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Corpo, Cultura e Subjetividade: Uma Abordagem Psicológica da Normatividade Branca

Body, Culture and Subjectivity: a Psychological Approach on White Normativity

Cuerpo, Cultura y Subjetividad: Enfoque Psicológico sobre la Normatividad Blanca

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo contribuir teoricamente para uma abordagem psicológica das relações raciais. Com base em contribuições das psicologias social e cultural, da sociologia e dos estudos culturais e pós-coloniais pautadas no construcionismo social, este ensaio apresenta uma discussão sobre as relações entre corpo, cultura e subjetividade. Além disso, aborda as maneiras pelas quais essas três dimensões da existência humana são mutuamente construídas, assim como as relações de poder que permeiam tais construções em contextos pós-coloniais. Mais especificamente, utilizamos o corpo humano como ponto de partida para tecer reflexões teóricas acerca dos processos de subjetivação de sujeitos racializados, propondo um movimento de desnaturalização daquilo que nos estudos críticos sobre raça é chamado de “normatividade branca”. A discussão apresentada girou em torno da hipótese de que pessoas que compartilham de um conjunto de pressupostos socioculturais construídos a partir de experiências comuns, como corpos racializados, costumam reproduzir formas de ser, estar e atuar no mundo consistentes com tais pressupostos. Essas formas de ser, estar e atuar, por suas vezes, funcionam como mecanismos de promoção e manutenção de conjuntos particulares de expressões psicológicas. Por fim, consideramos que reconhecer a dimensão subjetiva da existência humana como processos culturalmente situados, assim como a impossibilidade de dissociarmos tais processos dos lugares sociais que ocupamos em virtude dos marcadores sociais personificados por nossos corpos, é reconhecer que sociedades racializadas produzem não apenas corpos racializados mas também subjetividades racializadas.

Palavras-chave:
Corpo humano; Cultura; Subjetividade; Normatividade branca; Relações raciais

Abstract

This paper provides theoretical contributions to a psychological approach to race relations. Based on social and cultural psychology, sociology, and postcolonial and cultural studies, and adopting a social constructionist perspective, this article discusses the association between body, culture, and subjectivity. It looks at the ways these three dimensions of human existence are mutually constructed, as well as the power dynamics shaping these constructions in postcolonial contexts. More specifically, we use the human body as a starting point to develop theoretical reflections about the subjective processes experienced by racialized bodies, proposing a denaturalization movement regarding the phenomenon of “white normativity”, as is called in critical studies on race. The discussion revolves around the hypothesis that people who share a set of socio-cultural assumptions built as a result of their common experiences as racialized bodies often reproduce ways of being and acting in the world that are consistent with such assumptions. These forms of being and acting in the world, in turn, function as mechanisms to promote and maintain particular sets of psychological expressions. Lastly, we conclude that recognizing the subjective dimension of our existence as culturally situated processes (as well as the impossibility of decoupling such processes from the social space we occupy by virtue of the social markers embodied by our bodies) means to acknowledge that racialized societies produce not only racialized bodies, but also racialized subjectivities.

Keywords:
Human body; Culture; Subjectivity; White normativity; Race relations

Resumen

Este texto tuvo como objetivo contribuir teóricamente con un enfoque psicológico sobre las relaciones raciales. Con base en los aportes de las psicologías social y cultural, de la sociología, de los estudios culturales y poscoloniales, este ensayo presenta una discusión sobre las relaciones entre cuerpo, cultura y subjetividad. Además, aborda las maneras por las cuales esas tres dimensiones de la existencia humana son mutuamente construidas, así como las relaciones de poder que permean tales construcciones en contextos poscoloniales. Específicamente, utilizamos el cuerpo humano como punto de partida para tejer reflexiones teóricas acerca de los procesos de subjetivación de sujetos racializados, proponiendo un movimiento de desnaturalización de aquello que, en los estudios críticos sobre raza, llamamos de “normatividad blanca”. La discusión presentada plantea la hipótesis de que las personas comparten un conjunto de presupuestos socioculturales, construidos en experiencias comunes como cuerpos racializados, que reproducen formas de ser, estar y actuar en el mundo y que son consistentes con tales presupuestos. Esas formas de ser, estar y actuar funcionan como mecanismos de promoción y mantenimiento de conjuntos particulares de expresiones psicológicas. Finalmente, consideramos que reconocer la dimensión subjetiva de la existencia humana como procesos culturalmente situados, así como la imposibilidad de disociarnos tales procesos del lugar social que ocupamos en virtud de los marcadores sociales personificados por nuestros cuerpos, es reconocer que sociedades racializadas producen no solo cuerpos racializados, sino también subjetividades racializadas.

Palabras clave:
Cuerpo Humano; Cultura; Subjetividad; Normatividad blanca; Relaciones raciales

O que é o corpo senão o limiar de nossa existência como seres psicológicos e sociais? É verdade que tal afirmação, apresentada em forma de pergunta, supõe um dualismo. Existiriam, assim, dois mundos: um interior, psicológico, subjetivo e um exterior, social, objetivo. Neste dualismo, segundo Kenneth Gergen (2001Gergen, K. J. (2001). Psychological science in a postmodern context. The American Psychologist, 56, 803-813. https://doi.org/10.1037/0003-066X.56.10.803
https://doi.org/https://doi.org/10.1037/...
), assentam-se as bases da psicologia moderna. Por um lado, a mente individual seria a fonte de toda a conduta humana e, assim sendo, desvendar os segredos dos processos mentais nos possibilitaria, em certo grau, prever e controlar a ação humana. Por outro, a organização externa da sociedade em laços de família, comunidade, igreja, Estado etc. seria não mais que um subproduto da mente humana, de maneira que, armados com o conhecimento fundamental sobre o funcionamento dos processos mentais, estaríamos aptos a construir, progressivamente, uma sociedade ideal. Resta, no entanto, que entre esses dois mundos - interior/exterior, psicológico/social, subjetivo/objetivo - encontra-se, ainda, o corpo. Voltaremos a ele em breve.

