discussões realizadas na primeira etapa, relacionando a reportagem a respeito das atuais pesquisas genéticas com os artigos dos Boletins de Eugenia. Em seguida, foram distribuídos vários trechos originais, sem identificação, de alguns autores que subsidiaram os trabalhos de eugenia de Francis Galton, especificamente Charles Darwin, Jean-Baptiste de Lamarck e Gregor Mendel, solicitando-se aos professores para nomearem o autor do trecho de acordo com suas concepções, discutirem e compararem os originais ao exposto nos livros didáticos. Como atividade para sistematizar as discussões em torno do tema eugenia foi feita uma apresentação de slides em uma aula expositivo-dialogada. Outra atividade foi a leitura e a discussão do texto “Impacto da Biotecnologia na Biodiversidade” (BORÉM, 2005BORÉM, A. Impacto da biotecnologia na biodiversidade. Biotecnologia, Ciência & Desenvolvimento, Brasília, n. 34, p. 22-28, 2005. Disponível em: <Disponível em: http://www. biotecnologia.com.br/revista/bio34/bio34.pdf >. Acesso em: 4 jul. 2016.
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). Logo depois, foram apresentados dois filmes como possibilidades para os professores trabalharem em sala de aula - “GATTACA: experiência genética” e “Homo sapiens 1900”. Para finalizar, fizemos um debate dos filmes propostos e como os professores poderiam trabalhar o movimento eugênico na sala de aula. Por último, os participantes responderam a um questionário final referente ao curso e seu conteúdo.

Analisamos aqui, o discurso de um grupo de professores na produção de sentidos das relações ideológicas entre o melhoramento genético humano atual e a “velha” eugenia. Para tanto, analisamos as respostas à pergunta do questionário Inicial “O que é eugenia?” E da pergunta do questionário final “Existem relações entre a possibilidade de intervir diretamente no material genético dos seres humanos e o discurso eugênico do passado? Explique”. Além disso, utilizamos videogravações das discussões de duas das atividades desenvolvidas no curso de formação continuada: 1) Leitura e Discussão de um texto de divulgação científica da “Revista Super Interessante” com o título “Como fazer um superbebê”, publicado em fevereiro de 2012; e 2) Leitura e discussão de exemplares do Boletim de Eugenia (Fontes Primárias) de 1929, 1930 e 1931.

As respostas ao questionário e discussões videogravadas durante o curso foram transcritas e analisadas de acordo com a metodologia da Análise de Discurso de orientação francesa (doravante, AD) (ORLANDI, 2007ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP. Pontes, 2007.). Para a AD, o discurso é uma prática, uma ação do sujeito no mundo, estando vinculado às condições de produção (contexto imediato e histórico) e ao sujeito (inserido nessas condições) e materializando-se por meio do discurso. Assim, para a análise de discurso, a linguagem só funciona porque ela é ao mesmo tempo estrutura e acontecimento, ou seja, não se podem separar as condições de produção do discurso da sua estrutura gramatical: sujeito e sentido significam ao mesmo tempo (ORLANDI, 2007).

A AD analisa o funcionamento do discurso na produção de sentidos, podendo-se assim explicitar o mecanismo ideológico que o sustenta, ou seja, a ideologia se inscreve no discurso e apenas assim produz sentidos (ORLANDI, 2007ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP. Pontes, 2007.). Não há língua sem sujeito e nem sujeito sem ideologia. No entanto, é importante salientar que para o sujeito, nessa vertente francesa, a língua não é transparente. Ou seja, a língua tem uma opacidade. E o sujeito que produz discurso percebe a língua como se ela fosse transparente: ele “acha” que controla os sentidos e “acha” também que é origem do que diz. Não percebe, portanto, a ideologia produzindo sentidos em seu discurso.

O corpus da pesquisa constitui-se das respostas às duas questões analisadas e aos fragmentos (identificados por fragmento 1, fragmento 2, fragmento 3...) selecionados da transcrição das falas dos professores durante as discussões, nos quaisbuscamos verificar as condições de produção do discurso emitido. Nos fragmentos apresentados, os professores foram identificados pela letra P, seguida de numeração e os professores mediadores da discussão pela letra M, seguida de numeração. O símbolo [...] indica continuação de falas ocultadas.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Participaram do curso de formação continuada com ênfase na História da Ciência 17 professores, todos da área das Ciências da Natureza, sendo 11 professores das disciplinas de Ciências e Biologia, 5 da Química e 1 da Física.

Para compreender as representações iniciais dos professores acerca da eugenia uma das perguntas do questionário inicial indagava: o que é eugenia? Essa questão revelou que 3 professores não sabiam do que se tratava, 9 apresentaram respostas equivocadas e 5apresentaramuma compreensão básica em relação ao tema, conforme podemos observar no quadro 2.

Quadro 2
Representações iniciais dos professores acerca da eugenia.

Ao analisar as respostas, percebemos que a maioria dos professores não conhecia ou apresentava respostas equivocadas a respeito do tema. Entre os professores que expuseram uma compreensão básica do tema, percebemos que apenas um era da área da Física (P2) e os demais formados em Ciências Biológicas, supondo, assim, que tiveram algum contato com o assunto durante sua formação ou estudos da genética ou que tenham pesquisado acerca do tema a partir da divulgação do curso. O não conhecimento do termo eugenia era esperado, já que, conforme destaca Guerra (2006GUERRA, A. Do holocausto nazista à nova eugenia no século XXI. Ciência e Cultura, v. 58, n.1, 2006.), após as atrocidades do holocausto nazista o uso da palavra eugenia foi banido de todas as esferas sociais e científicas. Para que uma palavra faça sentido é preciso que ela já tenha sentido (ORLANDI: 2007ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP. Pontes, 2007., p. 71). Contudo, Mai e Angerami (2006MAI, L. D.; ANGERAMI, E. L. S. Eugenia negativa e positiva: significados e contradições. Revista Latino-americana de Enfermagem, v. 14, n. 2, p. 251-258, 2006.) afirmam que a eugenia nunca saiu de cena, mas veio sendo camuflada e hoje reaparece com novas formas de intervenções ligadas às biotecnologias da atualidade. Assim, interpretamos que o período de tempo de declínio da eugenia,entre as décadas de 1950 e 1990, faz com que muitos indivíduos desconheçam o termo e sua história.