Pensemos, agora, esses dois mundos como inerentemente interligados e mutuamente construídos. Consideremos que existe uma relação de constituição mútua entre as dimensões interior e exterior, psicológica e social, subjetiva e objetiva. Para isso, precisamos concordar que aquilo que acreditamos ser transparentemente verdadeiro sobre o funcionamento humano é produto de uma construção coletiva. Ou seja, quando descrevemos o funcionamento de processos mentais e/ou sociais, estamos sempre nos posicionando a partir de um determinado referencial cultural; de uma série de acordos e convenções preexistentes, sem os quais tais descrições não fariam sentido. Uma vez que começamos a explicar tudo o que existe e acontece dentro e fora de nós mesmos/as, estamos inevitavelmente partindo de uma estrutura prévia de significados e inteligibilidade partilhados. Como defende Gergen (1973), ainda que pesquisas empíricas no âmbito da psicologia social tentem estabelecer leis ou princípios gerais sobre o funcionamento da mente humana, é preciso lembrar que o suporte empírico utilizado nessas pesquisas, assim como as teorias do comportamento social por elas formuladas, são sempre derivadas de observações histórica e culturalmente situadas. Essa maneira de conceber a relação entre os mundos interior e exterior, psicológico e social, subjetivo e objetivo é o que chamamos de construcionismo social.

Voltemos ao corpo, como prometido. Onde localizá-lo dentro de tal perspectiva? Esta pergunta nos traz de volta à afirmação que inaugura este ensaio. Ora, processos mentais não existem fora do corpo. Tampouco existiria, sem o corpo, o social. Pensando de tal forma, o corpo existe como eixo central de construções individuais e coletivas. Como apontado por Jaan Valsiner (2014Valsiner, J. (2014). Invitation to cultural psychology. SAGE.), a dimensão objetiva/concreta daquilo que chamamos de “corpo humano” está inevitavelmente ligada a uma dimensão subjetiva/abstrata:

Quando os corpos emergem - de outros corpos através do nascimento-eles adentram um mundo de significados, construído por seus criadores - outros corpos humanos ligados às mentes emergentes. Essas mentes enchem de sentido a emergência desses novos corpos - não é o corpo de uma mera “prole” que está nascendo, mas o de uma criança, um menino ou uma menina, ou de “minha filha” ou “meu filho”. O corpo da criança nascida é transformado em um ser humano, sendo imediatamente tratado como um agente portador e produtor de sentidos (Valsiner, 2014Valsiner, J. (2014). Invitation to cultural psychology. SAGE., p. 2, tradução nossa).

Por esse ponto de vista, o corpo não é apenas o corpo natural que todos nós (seres humanos) possuímos, mas uma entidade construtora de cultura e culturalmente construída, situada no espaço (sociedade) e no tempo (história). Em termos semióticos, tal conceitualização do corpo resulta em compreendê-lo como uma estrutura significante; ou o que Stuart Hall (2016, p. 92) descreve como “uma espécie de superfície na qual diferentes regimes de poder/conhecimento escrevem seus sentidos e efeitos”. Contudo, situá-lo no espaço e no tempo implica reconhecer que os significados e os sentidos a ele associados, tanto quanto os efeitos produzidos por essas associações, são sempre determinados por contextos culturais.

Neste ensaio, utilizaremos o corpo como ponto de partida para tecer algumas reflexões teóricas acerca dos processos de subjetivação de sujeitos racializados, propondo um movimento de desnaturalização daquilo que nos estudos críticos sobre raça é chamado de “normatividade branca”. Com base em contribuições das psicologias social e cultural, da sociologia e dos estudos culturais e pós-coloniais pautadas no construcionismo social, apresentaremos uma breve discussão sobre as relações entre corpo, cultura e subjetividade. Falaremos das maneiras pelas quais essas três dimensões da existência humana são mutuamente construídas, assim como das relações de poder que permeiam tais construções em contextos pós-coloniais. Movidos por uma epistemologia que busca superar a lógica dualista herdada da psicologia moderna, pretendemos contribuir teoricamente para uma abordagem psicológica das relações raciais, procurando pensar a psicologia e sua aplicação prática e teórica a partir dos contextos sociais e históricos dentro dos quais ela se encontra inserida como ciência e profissão.

Falar sobre normatividade branca é falar sobre corpos brancos em sociedades de supremacia branca. Em outras palavras, corpos socialmente identificados como “brancos”, vivendo em sociedades as quais, segundo Frances Ansley (1997Ansley, F. L. (1997). White supremacy (and what we should do about it). In R. Delgado, & J. Stefancic (Ed.), Critical white studies: Looking behind the mirror (pp. 592-55). Temple University Press.), são organizadas e reguladas por um sistema político, econômico e cultural que concede e reproduz, de maneira intencional ou não, privilégios simbólicos e materiais em favor dos brancos e em detrimento de outros grupos étnico-raciais, independentemente da presença ou ausência de ódio racial. Dito isso, começaremos discorrendo sobre um dos conceitos centrais para a presente discussão: o conceito de raça.