Após comentários das questões iniciais respondidas pelos participantes e uma discussão acerca do posicionamento dos professores em relação às técnicas de manipulação genética, melhoramento genético e predisposição a doenças genéticas, uma das atividades para iniciar o estudo acerca da eugenia e evidenciar as relações entre o melhoramento genético humano atual e a “velha” eugenia, foi aleitura e discussão da reportagem “Como fazer um superbebê”, da revista Super Interessante, edição de fevereiro de 2012. No início da discussão solicitamos aos professores para observarem e comentarem acerca da capa e da chamada da reportagem, conforme imagem e fragmento 1.

Imagem 1:
Capa da revista Super Interessante - 23 fev 2012.

FRAGMENTO 1.

M1: Observem o bebê da capa, qual é o perfil?

P14: É o que todos querem, acho que sem você pensar em questão de religião é o bebê que toda mãe gostaria de ter, perfeito, sem doenças, quem que não gostaria de ter?

P15: É o bebê da ciência, olha, pele branca, olhinho azul, é uma discriminação exacerbada.

O discurso exposto na capa permitiu uma reflexão inicial dos padrões estéticos divulgados pela classe dominante como ideais. Conforme observamos no fragmento 1, os professores P14 e P15 já estabelecem relações entre o que se divulga como biótipo ideal - pele branca e olho azul - e discursos de discriminação. Não podemos, no entanto, afirmar que o sujeito compreende como a ideologia funciona, uma vez que a língua não lhe é transparente, como já afirmamos acima. O que permite a compreensão do professor a respeito de “discursos de discriminação” é o lugar que ele ocupa na ordem do discurso. Ele se identifica com a Formação Discursiva que produz como natural esse padrão de bebê que se encontra na capa da revista, mas essa identificação não é da ordem do consciente, ou seja, ele não escolhe ser sujeito de uma Formação Discursiva em detrimento de outras. Ele está assujeitado a uma Formação Discursiva e a reproduz.

Uma análise histórica evidencia que as relações de beleza, poder e superioridade entre os diferentes grupos humanos são encontradas em todas as civilizações. Desde a antiguidade, por exemplo, são registrados padrões de beleza como as obras de arte e as esculturas de corpo humano em mármore da Grécia antiga. Ainda de uma forma mais radical tem-se o exemplo da cidade-estado de Esparta, onde todos os recém-nascidos eram cuidadosamente examinados por um conselho de anciãos e, se constatada anormalidade física, mental ou falta de robustez, ordenava-se o encaminhamento do bebê ao Apotetas (local de abandono) para que fossem lançados de cima do monte Taigeto (abismo de mais de 2.400 metros de altitude, próximo de Esparta). Caso contrário, os pais cuidavam de seus filhos até os sete anos, quando os meninos ingressavam definitivamente na escola de formação militar tutelada pelo Estado, afinal, todo espartano varão pertencia ao Estado e deveria ser forte e belo para compor o bravo exército espartano (BIZZO, 1995BIZZO, N.M. V. Eugenia: quando a biologia faz falta ao cidadão. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 92, p. 38-52, fev. 1995.; DIWAN, 2007DIWAN, P. Raça Pura. Uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007.).

A exemplo do ocorrido na Grécia antiga, a história mostra que no decorrer dos anos, a relação beleza e saúde foi sendo associada ao poder. Do movimento eugênico às características expressas, como as compartilhadas na genealogia familiar, foram sendo observadas e classificadas em determinados padrões estéticos e ideológicos, buscando apontar a existência de diferenças e hierarquias entre os diversos grupos humanos (SOUZA, 2006SOUZA, V. S. de. A “Eugenia Negativa” nos Trópicos: A Política Biológica e a Construção da Nacionalidade na Trajetória de Renato Kehl (1928-1932). In: XIIENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 7., 2006, Rio de Janeiro. Anais/Rio de Janeiro: ANPUH, 2006.). A ideologia dominante da hierarquização social colocou os considerados superiores brancos e “belos” no topo da pirâmide e abaixo vinham os marginalizados, os considerados como escória social, entre eles negros, índiose prostitutas. Nesse contexto, o discurso dos professores na análise inicial da capa da revista de Divulgação Científica indica que esse perfil “branco de olhinho azul” continua sendo sinônimo de perfeição ideal e beleza mesmo com o declínio do movimento eugênico tendo ocorrido há aproximadamente 70 anos. Podemos afirmar, portanto, que um padrão de beleza permeia a forma como esses sujeitossignificam o mundo.

A reportagem analisada pelos participantes inicia-se com a divulgação de um casal que utilizou a tecnologia genética para selecionar um embrião sem o gene responsável pelo câncer de mama. A partir dessa leitura, os professores foram indagados:

FRAGMENTO 2.

M1: O que vocês acham dessa técnica que foi realizada? Da seleção desse embrião, sem o gene responsável pelo câncer de mama.

P15: Até então foi válido, porque foi para a cura de uma doença. Impossibilitou ela de desenvolver a doença dos pais, agora aqui o comentário já fica outro, a parte estética também, da mistura de cor dos olhos, então esse que é o problema é o uso exagerado, eu acho assim, o homem querer brincar de Deus, em cima dessas ferramentas, essas extrapoladas da ciência, assim que é complicado.

P8: E outra também, qual é a garantia que essa menininha não vai desenvolver outros tipos de câncer?

P15: Quer dizer eliminou um problema, mas e os outros?

M1: Vocês são a favor, por exemplo, se vocês tivessem um problema desses na família, se fossem ter um filho vocês recorreriam à técnica da seleção de embriões para isso?

P2: E os outros embriões?

P8: Aí, o que são feitos com os outros, sabendo que é seu filho que está ali na pesquisa?

M2: É, com autorização, são doados para a pesquisa, no caso humano.

P8: Eu não faria isso.

P15: Eu também não.

Observamos nos enunciados do fragmento 2 as interações entre a formação científica e a formação social e religiosa dos professores. Algumas falas, como o P15, apresentam uma posição favorável em relação a utilizar a técnica para garantir a saúde, no entanto, expressam-se de modo totalmente contrário quanto às características estéticas e chega a apresentar a metáfora “o homem quer brincar de ser Deus”, muito utilizada para caracterizar médicos e pesquisadores da área da engenharia genética. Na AD o efeito metafórico “é o efeito semântico produzido por uma substituição contextual” um deslize próprio da produção de sentido (ORLANDI, 2007ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP. Pontes, 2007., p. 78), assim, a interpretação dessa metáfora nos permite compreender o lugar que esse sujeito ocupa e a sua formação discursiva acerca de sua preocupação com as implicações éticas da manipulação genética. Da mesma forma, os professores P2 e P8 questionam a respeito da possibilidade de desenvolver outras doenças e o que fazer com os outros embriões, expondo uma reflexão também voltada para questões bioéticas.

Em relação à seleção de embriões, Zatz (2011ZATZ, M. Genética: Escolhas que nossos avós não faziam. 1ªed. São Paulo: Globo, 2011.) explica as discussões referentes ao design de crianças, o qual poderia permitir, no futuro, aos pais decidirem se querem que seus filhos nasçam mais resistentes a infecções, mais bonitos e mais inteligentes. De acordo com a pesquisadora, não se trata de modificar genes dos descendentes para que eles não tenham doenças fatais, ou mesmo genes que afetem irremediavelmente a sua qualidade de vida, mas de selecionar, entre vários embriões, um ou outro com as características desejáveis. Dessa forma, os filhos seriam uma impressão das ideologias dos pais, qual a ética disso? É uma pergunta que necessita de muita reflexão.

Na continuidade da leitura e discussão da reportagem os professores questionam as consequências das tecnologias genéticas:

FRAGMENTO 3.

P11: Ali já é feita uma seleção dos embriões sadios, já começa uma seleção, eles não vão fazer fertilização com espermatozoides que têm algum problema, então ali já se faz uma seleção. Aí o que é guardado no banco de sêmen também são espermatozoides perfeitos, sadios.

M1: E depois eles selecionam de novo quando vai implantar.

P11: Daí depois eles selecionam de novo antes de implantar, daí a mãe pode escolher até algumas características, até o sexo do bebê já pode escolher, a gente ainda faz eugenia entre os bastidores, a gente ainda está fazendo. Esses dias saiu uma reportagem, eu vi essa semana, o Brasil já tem um banco de sêmen muito grande e eles não sabem o que vão fazer com esse material.

P15: Isso envolve uma polêmica.

P11: Isso envolve a questão da bioética.

[...]

M1: Vamos supor que isso se torne popular, acessível, o que vai acontecer assim, com o decorrer dos anos?

P15: A população vai ficar homogênea.

M1: Por exemplo, se tem essa diferença financeira, se só alguns vão poder selecionar as características e bebês sem doenças.

P1: Vai ser uma discriminação de quem não tem condições de escolher o filho perfeito, igual à questão da raça ariana.

Novamente, na análise desse fragmento 3 observamos que os professores falam a partir do lugar que eles ocupam na sociedade - professores de ciência - preocupados com os dilemas éticos das novas possibilidades disponibilizadas pelas atuais técnicas genéticas bem como com as questões da diversidade biológica e a preocupação com a homogeneização da população. Fato também destacado por Zatz (2011ZATZ, M. Genética: Escolhas que nossos avós não faziam. 1ªed. São Paulo: Globo, 2011., p. 110) ao citar Craing Venter após o fim do Projeto Genoma Humano: “Isso mostra que somos substancialmente mais diferentes uns dos outros do que especulávamos, e isso é uma boa notícia para a humanidade”. Acrescentando ainda a autora:

É essa variedade de aptidões físicas e mentais que confere às populações humanas suas possibilidades de responder aos desafios do ambiente, suas ferramentas para progredir em sociedade, desenvolver culturas ricas, criar e ter comportamentos diferentes [...] Portanto, todo tipo de homogeneização, destinada a contribuir para a criação de indivíduos iguais ou “normais”, ideais ou perfeitos, só tende a empobrecer a todos nós (ZATZ, 2011ZATZ, M. Genética: Escolhas que nossos avós não faziam. 1ªed. São Paulo: Globo, 2011., p. 110).

No fragmento 3, percebemos, ainda, os sentidos produzidos pelos professores acerca das discriminações que a ideologia do melhoramento genético humano pode ocasionar. Quanto à questão da ideologia e discriminação, podemos, também, observar outro fragmento da discussão(fragmento 4), no qual os professores apontam suas concepçõesreferentes às implicações das tecnologias genéticas quanto à seleção de algumas características definidas como as melhores por um determinado grupo de pessoas que divulga suas ideologias e as consequências disso para a disseminação de novas discriminações.

FRAGMENTO 4.

P11: E na verdade saiu também na revista Veja eu não lembro o ano, nem o mês, na capa são duas crianças divididas por um traço, o texto coloca assim: muitas famílias procuram as clínicas para escolher o sexo do terceiro bebê ou querem uma menina ou querem um menino, então também se necessita outra visão não tanto científica, mas também da emoção, da vontade dos pais naquele momento, eles pegaram umas quatro famílias e cada família expôs porque procurou uma clínica, que nem no caso, uma mãe falou que já tinha em casa duas princesas, ela queria um príncipe, que seria um menino, então também temos que ver os dois lados, né, porque no Brasil olhando aqui é possível a escolha do sexo no momento que faz a fertilização, só que casais assim poderiam ter seus filhos nas concepções normais, já é possível.