Na sua acepção contemporânea, a raça é entendida como uma construção/categoria social, o que significa dizer que não existe absolutamente qualquer base biológica por meio da qual seja possível justificar processos de distinção/hierarquização social entre seres humanos. Mas, apesar da inviabilidade do conceito de raça em seu sentido biológico, a biologia ainda desempenha um papel importante na construção de identidades raciais. Como apontam Michael Omi e Howard Winant (2015Omi, M., & Winant, H. (2015). Racial formation in the United States. Routledge.), existe uma dimensão corpórea crucial-embora não redutível - para a definição e compreensão de categorias raciais:

Corpos são visualmente lidos e narrados com base em um conjunto simbólico de significados e associações. Distinções corporais são comuns, e acabam por se tornar essencializadas. Diferenças perceptíveis na cor da pele, na estrutura física, na textura do cabelo, na estrutura das maçãs do rosto, no formato do nariz, ou a presença/ausência de uma dobra epicântica, são entendidas como manifestações de diferenças mais profundas, personificadas pelo indivíduo racialmente identificado: diferenças em qualidades, como os níveis de inteligência ou habilidade atlética, temperamento, sexualidade, dentre outras características (p. 111, tradução nossa).

Características fenotípicas são, dessa forma, capazes de acionar associações simbólicas que alimentam o imaginário racial e potencializam as práticas discriminatórias, dando substancialidade às diferentes identidades raciais. Embora não seja viável no sentido biológico - isto é, não seja uma categoria aceitável para diferenciar biologicamente os seres humanos -, a raça é capaz de produzir diferentes efeitos nas vidas das pessoas. Como no caso do corpo humano, aquilo que é comumente definido como a dimensão objetiva/concreta da raça está invariavelmente interligada a uma dimensão subjetiva/abstrata. Essa relação produz um salto conceitual do corpo humano para o corpo racializado - um salto descrito por Frantz Fanon (2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA.) como um desmoronamento do esquema semiótico por meio do qual entendemos um corpo como sendo, apenas, um “corpo humano”:

Então o esquema corporal, atacado em vários pontos, desmoronou, cedendo lugar a um esquema epidérmico racial…. De um homem exige-se uma conduta de homem; de mim, uma conduta de homem negro - ou pelo menos uma conduta de preto. Eu acenava para o mundo e o mundo amputava meu entusiasmo. Exigiam que eu me confinasse, que encolhesse (pp. 105-107).

Mas a que tipo de confinamento Fanon (2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA.) se refere? Diremos que a resposta mais óbvia, baseada em uma rápida interpretação das palavras do psiquiatra e pensador antilhano, seria a das fronteiras simbólicas impostas ao negro, e dentro das quais ele se encontra cultural e socialmente confinado. No entanto, essa breve interpretação nos leva a duas outras questões: a que remete o termo “negro”? e o que está do outro lado dessas fronteiras?.

Para a primeira, tentaremos formular uma reflexão que enfatize a centralidade do corpo para um entendimento do que o termo “negro” supostamente significa. No contexto apresentado por Fanon (2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA.), o termo “negro” se refere a um corpo/imagem à qual um conjunto de significados raciais é atribuído e que, por sua vez, torna esse corpo/imagem reconhecível como o de uma pessoa “negra” dentro de um contexto histórico e social específico. Nesse sentido, o “corpo negro” deve ser entendido em termos de uma estrutura semiótica produzida sob os efeitos inexoráveis do espaço e do tempo, o que também significa dizer que não há uma verdade ou essência fundamental sobre as quais tal estrutura possa se apoiar que não seja culturalmente inventada (Abreu, 2018Abreu, M. N. (2018). O efeito negro encantado: Representações étnico-raciais na era Obama. Devires.).

Em suas origens, tal estrutura é o resultado do que Fanon (2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA., p. 185) descreve como “um regime baseado na exploração de uma raça por outra, no desprezo de uma parte da humanidade por uma civilização tida por superior”. Trata-se, dessa maneira, de um processo composto por dimensões materiais e simbólicas. Um negro é assim entendido como membro de um grupo de tipos inferiores com base na origem racial, a fim de justificar sistemas de exploração e inferiorização. Por outro lado, tais sistemas produzem pela força uma realidade empírica que reflete as dimensões simbólicas de tal construção, criando uma relação cíclica de reciprocidade entre as duas dimensões.

Passemos, agora, à questão seguinte: o que está do outro lado das fronteiras dentro das quais o negro encontra-se cultural e socialmente confinado? Começaremos dizendo que, se raça é a ferramenta retórica e prática que tornou possível a transformação de corpos humanos em “corpos negros”, é também por meio dela que o “corpo branco” passa a existir. Em termos metafóricos, partindo das origens históricas dessas estruturas semióticas, o “corpo negro” é o negativo fotográfico pelo qual “corpos brancos” deram cor às suas próprias existências. Como dito por James Snead (1994Snead, J. (1994). White screens, black images: Hollywood from the dark side. Routledge., p. 2, tradução nossa) - parafraseando W. E. B. DuBois, em referência aos negros dos Estados Unidos -, “o ‘negro’ é a metáfora do século XX, a principal figura em que as relações de poder senhor/escravo, civilizado/primitivo, iluminado/obscuro, bom/mal, foram incorporadas ao subconsciente americano”. Nesses termos, o negro é produzido como um estado fixo do “Outro”, preso a um rótulo classificatório ao qual atribui-se um determinado valor (negro = escravo, primitivo, obscuro, mal…), em contraste com o “Eu” branco (branco = senhor, civilizado, iluminado, bom…).

Contudo, o dualismo descrito por Snead (1994Snead, J. (1994). White screens, black images: Hollywood from the dark side. Routledge.) não é suficiente para darmos conta das complexidades que constituem os processos de subjetivação produzidos pela racialização de corpos humanos em sociedades de supremacia branca e nem das consequências culturais que resultam desses processos. Isso não quer dizer que tal dualismo não produza efeitos. Certamente, a construção do negro como oposto negativo do branco produziu (e continua a produzir) diferentes impactos subjetivos e objetivos em corpos brancos e negros merecedores de atenção - desde a criação de sistemas políticos, econômicos e culturais projetados para manter corpos negros em um estado de inferioridade social; incluindo os movimentos de resistência criados por esses corpos (os quais incluem a apropriação e ressignificação do termo “negro”); e até os delírios de superioridade racial ainda alimentados por muitos daqueles considerados “brancos”.