[...]

M1: Mas e aí, se as pessoas começam a escolher o sexo, ainda existe discriminação na nossa sociedade?

P13: A China estava com um problema sério né, que cada família só podia ter um filho e não queriam filhas mulheres, jogavam na rua, só que agora sabe o que eles têm? Só homens e está faltando mulheres.

P3: Sabe por quê? Na China filho homem é a garantia da aposentadoria do pai, eles não têm lá contribuição da aposentadoria, o pai quando fica velho, o filho homem que vai dar comida para ele, que vai dar sustento para ele, saúde para ele, então o que acontece?Hoje com a questão do ultrassom e toda essa tecnologia é o país onde mais se aborta meninas, porque toda família quer um filho homem, é a cultura deles, é uma tradição, o filho homem que cuida do pai depois. E aí que eles estão com um grande problema, as praças em Pequim onde eles buscam namoradas estão cheias de homens e não tem mais menina, não tem mais moça.

P13: Aí eles estão se suicidando, é o país com o maior índice de suicídio. Só tem homem.

[...]

P3: Mas é cultura, vocês hão de convir que essa questão da eugenia sempre existiu, desde o século XVII, XVIII, XIX, negros só serviam para trabalho escravo, antes disso, lá na própria Grécia o negro era escravo ele era inferior, então, quando aprendiam, quando tomavam um povoado, os sobreviventes viravam escravos dos gregos, aí você vai para a própria China onde uma menina vale muito menos que um homem.

Perante o fragmento 4,observamos o saber socioideológico dos professores ao refletirem a respeito de questões econômicas e culturais. Essa análise remete-nos as condições de produção dos discursos emitidos que incluem o contexto sócio-histórico, ideológico dos sujeitos e da situação. A memória é uma das maneiras de acionar as condições de produção. Na AD a memória é tratada como interdiscurso, definido como aquilo que se fala antes em outro lugar, ou seja, “é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra”(ORLANDI, 2007ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP. Pontes, 2007., p. 31). Todo discurso está pautado nessa memória discursiva. No entanto, o sujeito não é capaz, pelos esquecimentos próprios dessa inscrição do sujeito na linguagem, de recuperar a origem do que ele diz. Assim, e não poderia ser de outra maneira, a memória discursiva produz efeitos nos dizeres dos professores em relação à ideologia social de um padrão ideal.

Na sequência do curso, para favorecer a produção de sentidos dos professores acerca das relações dos atuais ideais da manipulação genética humana e da eugenia, foi proposta outra atividade que consistiu na leitura e discussão de textos originais publicados no Boletim de Eugenia nos anos de 1929, 1930 e 1931. Os encaminhamentos para essa atividade podem ser observados no fragmento 5:

FRAGMENTO 5.

M2: Então agora, depois de termos discutido essa reportagem, as questões da seleção genética do século XXI, vamos conhecer um pouco da eugenia do século XX. Eu vou distribuir para vocês alguns textos originais do Boletim de Eugenia que foi um meio de divulgação da eugenia aqui no Brasil, ele foi editado entre os anos de 1929, 1930, 1931, 1932 e 1933. Nós conseguimos os exemplares dos anos de 1929, 1930 e 1931, quando ele foi editado no Rio de Janeiro pelo diretor Renato Kehl. Esse Boletim divulgava notícias da eugenia, artigos em geral com questões relacionadas à eugenia. E nós estaremos vendo alguns desses artigos que foram publicados por diversos membros da sociedade brasileira, tanto médicos como políticos e outros intelectuais que publicaram nesse Boletim. Então eu vou distribuir, peço que vocês leiam o artigo e depois nós vamos discutir.

A partir desse encaminhamento, a discussão foi embasada nos artigos publicados por diversos autores no Boletim. Os temas presentes nos artigos analisados foram: a divulgação da proposta eugênica, o tratamento de ciência conferido à Eugenia na época, a imigração, a influência da eugenia para a educação e para as questões sexuais.Quanto à divulgação, por exemplo:

FRAGMENTO 6.

P2: Então, o primeiro Boletim ele fala dos propósitos desse Boletim, que é auxiliar na campanha em prol da eugenia entre os elementos cultos e entre os elementos embora de mediana cultura desejem também orientar-se sobre momentoso assunto. [...] E aqui eu pontuei, “pretendem-se com seus desígnios o estudo e aplicação das questões da hereditariedade, descendência e evolução, bem como as questões relativas das influências do meio, econômicas e sociais, está dentro da sua esfera investigar o papel representado pela educação, costumes, imigrações, emigração, mestiçagem e todos os demais fatores que atuam sobre os nossos semelhantes, com o fito não só de derivar novos conhecimentos e de abrir outros campos de investigação como estabelecer valiosos ensinamentos e regras práticas para regeneração contínua da espécie, propósito também de aperfeiçoar as qualidades e reduzir ao mínimo as imperfeições humanas, eis em síntese o ideal eugênico”.

Segundo Mai e Boarini (2002MAI, L. D.; BOARINI, M. L. Estudo sobre forças educativas eugênicas no Brasil, nas primeiras décadas do século XX. Ciência, Cuidado e Saúde, v. 1, n. 1, 2002.), um dos principais objetivos da publicação do Boletim foi promover o movimento eugenista e despertar o interesse público para os problemas do país, que segundo a maior parte dos eugenistas, teriam origem racial3 3 A eugenia brasileira não foi um movimento homogêneo, consistindo de diferentes ideias para as explicações de herança e para a viabilidade do cruzamento entre as chamadas “raças” humanas. Assim, ao mesmo tempo que muitos eugenistas defendiam a purificação da raça em um ponto de vista reprodutivo mais estrito, outros entendiam a eugenia como mais próxima do sanitarismo e higienismo, reivindicando que a melhoria do ambiente levaria ao desenvolvimento da população (STEPAN, 2004). . Ao analisar os exemplares do Boletim de Eugenia, percebe-se que, dos diversos assuntos tratados, a educação foi uma das temáticas de maior discussão, no qual os eugenistas se dedicaram a promover a propagação dos ideais eugênicos, defendendo que tais prerrogativas viessem a determinar o modelo social pretendido no país. A necessidade da educação eugênica aparece em diversos números dos Boletins em uma multiplicidade de contextos, por exemplo, apresentando a necessidade do ensino de genética para fundamentar a compreensão da eugenia e defendendo a importância da educação sexual nas escolas, como apresentamos nos fragmentos a seguir:

E a genética deve ser ensinada desde a Escola Primaria, por ser a sciencia-mater da Eugenia, no relativo a todos os seres vivos; e a sciencia que ensina a apurar boas qualidades, à luz da Biologia (SAMPAIO, 1929SAMPAIO, A. J. O ensino de genética nas escolas primarias. Boletim de Eugenía, n.11, 1929., p.4, BOLETIM DE EUGENÍA).

Póde parecer estranho a muita gente que, em se tratando de educação sexual, tenha o Boletim se intromettido em seára alheia, chamando a si atribuições que não lhe competem.

É um engano

A Eugenía preventiva encerra em seu programma tudo que se possa preservar a espécie humana de abastardamento physico ou da corrupção moral.

A educação sexual constitue uma das questões principaes da campanha em pról da defesa humana, porque ella tem por fim incutir na consciencia popular a responsabilidade de cada individuo para consigo mesmo, para com os outros, em particular para a familia (LUISI, 1930LUISI, P. Educação sexual. Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, ano II, n. 24, p. 3-5, dez. 1930., p. 1, BOLETIM DE EUGENÍA)

Ao lado das discussões sobre imigração e hereditariedade, consideradas por grande parte dos eugenistas, a educação teria a função de estimular as habilidades dos eugenizados, sendo que para os elementos disgênicos, tal investimento poderia ser dispendioso, visto a impossibilidade de atingir progressos ante a falta de habilidades provenientes de fatores hereditários. Sendo assim, a educação jamais representaria a função transformadora da sociedade, mas, poderia conferir-lhe a propagação dos ideais eugênicos (MAI; BOARINI, 2002MAI, L. D.; BOARINI, M. L. Estudo sobre forças educativas eugênicas no Brasil, nas primeiras décadas do século XX. Ciência, Cuidado e Saúde, v. 1, n. 1, 2002.).

Interpretamos assim, que a divulgação do Boletim para boa parte dos eugenistas estava associada a promover uma consciência eugênica, tendo como foco os jovens em idade escolar e despertar neles o compromisso com os ideais eugênicos, o que levaria a abranger todas as demais camadas sociais. Outra questão observada diz respeito à importância de um matrimônio consciente, instruindo os jovens a não realizarem matrimônio entre raças e classes sociais diferentes, bem como somente gerar filhos os casais considerados eugenicamente sadios, contribuindo, dessa forma, para a formação de uma elite nacional. Por essas razões, assuntos ligados à genética e à educação sexual deveriam ser ensinados na escola desde cedo. Essas questões foram observadas e mencionadas pelos professores durante a discussão, como exposto no fragmento 7:

FRAGMENTO 7.

P2: Olha, polêmico né lógico, muito polêmico, porque hoje tem concepções totalmente opostas a essas, as discussões, de inclusão, enfim, é um assunto super polêmico, e acontece também, hoje a gente sabe que tem algumas questões que estão disfarçadas, mas que ainda acontece hoje.

M2: E o que vocês acham que motivou esse Boletim?

P2: Essa ideia de melhoramento da raça humana, mas, o que é esse melhoramento?

M2: E de onde que veio essa ideia de melhoramento?

P2: Essas ideias, se for pelo histórico, elas aparecem desde lá na Grécia antiga e tal, então as pessoas vão retomando essas ideias e dando outra roupagem para elas e tal, mas...

M2: E vocês conseguem relacionar isso com a questão da hereditariedade?

P2: Aqui, o próprio texto traz essa ideia principalmente com relação à hereditariedade, mas meu ponto de vista não é essa forma de pensar aqui. Primeiramente, melhorar em que sentido a raça humana? Será que o que essas pessoas defendem como melhoramento, será que é o melhoramento que todos esperam? E quais as consequências desse melhoramento? Então, esse melhorar que é questionável, depende, isso é relativo, se estas ideias fossem usadas, por exemplo, para salvar uma vida é uma questão, mas depende o uso né desse processo todo da genética, enfim.

Voltando a questão da ideologia que moveu esse movimento, os professores apresentam em suas falas, motivados pela discussão, que o discurso acercado melhoramento da “raça” humana, a seleção de certas características, fez-se mediante os ideais de um grupo da sociedade. Percebendo assim, a formação discursiva, ou seja, “aquilo que numa formação ideológica dada - ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada - determina o que pode e deve ser dito” (ORLANDI, 2007ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP. Pontes, 2007., p. 43). Esses professores, profissionais da educação que atualmente defendem a diversidade e o movimento de inclusão (PARANÁ, 2008), não estão ocupando os mesmos lugares daqueles que defendiam a eugenia como uma forma de “purificação da raça”.

Em outro momento da discussão dos artigos, como o movimento eugenista esteve muito vinculado a questão de saneamento, higienização e educação sexual, percebemos que os professores mencionam alguns aspectos positivos dentro do movimento, sendo estes relacionados à prevenção, à saúde e à prática de exercícios, como exemplificado no fragmento 8.

FRAGMENTO 8.

P3:Diz que entre a genialidade e a loucura existe uma fronteira muito estreita né, tem que sempre procurar o equilíbrio das coisas, por coincidência um colégio que eu estudei, que foi fundado lá na década de 1930, tinha lá um método, “mente sã e corpo são”, e isso é um lado positivo também, um corpo saudável, dessa questão da eugenia, buscar a sanidade, buscar sempre a saúde né, mas por outro lado nós pensamos em indivíduos como Hitler, passava para o lado louco.