Para alcançarmos uma compreensão mais profunda das relações culturais de poder por meio das quais sociedades de supremacia branca são constituídas, bem como dos processos subjetivos que elas produzem nos corpos racializados, é preciso superar essa oposição, recontextualizando a relação branco/negro em um novo nível qualitativo de organização ao qual nos referimos pelo termo “normatividade branca”.

Veremos que o fenômeno da normatividade branca não pode ser entendido por meio das polaridades acima descritas (superior/inferior, iluminado/obscuro, primitivo/civilizado, e assim por diante), construídas na relação dualista entre duas identidades raciais diretamente opostas. Em vez disso, devemos deslocar o corpo branco de um dos extremos da polaridade, reposicionando-o em um centro simbólico em torno do qual uma nova fronteira é traçada. Esse reposicionamento implica uma compreensão do corpo branco como um ponto de referência em relação ao qual a alteridade racial é construída. Produz-se, assim, uma estrutura simbólico-normativa da qual a pessoa branca compreende o mundo e a si mesma, centrada no lugar onde o corpo branco experimenta a ilusão de escapar do esquema epidérmico racial descrito por Fanon (2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA.).

Como aponta Michael Morris (2016Morris, M. (2016). Standard white: Dismantling white normativity. California Law Review, 104(4), 949-978.), se a identidade branca dependesse de ser o oposto positivo do negro (ou de qualquer outra raça), deveríamos ser capazes de colocar os brancos no topo de uma cadeia hierárquica de superioridade, com todas as outras raças dispostas abaixo deles. Um dos problemas em limitar os efeitos da supremacia branca a relações dualistas de superioridade versus inferioridade (onde os brancos ocupam sempre o extremo positivo) é que esta estrutura não leva em conta as inúmeras ocasiões em que nós, brancos, não ocupamos um lugar de superioridade - seja na vida real ou no imaginário social. Fora do âmbito do imaginário racista, as fantasias brancas de superioridade racial não possuem evidências concretas sobre as quais se apoiar.

O conceito de normatividade branca nos permite superar o estado fixo de dualidade produzido pela relação superior/inferior, de modo a admitir uma nova relação de alteridade racial, representada pelo binômio normal/não-normal (desviante, divergente, atípico, excepcional, anormal, quase normal etc.). Isso quer dizer que a normatividade branca não opera posicionando os brancos como a raça superior, mas como o “padrão” (ou o “normal”). Em outras palavras, a normatividade branca instrumentaliza diferenças, reais ou imaginárias, entre brancos e outros grupos étnico-raciais no sentido de convencionar as particularidades físicas e culturais dos primeiros como a forma normal/natural de ser humano, produzindo um efeito de estranheza ou de anormalidade em relação às particularidades físicas e culturais dos segundos. De acordo com Morris (2016Morris, M. (2016). Standard white: Dismantling white normativity. California Law Review, 104(4), 949-978., p. 952, tradução nossa), ela trata supostas virtudes e fraquezas, estereotipadamente atribuídas a grupos étnico-raciais minoritários, como evidência de que tais pessoas não são “pessoas” da mesma maneira que são os brancos: “pessoas brancas são pessoas e os membros de outros grupos étnico-raciais são pessoas na medida em que se assemelham às pessoas brancas”. A branquitude, portanto, encontra-se no centro da categorização racial.

Um dos efeitos desta nova relação é a produção de uma experiência subjetiva em que as pessoas brancas se compreendem não como corpos racializados (esquema epidérmico racial), mas simplesmente como corpos humanos (esquema corpóreo). Em outras palavras, ao posicionar o corpo branco no centro da categorização racial, a normatividade branca produz na pessoa branca a experiência subjetiva de ser um sujeito “desracializado”. Isso não quer dizer que as pessoas brancas não saibam que são brancas, mas que, de maneira geral, os brancos nas sociedades de supremacia branca não subjetivam a raça como uma dimensão crucial de suas identidades. Paradoxalmente, é a identificação racial do corpo branco que o possibilita ser socialmente percebido como apenas um “corpo humano”: o corpo branco como o signo cultural/político de humanidade, a branquitude como sua identidade natural. Se há uma coisa que nós, brancos, costumamos não reconhecer, é a nossa própria branquitude e todos os privilégios simbólicos e materiais dela provenientes.

Para começarmos a compreender o processo de subjetivação acima descrito, é necessário adotar uma compreensão dialética sobre a subjetividade. Lembremos que, para isso, é fundamental superar a lógica formal que separa o mundo objetivo do mundo subjetivo, e que passemos a entender essas duas dimensões como mutuamente construídas. Como afirmam Elis Aita e Marilda Facci (2011Aita, E. B., & Facci, M. G. D. (2011). Subjetividade: uma análise pautada na psicologia histórico-cultural. Psicologia em Revista, 7(1), 32-47.), compreender a subjetividade nesses termos significa que não podemos partir nem do mundo interno (do indivíduo) e nem do mundo externo (do social), mas entendermos que indivíduo e sociedade se constituem um ao outro sem necessariamente se confundir: “É por essa via que a análise supera a lógica formal e encaminha para o entendimento da unidade dialética entre indivíduo e sociedade” (Aita & Facci, 2011Aita, E. B., & Facci, M. G. D. (2011). Subjetividade: uma análise pautada na psicologia histórico-cultural. Psicologia em Revista, 7(1), 32-47., p. 43).

Voltemos, então, à hipótese de que a maioria das pessoas brancas, tendo crescido e construído suas visões de mundo em sociedades de supremacia branca, não subjetiva a raça como uma dimensão crucial de suas identidades. Essa generalização é central para o fenômeno da normatividade branca e deve ser entendida como processos subjetivos inerentemente relacionais e inseparáveis das experiências socioculturais vividas por corpos brancos em sociedades de supremacia branca. Com isso, estamos nos referindo a modos particulares e generalizáveis por meio dos quais corpos brancos processam, no nível subjetivo, os privilégios raciais, sejam eles simbólicos ou materiais, historicamente herdados como produto do racismo e da supremacia branca.

Antes de prosseguir, é preciso destacar alguns pontos cruciais. Em primeiro lugar, não estamos sugerindo que pessoas brancas que vivem em sociedades de supremacia branca formam um grupo monolítico em seus modos de perceber e interpretar a realidade, nem na maneira como enxergam pessoas de outras raças ou a si mesmas como membros de uma suposta “raça branca”. Em segundo lugar, o que define uma sociedade de supremacia branca não é a partilha consciente de valores comuns entre seus membros brancos no que tange às questões de raça e racismo; os brancos que vivem em sociedades de supremacia branca têm visões e comportamentos extremamente diferentes quanto às questões raciais, a exemplo do ódio racial autoconsciente em relação a membros de outros grupos étnico-raciais, sentimento de culpa ou de negação do racismo, orgulho ou vergonha raciais, engajamento genuíno no ativismo antirracista, e assim por diante. Em terceiro lugar, a normatividade branca não deve ser entendida como uma crença social consciente na ideia de que ser branco é o modo normal/natural de ser humano, mas como um efeito da centralidade ocupada pela branquitude nos processos de categorização racial, o que, por sua vez, é capaz de influenciar comportamentos e atitudes coletivas e individuais. Finalmente, dizer que os brancos não subjetivam a raça como uma dimensão crucial de suas identidades não significa que os brancos não estejam sujeitos aos efeitos da raça e do racismo. Precisamente pelo fato dos nossos corpos serem socialmente identificados como “brancos” que, em virtude da raça e do racismo, somos capazes de gozar de certos privilégios simbólicos e materiais que são negados aos membros de outros grupos étnico-raciais.

Entendemos que alguns desses pontos podem parecer contraditórios, dada a suposição de existência de modos particulares e generalizáveis pelos quais corpos brancos processam privilégios raciais no nível subjetivo. Entretanto, o paradoxo entre reconhecer essa possibilidade e a afirmação de que a identidade branca envolve grupos heterogêneos de indivíduos pode ser explicado pelas relações cíclicas de reciprocidade que unem as dimensões subjetiva e objetiva por meio das quais sujeitos brancos e supremacia branca são mutuamente constituídos como construções socioculturais. Ilustraremos este argumento voltando ao fenômeno da normatividade branca.

Em um artigo no qual propõe um movimento de decolonização da psicologia como ciência, Suntosh R. Pillay (2017Pillay, S. R. (2017). Cracking the fortress: can we really decolonize psychology? South African Journal of Psychology, 47(2), 135-140. https://doi.org/10.1177/0081246317698059
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/...
, p. 135, tradução nossa) coloca a seguinte questão: “Por que a psicologia ocidental é inocentemente chamada de ‘psicologia’, mas a psicologia africana é geograficamente localizada?”. A pergunta de Pillay (2017)Pillay, S. R. (2017). Cracking the fortress: can we really decolonize psychology? South African Journal of Psychology, 47(2), 135-140. https://doi.org/10.1177/0081246317698059
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pode ser um bom ponto de partida para examinarmos as relações cíclicas de reciprocidade que unem as dimensões subjetiva e objetiva da normatividade branca. Deste ponto de vista, o que está implícito na pergunta de Pillay (2017)Pillay, S. R. (2017). Cracking the fortress: can we really decolonize psychology? South African Journal of Psychology, 47(2), 135-140. https://doi.org/10.1177/0081246317698059
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é que o elemento geográfico, ao qual o termo “africana” se refere, está associado a um conjunto de significados que inevitavelmente levam a uma condição racial/cultural; uma condição invisibilizada quando a psicologia “ocidental” é apresentada simplesmente como “psicologia”. Já que o colonialismo ocidental é a base histórica sobre a qual identidades brancas e negras foram construídas e ressignificadas ao longo do tempo (Fanon, 2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA.; Mbembe, 2014Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. Antígona.), não seria uma questão de conjectura sugerir que, no contexto do problema abordado por Pillay (2017)Pillay, S. R. (2017). Cracking the fortress: can we really decolonize psychology? South African Journal of Psychology, 47(2), 135-140. https://doi.org/10.1177/0081246317698059
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, os termos “ocidental” e “africano” conotam e se correlacionam com as categorias raciais “branco” e “negro”. Não é por acaso que, imediatamente após colocar tal pergunta, Pillay (2017)Pillay, S. R. (2017). Cracking the fortress: can we really decolonize psychology? South African Journal of Psychology, 47(2), 135-140. https://doi.org/10.1177/0081246317698059
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nos instiga a questionar por que as teorias da consciência negra de Frantz Fanon e Steve Biko não são rotineiramente ensinadas às/aos estudantes de psicologia.