[...]

P3: Posso falar? O meu é “Atestado médico pré-nupcial”, a sugestão é de 14 de novembro de 1929, aqui o professor Dr. Victor Delfino propõe que todas as pessoas sejam obrigadas a fazer o exame pré-nupcial antes do casamento, com essa proposta, e obter o atestado médico pré-nupcial e argumenta que hoje as famílias consultam mais facilmente um charlatão que um médico, na época né.

P1: Isso seria muito bom né?

P3: Se isso partisse dos dois seria fácil, nem todos os casais que têm uma doença fácil de curar se submetem ao tratamento.

M1: Ou então poderia pensar em se prevenir né.

P3: Se partisse do indivíduo né, do cidadão, agora você obrigar as pessoas... Não dá.

M1: É só que aí não é só qualquer anomalia né, seria considerada uma coisa, é a sanidade completa, investigando os parentes, a ascendência, que é aquela coisa de querer o mundo perfeito, com pessoas perfeitas e tal.

[...]

P1: Posso só fazer uma intervenção? Porque antes desse teu texto tinha a parte do aborto e da esterilização temporária. Então havia comentado que na Alemanha, principalmente depois da guerra, o número de aborto aumentou assim de forma exagerada e isso levou, no caso, alguns estudos. Então o que eles viram, que em especial nas famílias que não tinham muitas condições, isso para eles não era considerado uma coisa imoral, seria uma coisa natural. E quando você colocou que eles tinham um filho atrás do outro, na Áustria teve um médico que ele propôs a esterilização temporária só que aí teve autoridades locais que se colocaram contra esse médico e eles colocaram, eles julgavam que os homens esterilizados era uma operação perigosa para o progresso da comunidade e o médico teve que se justificar, na verdade o que ele queria que as mulheres tivessem um tempo de descanso entre uma gestação e outra porque na verdade elas não tinham, imagina 9 anos de casado 8 filhos, então essa era uma esterilização temporária que a partir do momento que o casal queria voltar a ter filhos de novo, mas a mulher tinha direito a esse descanso né.

P11: Isso no caso de não vir gêmeos né, porque aqui tem um caso que ela era casada a 10 anos e tinha 17 filhos né, então assim vinham dois, três de uma vez, mas se for fazer uma análise também o que a igreja prega ela é contra os métodos contraceptivos.

P1: Mas aqui era ao contrário eles queriam preservar a figura da mãe, das crianças e que fizessem propaganda em relação ao uso dos métodos contraceptivos era essa a ideologia ali né, para que não tivessem tantos filhos, para que as mulheres descansassem realmente um pouco e não só crescer e multiplicar.

[...]

P14: Daí ele fala também que se a mãe tivesse explicado ao filho com simplicidade e absoluta naturalidade que as crianças nascem de dentro da mulher, assim como os passarinhos nascem dos ovos, tivesse ela demonstrado a grandeza da formação do novo ser, satisfazendo de forma natural a curiosidade, afastaria a malícia base dos instintos sexuais [...].

P16: Nossa, mas é incrível ver que eles pensavam assim lá em 1930...

P14: Então o texto traz que o sexo era normal, que eles queriam passar isso para os filhos.

As falas do fragmento 8 apresentam uma reflexão dos professores que encaminha para um discurso um tanto positivo da Eugenia relacionado à higiene e saúde, como por exemplo, P3:[...] “por coincidência um colégio que eu estudei, que foi fundado lá na década de 1930, tinha lá um método, ‘mente sã e corpo são’, e isso é um lado positivo também, um corpo saudável, dessa questão da eugenia, buscar a sanidade, buscar sempre a saúde né”. Essas falas evidenciam as contradições próprias do discurso. Ainda que o professor não perceba, elas não produzem um estranhamento naquilo que ele diz. Os lugares discursivos desse sujeito, antes aluno e agora professor, evidenciam as condições de produção do seu discurso e o lugar que esse sujeito ocupou/ocupa. É importante, chamar a atenção para a língua que só funciona na opacidade. Ou seja, o sujeito não percebe esses lugares discursivos: não percebe a contradição de seu discurso. Demonstramos ainda, no fragmento 8, as reflexões dos professores quanto às questões sexuais, um dos principais temas tratados no Boletim (ROCHA, 2010ROCHA, S. Eugenia no Brasil:Análise do discurso “científico” no Boletim de Eugenia: 1929- 1933. 2010. 100 f. Tese (doutorado). Programa: História da Ciência, PUC- SP, São Paulo, 2010.), as quais estão de acordo com o que, de certa forma, foi enfocado pelos autores que publicaram no Boletim, de que a educação sexual deve ser ensinada aos filhos pelos pais e pela escola. Como se pode observar nos trechos de artigos publicados no Boletim:

A educação sexual é ao mesmo tempo a obra da família e da escola, como do mesmo modo todo o ensinamento primário, visto que a escola e a familia devem collaborar no mesmo objectivo (LUISI, 1930LUISI, P. Educação sexual. Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, ano II, n. 24, p. 3-5, dez. 1930., dez. p. 4).

Pouco tempo após, surgiram dois outros projectos, de caracter e finalidade puramente galtonianas, e devidos ao esforço inteligente e apaixonado do jovem deputado Oscar Penna Fontenelle: a) projecto dispondo sobre o delicto de contagio b) projecto estabelecendo o ensino da Hygiene individual e Hygiene sexual nos collegios secundários officiaes e equiparados e nos collegios militares (KEHL, 1929, jan. p. 2).