O problema apresentado por Pillay (2017Pillay, S. R. (2017). Cracking the fortress: can we really decolonize psychology? South African Journal of Psychology, 47(2), 135-140. https://doi.org/10.1177/0081246317698059
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/...
) envolve uma questão de amplas dimensões. De fato, o poder de penetração da normatividade branca é algo evidente na cultura ocidental. Uma busca no Google pelo termo white psychology (psicologia branca), por exemplo, revela uma série de artigos sobre os efeitos da cor branca no humor, emoção e comportamento das pessoas, assim como dos significados psicológicos a ela associados. Por outro lado, os resultados encontrados pela busca do termo black psychology (psicologia negra) remetem a tipos particulares de psicologia que se definem pelo estudo das experiências e comportamentos das populações negras (pessoas de ascendência africana), ou pela aplicação de uma visão cosmológica africana a fenômenos sociais ou psicológicos1 1 Quando realizada em português, a pesquisa apresentou resultados semelhantes. A busca pelo termo “psicologia branca” teve como principais resultados os temas “Janeiro branco” (campanha de mobilização da população em favor da saúde mental) e os “significados das cores” (matérias relacionando a influência das cores no humor, comportamento e motivações das pessoas). Já a busca pelo termo “psicologia negra” resultou em matérias sobre os impactos do racismo na saúde mental dos negros no Brasil, enquanto todos os resultados para o termo “psicologia preta” indicaram matérias sobre um curso criado pelo psicólogo e mestre em psicologia, Lucas Veiga, tendo por objetivo responder à questão “como curar a negritude dos efeitos do racismo?”.

Enquanto a associação do termo white (branco) a um campo específico do conhecimento nos remete a estudos relacionados à cor branca - não ameaçando, dessa forma, a suposta universalidade do campo -, a associação do termo black (negro) a esse mesmo campo de conhecimento impõe uma condição racial/cultural que compromete a suas reivindicações de universalidade. Nesse sentido, não há possibilidade de existência para uma “psicologia africana” que não consista em ser um subcampo da psicologia (ocidental): a psicologia africana (negra) não é psicologia no mesmo sentido que é a psicologia ocidental (branca); psicologia ocidental é psicologia, e a psicologia africana pode ser considerada psicologia desde que permaneça um subcampo da psicologia ocidental.

No entanto, somente ao se colocar como apenas “psicologia” - isto é, ocultando seu referencial racial/cultural - é que a psicologia ocidental pode produzir a ilusão de ser universal. Ao ocultar o seu componente racial/cultural, a psicologia ocidental presume o local por universal, se prestando a falar em nome de toda a humanidade - assim é, também, o caso da literatura ocidental, da filosofia ocidental, da arte ocidental, dentre outros tantos produtos culturais historicamente herdados do colonialismo europeu e continuamente reconfigurados ao longo do período pós-colonial.

Concordamos com Richard Dyer (2000Dyer, R. (2000). The matter of whiteness. In L. Back, & J. Solomos (Eds.), Theories of race and racism: a reader (pp. 539-548). Routledge.) quando diz que não podemos negar o fato de que, em certa medida, o multiculturalismo pós-moderno abriu espaço para vozes “não brancas”, desafiando assim a autoridade do “ocidente branco” e suas formas hegemônicas de conhecimento e de ser e estar no mundo - como o próprio reconhecimento de uma “psicologia africana” sugere. Por outro lado, Dyer (2000)Dyer, R. (2000). The matter of whiteness. In L. Back, & J. Solomos (Eds.), Theories of race and racism: a reader (pp. 539-548). Routledge. também nos lembra que o poder da normatividade branca mantém essa abertura em constante risco de transformar-se numa espécie de “espetáculo do Outro”, no qual os brancos olham com deleite para todas as diferenças que os cercam sem, no entanto, reconhecerem a sua própria especificidade racial/cultural. De fato, o ubíquo fantasma da normatividade branca é capaz de reduzir implacavelmente qualquer coisa não branca a um mero instrumento da branquitude, negando verdadeira autonomia e aceitando a diferença apenas na medida em que esta funciona como um meio de reforçar o “universalismo” branco - como o caso da “psicologia africana” também exemplifica.

O caráter definidor da normatividade branca é, portanto, ser ao mesmo tempo produto e produtora de uma cultura hegemônica que fala sobre si mesma, enquanto reivindica falar em nome de toda a humanidade. Resta, no entanto, exemplificarmos a dimensão subjetiva de tal processo, e de como este é capaz de produzir, no sujeito branco, modos particulares e generalizáveis de perceber a realidade e de ser, estar e atuar no mundo.

Em sua tese de doutorado sobre os efeitos psicossociais da branquitude, a psicóloga social Lia Schucman (2012Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. (Tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.) realizou entrevistas informais com pessoas brancas de diferentes origens socioculturais na cidade de São Paulo. Em uma das situações descritas em seu trabalho, enquanto participava de uma festa, Schucman (2012)Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. (Tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. teve a oportunidade de fazer a quinze pessoas brancas a seguinte pergunta: “qual a sua raça?”. As respostas variaram desde expressões sarcásticas, como “eu sou um rottweiler” ou “sou marciano”, à afirmação acrítica “eu sou da raça humana”, com apenas uma pessoa reconhecendo ser branca. Quando a mesma pergunta foi feita aos quatro integrantes negros da banda musical contratada para tocar na festa, todas as respostas se referiram a marcadores raciais, como “sou negro” ou “sou de pele escura”.

Schucman (2012Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. (Tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.) usa o exemplo acima descrito para parafrasear Ruth Frankenberg (1999Frankenberg, R. (1999). White women, race matters: the social construction of whiteness. University of Minnesota Press.) quanto a uma definição de branquitude como um lugar estrutural que permite ao sujeito branco atribuir ao outro aquilo que não é atribuído a si mesmo: a raça. No entanto, Frankenberg (1999)Frankenberg, R. (1999). White women, race matters: the social construction of whiteness. University of Minnesota Press. vai além, ao incluir ao conceito de branquitude um conjunto de práticas culturais hegemônicas desprovidas de marcadores que indiquem uma especificidade cultural ou racial. Vista em sua totalidade, percebe-se que tal definição de branquitude traz implícita a noção de normatividade racial como uma característica estrutural da identidade branca que atravessa as três dimensões da experiência humana sobre as quais nos debruçamos nesse texto: o corpo, a cultura e a subjetividade.

No nível subjetivo, as respostas fornecidas pelos entrevistados brancos de Schucman (2012Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. (Tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.) reverberam o que bell hooks (1992)hooks, b. (1992). Representations of whiteness in the black imagination. In b. hooks, Black looks: Race and representation (pp. 165-178). South End Press. descreve, em relação aos brancos estadunidenses, como uma mistura de negação e ingenuidade, comumente exibida quando sentem que sua crença liberal em uma subjetividade universal (“somos todos pessoas”) está sendo subvertida ou ameaçada. Segundo hooks (1992)hooks, b. (1992). Representations of whiteness in the black imagination. In b. hooks, Black looks: Race and representation (pp. 165-178). South End Press., esse tipo de comportamento sugere um profundo investimento emocional que boa parte dos liberais brancos faz no mito da “mesmidade”2 2 Escolhi o termo “mesmidade” para traduzir o termo “sameness”, utilizado pela autora no texto original, o qual é proveniente da palavra “same”, que em português significa “o mesmo”. No contexto da citação, o mito da “mesmidade” serve ao propósito de evitar a reflexão acerca do problema do racismo, por meio de uma instrumentalização retórico-ideológica do fato de que, no âmbito biológico, não existem diferenças substanciais entre seres humanos para que estes sejam racialmente classificados. , ainda que suas ações reflitam a primazia da branquitude como um sinal informando quem são e como pensam.

Certamente, o que está em jogo não é decidir se os entrevistados brancos de Schucman (2012Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. (Tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.) são liberais bem-intencionados ou racistas dissimulados. Olhando para o experimento de Schucman (2012)Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. (Tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. pela perspectiva apresentada por hooks (1992)hooks, b. (1992). Representations of whiteness in the black imagination. In b. hooks, Black looks: Race and representation (pp. 165-178). South End Press., podemos começar a reconhecer que os modos particulares pelos quais diferentes grupos étnico-raciais experimentam as dimensões simbólica e objetiva do racismo e da supremacia branca produzem formas particulares de perceber a realidade e de ser, estar e atuar no mundo. Nesse sentido, as maneiras pelas quais incorporamos e reproduzimos um determinado modelo cultural em nossas subjetividades estão inevitavelmente conectadas ao lugar social que ocupamos em determinada cultura, em virtude dos marcadores sociais personificados por nossos corpos culturalmente construídos - sendo a raça apenas um desses marcadores.

Uma pesquisa conduzida pela socióloga Megan Underhill (2017Underhill, M. R. (2017). Parenting during Ferguson: Making sense of white parents’ silence. Ethnic and Racial Studies, 41(11), 1934-1951. https://doi.org/10.1080/01419870.2017.1375132
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) examinou de que maneira pais americanos brancos de classe média conversaram com seus filhos sobre as tensões e os protestos raciais que marcaram o período em que o assassinato de Michael Brown e os protestos raciais na cidade de Ferguson ocuparam lugar de destaque nos noticiários estadunidenses3 3 Em 9 de agosto de 2014, o jovem negro de 18 anos, Michael Brown Jr., foi morto a tiros pelo policial branco de 28 anos, Darren Wilson, na cidade de Ferguson, Missouri. Embora Brown estivesse desarmado, Wilson atirou doze vezes contra o jovem, seis dos quais atingiram o alvo. O incidente iniciou uma série de protestos raciais na cidade de Ferguson, que durou mais de uma semana, transformando-se rapidamente em uma das principais notícias nos Estados Unidos durante esse período e se tornando um tema de debate nacional. . Underhill (2017)Underhill, M. R. (2017). Parenting during Ferguson: Making sense of white parents’ silence. Ethnic and Racial Studies, 41(11), 1934-1951. https://doi.org/10.1080/01419870.2017.1375132
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compara seus achados aos de pesquisas que documentam práticas de socialização racial em famílias negras. A pesquisa conclui que, embora as práticas de socialização racial de pais brancos e negros sejam movidas pelo desejo de proteger seus filhos, esse desejo os motiva a adotar abordagens radicalmente diferentes. Enquanto os pais negros se preocupam em ensinar aos seus filhos como transitar em uma sociedade racialmente tendenciosa, os pais brancos demonstram serem movidos por uma ideologia de daltonismo racial, optando por uma abordagem neutra ou defensiva ou relatando não conversarem com seus filhos sobre questões de raça e racismo.

Com base na comparação de Underhill (2017Underhill, M. R. (2017). Parenting during Ferguson: Making sense of white parents’ silence. Ethnic and Racial Studies, 41(11), 1934-1951. https://doi.org/10.1080/01419870.2017.1375132
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), é possível argumentar que a drástica diferença entre as práticas de socialização racial adotadas por pais negros e brancos - de um lado, a preparação para o enfrentamento do racismo e do preconceito racial; do outro, o silenciamento ou a retórica do daltonismo racial - refletem os diferentes lugares sociais ocupados por corpos brancos e negros em uma cultura de supremacia branca:

Enquanto membros do grupo racial dominante, os brancos não precisam pensar na raça quando refletem sobre o bem-estar físico ou psicológico de seus filhos. Na verdade, a estratégia do silêncio racial permite aos brancos manter sua posição de domínio, ao mesmo tempo em que conservam uma consciência livre de culpa. O oposto se aplica às “pessoas de cor”. Elas são movidas a conversar com seus filhos sobre discriminação racial, violência e brutalidade policial, a fim de protegê-los de danos físicos ou psicológicos (Underhill, 2017Underhill, M. R. (2017). Parenting during Ferguson: Making sense of white parents’ silence. Ethnic and Racial Studies, 41(11), 1934-1951. https://doi.org/10.1080/01419870.2017.1375132
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, p. 15, tradução nossa).