Segundo os autores do Boletim, a educação eugênica com base nos fundamentos genéticos seria fundamental. O papel da educação seria, sob essa visão, evitar a má formação e a ignorância por parte dos estudantes sobre orientação sexual, relações conjugais e criação dos filhos. Assim, o movimento eugênico fazia menção à educação sexual nas escolas e à necessidade de prevenção de doenças, pois admitia, como um dos seus objetivos, a boa saúde física e mental dos bebês. Para isso, os futuros pais deveriam ser orientados e educados, tanto em casa como nas escolas, sobre as questões sexuais, o que também foi mencionado pelos professores como algo positivo. Sem dúvida, a eugenia foi um movimento de ampla repercussão e de muitos encaminhamentos. Apesar de muitos dos seus ideais terem se referido à parte negativa que propunha punir as pessoas que, segundo a concepção de determinado grupo, não tinham as qualidades adequadas para viver e contribuir para o aprimoramento da sociedade, não se pode deixar de reconhecer alguns pontos que tiveram repercussão em aspectos de higiene e saúde, uma vez que, se articulavam ao movimento sanitarista.

O Boletim de Eugenia defendia a eugenia como a ciência que oferecia soluções para os problemas nacionais brasileiros de degeneração da população (ROSA, 2005). Nesse contexto, Renato Kehl teve um papel essencial na divulgação de ideias sobre hereditariedade no Brasil. Seu conhecimento sobre os trabalhos de autores estrangeiros renomados, como Lamarck, Galton e Darwin, possibilitou discussões de temas da genética a ponto de se tornar um dos vieses da sistematização da área no Brasil (CASTAÑEDA, 1998CASTAÑEDA, L. A. “Apontamentos historiográficos sobre a fundamentação biológica da eugenia”. Episteme, Porto Alegre, v. 3. n. 5, p. 23-48, 1998.). Do mesmo modo, Del Cont (2007Del Cont, V. D. A ciência do melhoramento das especificidades genéticas humanas. 2007.370f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, São Paulo, 2007.) afirma que nos Estados Unidos estabeleceram-se referenciais teóricos e práticas sociais a partir da concepção de que a eugenia era compreendida como legítima ciência da hereditariedade. Para eles, ela se apresentava não apenas como um movimento sociopolítico discriminatório e racista, mas, também, como campo de produção de saber científico vinculado às teorias sobre hereditariedade e ao controle da reprodução humana a partir do domínio de informações genéticas. Apesar dos pontos ressaltados do movimento eugênico, associado ao desenvolvimento científico, é importante enfatizar que sua ideologia foi fundamentalmente negativa, pois se vinculou a movimentos discriminatórios e racistas. Essa característica do movimento deve ser avaliada eticamente para evitar, novamente, a vinculação de discursos desse gênero à ciência.

Para finalizar essa discussão, indagamos os professores sobre suas percepções quanto ao que foi abordado nos artigos do Boletim. Algumas falas estão evidenciadas no fragmento 9.

FRAGMENTO 9.

P16: Assim tem algumas coisas que são um absurdo né, mas daí se você para, para pensar outras coisas assim, a visão deles na verdade era preservar a sociedade de algumas coisas que acontecem hoje né, claro que quem sou eu para julgar se fulano é bem-dotado, se fulano é mal dotado, que direito né, mas a visão deles é evitar muita coisa que acontece hoje.

P15: Na verdade hoje é feito, continua, é feito, só que é, não é às claras, então acontece do mesmo jeito só que ninguém assume, tipo assim é camuflado.

P16: Esta esterilização que ele comentou, aqui muitas vezes acontece, mas de outras formas.

P15: Exatamente não é falado, não acontece exatamente como é colocado no papel aqui, mas, por exemplo, assim essa, como é que chama não é classificação, essa seleção acontece em tudo, isso é em surdina.

P2: Esse movimento do início do século 1920, na verdade assim, eles queriam institucionalizar ou tornar leis muitas questões que hoje acontece à surdina, a própria questão do aborto.

P16: Mas a questão do uso da genética para a questão de doenças, quem tem acesso a esse tipo de tecnologia, todos tem acesso? Todos têm direito! Mas todos têm acesso?

P13: Só quem tem dinheiro né.

M2: O que já é uma forma de selecionar né, quem tem dinheiro.

P15: Sim, as leis existem, mas quem consegue fazer com que elas funcionem? Vamos pensar nos deficientes né, em todas as deficiências, têm uma série de privilégios os deficientes, mas eles conseguem acesso? Tem que rodar o mundo para conseguir o mínimo do mínimo.

M2: E como vocês relacionam os artigos do Boletim, as medidas colocadas nele, os propósitos de tal, com relação à reportagem que nós vimos de manhã?

P16: Na verdade eles continuam buscando os bens dotados, de outra forma, mas eles estão tentando selecionar, os genes ali.

P3: Aquela reportagem ela cita duas vezes o Stephen Hawking [...] um dos maiores físicos do mundo, que apareceu no mundo até hoje. Então eu tenho um motivo para dizer isso. Sabe que ele sofre de esclerose múltipla,é um dos maiores físicos que já apareceu até hoje, quer dizer que vindo dessa visão, o bebê imperfeito, ele seria um embriãozinho separado. Vamos citar mais um, Beethoven, surdo, um dos maiores músicos, dentro dessa visão Beethoven seria separado. Jô Soares, miopia progressiva, seria separado também, então a gente não pode menosprezar

[...]

M1: E o forte poder de manipulação ideológica vocês perceberam?

P2: Com certeza, isso sim ficou bem claro, todo o discurso né, a começar ali, por exemplo, dessa parte introdutória do primeiro Boletim, que ele fala que os cultos, ou seja, a elite estava, a elite pensante na época que estava envolvida justamente com a eugenia. Então isso fica bem claro, toda a ideologia, as ideologias né, por trás de todos esses fatores que foram mencionados, eu acho que com certeza né, aparece bastante, o padrão, o modelo de quem, de quem está no poder, de quem tem a palavra.

Interpretamos,dos discursos do fragmento 9, a reflexão dos professores quanto a alguns aspectos da eugenia negativa, como a esterilização e a classificação dos indivíduos em bem dotados ou mal dotados, bem como a compreensão dos mesmos quanto aos aspectos sociais e ideológicos que envolveram esse movimento. Também é possível perceber nas falas a presença de ideais que justificaram o movimento eugênico na sociedade atual, só que de forma mais oculta. Além disso, verificamos a compreensão da não neutralidade do conhecimento científico, sendo este muitas vezes utilizado para justificar discursos ideológicos.