Poderíamos considerar a possibilidade de que muitos pais brancos adotam a estratégia do silêncio e/ou do daltonismo racial em função de uma crença sincera em uma subjetividade universal (“só existe uma raça: a raça humana”) e porque acreditam que, dessa maneira, estarão criando filhos não racistas - como se a negação da raça fosse capaz de fazer o racismo magicamente desaparecer. No entanto, as disparidades entre as abordagens adotadas por pais brancos e negros, no que diz respeito a educar seus filhos sobre os temas da raça e do racismo, podem servir como evidência de que nossas experiências sociais, como corpos racializados, exercem uma influência significativa sobre as maneiras pelas quais subjetivamos a raça e a incorporamos às nossas identidades. Nesse sentido, o estudo de Underhill (2017Underhill, M. R. (2017). Parenting during Ferguson: Making sense of white parents’ silence. Ethnic and Racial Studies, 41(11), 1934-1951. https://doi.org/10.1080/01419870.2017.1375132
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) sugere que, pelo fato de não precisarmos nos preocupar com os efeitos negativos do racismo em nossas situações cotidianas, nós, brancos, não costumamos subjetivar a raça como uma dimensão crucial de nossas identidades.

Situações cotidianas, como escolher a maneira mais apropriada de educar os filhos acerca da raça e do racismo, são realidades cultural e socialmente construídas. Assim como são, também, os processos hegemônicos de naturalização do que é local e específico como sendo universal, normal ou natural. Aquilo que para cada um de nós é sentido e percebido como a “verdade” das coisas é apenas o produto de nossa participação em uma série de acordos e convenções preexistentes.

Pessoas que compartilham de um conjunto de pressupostos socioculturais, construídos a partir de experiências comuns como corpos racializados, costumam reproduzir formas de ser, estar e atuar no mundo que são consistentes com tais pressupostos. Essas formas de ser, estar e atuar, por suas vezes, funcionam como mecanismos de promoção e manutenção de conjuntos particulares de expressões psicológicas. Reconhecer a dimensão subjetiva da experiência humana como processos culturalmente situados, assim como a impossibilidade de dissociarmos tais processos dos lugares sociais que ocupamos em virtude dos marcadores sociais personificados por nossos corpos, é reconhecer que sociedades racializadas produzem não apenas corpos racializados mas também subjetividades racializadas.

Não pode haver movimento de enfrentamento ao racismo sem uma teoria crítica da raça, assim como qualquer movimento teórico que busque elaborar tal crítica deve considerar as maneiras pelas quais corpo, cultura e subjetividade são mutuamente construídos e as relações de poder que permeiam tais construções. Nesse sentido, o estudo dos efeitos psicológicos da raça e do racismo, tanto quanto a sua aplicação nos mais diversos âmbitos de trabalho da psicologia, não podem ser dissociados dos contextos sociais e históricos dentro dos quais encontram-se inseridos.

Como aponta Schucman (2012Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. (Tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.), é sintomático que as matrizes curriculares das faculdades de psicologia no Brasil raramente façam menção ao tema da raça e do racismo nas disciplinas obrigatórias. Dessa forma, podemos supor que a normatividade branca tem operado na própria psicologia, tanto como ciência quanto como profissão, na medida em que a formação de psicólogas/os continua centrada na ideia de uma humanidade universal; ou seja, no total desprezo dos impactos produzidos pelas identidades raciais (assim como por outros marcadores sociais) para o desenvolvimento do psiquismo humano. Sendo assim, se o presente texto puder servir como fonte de reflexão para estudantes e profissionais da psicologia, no sentido de impulsionar autoavaliações internas ao campo quanto à importância das relações e das identidades raciais para o desenvolvimento psicossocial da pessoa, teremos cumprido seu principal objetivo.

Referências

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  • Valsiner, J. (2014). Invitation to cultural psychology. SAGE.
  • 1
    Quando realizada em português, a pesquisa apresentou resultados semelhantes. A busca pelo termo “psicologia branca” teve como principais resultados os temas “Janeiro branco” (campanha de mobilização da população em favor da saúde mental) e os “significados das cores” (matérias relacionando a influência das cores no humor, comportamento e motivações das pessoas). Já a busca pelo termo “psicologia negra” resultou em matérias sobre os impactos do racismo na saúde mental dos negros no Brasil, enquanto todos os resultados para o termo “psicologia preta” indicaram matérias sobre um curso criado pelo psicólogo e mestre em psicologia, Lucas Veiga, tendo por objetivo responder à questão “como curar a negritude dos efeitos do racismo?”.
  • 2
    Escolhi o termo “mesmidade” para traduzir o termo “sameness”, utilizado pela autora no texto original, o qual é proveniente da palavra “same”, que em português significa “o mesmo”. No contexto da citação, o mito da “mesmidade” serve ao propósito de evitar a reflexão acerca do problema do racismo, por meio de uma instrumentalização retórico-ideológica do fato de que, no âmbito biológico, não existem diferenças substanciais entre seres humanos para que estes sejam racialmente classificados.
  • 3
    Em 9 de agosto de 2014, o jovem negro de 18 anos, Michael Brown Jr., foi morto a tiros pelo policial branco de 28 anos, Darren Wilson, na cidade de Ferguson, Missouri. Embora Brown estivesse desarmado, Wilson atirou doze vezes contra o jovem, seis dos quais atingiram o alvo. O incidente iniciou uma série de protestos raciais na cidade de Ferguson, que durou mais de uma semana, transformando-se rapidamente em uma das principais notícias nos Estados Unidos durante esse período e se tornando um tema de debate nacional.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2019
  • Aceito
    17 Out 2019
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