Esses foram os sentidos que nós interpretamos nos discursos produzidos pelos professores durante o curso, contudo conforme Orlandi (2007ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP. Pontes, 2007.), “o sentido não existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas”, relacionam-se assim as forças do lugar que os sujeitos investigados aqui ocupam na sociedade, enquanto professores de Ciências da Natureza e a circulação de sentidos negativos sobre a eugenia.

Para reafirmarmos os sentidos produzidos pelo discurso dos professores acerca das relações ideológicas entre as novas tecnologias genéticas e os ideais eugênicos interpretamos pelas respostas à pergunta do Questionário Final que as discussões durante o curso com a utilização de textos de divulgação científica contribuíram para a expressão de sentidos conforme o objetivo do curso. Em todas as respostas ficou evidente a preocupação dos professores em relação às questões éticas da manipulação genética atual e pela busca de um biótipo ideal, divulgado não de forma explícita, mas em um discurso camuflado em prol do bem-estar social, como podemos observar no quadro 3.

Quadro 3
Representações dos professores acerca das relações entre a manipulação genética em humanos e a eugenia após a participação do curso de formação continuada.

Nesse contexto, os discursos dos professores evidenciam sentidos próximos ao que vários pesquisadores vêm destacando, no qual as tecnologias envolvidas na reprodução assistida e na engenharia genética podem ser a continuação da caminhada ideológica e racista do movimento eugênico, difundido mundialmente entre o final do século XIX e início do século XX (OLIVEIRA 2004OLIVEIRA, F. Engenharia genética: o sétimo dia da criação. 2ª ed. Reform. - São Paulo: Moderna, 2004.; SONG, 2005SONG, R. Genética Humana: fabricando o futuro. São Paulo: Edições Layola, 2005. 150p.; DEL CONT, 2007Del Cont, V. D. A ciência do melhoramento das especificidades genéticas humanas. 2007.370f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, São Paulo, 2007.; ZATZ, 2011ZATZ, M. Genética: Escolhas que nossos avós não faziam. 1ªed. São Paulo: Globo, 2011.; SANDEL, 2013SANDEL, M. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Tradução Ana Carolina Mesquita. 1 ed Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,160p., 2013.; entre outros). Conforme Fraga e Aguiar (2010FRAGA, I. O; AGUIAR, M. A Neoeugenia: o limite entrea manipulação gênica terapêutica ou reprodutiva e as práticas biotecnológicas seletivas da espécie humana. Revista Bioética. v. 18, n. 1. p. 121-130, 2010.), as promessas de cura e resolução de problemas orgânicos da espécie por meio da manipulação genética camuflam ideais eugênicos e interesses econômicos e políticos, principalmente no que diz respeito à afronta aos direitos da personalidade. Além disso, alertam para as modificações artificiais no genoma humano que, consequentemente, provocará alterações no desenvolvimento natural da espécie, ocasionando desequilíbrios severos nos diversos sistemas biológicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a análise dos dados constatou-se que o curso possibilitou momentos significativos de reflexão e produção de sentidos em relação às aproximações do discurso eugênico e das tecnologias atuais que prometem o melhoramento genético humano. A partir das reflexões das respostas ao questionário inicial e final e das duas atividades desenvolvidas no curso de formação continuada, evidenciou-se que os professores compreenderam: a influência do movimento eugênico no final do século XIX e na primeira metade do século XX; a estrutura geradora do processo discursivo pautada no controle científico da reprodução humana com o objetivo de “melhorar” o ser humano - o que reproduzia um discurso ideológico da elite, justificado pela melhoria da nação; a presença desse discurso entre intelectuais - escritores, cientistas, médicos, entre outros; a relação do movimento eugênico no século XX e as discussões éticas vinculadas às tecnologias genéticas atuais.

Nesse sentido, no contexto do ensino, discutir a História da Ciência, considerando-a uma produção humana, uma atividade social, que resulta de um processo histórico e consequentemente relacionado ao contexto político, econômico e social, desmistificando a visão tradicional da ciência neutra, objetiva e verdadeira cujos resultados e teorias são transitórios e dependentes do contexto social que se insere é de grande importância, já que possibilita compreender as diversas facetas da construção científica. Além disso, permite a compreensão de que existe um âmbito de questões que a ciência está capacitada a responder, e que mesmo assim essas respostas não são definitivas e dependem do paradigma e das necessidades sociais de cada época.

REFERÊNCIAS

  • BIZZO, N.M. V. Eugenia: quando a biologia faz falta ao cidadão. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 92, p. 38-52, fev. 1995.
  • BORÉM, A. Impacto da biotecnologia na biodiversidade. Biotecnologia, Ciência & Desenvolvimento, Brasília, n. 34, p. 22-28, 2005. Disponível em: <Disponível em: http://www. biotecnologia.com.br/revista/bio34/bio34.pdf >. Acesso em: 4 jul. 2016.
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  • 1
    Abordagem da História da Ciência de maneira complexa, considerando os contextos socioculturais, políticos e econômicos de produção do conhecimento.
  • 2
    A realização da pesquisa foi previamente aprovada em Comitê de Ética e Pesquisa.
  • 3
    A eugenia brasileira não foi um movimento homogêneo, consistindo de diferentes ideias para as explicações de herança e para a viabilidade do cruzamento entre as chamadas “raças” humanas. Assim, ao mesmo tempo que muitos eugenistas defendiam a purificação da raça em um ponto de vista reprodutivo mais estrito, outros entendiam a eugenia como mais próxima do sanitarismo e higienismo, reivindicando que a melhoria do ambiente levaria ao desenvolvimento da população (STEPAN, 2004).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2017
  • Aceito
    06 Ago 2017
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